RELATO DE CASO RELATO DE CASO Síndrome do anticorpo antifosfolipídio complicado por vasculite de membro superior Antiphospholipid syndrome complicated by upper extremity vasculitis Unitermos: anticorpo antifosfolípide, vasculite, membro superior. Uniterms: antiphospholipid syndrome, vasculitis, upper extremity. Caroline F. Gomes Bredt RESUMO A síndrome do anticorpo antifosfolipídio é um estado de hipercoagulabilidade adquirido, associado a inúmeras complicações, incluindo eventos trombóticos arteriais e venosos. Um caso atípico, no qual a paciente portadora de tal síndrome desenvolve um quadro de vasculite em membro superior é descrito. Alguns aspectos da doença são discutidos, enfatizando-se os cuidados excessivos que devem ser tomados com pacientes portadores de estados de hipercoagulabilidade. INTRODUÇÃO Os anticorpos antifosfolípides (AAF) estão freqüentemente associados com aumento da taxa de tromboses venosas e arteriais. AAF incluem os anticorpos que ou prolongam os testes de coagulação dependentes de fosfolípides, como KPTT (anticoagulante lúpico), ou se ligam a cardiolipina na fase sólida do teste Elisa (anticorpos anticardiolipinas)(1). Esta síndrome é considerada primária (se nenhuma doença de base for identificada, como malignidade, lúpus eritematoso sistêmico, colagenoses) ou secundária(2). Os critérios de classificação para a síndrome primária foram propostos pela primeira vez em 1988(3) e incluem: perdas fetais recorrentes, tromboses venosas, oclusões arteriais, úlceras de perna, livedo reticular, anemia hemolítica, trombocitopenia e detecção de anticorpos antifosfolípides (IgG ou IGM)(4). A importância clínica da síndrome se destaca pela grande variedade de sintomas que incluem: manifestações neurológicas, renais, obstétricas, hematológicas, dermatológicas, oclusões venosas e arteriais(4). Este trabalho relata o caso de uma paciente com as características clínicas já citadas acima, que desenvolveu um quadro atípico de vasculite em membro supe634 rior, durante um internamento no serviço de Cirurgia Vascular Periférica do Hospital de Clínicas da UFPR. RELATO DO CASO Paciente feminina, 35 anos, interna para correção cirúrgica de refluxo do sistema venoso profundo, devido a repetidas tromboses venosas profundas de membros inferiores, complicadas por úlceras de perna de difícil controle. A paciente tinha diagnóstico prévio de síndrome do anticorpo antifosfolipídio, com múltiplos internamentos anteriores por óbitos fetais em duas gestações, trombose de veias renais bilaterais, três episódios de tromboses venosas profundas em membros inferiores e úlceras em pernas. Encontrava-se anticoagulada com cumarínico (RNI variava entre 2,5 e 3,0). Durante a internação, a paciente desenvolveu um quadro catastrófico de vasculite superficial de quirodáctilos e mão esquerda, incitado por uma venopunção digital. Inicialmente, apresentou dor, edema e cianose de 1º e 2º quirodáctilos esquerdos que, em 24 horas, comprometeu os outros dedos e mão. A piora do edema culminou numa síndrome compartimental de membro superior, que necessitou fasciotomia. Os exames laboratoriais Médica residente em Cirurgia Vascular do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Marcelo Barros Médico especializando em Cirurgia Vascular do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Cristiano M. D’Alcântara Schmitt Alessandra Vedolin Médicos residentes em Cirurgia Vascular do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Luís Henrique G. França Médico especializando em Cirurgia Vascular do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Cláudio Jacobovicz Cirurgião preceptor do Serviço de Cirurgia Vascular do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Oaidia A. Noceti Medicina da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Endereço para correspondência: Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular do Hospital de Clínicas do Paraná - Universidade Federal do Paraná (UFPR). Rua General Carneiro, 181 CEP 80060-900 - Centro - Curitiba - PR. Fone: (41) 360-1800 - r. 1887 - 7º andar. © Copyright Moreira Jr. Editora. Todos os direitos reservados. colhidos tiveram como resultados: VHS = 116, anticoagulante lúpico positivo, anticorpo anticardiolipina negativo, plaquetas = 71.000, Hb = 10.1, VG = 30.9, testes de investigação para lúpus eritematoso sistêRBM - REV. BRAS. MED. - VOL. 60 - Nº 8 - AGOSTO DE 2003 RELATO DE CASO mico e outras colagenoses negativos. Mesmo com a descompressão precoce, a paciente evoluiu com extensas áreas de necrose de pele, mais evidentes em 2º quirodáctilo (Figuras 1 e 2). Foi iniciada corticoterapia e mantida anticoagulação até que o quadro entrasse em regressão e solicitada avaliação de um reumatologista e ortopedista. A paciente continua em acompanhamento ambulatorial e já foi submetida a vários desbridamentos cirúrgicos das áreas de necrose. Atualmente (60 dias após o evento) apresenta alteração sensitiva e motora da falange distal do 2º quirodáctilo e exposição tendinosa do