Hobbes e as objeções acerca da criação do estado por cooperação
Fernanda Zelinski1
Resumo:
O objetivo deste trabalho é apresentar os argumentos hobbesianos acerca da impossibilidade da
instituição de uma ordem segura e pacífica, a partir da cooperação e da formação de alianças
defensivas. Primeiramente será explorada a dinâmica do Estado de Natureza e as propensões do
homem, já que são esses fatores que inviabilizam o uso da cooperação. Num segundo momento,
desenvolveremos as razões que caracterizam a cooperação como inviável para a manutenção da
paz. De acordo com Hobbes, apenas o Estado Soberano é capaz de garantir a paz e uma vida
confortável.
Palavras chaves: Hobbes. Estado de natureza. Estado. Cooperação.
Abstract:
This work purpose is to present the Hobbesian arguments about the impossibility of the secure
and pacific rules estabilishment, starting with cooperation and formalization of defensive
aliances. On first time it will explore the Nature State dinamic and the men propensions,
observing that this factors turn impractible the use of cooperation. On second moment, it will
develop the reasons that characterize this cooperation like something not viable to keep the
peace. According to Hobbes, only the the Sovereign State is capable to guaratee the peace and a
confotable life.
Keywords: Hobbes. State of nature. State. Cooperation.
***
Introdução
É sabido que na teoria hobbesiana a instituição do Estado Soberano é o único
modo eficaz de se garantir uma ordem segura e pacífica. Todavia, podemos nos indagar
se não existem outras possibilidades que possam ser apresentadas para que os sujeitos
vivam em um estado de paz e destemidos da morte violenta, sem estarem submetidos a
um Estado com poder ilimitado. Para analisar tal questão iremos nos remeter aos
principais aspectos do Estado de Natureza e depois desenvolver, de forma breve, os
argumentos acerca da criação do Estado por cooperação.
1
Graduanda em Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE – Campus de
Toledo. Orientador: Professor Dr. José Luiz Ames. Email: [email protected]
Vol. 3, nº 1, 2010.
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O estado de natureza
O estado de natureza é caracterizado como o estado anterior a constituição do
estado civil e se trata apenas de um experimento mental, uma hipótese racional para
mostrar como seria a existência do homem numa situação de ausência de poder
soberano. No estado natural todos os homens são iguais – essa igualdade seria tanto
física, como espiritual – são guiados por si próprios, agindo conforme a determinação
de suas vontades e propensões naturais. Esses homens que vivem no estado natural não
são selvagens, eles são os mesmos homens que vivem em sociedade, mas destituídos de
uma ordem superior, o que os permite viver de forma desregrada, passional. Deste
modo, como no estado de natureza não há ordem instituída, o que prevalece é “o
domínio das paixões, a guerra, o medo, a desídia, o isolamento, a barbárie, a ignorância
e a bestialidade (De Cive, X, I). Essa igualdade natural entre os homens de poder agir
conforme a sua vontade, guiados pelas paixões2, funda a idéia de todos os indivíduos
estarem sujeitos à morte, pois, tudo o que o homem eleger como necessário a sua
conservação, a isso ele tem direito. Sobre tal situação, Hobbes afirma que “o direito de
natureza, a que os autores geralmente chamam jus natural é a liberdade que cada
homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de
sua própria natureza, ou seja, conseqüentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio
julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim” (Leviatã, XIV, 78).
No estado pré-contratual não há propriedade, muito menos qualquer noção de
justiça, a preservação da vida é único regulador das ações. Há instaurado no estado de
natureza, portanto, a “guerra de todos contra todos”. Essa expressão não deve ser
2
Por paixão, entenda-se o esforço (conatus) gerado nos sujeitos a partir da sensação produzida por um
objeto. Quando um objeto consegue afetar os homens, provocando neles sentimento de desejo (vontade
de possuir tal objeto), ou aversão, (desejo de afastar o objeto), há um movimento, ou de aproximação ou
de afastamento sobre esses objetos. Alguns desejos e aversões são inatos no homem, tais como o apetite
pela comida e excreção. Outros apetites procedem da experiência. O desprezo segundo Hobbes, é
caracterizado com a imobilidade da ação por parte do homem por um objeto e isso deriva pelo fato “do
coração já estar movido de maneira diferente por objetos mais potentes” (Leviatã, VI, 47). Hobbes afirma
ainda que o movimento causado pelas paixões, independente “qual for o objeto do apetite ou desejo de
qualquer homem, esse objeto é aquele a que cada um chama bom, ao objeto do seu ódio e aversão, chama
mau, e ao do seu desprezo chama vil e insignificante”(Leviatã, VI, 48). Sobre a sensação que cada objeto
produz, Hobbes afirma que não há nada que possa ser extraída da natureza dos próprios objetos, ou seja,
os objetos em si não determinam seu valor, seja de bondade, maldade ou desprezo. Mas o que ocorre é
que os próprios homens que os nomeiam - os objetos - segundo suas paixões, pois essa avaliação só pode
ser tirada da pessoa de cada um.
