Boaventura de Sousa Santos
Visão 3 de Abril 2014
O 25 de Abril que não aconteceu
Estamos a entrar no mês das celebrações. Vão organizar-se muitas
peregrinações ao 25 de Abril de 1974 com trajetos e até destinos diferentes,
como se fossem pacotes de turismo da memória. Um tempo tão importante
pelos lugares visitados como pelos evitados, pelo que vai ser dito como
pelo que não vai ser dito. Remeto-me a imaginar os lugares evitados, o nãodito, propondo-me um exercício de sociologia das ausências. São três os 25
de Abril que vão estar ausentes. O 25-de-Abril-de-quem-deve-teme. Para
os poderosos, as elites de sempre (latifundiários, grandes industriais,
banqueiros), todas com "sólida formação moral" certificada pela PIDE, o
25 de Abril foi uma dor de cabeça, um desconforto inoportuno. Para
alguns, até pareceu um bom negócio mas foi sol de pouca dura. A partir de
11 de Março de 1975, transformou-se numa ameaça que lhes causou medo
e os obrigou a protegerem-se. Foi um susto passageiro, pois em 25 de
Novembro do mesmo ano foi-lhes dito ao ouvido (para os portugueses
comuns não ouvirem) que, com o tempo, tudo voltaria ao normal. Não seria
sequer necessário criar uma comissão de verdade e reconciliação e muito
menos uma que incluísse, além destas, justiça. Quarenta anos depois, quem
teve medo já nem se lembra e quem lhes causou medo tem medo de lhes
lembrar.
O 25-de-Abril-dos-revolucionários-aferventados. Foi a fulguração das
ruas, das praças, dos campos, das escolas, das famílias, dos quarteis a
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incendiar a imaginação duma sociedade justa, como se a felicidade
estivesse à mão, a opressão secular fosse um pesadelo passageiro e o futuro
distante e radioso tivesse chegado aqui e agora para ficar. Havia partidos
que se diziam de vanguarda mas nem retaguarda eram da alegria que
transbordava. O país eram trabalhadoras rurais analfabetas a vasculharem
maravilhadas as gavetas íntimas das senhoras da herdade; operários
empolgados a tentarem convencer-se a si próprios de que tinham direitos
contra o patrão; prostitutas a organizarem-se em sindicatos; jovens a
fazerem sexo tão incessantemente quanto faziam cartazes e manifestos;
camponeses a organizar "corporativas" por soar mais familiar do que
cooperativas; jornalistas a poderem escrever socialismo ou comunismo
como se fosse anúncio de filme em cartaz; professores a poderem leccionar
Karl Marx e já não Carlos Marques como anteriormente faziam para
despistar os informadores da PIDE no fundo da sala. Tudo aferventado
porque mal cosido e a escaldar. A quem já foi senhor dos seus sonhos,
mesmo que por pouco tempo, custa lembrar, em tempos de servidão, que já
esteve levantado do chão.
O-25-de-Abril-das-grandes-manobras. No ano anterior, a primeira
experiência de socialismo democrático do século XX, o governo de
unidade popular de Salvador Allende no Chile, tinha sido esmagada por
militares a soldo da CIA. Portugal corria o risco de repetir a experiência, o
que, do ponto de vista dos EUA, seria ainda mais grave por ocorrer na
Europa ocidental, uma zona de influência sua nos termos do Tratado de
Yalta. Kissinger considerou a invasão do país com o apoio da NATO, mas
a social democracia europeia (sobretudo alemã) opôs-se e propôs que, em
vez de militares, viesse dinheiro, muito dinheiro, para fortalecer os partidos
e os movimentos sociais que se opunham ao "modelo soviético". Assim se
fez e os resultados foram os esperados. Portugal ficou então em dívida para
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com os alemães e assim continua hoje. Mudam-se os tempos mudam-se as
dívidas mas não o endividamento. Quarenta anos depois, seria impertinente
falar de imperialismo norte-americano quando afinal ele é agora europeu.
O 25 de Abril foi a mega-expectativa de ontem que está na origem da
mega-frustração de hoje. Aos peregrinos ao 25 de Abril de 1974 eu
aconselharia que acampassem por lá durante um tempo, tomassem o ar
livre, cheirassem o alecrim, conversassem sobre Portugal como se fosse
outra vez coisa sua e, em vez de regressarem, organizassem uma expedição
ao presente e, já que estamos a falar de peregrinos, expulsassem os
vendilhões do templo.
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