O surgimento das penas: uma abordagem sócio-jurídica de que os suplícios do medievo ainda estão presentes Tassiani Medeiros de Araújo1 José Carlos Kraemer Bortoloti2 1 2 Acadêmica da Escola de Direito da Faculdade Meridional – IMED, [email protected] Professor da Escola de Direito da Faculdade Meridional – IMED, [email protected] O surgimento das penas: uma abordagem sócio-jurídica de que os suplícios do medievo ainda estão presentes Resumo: O presente artigo trata de uma análise histórica sobre o surgimento das penas a partir dos princípios de criação desse sistema. Com a pesquisa bibliográfica realizada pode-se observar primeiramente como os suplícios eram empregados, quais os métodos utilizados e o porquê de cada punição ser diretamente no corpo do condenado. Faz-se uso do poder e disciplina divina para justificar tais métodos. No subtítulo dois pode-se verificar que após anos seguindo da mesma forma, quanto às medidas punitivas, a população passou a não tolerar mais essas cenas e fizeram protestos pela existência de penas mais humanitárias. Dessa forma, tornam-se evidentes quais foram as tendências do desenvolvimento das penas. Posteriormente, por consequência de tais protestos foi criado o sistema prisional, que seria uma maneira de ressocializar os apenados, numa tentativa de moldar o pensamento e comportamento do preso. O presente trabalho faz uma observação a partir do referencial doutrinário para mostrar que os métodos medievos de suplício ainda são presentes e como isso acaba atingindo as pessoas inseridas nesse sistema conjuntamente com a sociedade. Palavras-chave: Surgimento das penas. Medievo. Suplício. Abstract: This article is a historical analysis of the emergence of feathers from the principles of creation of this system. With the bibliographical survey can first observe how the tortures were employed, what methods are used and why each punishment be directly in the body of the condemned. Makes use of the power and divine discipline to justify such methods. The subtitle two can be seen that after years of following the same way, as to punitive measures, the population was no longer tolerate these scenes and staged protests by the existence of more humanitarian feathers. Thus become apparent which were trends of the development of feathers. Subsequently, as a result of these protests the prison system, which would be a way to re-socialize the inmates in an attempt to shape the thinking and behavior of the prisoner was created. The present work is an observation from the doctrinal framework to show that medieval methods of torture are still present and how it ends up hitting the inserted this system together with the society people. Keywords: Emergence of penalties. Medieval. Ordeal. 1. INTRODUÇÃO O presente artigo trata de uma análise dos métodos de desenvolvimento e evolução das medidas punitivas. Fazendo tal análise a partir das fases de vinganças, incluídas nos primeiros sistemas punitivos e tornando-se responsáveis pela evolução das regras de conduta. O direito penal é necessário para o desenvolvimento da sociedade, nesse sentido abordam-se as penas para os condenados no século XVIII. No intuito de facilitar a compreensão de tais métodos, faz-se uma explanação sobre os meios utilizados para este e o que resulta dessas condutas após alguns anos. Diante disso nota-se o surgimento do pensamento humanitário, uma vez que é importante ser destacada para se possa construir uma linha de raciocínio da origem das penas até o sistema que aplicado atualmente. A seguir se registra que o houve uma transformação no direito penal que consequentemente deu ênfase na mudança da execução da pena, que surgiu á partir das críticas públicas, e deu início a uma nova mentalidade social sobre os condenados. Por fim, uma análise ao cumprimento de penas e a necessidade de técnicas de poder sobre os corpos, avaliando a proposta que inicialmente deveria ser oferecida pelo sistema penitenciário, sendo de forma fundamental para a ressocialização do condenado, e não são atendidos de acordo com os direitos humanos previstos da Constituição Federal. 