mesmo, com risco de perda deste segmento (Figuras 3 e 4). onados, porém podem não estar presentes ao mesmo tempo(5). Os estados de hipercoagulabilidade representam um grande desafio para o cirurgião vascular. O caso atípico apresentado, ressalta a importân- DISCUSSÃO Figura 1 - Fotografia da face palmar da mão esquerda 72 horas após o início do quadro (pós-operatório imediato da fasciotomia). O mecanismo que leva a trombose nos pacientes com síndrome dos AAF ainda é desconhecido(1,4,5), embora inúmeras hipóteses tenham sido propostas, como: AAF se combinando com fosfolípides de membrana causando aumento da adesão e agregação plaquetária; AAF se combinando com beta-2-glicoproteína, induzindo dano endotelial; ou dano endotelial celular resultando em produção de fator relaxante derivado do endotélio, produzindo vasoespasmo e isquemia. Isto produz episódios de tromboses e/ou episódios de isquemia e infarto(2). O anticoagulante lúpico e anticorpo anticardiolipina estão altamente correlaci- Figura 2 - Fotografia da face anterior da mão esquerda, mostrando as áreas de necrose e incisões da fasciotomia. Figura 3 - Fotografia da face anterior da mão, 30 dias após a ativação da vasculite (paciente em uso de corticoesteróides). RBM - REV. BRAS. MED. - VOL. 60 - Nº 8 - AGOSTO DE 2003 cia de cuidados excessivos que se deve ter com acessos vasculares, anticoagulação e equipe multidisciplinar no manejo de pacientes com hipercoagulabilidade. As opções terapêuticas para pacientes com síndrome dos AAF dependem das manifestações clínicas. Os pacientes assintomáticos geralmente não requerem tratamento e devem receber heparina profilática diante de procedimentos cirúrgicos. Os pacientes com manifestações arteriais se beneficiam de aspirina e/ou agentes hemorreológicos; e os com tromboses venosas são candidatos a anticoagulação plena e de longo prazo(2,6). Alguns trabalhos mostram benefício com imunoglobulinas intravenosas, principalmente após falha do tratamento imunossupressor (esteróides e/ou citotáticos). A favor deste tipo de terapia está o fato das imunoglobulinas, teoricamente neutralizarem os anticorpos, enquanto que as outras drogas utilizadas não surtem efeitos no mecanismo de ação da doença(6). Na literatura se encontram relatos do uso de diversas drogas, como: heparina, aspirina, antagonistas dos receptores de tromboxane A2, anticorpos monoclonais anti-CD4, bromocriptina e transplante de medula óssea. Mais pesquisas devem ser concluídas para que se tenha evidências clínicas e laboratoriais de qual o método mais eficaz. Na realidade, a melhor afirmativa a respeito de síndrome do anticorpo antifosfolipídio é que esta exige cuidados minucio- Figura 4 - Fotografia da face palmar da mão, 60 dias após a ativação da vasculite (após múltiplos desbridamentos). 635 RELATO DE CASO sos e peculiares de todos os profissionais da área de saúde em contato com o paciente; e a anticoagulação, apesar de apenas paliativa, ainda é a base do tratamento de pacientes com eventos tromboembólicos, adicionando-se a esta, as drogas imunossupressoras e/ou imunoglobulinas. culitis is presented. Some aspects of this disease are discussed. The authors emphasize the difficulties on management of patients who had hypercoagulable states. SUMMARY 1. Deloughery, T.G.; Goodnight, S.H. The hypercoagulable states:diagnosis and management. Seminars in Vascular Surgery 1993; 6(1):66-74. 2. Myones, B.L.; McCurdy, D. The antiphospholipid syndrome: Immunologic and clinical aspects. Clinical Spectrum and Treatment. The Journal of Rheumatology 2000; 27 (supl. 58): 20-8. 3. Asherson, R.A. A primary antiphospholipid syndrome? The Journal of Rheumathology 1988; 15: 1742-6. 4. Wiedermann, F.J.; Mayr, A.; Schobersberger,W.; Antiphospholipid syndrome is a hypercoagulable state, associated with multiple complications, including arterial and venous thrombosis. An atypical case, in witch a patient who had diagnosis of that syndrome, developed an upper extremity vas- 636 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 6. 7. 8. 9. Mutz, N. Definition and classification of the antiphospholipid syndrome. Journal of Cardiovascular Surgery – letters to the editor. 1999; 40:91920. Harris, E.N.; Baguley, E.; Asherson, R.A.; Hughes, G.R.V. Clinical and serological features of the antiphospholipid syndrome. British Journal of Rheumatology 1987; 26 (suppl 2):19. Sherer, Y.; Levy, Y.; Shoenfeld, Y. Intravenous immunoglobulin therapy of antiphospholipid syndrome. Rheumatology 2000; 39:421-6. Héron, E.; Lozinguez, O.; Alhenc-Gelas, M.; Emmerich, J.; Fiessinger, J.N. Hypercoagulable states in primary upper-extremity deep vein thrombosis. Archives of Internal Medicine 160: 14, 382-6, 2000. Lockshin, M.D.; Sammaritano, L.R.; Schwartzman, S. Validation of criteria for antiphospholipid syndrome. Arthritis & Rheumatism 2000; 43:(2)440-3. Asherson, R.A. The catastrophic antiphospholipid syndrome [editorial]. Journal of Rheumatology 1992; 19:508-12. RBM - REV. BRAS. MED. - VOL. 60 - Nº 8 - AGOSTO DE 2003