E o autor. Como é que fica?
E O AUTOR, COMO É QUE FICA?
THAÏS FLORES NOGUEIRA DINIZ
Universidade Federal de Ouro Preto
A noção de autoria, de uma identidade individual estável,
proprietária absoluta de seus próprios pensamentos e de sua obra,
surgiu num momento privilegiado da história das idéias e da filosofia, o momento da individualização. Esta noção é relativamente
recente, pois a muitas obras do passado não eram atribuídos autores
definidos; todas pertenciam à tradição. Nem na crítica literária e
nem na poética antigas, essa noção de autoria estava implícita, pois
o poeta, ou "makcr" era definido como o que dá nova forma a um
material já existente. Algumas tradições críticas sempre colocaram
a fonte da criatividade além da consciência do poeta. É o que acontece, por exemplo, na tradição cristã, que considera o poeta apenas
como o canal de inspiração do ato de criação divina, ou na Freudiana, que vê a criatividade originando-se na mente inconsciente.
Os marxistas, por sua vez, consideram-na como uma noção determinada historicamente: a emergência do individualismo burguês se
expressando no conceito ideológico de autoria.
No século XIX, Wordsworth tentou difundir uma noção diferente: a idéia da presença e intenção do autor na expressão poética.
Porém, essa "presença aparente" foi logo questionada ao se tentar
estabelecer a diferença entre linguagem poética e científica. Mesmo
Keats, seu contemporâneo, argumentou em favor da não identidade
do poeta, ser humano, porém considerando a possibilidade de que
este pudesse receber outras identidades. T.S.Eliot apresentou um
modelo de impersonalidade poética semelhante. Para ele, o material emocional deve ser retrabalhado para conduzir a um poema impessoal que, em vez da expressão direta da emoção, nos dá um "objective correlative". A mente que cria deve ser separada do sujeito
que sofre. O que conta não é a intensidade das emoções mas a
intensidade do processo artístico. Este modelo não é muito diferente do conceito Bakhtiniano de discurso dialógico, em que o au334
tor aparece para permitir aos personagens a expressão de consciências livres, não raro conflitantes. Do mesmo modo, Pound, rejeitando a preocupação com o "self", considerou a atividade poética
como uma atividade técnica: uma estrutura verbal é modelada para
corresponder a um estado emocional, não necessariamente o do
poeta. Endossando essa posição, os Novos Críticos adotaram o conceito Eliotiano de impersonalidade. Para eles, o poema é um artefato autônomo nem governado pelas intenções do poeta, nem pelas
reações dos leitores. Uma vez escrito, não mais pertence a seu autor, que se torna o primeiro leitor de seu próprio texto. O sentido
do texto deriva, não de qualquer intenção anterior a ele, mas de si
mesmo. Na mesma linha, Henry James já propusera uma forma indireta de narração que distanciava o autor da narrativa. Esta forma
prenunciava o discurso dialógico de Bakhtin e o modelo de impersonalidade de Eliot - o autor se encontra distanciado de sua própria
criação.
Nos anos quarenta, apareceu a noção de forma simbólica.
Cassirer e Susanne Langer tentaram resgatar as reivindicações dos
Românticos. Para Cassirer, toda linguagem, inclusive a da ciência,
apenas reflete a forma da mente humana e não a do universo. Para
Langer, os usos da linguagem não são imitação e sim formas simbólicas que criam uma realidade espiritual que modela e organiza o
que chamamos de realidade - nossa experiência de tempo e espaço.
A arte, segundo ela, desenvolve uma linguagem simbólica capaz de
veicular os sentimentos humanos objetivamente. Neste sentido, arte
não é auto-expressão, mas simbolização da expressão, e os símbolos estéticos, não apenas registros pessoais, mas realizações da
emoção, realizações que não poderiam ser atingidas a não ser pela
arte.