2. O SURGIMENTO DAS PENAS E A SUA LIGAÇÃO CONTEMPORÂNEA COM A TENTATIVA DE RESSOCIALIZAÇÃO Existe uma grande importância nos aspectos históricos do sistema punitivo (carcerário). Para que se possa analisá-lo corretamente é necessário conhecer os princípios da criação do referido sistema. Desde o início foram necessárias regras para que se pudesse conviver em harmonia. Os governantes sentiram a necessidade de serem criadas leis que pudessem proteger os direitos, garantir a ordem e, consequentemente, punir os seus violadores, surgindo assim os crimes e seus respectivos castigos. O sistema punitivo, por meio da história, passou por diversas fases, como o da vingança privada, vingança divina, vingança pública, e o período humanitário3. Tais princípios foram os norteadores responsáveis pela transformação das regras de conduta, das proibições e das leis impostas à sociedade que por meio de suas adequações com o passar do tempo, tornaram-se o direito penal da atualidade. Foucault abrange esse assunto em suas obras “Microfísica do poder” (1979) e “Vigiar e punir” (2012), onde estabelece uma relação de poder, que se molda de acordo com a sociedade e de como ela se desenvolve. Para estabelecer o poder é preciso força, a imposição da força sobre o corpo acaba por submeter à obediência, a aceitar as regras sem qualquer questionamento. Desse modo se pode ver quais foram as necessidades que levaram a criação das penas, e as justificativas de aplicação, acreditando que se fossem ministradas dessa forma, seriam alcançados os objetivos pretendidos como a disciplina esperada pela sociedade. Com tais princípios é possível analisar essas perspectivas como fundamentais, como a centralização do poder governamental pela sociedade disciplinar. 2.1 A ostentação dos suplícios nos corpos dos condenados como remição dos crimes. Em 1787 eram comuns os suplícios em praça pública como forma de punição for algum delito, onde era preconizada a tortura como exemplo para os demais para que não repetissem o mesmo erro (FOUCAULT, 2012, p. 14). O poder era voltado à igreja e os castigos eram considerados como a vontade de Deus. Contemporaneamente o poder continua centralizado nas mãos de uma pequena parte da sociedade, a economia voltada ao capitalismo e a política vem exercendo um poder dominador. Nota-se que na época da sociedade feudal a ideia de punição servia como controle de que ninguém se atreveria a praticar o mesmo ato, pois, sabiam quais eram as consequências. Da mesma forma é relacionado ao método punitivo atual, havendo a necessidade de manter a ordem social corrigindo comportamentos, onde se prioriza a disciplina do indivíduo para com os demais. Para tanto, é necessário vigilância, daí o surgimento das penitenciárias, que teriam o propósito de “ensinar” aos delinquentes a disciplina do comportamento adequado para que estes sejam aceitos no ambiente de convívio social. 3 Desse modo ratifica OLIVERIA, Odete Maria. Prisão: um paradoxo social, Florianópolis: UFSC, 2003, p. 23. A primeira fase do direito penal ficou conhecida como vingança privada, onde o condenado era punido pela própria vítima ou seus familiares, e por vezes a sociedade também clamava por tal castigo (OLIVEIRA, 2003, p. 24). Desse modo existia uma sensação de satisfação da pessoa lesada anteriormente por ter tido o poder de lhe infringir nova dor. Era uma reação natural pela realidade sociológica da época que a vítima buscasse vingança na mesma proporcionalidade de que foi agredida, porém por diversas vezes essa proporção era ultrapassada e causava maiores danos do que aqueles já praticados. Dentro dessa mesma fase, também se observa a vingança coletiva, que se tratava da vingança do clã ou grupo que vivia em conjunto e prezavam pela proteção da sua coletividade, onde exerciam essa vingança contra aquele que os ameaçavam de forma ilimitada e sem lógica (OLIVEIRA, 2003, p. 25). A vingança da paz social teve aparecimento na sociedade em estrutura familiar e a penalidade passou a ser de privação da paz social em que um membro do mesmo