A razão da sociedade civil em Thomas Hobbes Laryssa Luz Santos de França 1 Resumo: Em uma sociedade já instituída fica difícil imaginar que Estado civil não seja natural, ou que pelo menos não tenha se dado dessa forma. Todavia, segundo os contratualistas modernos, o mundo não foi criado com a sociedade civil já estabelecida e provavelmente as condições de vida entre os homens não foram sempre estas encontradas no Estado. Para Thomas Hobbes, por exemplo, a instituição do Estado (ou da sociedade civil), apesar de necessária, é artificial, pois, para ele, os homens não nascem aptos para a sociedade, mas encontram nela um meio para obtenção de benefícios próprios. Instituída por meio de um pacto no qual todos submetem suas vontades à um único homem, denominado soberano, a sociedade traz uma nova condição de vida aos homens. É esta união em uma única vontade que caracteriza a formação da sociedade civil e marca uma espantosa mudança na vida dos homens, agora também chamados cidadãos. No entanto, para entender como se dá esse processo, faz-se necessário examinar os diversos meios de convívio dos homens, seja antes ou depois do surgimento da Sociedade civil. De tal modo, veremos primeiramente a causa pela qual a sociedade foi estabelecida. Depois, os meios pelos quais sucedeu sua instituição e, por fim, analisaremos se o motivo para o qual foi instituída é plenamente atendido. Dessa forma, pretendemos verificar, a partir do pensamento hobbesiano, a origem da sociedade civil e as mudanças que ela traz, na tentativa de justificar, ou não, sua existência. Palavras-chave: Hobbes. Sociedade Civil. Pacto. Paz. Medo. Abstract: In an already established society, it is difficult to imagine that the civil State is not natural, or at least has not taken that way. But according to the moderns contractarian, the world was not created with the civil society already established and probably the conditions of life among these men were not always these. For Thomas Hobbes, for example, the State institution (or civil society), although necessary, is artificial, since, for him, men are not born fit for society, but need to find a way to obtain own benefits in it. Founded in a covenant, in which all men transfer their wills to an only one man, called sovereign, the society brings a new condition of life for men. This union of a single will is what characterizes the formation of civil society and marks a startling change in the lives of men, now also called citizens. For such understanding, however, becomes necessary to examine the various means of interaction between the men before and after the emergence of civil society comprising primarily the cause for which had been established. After the means by which their institution had happened and, ultimately, if the reason for which is set out fully met. We will investigate from the Hobbesian thought, the origin of the civil society and what changes it brings, in an attempt to justify or not its existence. Keywords: Hobbes. Pact. Civil Society. Peace. Fear. Introdução O intuito deste artigo é, num primeiro momento, demonstrar de forma geral como se dá o processo de formação da sociedade civil em Thomas Hobbes, bem como as mudanças causadas por seu advento. Já em segundo momento, depois de adquirido 1 Graduanda em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Orientadora: Profª. Dra. Yara Adário Frateschi. Email para contato: [email protected]. Vol. 4, nº 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 119 tal entendimento, o presente artigo pretende averiguar se a instituição da sociedade civil satisfaz ou não o objetivo para o qual foi estabelecida. Para facilitar a compreensão, o texto será divido em três partes e uma conclusão. Na Primeira parte: “Da impossibilidade da paz em estado de natureza” veremos brevemente a condição natural e os motivos que tornam a paz impossível nesse meio. Na segunda “Da Transição do estado natural para o Estado civil” será demonstrada resumidamente a passagem do estado de natureza para a sociedade. Na