Organizações Familiarmente Responsáveis
A partir de hoje e durante os próximos 45 dias, decorrerá a discussão pública do projeto de
Norma Portuguesa para organizações familiarmente responsáveis.
Esta norma guia vem responder a uma necessidade de orientação das organizações
portuguesas para que, na sua estratégia, políticas e práticas, incorporem a conciliação entre o
trabalho e a família, incluindo aqui as atividades pessoais.
Uma vez que já existe nesta área uma norma privada de origem espanhola, que algumas
organizações empresariais adotaram e que é certificável, importa esclarecer qual é, no nosso
entender, a razão das opções que presidiram à norma.
Antes de mais, não é certificável, é um guia e não uma norma de requisitos.
Consideramos que a conciliação é parte de uma estratégia mais alargada que inclui a
Sustentabilidade e a Responsabilidade Social. Acresce que a conciliação trabalho-família tem
de ser integrada no quadro da igualdade de género e da igualdade de oportunidades. Mas
deriva, acima de tudo, de um conceito de dignidade integral do Ser Humano, que não se
esgota, bem longe disso, na sua vida profissional.
Ou seja, apenas conciliar e apenas reconhecer as práticas de conciliação deixa de fora
questões centrais de direitos humanos, estreitamente ligadas.
Não sendo o caso entre nós, é evidente que em certos ambientes mais permissivos, estas
certificações podem funcionar como “cortinas de fumo” para ocultar pressões para que a
mulher regresse à sua função de prestadora de cuidados caseiros não remunerados e,
portanto, à sua saída do mercado de trabalho ou à redução da qualidade e quantidade da sua
contribuição.
Por outro lado, a conciliação é um processo que pode ser regulado por um sistema de gestão
e, nesse âmbito, seria possível definir requisitos. Mas a conciliação é muito mais uma questão
de valores e de atitudes organizacionais do que de regulamentos ou procedimentos. Qualquer
bom sistema pode ser invalidado por uma cultura que sobrevalorize a concorrência interna, os
objetivos de curto prazo, o sucesso individual ou valores de igual teor.
Assim, a conciliação, regulada pela Lei e pelas normas regulamentares, só terá pleno sucesso
se for suportada por uma ética organizacional que compagine o sucesso da organização no
quadro geral da Sustentabilidade e da criação de valor para as partes interessadas, com o
respeito pela dignidade humana e felicidade pessoal de cada pessoa na organização.
Trata-se de considerar as pessoas como parte da organização, que lhes pertence e a quem
pertencem, e não como “recursos” que importa rentabilizar ao máximo mesmo que isso
signifique invadir o seu tempo de lazer, durante o qual têm o direito de fazer o que melhor
lhes parecer.
Por isso, qualquer certificação na área da responsabilidade social só tem sentido se tiver como
objeto o sistema de gestão do conjunto das atividades que nela se incluem e não apenas um
dos seus aspetos.
Para esse efeito está disponível a NP 4469-1, que segue as orientações contidas na ISO 26000.
O que se pretende com a Norma que agora entra em discussão pública é suscitar nas
organizações o desejo de integrar a dimensão da vida pessoal e familiar na forma como
organizam as suas operações e como concebem as carreiras e avaliações das pessoas que as
compõem. Procura-se fornecer num só instrumento um conjunto de ideias decorrentes das
convenções internacionais, da legislação comunitária e nacional e do trabalho de investigação
sobre a matéria. Fica claro que “práticas” avulsas, se não resultarem de uma opção de fundo,
não chegam para que a mudança aconteça.
Procura-se facilitar o trabalho de quem na organização tenha a missão de orientar as políticas
de gestão para o objetivo maior da conciliação: a RE-conciliação, ou seja, superar a contradição
que leva tantos jovens a pensar que se querem ser bem sucedidos terão de deixar para trás os
compromissos familiares, abandonar os seus círculos de amigos, deixar de investir tempo em
auto formação e deixar de usufruir de cultura e lazer para dedicar três horas por dia além do
horário de trabalho, a tentar responder a todas as solicitações que lhes são feitas, cumprindo
urgentes prazos que afinal até nem eram assim tão urgentes e satisfazendo chefes neuróticos
que pressionam porque acreditam que é esse o seu principal trabalho.
Na nova sociedade de conhecimento, o trabalho já pouco se compadece com medidas de
comprimento, largura ou duração. É a qualidade das pessoas e o seu desejo de fazer bem, de
apoiar o projeto coletivo em que se sintam integradas, é esse o fator diferenciador.
Pessoas infelizes, sem vida própria, sem equilíbrio emocional, sem interesses nem curiosidade
intelectual, sem o impulso empreendedor e criador que vem do amor pelos filhos e do desejo
profundo de lhes dar uma vida melhor, serão sempre trabalhadores medíocres, que fazem
organizações medíocres.
Como só a contínua valorização das pessoas trará mais competitividade à economia
portuguesa, a conciliação é uma questão de competitividade geral da economia e de cada
empresa. Não podemos dar-nos ao desperdício de obrigar os mais conscientes e responsáveis
a optar entre uma vida profissional empenhada e uma vida pessoal e familiar emocionalmente
e economicamente equilibrada. Se uma destas vidas sair a perder é Portugal que perde.
Mário Parra da Silva
Presidente da Direção - APEE
(Associação Portuguesa de Ética Empresarial)
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