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tomada ao pé da letra, porque ela significa o temor recíproco da morte violenta, não
uma guerra de fato. Bobbio afirma que o estado de guerra de todos contra todos não é
“apenas o estado de conflito violento, mas também a situação na qual a calmaria é
precária, sendo apenas assegurada pelo temor recíproco”, por não haver um poder
comum.
Para Hobbes, as três causas principais encontradas na natureza do homem que
levam a guerra são: a competição, a desconfiança e a glória. A escassez estimula o
homem à competição, pois coloca uns frente aos outros quando desejam um mesmo
objeto, querendo tomar inclusive o que esta em posse do outro. Assim, em decorrência
da igualdade quanto ao outro, seja pelo direito natural que todos têm de tomar para si
qualquer coisa que, em hipótese, garanta ou melhore sua conservação, ou mesmo pela
capacidade de provocar a morte do outro, todos têm igual capacidade de alcançar seus
objetivos. Considerando que o que esta em jogo é a vida, a desconfiança do outro é
recíproca, o que gera uma visão de inimigo em outrem. A relação de desconfiança é
simples: eu desconfio do outro, que do mesmo modo desconfia de mim. Além da
competição e da desconfiança, ainda há na natureza humana uma terceira causa de
discórdia: a “glória”. A glória é concedida por Hobbes como inseparável do poder. Ao
homem não basta o poder por si só, é necessário que seja reconhecido pelo outro, é
necessário que o outro “lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio”.
Então, cada homem pretende que os outros homens lhe confiram honras e a reputação
que julga ter.
Em suma, se no estado de natureza não há a noção de justiça e existe permanente
inquietação de conflitos, há a todo instante o perigo iminente da perda da vida. O medo,
deste modo, é desencadeado pelo fato de que o estado de natureza reflete uma condição
primitiva, em que o desejo insaciável do homem, num contexto de liberdade total e de
igualdade generalizada, expõe a espécie humana a um estado constante de ameaça de
morte, o que leva os homens a busca de algo que os proteja e prive de tal insegurança.
No entanto, se o medo fosse a única paixão que alavancasse o desejo dos homens para
saírem do estado de natureza, não haveria condições suficientes para criação de um
estado civil. Assim, a esperança é o elemento que completa este desejo de mudança. Ela
entra como o desejo de uma vida melhor, como o desejo de conseguir algo. Se o homem
não tivesse essa crença de conseguir algo, ele cairia no desespero (que é uma crença
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sem esperança), assim, não conseguiria se livrar do medo, onde ocorreria ao invés de
uma busca por novas opções de vida, apenas uma submissão a um senhor ou um estado
criado pela aquisição e não por instituição.
Então, se o medo e a esperança são as paixões que fornecem ao sujeito apenas o
motivo para a saída do estado de natureza, o que os caracteriza como elementos
passionais, podemos nos perguntar, qual é o modo efetivo para abandonar a sociedade
não política? Para sair do estado de natureza, a razão entra em socorro do homem, para
o alcance de uma vida melhor. A razão para Hobbes é cálculo, ou seja, uma faculdade
de raciocinar; entendido o raciocínio como um cálculo mediante determinadas
premissas, se extrai determinadas conclusões. Se o homem é capaz de efetuar cálculos
racionais, então, quer dizer que ele é capaz de descobrir quais são os meios mais
adequados para alcançar o fim desejado (uma vida confortável e sem ameaça constante
de morte) e de agir em conformidade não apenas com as paixões, mas seguindo seu
próprio interesse. A razão em Hobbes ocupa papel fundamental porque é ela que sugere
ao homem uma série de regras, que tem por finalidade tornar possível uma existência
pacifica: essas regras são chamadas por Hobbes de leis naturais. Estas leis indicam ao
homem o caminho, os meios para sair do estado de natureza – procurar a paz, renunciar
ao direito a tudo, cumprir os pactos.
Hobbes adverte que essas leis naturais, apesar de serem uma espécie de conclusão
tirada pela razão sobre o que deve ou não ser feito, não são leis propriamente ditas, pois
não passam de conclusões ou teoremas sobre o que conduz a própria conservação ou
defesa. As leis naturais são apenas teoremas sugeridos pela razão, os quais podem ou
não ser seguidos pelos indivíduos, enquanto a lei, em sentido próprio, é palavra daquele
que tem direito de mando sobre outros. Ocorre, que se essas leis são apenas regras
prudenciais, assim não são nem coercivas e nem categóricas, a obrigação que elas
submetem ao homem são obrigações interiores, na consciência, o que caracteriza de
fato, a baixa capacidade motivacional das mesmas.