parte seguinte, o “Estado civil” veremos de forma bastante sintética o que ocorre no Estado civil para que este seja eficaz no cumprimento de seu objetivo. E por fim, na conclusão, pretendemos fazer um brevíssimo exame de todo o contexto acrescentado, analisando, sobretudo se e como o objetivo final da instituição da sociedade civil é alcançado. Parte I – Da Impossibilidade da Paz em Estado de Natureza O estado natural, para Thomas Hobbes, é o estágio mais primitivo da vida humana. Nele não há estabilidade, a segurança não é garantida e não há diferenças significativas entre um homem e outro. Isso porque, apesar de encontrarmos certas particularidades físicas entre os homens, ao perceber o quão é fácil, até mesmo ao mais fraco, matar o mais forte, vê-se que “não há razão para que qualquer homem, confiando em sua própria força, deva se conceber feito, por natureza, superior a outrem” (HOBBES, 2002, p. 358). De forma que em Hobbes, podemos considerar que são iguais àqueles que podem fazer as mesmas coisas um contra o outro: e aqueles que podem fazer coisas maiores (a saber: matar) podem fazer as mesmas coisas (HOBBES, 2002, p. 29)2. Logo, esta condição consiste, dentre outras coisas, na igualdade natural dos homens. Hobbes, entretanto, não vê tal igualdade com tão bons olhos, para ele na igualdade está contida a insegurança dos homens, os quais, por serem iguais, não podem garantir segurança nem mesmo a si próprio. Isso ocorre porque neste meio ele pode agredir, mas também ser agredido, matar e também ser morto. O que faz com que sua vida fique em constante perigo. Outra característica de suma importância dessa 2 Esse é um dos poucos pontos em que a filosofia de Rousseau concorda com Hobbes (apesar de fazerem juízos de valor completamente diferente quanto a isso), pois, ambos defendem que a desigualdade natural dentre os homens é insignificante e acreditam que a diferença que hoje podemos observar, e até mesmo sentir, tem sua origem na sociedade civil e na propriedade privada. Vol. 4, nº 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 120 condição é que nela cada um, e assim todos, têm o direito, dado pela própria natureza, sobre todas as coisas (HOBBES, 2002, p. 32). Para melhor elucidação cito Hobbes: A natureza deu a cada um o direito a tudo; isso quer dizer que, num estado puramente natural, ou seja, antes que os homens se comprometessem por meio de convenções ou obrigações, era lícito cada um fazer o que quisesse, e contra quem julgasse cabível e por tanto possuir, usar e desfrutar tudo que quisesse ou pudesse obter. Ora, como basta um homem querer uma coisa qualquer para que ela já lhe pareça boa, e o fato dele a desejar já indica que ela contribui, ou pelo menos lhe parece contribuir, para sua conservação [...], de tudo isso então decorre que, no estado de natureza, para todos é legal ter tudo e tudo cometer. E é este o significado daquele dito comum, “a natureza deu tudo a todos”, do qual portanto o entendemos que, no estado de natureza a medida do direito esta na vantagem que for obtida. (HOBBES, 2002, p. 32). Isso significa que neste modo de convivência os homens poderiam agir como bem entendesse e contra quem julgassem oportuno. Visto que, sem essas regras convencionadas pelo Estado civil, o único parâmetro para medir as ações dos homens são suas próprias vontades, originadas, sobretudo, em duas paixões: o medo do sofrimento e da morte, e a esperança de obter o que se deseja para própria conservação. Assim, é da natureza do homem desejar o que lhe é bom e fugir do que lhe é mau (acima de tudo do maior dos males, a saber: a morte). Dessa forma, é justo, e com isso quero dizer que, não contraria a reta razão ou vai de encontro com as leis de natureza, que todo homem se empenhe ao máximo que puder, na medida de suas forças, em proteger sua vida e membros da morte e do sofrimento o que lhe é permitido pelo direito natural de todos os homens. (HOBBES, 2002, p. 35). Como seria vão ter o direito ao fim se este não atribuísse também o direito aos meios