A PRIMEIRA FASE DA PERSECUÇÃO PENAL SOB UM ENFOQUE CRÍTICO Douglas Roberto Ribeiro de Magalhães Chegury Delegado da Polícia Civil do Distrito Federal 1-Preliminares 1.1-Um antecedente histórico. 1.2-Os autômatos do direito. 2- A Teoria Crítica 2.1- Insatisfação filosófica 2.2- Manipulação Ideológica. 2.3- A linguagem perdida. 3. O Direito Penal. 3.1-O Direito dos Excluídos. 3.2- O Discurso Legitimador. 3.3- A cultura da Violência. 3.4Os Crimes de Verdade. 4- A Polícia da Elite. 4.1- Seleção Policial. 4.2-O treinamento Policial e seus Rituais. 4.3-O Treinamento que não Existe. 4.4-“Delegado Natural” 5- Delegados Pensantes? 5.1- A responsabilidade Policial. 5.2- Os Saberes Penais. 6- Utopia Final 1-PRELIMINARES 1.1-Um antecedente histórico Nos estertores da idade média (início da idade moderna), logo após a Revolução Francesa, com a ascensão da burguesia e seus interesses econômicos mascarados na trilogia da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, teve início movimento articulado de estratégia que visou a consolidação do realinhamento do poder estatal. Neste passo, desconfiada do comprometimento anterior dos magistrados franceses, aliados ao monarca, o controle do poder Judiciário e da autonomia dos juízes cunhou a figura do magistrado “boca da lei”. Aos juízes não era autorizada qualquer atividade criativa ou pró-ativa que fugisse dos limites de aplicação estrita da lei. A verdade legislativa, construída pela elite de plantão, não deveria ser interpretada e muito menos reconstruída ou questionada (dura Lex sed Lex) pelos aplicadores do direito, que se limitavam, quando muito, a uma pífia interpretação gramatical e a um juízo de subsunção do fato à lei. 1.2- Os autômatos do direito Nesta senda se desenvolveu, posteriormente, em circunstâncias outras, o positivismo e o excesso de dogmatismo na construção de uma pretendida ciência do direito asséptica e livre de qualquer axiologia, a qual atingiu o ápice na doutrina Kelseniana. O Direito afastou-se das ciências sociais, e a formação dos operadores na sociedade de massas assumiu escala industrial ante a inflação de Faculdades com ensino precário e onde disciplinas de base como filosofia e sociologia são desprezadas como sendo de segunda categoria. O bacharelismo histórico e a ganância de inescrupulosos “empresários da educação,” permitem que todos os dias uma multidão de bacharéis sem condições de aprovação em um elementar exame de ordem inundem o mercado sem formação crítica e desejosos de “encostarem-se no serviço público” através de concursos cada vez mais seletivos. A profusão de cursos preparatórios para concurso e de uma linha editorial voltada exclusivamente para este segmento é o mais nítido sintoma do sucateamento do pensamento jurídico. O operador (escravo da lei) recebe tão somente treinamento jurídico, conhecimento técnico e acrítico da realidade que o circunda, e é preparado para aplicar cegamente o código, tornando-se incapaz de solucionar problemas que desbordem do ordenamento positivado. Este retorno ao procedimentalismo praxista, onde se valoriza o como fazer e não o porquê do fazer, atende aos interesses do Establishment, avesso a qualquer mudança de realidade que ameace sua hegemonia e seus interesses. Para a burguesia pós-moderna, a técnica jurídica é aperfeiçoada ideologicamente por especialistas remunerados regiamente, que manipulam o conhecimento de maneira favorável aos seus privilégios. São doutrinadores que prostituem seu saber e legisladores que se corrompem aos lobbies poderosos, construindo teses e legislação contramajoritárias sufragadas através de um procedimento legislativo de legitimidade questionável. 2- A Teoria Crítica 2.1- Insatisfação filosófica A atitude constantemente questionadora da realidade, acentuada em livres pensadores e filósofos, representou sempre uma ameaça a ser combatida e controlada. Sobretudo no passado, o conhecimento era privilégio de alguns iniciados, e um povo ignorante e supersticioso era certeza de manipulação e domínio. Não se permitia a crítica do estabelecido e muitos foram queimados em razão de seus espíritos rebeldes e ousadia no pensar. Com o tempo e a disseminação do conhecimento, não mais represado nas mãos de poucos sacerdotes do saber, o problema do conhecimento transformou-se de uma dificuldade inicial na obtenção da informação em uma necessidade moderna de seleção da informação. Em dias de globalização e mundo virtual o que angustia não é tanto a insuficiência desta, mas sim o seu excesso, produzida em volumes humanamente inapreensíveis e para atender às mais diversas ideologias. Mais do que nunca a crítica filosófica se faz imprescindível para selecionar o que deve ser apreendido e desenvolvido. 