grupo ao cometer esse delito era expulso da sua comunidade, sem portar armas ou comida e ninguém poderia ajudá-lo, era também atingido seu patrimônio e ele perseguido socialmente (OLIVEIRA, 2003, p. 25). A vingança do sangue ficou assim denominada pela existência da estrutura familiar, onde o crime praticado por um membro de grupo causava a revolta da comunidade que investia contra esse e seu clã, dizimando-os e destruindo o seu patrimônio. Diante disso foi criada a lei de Talião que tinha por lema a frase “Olho por olho, dente por dente” onde eram estabelecidas as punições de acordo com os crimes praticados, moderando o castigo nas mesmas condições em que o agressor a praticou, ou seja, aquele que matava alguém seria punido com a sua própria morte (OLIVEIRA, 2003, p. 26). A vingança divina se constitui na forma de que os sacerdotes justificavam os castigos impostos aos criminosos, à forma como eles eram cruéis e dolorosos serviam para se redimir diante de Deus e que ele os ordenava que fosse dessa forma. Aplicavam penas desumanas para amenizar a fúria das divindades pelo delito cometido. O direito era envolvido pela religiosidade e a sociedade tinha de manter-se correta para não causar nenhuma ofensa à divindade e para que a sua fúria não os atingisse e os exterminasse por completo. Já na vingança pública, onde as leis já não eram mais aceitas como a simples vontade sagrada, e tendo por meio o desenvolvimento da política, os responsáveis por tais penas passaram a ser as autoridades públicas. O então soberano fazia uso de sua autoridade na qual representavam a comunidade para impor os mais severos suplícios em nome de Deus, onde se julgavam instrumentos escolhidos por ele para governar e manter a ordem (OLIVEIRA, 2003, p. 36). A execução da pena dava-se como um espetáculo com intuito de impressionar a população, deixar gravado em sua memória aquilo que lhes aconteceriam ao cometerem o mesmo erro (OLIVEIRA, 2003, p. 39). Apena de morte não era o simples fato de ceifar a vida do condenado e sim de produzir um espetáculo, onde eles agonizavam lentamente no intuito de arrepender-se dignamente perante Deus (OLIVEIRA, 2003, p. 26). Acredita-se que tais formas de punição atrozes, era em sua essência a consequência da lei de Talião, que plantava a ideia de buscar e exigir vingança pública. Foucault (2012, p.13) inicia a obra “Vigiar e Punir” com um exemplo de condenação, no século XVIII onde o indivíduo fora sentenciado a pedir perdão em praça pública, ser atenazado4 em várias partes do seu corpo, onde o mesmo será desmembrado por cavalos, seus membros consumidos pelo fogo e suas cinzas jogadas ao vento. Este exemplo faz alusão aos suplícios em que o método de punição se dava diretamente no corpo dos condenados. 4 Maneira de torturar o indivíduo por meio de um ferro quente e enxofre, que eram aplicados em partes do corpo. FOUCAULT, 2012, p. 09. Os suplícios continuaram sendo predominantes até meados do século XVIII, onde então passaram a surgir críticas a essa teoria de punição. Salientado que o intento de redimir a moral do condenado para que este percebesse que seus atos não são aceitáveis, pois para isso ele teria que ter um tempo de reflexão sobre os motivos que o fizeram violar as regras, por tanto essa pena antes aplicada seria de total incoerência (OLIVEIRA, 2003, p. 42). O período humanitário traz um despertar na consciência pública, onde os suplícios das penas apresentavam-se intolerável e vergonhoso (OLIVEIRA, 2003, p. 42). Surge assim um movimento de protesto, formado por juristas, magistrados, parlamentares, filósofos, legisladores e técnicos do direito, que pregava a moderação das punições e sua proporcionalidade como crime. Verificou-se então que os crimes contra as pessoas não eram mais tão praticados, os delitos maiores agora eram cometidos pelos crimes contra o patrimônio, por isso a justiça resolveu elevar a punição contra o roubo e desenvolveu o sistema policial. Na verdade, a passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude faz parte de todo um mecanismo complexo, onde figuram o