necessários para chegar a determinado objetivo (e tomando por base que este direito não é vão), todos os homens, portanto, tem também direito aos meios que julgarem necessários para conquistar o fim desejado. Assim, se por ventura for necessário a um homem, para preservação de sua vida, matar outro, isto, nesta condição, lhe é lícito. Porém, quem define o que é necessário à preservação de cada homem, bem como quais os meios necessários para se conseguir isto, é o próprio homem, visto que, com a igualdade natural, não há ninguém com maior poder do que ele mesmo para julgá-lo. Destarte, em estado de natureza, todo homem é juiz de si mesmo (HOBBES, Vol. 4, nº 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 121 2002, p. 36), de forma que cabe apenas a ele julgar o que lhe é necessário para suprir suas vontades e proteger sua vida. Entretanto, pelo fato de todos os homens serem iguais, e igualmente dotados de paixões e vontades, muitos têm desejo pela mesma coisa e por não poderem desfrutar em comum e tão pouco poderem dividí-la, acabam por ferirem-se uns aos outros. O que nessa condição não é nenhum absurdo, pois, em estado de natureza todos têm o direito a tudo (como já fora aqui mencionado) bem como o direito a qualquer meio de conseguir o que desejam, por conseguinte, também têm o direito de ferir e matar uns aos outros. O que, por ironia, fazem em defesa de seu direito natural: o direito de conservar a própria vida. Tal situação, no entanto, faz esse direito ser ineficaz para sozinho construir a paz, pois o resultado de tê-lo é praticamente o mesmo que se não o tivesse, uma vez que, mesmo um homem podendo afirmar que algo lhe pertença, não poderá usufruir dele, já que outro homem, com o mesmo direito, pretenderá a mesma coisa. (HOBBES, 2002, p. 33). Fato que para Hobbes, certamente, resulta em disputa gerando o conflito e a guerra. Por essa razão o estado natural é um estado de guerra adverso às próprias leis de natureza3, que por meio de regras buscam a preservação da vida almejando a paz. Todavia, essas leis não são suficientes para alcançar a paz almejada, pois, apesar de haver leis de natureza e essas leis terem por principal objetivo o alcance da paz, em estado de natureza não há nada que garanta o respeito e o cumprimento delas, nem penalização para quem não as executar. Dessa maneira, se um homem opta por respeitar as leis de natureza em estado natural e outro por não respeitar, aquele que escolheu respeitá-las se tornará presa fácil daquele que não às respeita. E isso impossibilita o alcance de seu objetivo central, a saber: paz. De tal modo, se não houver garantia de que essas leis serão cumpridas, de nada valerá sua existência e, por esse motivo, isto é, porque não há essa segurança, no estado natural as leis de natureza silenciam. Portanto, no pensamento de Thomas Hobbes é impossível o advento da paz na condição natural, sendo este um estado caracterizado pelos constantes conflitos de todos contra todos. 3 Para Hobbes as leis de natureza são um ditame da razão que sempre tem como objetivo a paz e conservação do homem, o que trata bem no Do Cidadão capítulo sobre a Liberdade, parágrafo 15 intitulado: A natureza dita a busca da paz. Onde Hobbes afirma: “o ditado da reta razão - isto é, a lei de natureza - é que procuremos a paz, quando houver qualquer esperança de obtê-la” (HOBBES, Thomas op. cit. p.36). Vol. 4, nº 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 122 Destarte, o fato de não haver leis civis, já que não há um poder que às institua e mantenha, torna qualquer atitude permitida neste estado. Deste modo, tudo é lícito naturalmente, não há crime ou injustiça (visto que estes conceitos são sinônimos de infração da lei civil contra o direito civil do outro). (HOBBES, 2002, p. 364). Todavia, em estado de natureza, tais leis não existem, nem podem existir, pois, devido a igualdade de todos, não há ninguém com poder suficiente para estabelecê-las. Assim, se não há lei civis, não há como haver injustiça, já que não se pode infringir o