2.2- Manipulação Ideológica A realidade não se constitui mais em algo apenas dado, que deve ser tão somente compreendido pelo sujeito cognoscente, mas sim em um algo construído continuamente com técnicas especialmente elaboradas e aplicadas. O ser humano assumiu as rédeas de seu próprio destino, abandonou parcialmente o determinismo fatalista e tem a pretensão de dirigir seus rumos conforme o que acredita ser o melhor para si. O grande problema desta percepção é que descobriu também que há limites para a satisfação de seus interesses, em que pese tais limites ainda não encontrarem-se precisamente definidos. E na administração destes limites desconfia de que para a satisfação de uma minoria é necessário o sacrifício e a marginalização da maioria. A questão do poder ganha contornos dramáticos na medida em que a população mundial cresce em progressão geométrica e os recursos diminuem também vertiginosamente. A centralização do poder se esforça na construção de ideologias justificadoras que convençam os mais esclarecidos de que o “status quo” deve manter-se como está pelo bem da humanidade, mas não esclarecem a extensão deste conceito de humanidade. A maioria dos alijados sociais, incapazes de entender o significado destas teses, porquanto construídas com a lógica dos dominadores, se limita a sofrer os efeitos da manipulação ideológica. Em última instância, a ideologia mais elaborada se destina ao convencimento da parcela da sociedade que possui condições intelectuais de questionar a estrutura de poder, o que muitos denominavam de classe média, média alta. Pra a elite, o proletariado, que apenas “se reproduz e produz desta forma mão de obra barata, que busca a satisfação de seus instintos fisiológicos elementares”, não tem condições de dialogar porque, a uma, não possui formação para tanto, a duas, porque representaria a destruição da sociedade como a conhecemos se fossem estendidos à massa os direitos e privilégios de que gozam. 2.3- A linguagem perdida Lamentavelmente, os poucos bem intencionados, aquelas mentes pensantes que ainda acreditam que os valores humanistas devem atingir a todos, independentemente da origem, raça, sexo ou condição, dirigem seus discursos às mesmas classes sociais que não revelam interesse algum na mudança. O mesmo preconceito quanto à capacidade dos marginalizados compreenderem a mensagem, impede que o conhecimento esclarecedor alcance aqueles que realmente podem atuar na transformação da realidade. A intelectualidade se vale de uma linguagem excessivamente acadêmica e trabalha com teses e vocabulário muitas vezes incompreensíveis para os não iniciados. Tal ideologia de libertação não chega até os destinatários legítimos, ao povo, às prostitutas, ao operário, ao peão, ao roceiro, por culpa dos intelectuais, incapazes de traduzir para a massa a idéia revolucionária de forma inteligível e praticável. A ilusão de que tal conhecimento será capaz de modificar o status de cima para baixo, a partir da academia ou nas hostes da elite, é ingênua, porque a dominação dos detentores do poder político e econômico jamais o permitirá, irá filtrar e aproveitar aquilo que interessa ao capital, para empregar uma linguagem marxista. O esfacelamento da educação nacional, o sucateamento da estrutura de ensino público, o desprezo das autoridades para com os professores e com a democratização do conhecimento não é acidental, é algo deliberadamente planejado, pois não interessa, como historicamente nunca interessou, desde sempre, que cidadãos com visão crítica do mundo assumam a direção de suas próprias vidas e transformem o meio em que sobrevivem. 3.O Direito Penal 3.1 O Direito dos Excluídos Mesmo que a formação crítica dos cidadãos não interesse aos dominadores, o mais ignorante dos mortais traz em si uma centelha de conhecimento apriorístico que lhe permite intuir a justiça. Como que um imperativo categórico Kantiano que se manifesta quando diante de uma situação de desigualdade. E lá do inconsciente, quando esta insatisfação se remexe e ameaça vir à tona, o indivíduo, mesmo que não esclarecido, confuso com aquele incômodo que já lhe atinge a consciência, que não consegue identificar com precisão, algumas vezes reage, e reage de maneira que desagrada a ideologia dominante. O sistema não se mantém inerte, ao contrário, já construiu estruturas e superestruturas que anularão o que consideram um desvio inaceitável. O direito penal é a ferramenta perfeita para se alcançar este desiderato. Se o resistente não se convenceu da ideologia e ele imposta goela à baixo, se manifestou seu inconformismo, mesmo que inconsciente e não esclarecido, deverá ser contido e servir de exemplo a todos os demais que pretendam seguir seus passos.Selecionados os mártires, construídos os dogmas, o próximo passo é recrutar os responsáveis pela aplicação e funcionamento das engrenagens do sistema penal. 