Na teoria pós-estruturalista, a pessoa do autor foi substituída
pelo sujeito, categoria gramatical, espaço aberto da estrutura da
linguagem, esperando ser preenchido num contexto particular. Em
seu famoso ensaio "A morte do autor", Barthes coloca o autor num
ponto de confluência do "já escrito". Para ele, o texto não pode ser
explicado a partir de seu autor, que não é o ponto de origem do
texto e sim aquele que mistura as cadeias de discurso que formam o
"grande texto". Muito mais radical e perturbadora em suas implicações, entretanto, é a noção de impersonalidade literária apresen335
2o Congresso Abralic - III Volume
tada por Frederick Jameson, que considera o autor, não como um
receptor ou catalizador ou ainda como um artista, mas como um
sujeito vazio, esperando pelo momento da enunciação, no qual o eu
irá receber sua definição. O autor, segundo ele, passa a ser o sujeito
da enunciação. Nesta mesma linha, Genette nega a distinção mimese/diegese, considerando que toda representação é, de certa forma, narrada. Nega, também a existência de uma narrativa sem discurso, totalmente objetiva, pois considera que sempre existirá uma
mente julgadora insinuando-se na narrativa.
O distanciamento voluntário entre autor e obra, a anulação
dos signos da individualidade do sujeito que escreve, e a marca do
autor reduzida à singularidade de sua ausência são procedimentos
bastante conhecidos e não muito recentes. Porém, duas noções importantes parecem substituir a posição privilegiada do autor e esconder o sentido real de seu desaparecimento: a idéia de obra e a
noção de escritura. Diz-se que o papel da crítica não é analisar a
relação obra/autor, mas a obra em si. Entretanto, como é possível
acabar com o autor e estudar sua obra? Como podemos definir o
que seja obra, entre as coisas que um autor deixou após a morte? A
palavra obra e a unidade que designa são, portanto, tão problemáticas como o status de individualidade do autor. A noção de escritura
também nos impede de aceitar totalmente a morte do autor, pois
nos refere a ele tanto quanto à sua ausência. Este desaparecimento
está, pois, sujeito a uma série de barreiras transcendentais. Parece
haver uma linha divisória entre aqueles que acreditam poder localizar as rupturas de hoje na tradição do século XIX e aqueles que
tentam se livrar de tal tradição.
A reconciliação estaria, talvez, não apenas em afirmar que o
autor desapareceu, mas na necessidade de se localizar o espaço
vazio deixado por ele, e procurar fendas e rupturas que esta ausência revela. Em seu trabalho, "O que é um autor?", Foucault aponta
alguns problemas advindos do uso do nome do autor, pois, para
ele, este tem uma função em relação ao discurso: o de indicar seu
status dentro de uma sociedade e de uma cultura. Em nossa sociedade, diz ele, existem textos aos quais se atribui autoria e outros em
que falta essa função. Nem sempre o mesmo tipo de texto exigiu a
atribuição de um autor. Houve tempos em que textos hoje
chamados de literários (narrativas, estórias, épicas, tragédias e co336
E o autor. Como é que fica?