direito civil (pois este, nesta condição, é inexistente). Por outro lado, embora o direito não seja garantido pela lei civil, na condição natural ainda há um direito, o direito dado pela própria natureza à todos sobre tudo. O que significa que um tem o direito de ferir o direito do outro e vice-versa, fato que contribui para que este estado seja um estado de guerra. Somando então a necessidade de defender-se, ao direito que todos os homens têm sobre todas as coisas (graças ao qual um, com todo o direito invade, e outro, com todo o direito, resiste). Mais o apetite que muitos têm pela mesma coisa e levando em consideração a igualdade natural, que não permite que um seja melhor e assim contenha o outro, (havendo dessa maneira uma luta entre iguais, na qual, ao fim, ninguém será vencedor), tem-se, portanto, como resultado necessário, a guerra perpétua. Parte II - Da transição do estado natural para o Estado civil Apesar de viver nesta condição de guerra, é da natureza do homem desejar o bem para si mesmo, sobretudo a conservação da própria vida. Entretanto, o estado de natureza, como já foi exposto, é um estado de guerra onde os homens estão em constante perigo. Tal situação provoca entre eles um medo latente da morte violenta, e por todos os motivos expostos ao logo do artigo essa condição é adversa a conservação do homem. De tal modo, se o homem pretende a preservação de sua vida, não pode permanecer em estado natural, já que sem leis civis a paz é impossível. Ao perceber essa situação, o homem passa a compreender que o respeito (dele e dos demais) às leis de natureza pode levá-lo a ter segurança, entende que para a paz é necessário que obedeçam a essas leis. Todavia, as leis de natureza não são constantes o suficiente para tanto. O que pode ser mais bem entendido ao compreender que as ações dos homens são motivadas por suas vontades e tem na sua origem o medo e a esperança. Desse modo é Vol. 4, nº 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 123 uma comparação entre essas duas paixões que designa como eles devem agir. Daí decorre que quando um homem percebe que violar a lei lhe trará um benefício maior (ou malefício menor) do que se a respeitasse, certamente ele a viola. Mas – como, em sua maior parte, os homens, ainda que eventualmente reconheçam tais leis devido a seu perverso desejo de vontades imediatas, são totalmente inaptos para observá-las - , se por ventura alguns, mais humildes que os demais, viessem a exercer aquela eqüidade e disposição de se mostrarem úteis que a razão ordena, certamente não estarão sendo racionais adotando uma tal atitude caso os outros não se portem da mesma forma. Alias, assim não conseguirão paz para si mesmos, mas uma certíssima e pronta destruição, e portanto quem cumprir a lei se torna presa fácil de quem a viola. Por conseguinte, não se deve imaginar que a natureza (ou seja, a razão obrigue os homens no estado de natureza a observar todas aquelas leis, se os outros não a respeitarem. Enquanto isso estamos obrigados a uma disposição mental no sentido de cumpri-las, sempre que sua observância parecer levar ao fim para o qual elas foram feitas. E disso devemos pois concluir que a lei de natureza sempre e em toda a parte obriga em fórum interno, ou na corte da consciência, mas nem sempre em fórum externo, e neste apenas quando puder ser cumpridas com segurança. (HOBBES, 2002, p. 70). Deste ponto de vista, até mesmo para exercer a lei de natureza é necessário segurança e, ao perceber isso, os homens se juntam para ter assistência mútua, munindose de precauções que tornem a agressão de outros tão perigosa (para os próprios agressores) que faça com eles (aqueles que atacam) prefiram conter-se a agir e sofrer as conseqüências.4 A essa associação Hobbes dá o nome de multidão 5, nela ainda não há contrato e as vontades dos homens ainda são distintas, no entanto, suas vontades estão unidas e eles se auxiliam em prol da segurança comum. Essa reunião, porém, só se dá em primeira instância, já que para o autor de Leviatã, devido as paixões e diferentes opiniões dos homens, em algum dado momento, não muito distante, a discórdia acabará por diluir a associação. Fato que a faz insuficiente para assegurar a paz àqueles que se reúnem para praticar as leis de natureza. Cito Hobbes: 4 Assim, diferentemente do que defendia Cícero e bem expõe Yara Frateschi, a união entre os homens não se dá de forma natural, mas,ocorre por interesse, nesse caso o de proteger-se, pois as ações dos homens, segundo Yara, sempre tem como motivador o princípio do benefício próprio. 