3.2- O Discurso Legitimador O monopólio estatal da violência foi por muitos considerado um progresso da humanidade, e de fato foi, já que retirou das mãos dos mais fortes e dos mais espertos o poder de dizer o direito e de realizá-lo. Todavia, com o passar do tempo, este mesmo Estado tornou-se produtor de uma violência ainda mais perniciosa, uma violência institucionalizada e a serviço de quem ocupasse o poder. E o homem então elaborou mecanismos de contenção deste desmesurado poder, ainda que mantivesse dispositivos subliminares e autojustificadores da violência para serem empregados ao sabor de suas conveniências. O sistema penal é poderoso instrumento de controle social jamais desprezado pelos governantes. Percebe-se que desde a idéia da tripartição das funções, mesmo antes, sob outro conceito, o braço armado do sistema sempre permaneceu sob o domínio do hoje denominado poder executivo. Não por acaso a moderna polícia judiciária de judiciária possui apenas o nome, já que se mantém atrelada ao executivo. O uso do direito penal ganhou dimensões em maior ou menor grau políticas conforme o período histórico em que foi utilizado (a exemplo, no Brasil, do Estado Novo e dos governos militares) e é empregado de forma simbólica pelo Estado quando se deseja aplacar os desejos atávicos de vingança em épocas em que determinada espécie de criminalidade recrudesce ( Lei e Ordem). Procura-se convencer a população de que o emprego do direito penal e de todos os seus rituais de degradação é a solução para os problemas criminais, quando quase sempre a origem social do fenômeno é desprezada por motivos mais que conhecidos (corrupção política, desvios, fraudes, etc..) 3.3- A cultura da Violência Curiosamente este mesmo Estado omisso na implementação de políticas públicas protagoniza cenas cinematográficas de violência, paradoxalmente no meio social onde estas mesmas políticas públicas deveriam ser implementadas, e sob o aplauso das verdadeiras vítimas. Este surrealismo, algumas vezes encenado em morros cariocas, confunde os mais desavisados que acompanham a ação televisionada ao vivo sem saber se se trata da vida real ou da ficção de um filme de Tropa de Elite. A confusão mental é maior ainda quando o diretor do filme participa da bancada de “especialistas comentadores” do apelidado “Dia D da guerra ao tráfico”. A vida imita a arte de forma trágica, e “caveirões”, helicópteros, soldados de preto com brasões com caveiras atravessadas com faca, tanques do exército, fuzileiros navais, “invadem” o “teatro de operações”, um conjunto de morros sem infra-estrutura de água e esgoto decentes, sem escolas e hospitais minimamente aparelhados, creches abandonadas, cidadãos esquecidos, encurralados entre traficantes e milícia.O discurso de salvação soa oco, porém se legitima com o beneplácito de redes de televisão sedentas de audiência e sensacionalismo. Aos poucos a violência produzida, as invasões a residência, saques e desrespeitos substituem as imagens de soldados hasteando a bandeira nacional no alto do morro e afirmando ufanisticamente a reconquista do território. Não se conquista algo que nunca se possuiu, e os telespectadores aguardam o próximo capítulo da novela. A pretexto de combater um tráfico que sustenta o vício dos filhos das elites, os governantes dão “tiros de canhão para matar passarinhos”. Seria inimaginável o BOPE, o “General de 10 estrelas” e seus tanques operando nos Jardins, no Lago Sul, dando tiros de fuzil próximo das mansões e invadindo os bem cuidados campos de golfe. Talvez porque não exista crime nestes locais! 3.4- Os Crimes de Verdade É fato que quase todos trazemos em nosso genoma a influência inconsciente dos delitos originais de sangue que fundaram nossa ascendência préhumana, tais como o homicídio, o estupro, o aborto, etc.. Os episódios bíblicos dos delitos originários (Adão e Eva e Caim e Abel) calaram profundamente nas mentes e desenvolveram um medo inconsciente do alter, contra o qual se reage com a violência estatizada. Todavia, afastada esta explicação psicanalítica da irracionalidade humana, o mundo contemporâneo, notadamente na sociedade de massas atual, assiste a um novo fenômeno criminal de repercussão também massificada, e quase sempre tão ou mais deletério. No entanto, o paradigma de persecução criminal permanece adredemente voltado para a repressão de delitos que violam principalmente bens individuais, quando a Constituição de 1988 prestigia bens jurídicos, direitos fundamentais de caráter social, para os quais os dispositivos penais e o sistema como um todo não se encontra preparado para oferecer tutela. A nova ordem social não tolera excessos de persecução, é verdade, mas igualmente inadmite proteção insuficiente para valores fundamentais como justiça social (Márcia Dometila Lima de Carvalho, Fundamentação Constitucional do Direito Penal, Sérgio Fabris). Neste diapasão, delitos que se convencionou denominar de Colarinho Branco (El Delito de Cuello Blanco-Sutherland, Edwin Hardin), fraudes, corrupção, desvios de dinheiro público, compra e venda de sentenças, liminares, delitos fiscais e previdenciários são aparentemente tolerados pela sociedade ( baixa reprovabilidade),como se fossem infrações de somenos importância, quando são, ao contrário, os verdadeiros crimes, que provocam intoleráveis custos sociais. O que representa um homicídio isoladamente, diante do “genocídio” praticado cotidianamente por governos que fraudam licitações de medicamentos? O abandono da saúde pública com desvios milionários provoca mais mortes que uma guerra. Várias teses podem ser esgrimidas para justificar a reação popular, ou a falta dela, desde a ausência de compreensão por parte do contribuinte de que aquela verba pública desviada é tão sua quanto o botijão de gás furtado de sua residência, até mesmo a sempre lembrada manipulação ideológica. 