desenvolvimento da produção, de aumento de riquezas, uma valorização jurídica e moral maior das relações das propriedades, método da vigilância mais rigoroso, um policiamento mais estreito da população, técnicas mais bem ajustadas de descoberta, de captura, de informação. (FOCAULT, 1979, p.72). As propostas não eram somente acabar com os castigos físicos e incoerentes, mas também a forma irregular da justiça, com base nos privilégios do soberano que tornavam duvidosos os exercícios judiciais. Fora isso o rei tinha o poder de decisão sobre qualquer processo, procedimentos irregulares e instigação aos magistrados para que resolvessem a situação da forma que melhor o agradasse. Por esse poder ser detido por ele, o direito penal era transformado em seu direito pessoal na forma de punir. Essa reforma queria pleitear uma nova justiça, pois cada vez mais a execução pública era vista pelo povo como um meio de ensejar ainda mais a violência e não uma pena para um crime. 2.1 As penas mais moderadas de acordo com o delito cometido As reformas pretendidas eram para que as penas fossem mais bem distribuídas e mais amenas, sendo que as decisões da forma e maneira de punir não ficassem a encargo do rei, sem parâmetros para definição dos meios de punição, e sim que o direito fosse a lei suprema para resguardar a defesa da sociedade, abolindo todas as formas de mutilação dos corpos. Tal crítica ao suplício se dava por meio da insatisfação do povo com o poder absoluto que exercia o soberano (SOUZA; MESEZES, 2010, p. 22). Essa relação rei-súdito não se dava somente aos corpos singulares, a amenização das penas e a punição generalizada surtem efeitos ao conjunto social. Tal modificação desloca o alvo do crime, que antes era centrado somente na pessoa do rei, e agora toda a sociedade, que sente atingida. Muitos países demoraram a admitir que as penas aplicadas fossem aflitivas e desumanas, mantendo-as até o século XIX onde por fim, devido aos protestos cada vez maiores da população em que manifestavam a necessidade da punição não mais ser uma cena de horror sobre o corpo do condenado, os suplícios foram definitivamente terminados. A valorização da pena é mudada, antes somente servia de punição ao condenado como forma de represália pelo crime cometido, após o começo de século XIX, a sociedade passou a crer que deveria ser realizada a reeducação, a correção desses indivíduos (OLIVEIRA, 2003, p. 43). Punições menos diretamente físicas, uma certa descrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação, merecerá tudo isso acaso um tratamento à parte, sem apenas o efeito sem dúvida de novos arranjos com maior profundidade? (FOUCAULT, 2012, p. 12). Foucault (2012, p.13) salienta também que é indecoroso ser passível de punição, mas pouco glorioso punir. Daí esse duplo sistema de proteção que a justiça estabeleceu entre ela e o castigo que ela impõe. Com certeza os suplícios não desapareceram por completo, o poder sobre o corpo, tampouco deixou de existir. A pena que antes era de agonia tornou-se um castigo, com a privação da liberdade e trabalhos forçados dentro das prisões. Em realidade apenas faz diferença do modo explícito para o enclausurado, mantendo o sofrimento físico e agregando o psicológico. (FOUCAULT, 2012, p.13). É uma modificação que vai do absurdo para o mais humano, quando se pretende a “suavidade das penas” se inscreve um pensamento de que as mesmas serão radicalmente mudadas, por meio de uma ideia de racionalidade que tem por objetivo maior humanidade, porém onde permaneceram mascaradamente uma infinidade de procedimentos que se pode chamar de inumanos. Essa nova tecnologia de punição deu início a um novo pensamento: a priorização do respeito ao ser humano, mesmo o condenado, e por esse motivo, ele teria o direito a reintegração social (WELLAUSEN, 2007, p. 15). A pena seria calculada não mais em função do crime, mas para que este não volte a cometer o mesmo. Reorganiza-se, então, um poder de punir sem lacunas e passam a se firmar leis bem codificadas. Tal estrutura racional do poder de punir implica um deslocamento