5 Essa situação é caracterizada como uma multidão porque nela ainda não há contrato e, conseqüentemente não há uma única vontade, o que a diferencia da sociedade civil. Mas há muitas vontades unidas e isso a coloca em um grau mais elevado que puro estado de natureza de todos contra todos, entretanto, essa situação ainda está abaixo do Estado civil, sendo esta uma espécie de présociedade, prestes a se tornar um povo. Vol. 4, nº 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 124 Ademais, por maior que seja o número dos que se reúnem para autodefesa, se, contudo eles não concordarem entre si quanto a algum meio excelente para promove-la, mas cada um ficar usando de seus esforços a seu próprio modo, nada se terá conseguido; porque, divididos em suas opiniões, cada um deles constituirá um obstáculo para o outro. Ou, se concordarem entre si a ponto de conduzirem alguma ação por esperança de vitória, de saque ou vingança, ainda assim, por diferença em seus espíritos (wits) e opiniões ou por emulações e inveja, pelas quais os homens naturalmente se batem, eles não demoraram a se dividir e cindir tanto que não mais se forneceram auxilio recíproco nem desejarão paz, a menos que venham a ser forçados a isso por algum medo comum. Daí decorre que, o consentimento de muitos (que consiste apenas em que, como definimos já no parágrafo anterior, eles dirigem todas as ações para o mesmo fim e para um bem comum), ou seja, uma associação formada apenas pelo auxilio recíproco, não lhe confere aquela segurança que procuram os homens que se reúnem e concordam quanto ao exercício das leis de natureza supracitadas. E algo mais deve ser feito para que esses que consentiram, pelo bem comum, em ter paz e fornecer auxilio uns aos outros, possam ser contidos pelo meio, a fim de que, posteriormente não voltem a divergir quando seu interesse particular lhes parecer discrepar do bem comum. (HOBBES, 2002, p. 93). Para que a efetivação da lei seja certa, Thomas Hobbes julga que deve haver alguma garantia para o cumprimento da lei com punição contra as agressões ou injúrias cometidas, pois, enquanto não houver, cada um irá se defender a maneira como bem entende de todos os modos que puder o que, decerto, em algum momento culminará em guerra. Como solução Hobbes defende que deve haver um poder comum que contenha os homens pelo medo. Esse poder é o que chamamos de Estado e, para instituí-lo, na pretensão de instituir com ele a paz, é necessário que todos firmem um pacto no qual cada um se obriga por meio de um contrato, ante cada um dos demais, a não resistir a vontade do soberano a quem se submeteu, comprometendo-se dessa maneira a não recusar- lhe o uso de sua força e riqueza contra quaisquer outros. O direito de defender a si mesmo da violência, contudo, permanece, podendo, apenas em caso de ameaça a sua vida, fazer uso de seu direito natural. Já que é para preservação de sua vida que firma o pacto. Por conseguinte, quando todos tiverem submetido suas vontades, bem como o direito sobre suas forças e faculdades, o soberano (aquele a quem tudo fora submetido), terá tamanho poder que, em troca da submissão dos demais, poderá garantir segurança à todos os cidadãos, pois seu poder será suficiente para fazer com que todos o obedeçam e Vol. 4, nº 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 125 para que a sua vontade seja assumida como sendo a vontade de todos em geral e de cada um em particular, o que segundo Hobbes é necessário para promover da paz: [...] a convergência