Levando em consideração que as leis naturais são insuficientes para a preservação
da vida e manutenção da paz, o homem guiado mais uma vez pela razão, percebe que
um poder coercitivo se faz necessário. Esse poder é instituído por meio do contrato, que
é a única alternativa que mostra eficácia sobre ao estado de guerra. A partir do momento
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que os indivíduos pactuam entre si e transferem seus direitos para um terceiro, no caso o
soberano, se institui o Estado Civil.
A cooperação
Todavia, se os homens experimentam uma aversão inevitável pelo estado de
natureza, onde há o domínio das paixões e a ameaça constante de morte, e por isso,
desejam sair desse estado natural, porque não fazê-lo por meio da cooperação ao invés
da submissão a um poder soberano? Hobbes exclui a possibilidade da cooperação por
várias razões.
A primeira razão é que a cooperação pressupõe um alto grau de racionalidade nos
indivíduos, enquanto a submissão a um poder absoluto segue a lógica do medo e
esperança ativa no estado de natureza. Criado o Leviatã, o súdito sabe que seus bens e
sua vida estarão protegidos da violência dos outros, mesmo que não daquela do
soberano. É preferível, em suma, temer um indivíduo singular, mas estar garantido
contra todos os outros, ao invés de temer cada semelhante meu sem ter jamais certeza
sobre a própria segurança. Ao mesmo tempo, eu sei que o soberano intervirá contra mim
e minha propriedade somente se violar as leis. Os indivíduos trocam a própria liberdade
absoluta e obtêm em compensação àquela segurança e previsibilidade que estavam
ausentes no estado de natureza.
A segunda razão que torna impraticável a via da cooperação é a insegurança. No
capítulo XVII, Hobbes afirma que “a reunião de um pequeno número de homens” não
garante a própria segurança de um Estado, uma vez que encoraja outros grupos a unir-se
para atacá-los. Somente por meio de um inimigo podemos estabelecer se um
determinado número de indivíduos é suficiente para garantir a segurança – e visto que o
inimigo muda continuamente não se tem jamais certeza a respeito.
A terceira, e talvez mais forte, razão pela qual a cooperação é impossível é porque
os homens não alcançam jamais um acordo espontâneo, pois, a intensidade e o modo
de seus desejos se apresentam em formas diferentes. Assim, no interior das alianças
existirão sempre divergências em relação à estratégia a adotar, uma vez que os homens
têm sempre opiniões diferentes que não conseguem se conciliar sem recorrer a uma
autoridade superior. Se os homens fossem “concordemente obedientes a respeito da
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justiça e das outras leis de natureza, sem um poder comum que os mantivesse
submetidos, então nem existiria, nem seria necessário existir, um governo civil ou
Estado, uma vez que existiria paz sem submissão” (Leviatã, XVII, 144). O argumento
decisivo para submeter-se a um governo civil absoluto não é, pois, tanto o fato de que o
estado de natureza é um estado de guerra, mas a impossibilidade de sair deste último por
meio da cooperação espontânea e do consenso, assim como a impossibilidade de seguir
com espontaneidade os ditames da razão, ou seja, respeitar a justiça e as outras leis de
natureza. O que é decisivo não é a divergência dos interesses privados, mas a
divergência de opiniões. Mesmo que os homens conseguissem alcançar um acordo
sobre quais fins perseguir juntos, continuariam a litigar sobre os meios para obter
aqueles fins. E ainda que exista ao menos um fim comum a todos os homens, ou seja, a
paz, os indivíduos nunca querem a mesma paz: cada um quererá realizar a sua idéia de
paz e de sociedade civil – e disto nascerão novos conflitos. A cooperação espontânea
não representa, pois, uma alternativa à instituição de um poder soberano absoluto, uma
vez que ela não põe fim à guerra de todos contra todos.
Se os homens quiserem deixar de fato o estado de guerra (e querem, pois,
experimentam aversão a ele), não resta a eles outra escolha senão submeter-se a um
soberano absoluto.
Referências
HOBBES, T. Leviatã. São Paulo; Martins Fontes, 2003, 1ª edição. Clássicos Cambridge
de filosofia política.
BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política I. Tradução de
Carmen Varriale, João Ferreira. – Brasília; Universidade de Brasília, 1998, 1ª edição.
QUEIROZ, M. A. A soberania no De Cive de Thomas Hobbes. Campinas, 2001.
[Dissertação de mestrado].
RIBEIRO, R. J. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo. Belo
Horizonte; UFMG, 1999, 2ª edição.
RIBEIRO, R. J. A Marca do Leviatã. São Paulo; Ateliê Editorial, 2003, 2ª edição.
WEFFORT, F. (org.) Os clássicos da política. São Paulo; Ática, 2005, 13ª edição.
Agradecimentos
Ao meu orientador, professor Dr. José Luiz Ames, pelo grande estímulo e ajuda
oferecida para o desenvolvimento desta pesquisa filosófica. Ao Gérman Rodrigues, pelo
companheirismo e paciência.
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