da anatomia punitiva que anteriormente se realizava, segundo o velho direito monárquico, por marcas rituais de vingança aplicadas ao corpo do condenado, e que atemorizavam os espectadores. Que não tenha mais vontade de cometer o delito e para que não haja seguidores do criminoso, punindo o primeiro suficientemente para impedi-lo de fazer novamente. Segundo Foucault (2012, p. 90) os reformadores passaram a pensar no poder de punir de forma eficaz e generalizável na sociedade, e para isso criaram algumas regras importantes a serem seguidas, como: a regra da quantidade mínima: um crime era cometido por trazer vantagens ao criminoso, por tanto a ideia de crime deveria ser associada à desvantagem. Regra da idealidade suficiente: a ideia de desvantagem partirá da pena, a punição não precisa mais utilizar o corpo, pois a dor não é mais a técnica utilizada na punição, mas sim o que a pena representa ao condenado deve ser evidenciada, para impedir sua reincidência (FOUCAULT, 2012, p. 90). Regra dos efeitos laterais: A pena deve atingir mais os que ainda não cometera a falta do que o próprio culpado, tendo a segurança de que este não poderia recomeçar e que os outros teriam medo ao fazer, não falando mais em pena de morte, mas sim algo ainda mais cruel, a escravidão perpétua (FOUCAULT, 2012, p. 91). Regra da certeza perfeita: que as leis sejam expostas, assim como suas punições, de forma que todos possam ter acesso a elas e por suas consciências definir o que vale mais para si. E que sendo assim, nenhum crime fique impune diante da justiça para que não criem margem a discussão ou pensamento de que algum criminoso não será punido. Daí o surgimento da ideia da que era preciso mais vigilância, de que um órgão poderia impedir a realização de crimes ou prender os criminosos, desenvolvendo o sistema repressivo policial que atuava em conjunto com a justiça. E ainda que os processos não sejam mais secretos, para que todos saibam as razões de punir e o motivo de ser punido (FOUCAULT, 2012, p. 91). Regra da verdade comum: uma nova prática como meio de constituir provas ao crime, utilizando-se da investigação criminal, sendo somente admitida aquela que for comprovada. Não mais fazendo uso de torturas para conseguir a confissão dos crimes, onde as mesmas eram confessas em meio à dor e sofrimento e que por óbvio muitas vezes dita somente para que sessasse o suplício (FOUCAULT, 2012, p. 93). Regra da especificação ideal: se fez necessário um código par que pudesse esclarecer todos os tipos de infração e quais as suas respectivas penas. No entanto as consequências não poderiam ser iguais para todos, pois o castigo pretende punir a reincidência e para isso deve-se levar em conta a natureza do crime e do criminoso (FOUCAULT, 2012, p. 94). O poder tem por sua finalidade modificar o corpo do indivíduo para que o mesmo seja passível de obediência (WELLAUSEN, 2007, p. 16). A amenização das penas ocorreu como uma economia calculada do poder de punir, tirando diretamente o foco da punição sobre o corpo onde eram praticados rituais de sofrimento e tortura excessivos e públicos, para deter-se sobre a mente do condenado, pois a submissão dos corpos influenciará no controle das ideias. A partir do momento em que o indivíduo é taxado de criminoso, passa a ser visto pela sociedade como uma espécie diferente do ser humano. Às vezes é rotulado como anormal, doente, ou louco e torna-se o inimigo de todos, por outro lado encontra-se nessa realidade uma necessidade de medir os efeitos do poder de punir do lado de dentro, um controle para garantir a verdade e realizar os ajustes possíveis na individualização das penas para que o crime não seja praticado novamente pelo mesmo. O que é importante na ideia de disciplinar o indivíduo é que a sociedade compreenda qual é a própria ideia de sociedade, a disciplina, a racionalidade, a humanidade, fazem a sociedade, criam uma linguagem comum. A prisão tem por objetivo reeducar o criminoso para que possa ser entregue a sociedade, tendo em mente os mesmos princípios que a constituem e que a tornam uma