médias) eram aceitos e valorizados sem preocupação com a identidade de seus autores. Ao contrário, textos médicos, cosmológicos
e científicos só eram aceitos como verdadeiros na Idade Média,
quando marcados pelo nome do autor. No século XVII, houve uma
inversão: textos científicos passaram a ser aceitos no anonimato e o
discurso literário, apenas quando lhe era atribuído um autor. Hoje,
exigimos autoria tanto do texto científico como do ficcional: de
onde vem? quem escreveu? quando e cm que circunstâncias? com
que finalidade? O sentido atribuído ao texto depende, muitas vezes,
do modo como respondemos a estas perguntas e, se ele vem sem
nome - seja por acidente ou desejo do autor - começa um jogo
para descobrir sua autoria. Vê-se que a função exercida pelo autor
tem um importante papel. Mesmo não se preocupando com questões de autenticidade, a crítica moderna ainda o define como o que
fornece a base para se explicar não apenas a presença de certos
elementos numa obra, mas também suas transformações, distorções
e modificações através de sua biografia, da determinação de sua
perspectiva individual e da análise de sua posição social. Esta
atitude reflete a posição que considera autor e obra como duas
entidade intimamente ligadas: obra e vida dependendo uma da
outra. Porém a ênfase na relação autor/obra, ou seja, a valorização
da autoria, não impede que esse conceito tradicional de autor, no
sentido limitado de pessoa ou indivíduo a quem a produção de um
texto pode ser legitimamente atribuída, esteja realmente sendo
substituído, Em lugar deste indivíduo/criador genial, sujeito/fundador, proprietário do lagos, que atribui à obra um mundo inexaurível de significações, é possível colocar uma outra entidade. Não
uma fonte infinita de significações, não um indivíduo que precede
sua obra e a realiza de acordo com suas intenções, mas um princípio funcional através do qual, em nossa cultura, pode-se limitar,
excluir e escolher. Em resumo, um princípio capaz de impedir a
livre circulação e manipulação da ficção e também sua livre composição, decomposição e recomposição. Esta ficção, não limitada à
figura do autor, é própria de uma cultura onde todos os discursos
venham a se desenvolver no "anonimato de um murmúrio". Sc
atingirmos este estágio, então, não mais nos importaremos em reconhecer quem é a pessoa que fala; ao contrário, nossa preocupação será com os modos de existência dos discursos.
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2o Congresso Abralic - III Volume
OBRAS CONSULTADAS
ANGENOT, Marc. Glossário da crítica
contemporânea.
Tr.Miguel Tamen. Lisboa, Editorial Comunicação, 1984.
BARTHES, Roland. The Death of the Author. In: SELDEN, Raman (ed) The Theory of Criticism: from Plato to the present. London, New York, Longman, 1988. FOUCAULT,
Michel. What Is an Author? In: Textual Strategies.
Ithaca, New York, Cornell University Press, 1979. (Edited
with an introduetion by Josué V. Harari). SELDEN, Raman
(ed) The Theory of Criticism: from Plato to
the present, a reader. London, New York, Longman, 1988.
A MULHER COMO ENCARNAÇÃO DO BEM:
(Algumas considerações via Psicanálise)
HELENA PARENTE CUNHA
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Reflexões iniciais - Se o tema da mulher idealizada permaneceu por tantos séculos, desde os trovadores medievais, é porque
no seu cerne há algo mais forte do que razões históricas e sociais.
Para apresentar minha hipótese de interpretação desta continuidade temática, vou examinar poemas de Dante Alighieri, Gregório de Matos e Vinícius de Moraes. Portanto, três faixas de tempo. Embora a Psicanálise ofereça vários caminhos, pretendo basearme apenas em alguns pressupostos fundamentais.
Esboço teórico - Ao longo da evolução humana, a pulsão sexual teve que sofrer dura repressão, através das proibições oriundas
dos códigos exteriores e também resultantes dos princípios internos
que regem a conduta do indivíduo. Torna-se praticamente impossível eliminar no adulto a relação estabelcida na fase edípica entre o
desejo sexual e a interdição. O processo se opera sobretudo no inconsciente e é decisivo para a concepção do sexo como prática perigosa, assustadora, desprezível e que se deve evitar.
Em caso de transgressão, o superego vigilante desencadeia a
angústia e impele o ego a se punir, daí o medo de violar os estatutos da consciência moral. Todo indivíduo enfrenta a árdua tarefa de
compatibilizar os ardores sexuais com o duplo controle, exercido,
de fora, pelos códigos culturais e, de dentro, pelo superego.
Ligações teóricas com a mulher idealizada -A mulher
idealizada, livre dos apelos da carne e na sua condição de ser superior, vive numa atmosfera, onde não haveria lugar para impulsos
eróticos. Pelo menos é o que se espera. A presença da amada de beleza máxima e virtude suprema protege o amante dos perigosos clamores eróticos, pois, em princípio, a pureza só inspira pureza.
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