de muitas vontades rumo ao mesmo fim não basta para conservar a paz e promover um defesa duradoura,é preciso que, naqueles tópicos necessário que dizem respeito à paz e autodefesa, haja tão somente uma vontade de todos os homens. Mas isso não se pode fazer, a menos que cada um de tal modo submeta sua vontade a algum outro (seja ele um só ou um conselho) que tudo o que for vontade deste, naquelas coisas que são necessárias para a paz comum, se havido como sendo vontade de todos em geral, e de cada um em particular. (HOBBES, 1992, p. 108). A essa submissão das vontades de todos os homens a um único dá-se o nome de União (HOBBES, 1992, p. 108) e, é a partir dela que se forma a Sociedade civil, caracterizada por ser detentora de uma única vontade, (do Soberano que é, ao mesmo tempo, a vontade de todos e de cada um). Nesse Estado, todos os cidadãos devem total obediência ao Soberano e em troca este, com um poder coercivo, lhes garante a paz. Parte III - Estado civil Vimos que a necessidade da formação do Estado civil se deu para que a paz pudesse ser estabelecida e mantida, mas a forma como será implantada só pode ser entendida mediante a descrição do funcionamento desse mesmo Estado. Para o filósofo inglês em questão, um poder coercivo é requisito indispensável para o controle da ordem e a garantia de segurança. Não bastando que os homens convencionem leis para manter a paz, uma vez que, é apenas em pequena medida que eles se atêm a seus deveres sem punição com base somente na consciência. É preciso, portanto, providenciar a segurança, não mediante convenções, como na multidão, mas por meio do castigo (HOBBES, 1992, p. 117), o qual deve ser de tamanha rigidez que fique evidente que sofrerá maiores males aquele que cometer a injúria do que aquele que se preservar de praticá-la6. 6 O que deve ficar claro aqui é que os homens, embora se submetam ao Soberano, tomam essa atitude porque julgam que ela trará benefícios maiores do que se permanecesse em estado de natureza (na esperança d um vida melhor), pois o Estado civil é instituído para estabelecer a paz e proteger a vida dos cidadãos, o que era impossível no simples estado natureza. Além disso, os homens firmam o pacto, sobretudo, na intenção de conservar suas vidas, assim, se o Estado, independentemente do motivo, atenta contra a vida de um homem, este todo o direito de se defender, ou seja, tem o direito de proteger a si mesmo e não mais a obrigação de submeter-se ao Estado. Vol. 4, nº 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 126 A aplicação de tal castigo, no entanto, é tarefa daquele a quem todos submeteram suas vontades e juntamente com elas o direito sobre sua força e suas faculdades. Este, o Soberano, após aceitar receber a transferência, se torna detentor de tal poder que, pelo terror que sucinta, “pode conformar as vontades dos particulares á união da concórdia.” (HOBBES, 1992, p. 109). O poder do Soberano, entretanto, não se limita a castigar quem comete injustiças ou, por meio do medo, a controlar seus súditos. Ele possui também o poder de legislar impondo o que é certo e o que é errado, o que deve ser feito e o que deve ser evitado pelos cidadãos, em outras palavras é ele quem estabelece a moral. À ele também pertence toda judicatura7 bem como gládio da guerra, este último, consiste em obrigar os cidadãos a tomar em armas e custear despesas de guerra para a defesa comum de um dado inimigo, lhe é de direito também firmar a paz, sempre que julgar conveniente. Visto que, segundo Hobbes, apenas ao soberano, o dono do gládio do castigo, poderia ser dado tamanho poder, já que o poder de punir quem não obedece também é dele. Além do exame das doutrinas, porquanto a função do Estado é manter a paz, e para que ela seja garantida as ações dos homens (que são imensamente influenciadas pelas doutrinas religiosas) devem ser subordinadas, sobretudo, ao poder central. Assim é no poder centrado na pessoa do Soberano, que se constitui a Sociedade civil, pois, no pensamento de Thomas Hobbes, somente em uma