sociedade democrática de direito (WELLAUSEN, 2007, p. 17). Pela instituição dessa nova política, apesar de ter sido destituído o corpo do objeto central dos castigos, ele novamente aparece, porém de uma forma inédita. O afrouxamento da severidade penal no decorrer dos últimos séculos é um fenômeno bem conhecido dos historiadores do direito. Entretanto, foi visto, durante muito tempo, de forma geral, como se fosse fenômeno quantitativo: menos sofrimento, mais suavidade, mais respeito e “humanidade”. Na verdade tais modificações se fazem concomitantes ao deslocamento do objeto da ação punitiva. Redução de intensidade? Talvez. Mudança de objetivo, certamente. (FOUCAULT, 2012, p. 18). Essa disciplina que foi implantada nas penas para remissão dos crimes servia para tornar o corpo não somente dócil e obediente, mas também útil. Há neste contexto, a utilização do poder para dominar e disciplinar os corpos para que estes se moldem a vontade daqueles que os detém. Para isso, empregam-se técnicas que visam fazê-los mais rapidamente, alcançarem o seu objetivo. Desse modo, o corpo é submetido a uma forma de poder em que não poderá ir de encontro a tal submissão, pois tais práticas disciplinares irão desarticulá-lo por completo e corrigi-lo por meio de uma nova mecânica do poder, onde lhe serão impostos comportamentos dóceis para fim de utilização do mesmo quando retornar para o convívio em sociedade (SOUZA; MENESES, 2010, p. 26). Apensar de todos os protestos realizados para findar a prática dos suplícios, apenas o mudamos de sentido, na forma de fazer uso não somente da forma antiga que tratava-se da punição corporal dolorosa, mas agora também agregando a forma psicológica. 2.3 A pena de reclusão: uma nova forma de suplício. A prisão tem como um princípio o isolamento do apenado para que este passe por um processo de mudança em seus hábitos e pensamentos, disciplinando com métodos específicos o que será a sua nova maneira de agir perante a sociedade comum. Contudo o direito penal afirma que busca punir o réu de acordo com o delito cometido, algo que não acontece quando todos os condenados passam a conviver dentro das penitenciárias de forma igual, onde não lhes são propiciados tratamento conforme o seu delito e ainda passam a sofrer abusos principalmente psicológicos diariamente para que se tornem cidadãos “ressocializados”. O direito penal visa aplicar a pena prevista em lei, reafirmando a legislação vigente, punindo o réu conforme a sua culpabilidade, para que ele e a sociedade possam ver as consequências geradas pelo cometimento de delitos, e que, na tentação de cometer um crime, o cidadão reflita e perceba, sensivelmente, que se terão mais prejuízos do que lucros com a prática delituosa, com o cumprimento certo e preciso da sanção penal. Contudo, incontestavelmente, sua principal função é ressocializar e readequar o prisioneiro, para o convívio seguro e livre com os “cidadãos de bem” (NUCCI, 2005, p. 391). Assim nasce a pena de prisão, uma forma de humanizar os castigos, mas que serviu a penas para levar os suplícios para longe dos olhos da sociedade. O encarceramento que antes serviam apenas para deixarem o condenado à espera de sua morte, foi modificado para um sistema onde ele passou a ser vigiado com intuito de refletir e redimir-se perante a sociedade sobre o seu crime. A prisão tornou-se um método de contentar a sociedade com uma punição sobre os crimes e que não produzia tanto efeito e ás vezes até revoltas, a reclusão tomava o lugar dos suplícios públicos. Dentro de algumas práticas disciplinares presentes na reclusão, destacam-se a vigilância, a clausura e as filas. A vigilância é uma tecnologia de poder que atua diretamente nos corpos dos condenados, pois dessa forma é possível saber quais os seus gestos, o que ele faz ou aquilo que lhe possa interessar (SOUZA; MENESES, 2010, p. 26). A clausura consiste na divisão do espaço físico, pois assim facilita o sistema de vigilância, controlando a rotina de cada detento. A fila configura outra técnica disciplinar, pois elas tornam o espaço de visão dos carcereiros organizados e de fácil reconhecimento do indivíduo em qualquer eventualidade. (SOUZA; MENESES, 2010, p. 27). O poder disciplinar nasceu de acordo com o desenvolvimento da sociedade, onde cada vez mais o poder do soberano era deslocado para o poder social. A partir de então esse novo poder era aplicado nos corpos para eu houvesse o enriquecimento de suas forças, por meio de exercícios que tinham por objetivos controlar e docilizar os mesmos, de acordo com aquilo que o corpo social entendia ser aceitável. (SOUZA; MENESES, 2010, p. 25). Demonstra Foucault (2012, p. 26) desde que funciona o novo sistema penal – o definido pelos grandes códigos dos séculos XVIII e XIX – um processo global levou os juízes a julgar coisa bem diversa do que crimes: foram levados em suas sentenças a fazer coisa diferente de julgar; e o poder de julgar foi, em parte, transferindo a instâncias que não são as dos juízes da infração. Alguns teóricos da época começaram a desenvolver seus pensamentos sobre qual seria agora o objetivo das penas prisionais, se antes o elemento principal era o corpo dos condenados, agora que não se utilizava mais deste, de que serviria a pena de reclusão? Na instigação de Foucault (2012, p. 28) era de que “a história dessa microfísica do poder punitivo seria então uma genealogia ou uma peça para uma genealogia da “alma” moderna”. Passou-se a buscar então um castigo mais profundo, que chegasse é a alma do indivíduo, que ele pudesse perceber o quão errado era o seu comportamento e que por fim a sua vontade e disciplina fossem de acordo com a expectativa da sociedade. A realidade histórica dessa alma representada pela teoria cristã não nasce faltosa e merecedora de castigo, mas nasce antes de procedimentos de punição, de vigilância, de castigo e coação. (FOUCALT, 2012, p.28). Um método para solucionar a criminalidade dava-se pela reinserção do indivíduo, utilizando medidas positivas na inclusão social e realizando tal trabalho de reabilitação também com suas famílias. (PASTANA, 2012, p. 536). Onde desapareceu o corpo diretamente supliciado e torturado, apareceu o corpo do indivíduo prisioneiro, vigiado e manipulado, visto como delinquente. Os próprios métodos de castigo geraram essa alma criminosa, que era fundamental para a aplicação do poder punitivo e objeto central da ciência penitenciária (SILVA, 2011, p. 118). Segundo Oliveira (2003, p. 70) A teoria preventiva assimila a caráter preventivo da pena, para evitar delitos futuros. As reparadoras pretendem como fim da pena corrigir consequências danosas do ato perpetrado. Conciliam, de um lado, o caráter retributivo da pena, acrescentandolhe, de outro, um fim político e útil e a necessidade de garantir o bem e os interesses da sociedade. Tal teoria trata de juntar os princípios absolutos e os princípios relativos, associando à pena um fim socialmente útil e um conceito retributivo. Pune-se porque pecou e para que não peque. A privação de liberdade tornou-se assim, a pena evoluída dos suplícios e dos ainda anteriores assassinatos. A prisão nasceu com um objetivo principal de ser humanizante e ao mesmo tempo útil. Todavia para que a mesma passasse a transformar sujeitos criminosos em almas dóceis e produtivas, foi necessário aprimorar essa instituição. (PASTANA, 2012, p. 534). Com isso, ao invés de serem esquecidas totalmente as formas de punição que eram antes aplicadas, dentro das penitenciárias, os condenados ainda eram submetidos a tais métodos de tortura. Por tanto, na condição disciplinar, o corpo que foi submetido ás técnicas de vigilância e controle, foi cada vez mais, tornando-se aquilo que era a vontade social (SOUZA; MENESES, 2010, p. 29). Sendo que essa nova forma de lidar com os condenados, diferencia-se do antes aplicado suplício, uma vez que os rituais de tortura e agonia eram ensejados somente ao corpo, enquanto que a essa nova aplicação de correções disciplinares apoderam-se do corpo, tendo por fim tirar dele e de sua alma o máximo possível. Assim, percebe-se que a pena de reclusão nada mais é do que retirar o indivíduo do convívio social