única vontade e em um único corpo é que pode ser concebida uma condição de paz, que em sua obra torna-se sinônimo de Estado civil. Essa unidade fica mais evidente nas seguintes palavras de Hobbes: [...] quando de todos os homens há uma só vontade, esta deve ser considerada como uma pessoa, e pela palavra uma deve ser conhecida e distinguir-se de todo os particulares, por ter ela seus próprios direitos e propriedades. Por isso, nenhum cidadão isolado, nem todos eles reunidos (se excetuarmos aquele cuja vontade aparece pela vontade de todos), deve ser considerado como sendo uma cidade. Uma cidade, portanto, assim como a definimos, é uma pessoa cuja vontade, pelo pacto de muitos homens, há de ser recebida como sendo a vontade de todos eles; de modo que ela possa utilizar todo o poder e as faculdades de cada pessoa particular, para a preservação da paz e a defesa comum. (HOBBES, 1992, p. 109). 7 Para Hobbes o poder do Soberano seria vão se ele executasse o castigo tendo sido o julgamento dado por outro, pois desse modo não seria o dono do poder, mas somente o ministro dele. Vol. 4, nº 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 127 Desse modo, a figura do soberano em Hobbes é confundida com a figura do próprio Estado.8 De forma que o que entendemos como sendo poder do Estado é poder do Soberano, o qual (pelo medo que suscita nos cidadãos com tamanho poder e pela esperança que neles gera de que com esse poder lhes dará uma vida melhor), é capaz de fazer com que os homens respeitem as leis e assim mantenham a paz. Conclusão Vimos que, na impossibilidade da paz em uma condição puramente natural, onde não há leis civis e onde cabe apenas a cada individuo suprir suas vontades e proteger sua própria vida, o Estado, ou a sociedade civil, se constitui de forma artificial, mas necessária para trazer a paz aos homens. A alternativa encontrada por Hobbes, no entanto, requer a submissão de todos os homens ao soberano pelo poder coercivo deste. Isso porque, segundo o filósofo, somente desse modo poderia ser instituída a sociedade civil, único meio onde a paz é possível para o inglês. Assim, para aquela situação de guerra vivida no estado de natureza, Hobbes descreve uma solução concreta, porém hipotética, com a qual almeja manter a paz por meio do medo e da esperança. De tal modo, para que a sociedade mantenha a paz (fim para o qual foi instituída) faz-se necessário também o apelo ao medo, provocado nos homens pelo poder Soberano. Portanto, se na definição de paz está de alguma forma inserido o conceito de medo9, a sociedade civil cumpre seu objetivo, caso contrário não. Vale ressaltar que segundo Ricardo Tuck “Hobbes deseja libertar o povo do medo”10, contudo, o uso do medo por parte do Estado na conservação da paz compõe certa incoerência com esse desejo. Bibliografia FRATESCHI, Y.A. A física da política – Hobbes contra Aristóteles. Tese de doutorado. São Paulo, FLCH-USP, 2003. 8 A terminologia cidade é utilizada, pois é primeira e mais básica unidade política, mas é um pequeno exemplo do todo, por isso convenciono o uso da palavra Estado,que de modo geral referem-se ao mesmo objeto, que Hobbes também chama de república, no sentido de bem público. 9 A aversão, ligada à crença de dano proveniente do objeto, chama-se MEDO. (LEVIATÃ, p.34) 10 HOBBES, Thomas. Leviathan. R. Tuck (ed.). Cambridge: University Press, 1991. p.XXX. Vol. 4, nº 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 128 HOBBES, T. Do cidadão (1642), Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992. (Coleção Clássicos). _____. Leviatã ou Materia forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil (1651),Trad. João Paulo Monteiro e Maria Nizza da Silava. 3.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pesadores). _____. Leviathan. R. Tuck (ed.). Cambridge: University Press, 1991. _____. Os Elementos da Lei Natural e Política, Trad. Fernando D. Andrade. São Paulo: Ícone, 2002. TUCK, R. Hobbes. Oxford: University Press, 1989. Vol. 4, nº 1, 2011. www.marilia.unesp.br/filogenese 129