para o isolamento, tornando assim, sua conduta ainda mais agressiva em vista do conjunto de fatores que englobam o sistema carcerário. Incidindo negativamente em seu sistema psicológico e não havendo a devida ressocialização do condenado, torna-se evidente que esta não é a melhor alternativa para a punição do delinquente. Por fim, pela observação dos aspectos analisados, é necessário entender que para uma correta ressocialização do apenado, a pena de reclusão não é adequada para a devida reinserção do indivíduo na sociedade, pois os direitos humanos não são observados e tão pouco aplicados nesse meio que necessita de forma urgente o enfrentamento de tais direitos, por se tratar de um indivíduo que está privado de sua liberdade e que dependerá do meio em que está inserido para modificar seu comportamento. 3. CONCLUSÃO Em virtude dos fatos mencionados, percebe-se que existe uma relação direta com o surgimento das penas e da situação em que se encontra o sistema prisional. Pois nota-se que em tal estabelecimento, as mesmas formas de suplícios anteriormente aplicados aos criminosos, somente de forma distinta em função do local e da própria maneira de incidi-la. Tais métodos embora abolidos há muito tempo, não desapareceram totalmente, pois a sua essência de castigar continua ativa nos novos meios possíveis, uma vez que as penas de reclusão nada mais são do que uma forma de punição que acabam afetando não só o físico, mas conjuntamente o psicológico do detento. Tornando aquilo que deveria ser um meio de conversão de um comportamento defeituoso, por um que fosse aceitável aos padrões sociais. Entende-se que os motivos que levaram a punições chegarem a tal ponto foram os mecanismos de poder adotados para que a devida ressocialização surtisse efeito, procurando uma forma que pudessem controlar e moldar os corpos e mentes dos delinquentes, tornando-os úteis para a sociedade e não apenas um peso que a mesma tivesse que sustentar. A maneira como o detento é tratado no sistema carcerário é totalmente repugnante diante dos direitos e garantias fundamentais não observados, tornando-o cada vez mais agressivo. O que a sociedade não percebe é que dessa maneira não está agindo de forma contundente para mudar a realidade criminal, pois está se apoiando em sistema totalmente falho, usando métodos arcaicos, onde ainda o principal objetivo é retirar o máximo das mentes e corpos para que estes não voltem a cometer o mesmo erro, sendo que a única vontade daqueles que retornam a liberdade é descontar a humilhação e os abusos sofridos lá dentro, na própria sociedade que o aprisionou. Eis que a sua revolta é uma forma de protesto contra essa manipulação mascarada de justiça utópica. Pensar que aumentando a severidade das penas, bem como o tratamento ainda mais rigoroso nas penitenciárias irá prevenir a criminalidade é ilusório, pois o máximo que conseguiríamos estabelecer seria um direito penal simbólico, onde tais disposições legais raramente alcançariam o resultado pretendido. Assim, faz-se necessário uma total mudança no sistema carcerário, de sua metodologia, até sua estrutura, para que dessa maneira se possa garantir a completa ressociabilização do indivíduo de forma humanitária e que verdadeiramente surtam resultados em sua conduta. 4. REFERÊNCIAS FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro, Vozes, 2012. _____ Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal, Parte Geral e Parte Especial, São Paulo, 2005. OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: um paradoxo social. Florianópolis, UFSC, 2003. PASTANA, Debora Regina. Economia e punição: uma relação histórica nas perspectivas sociais, 2012, Estudos de sociologia, p. 529-547. SILVA, Eufrida Pereira da. Corpo e violência em Michel Foucault: vigiar e punir, 2011, Sistema penal e violência, p. 112-118. SOUZA, Noelma Cavalcanti de. MENESES, Antonio Basílio Novaes Thomaz de. O poder disciplinar uma leitura em vigiar e punir, 2010, Saberes, p. 19-35. WELLAUSEN, Saly da Silva. Os dispositivos de poder e o corpo em Vigiar e Punir, 2007, Aulas, p. 1-23.