4- A Polícia da Elite 4.1- Seleção Policial A Polícia sempre foi e continuará sendo uma das instituições mais importantes estrategicamente dentro do Estado, e por uma razão muito simples, ela constitui o braço armado de uma estrutura de controle social a serviço dos dominantes. Não se cuida de discurso marxista, até porque governos marxistas empregaram a polícia com esta finalidade. Nestas estreitas linhas não cabe discutir historicamente as polícias do nazismo, do stalinismo, castrista e tantos outros regimes ditatoriais, mas uma evidência é indiscutível, todas, sempre se mantiveram vinculadas ao poder executivo, e não por mero acaso. O porquê da polícia, notadamente a polícia judiciária, jamais subordinar-se ao judiciário, por exemplo, ou até mesmo adquirir autonomia, é fenômeno digno de ponderações mais profundas a serem desenvolvidas em outra oportunidade. No entanto, alguns aspectos da seleção e treinamento dos policiais merecem linhas breves para contextualizar as ponderações. Indiscutível que baixíssimos salários e precárias condições de trabalho, desvalorização profissional e baixa alto estima, são componentes desestimulantes para o ingresso na polícia de pretendentes em tese mais qualificados sob o aspecto de uma educação formal de qualidade. Seria hipocrisia afirmar-se que candidato qualificado e disposto a concurso onde a remuneração é substancialmente superior, como por exemplo a Magistratura e o Ministério Público, optaria por ingressar na polícia. Evidentemente não se trata de elitizar a instituição e muito menos de se exigir vocação de quem não recebe a mínima contraprestação para cuidar dos seus com dignidade. A sociedade de classes tem a polícia que deseja ter, exatamente porque a atividade fim do policial não tem como destinatário imediato as classes superiores. O direito penal se destina aos marginalizados e, portanto, nada melhor que outros marginalizados recrutados neste “habitat”para que todos os envolvidos se entendam. Ademais disto, policiais com formação crítica com o tempo vão questionar o papel social a eles dedicado. O medo do criador de que a criatura se volte contra si, mantém o ciclo eterno de uma polícia cada vez menos cidadã. Desde que os policiais sejam capazes de minimamente compreender a linguagem da elite nas pouquíssimas ocasiões em que ela procura as delegacias para registro de alguma ocorrência, e desde que estes mesmos policiais mantenham os marginalizados longe de seus shoppings e condomínios, de preferência insulados na periferia, não há mudança a ser feita! Não se deseja filósofos ou sociólogos na polícia, porque a polícia é lugar para gente que faz e não para gente que pensa! 4.2-O treinamento Policial e seus Rituais Bem verdade que muita coisa transformou-se, graças a uma mentalidade mais humanista que começa a se insinuar nas academias, a despeito do preconceito de muitos outros mais arraigados à tradição de violência para os quais marginalizado bom é marginalizado morto( ou seria bandido bom é bandido morto?). Entretanto, a formação do policial ainda continua sendo voltada para uma pretensa guerra urbana. A mentalidade belicista e militarizada prepara o policial não para servir e proteger o cidadão, mas para enfrentar um inimigo difuso e ameaçador, que estaria sempre disposto a atacar, ferir, roubar e matar. A ênfase do treinamento é no emprego de armamento letal, técnicas de interrogatório, defesa pessoal, operações policiais, contra informação, e muitas vezes algumas forças são treinadas nos moldes já vistos em filmes como Tropa de Elite. Argumenta-se que os rituais de humilhação física e moral do pretendente têm o objetivo de desenvolver a têmpera, a fibra, a rusticidade do policial, mas não se percebe que a única coisa desenvolvida é o ódio e o desprezo pelo semelhante. O policial não deve conhecer nada de sociologia, antropologia, direitos humanos ou filosofia, e deve cumprir cegamente as ordens de seus superiores, por mais desarrazoáveis que sejam. Os policiais se vestem de preto, trafegam em camburões pintados com símbolos da morte e adquirem com o tempo divisas dos cursos e treinamentos que recebem, como atirador de elite, patrulhamento em área de favela, sobrevivência na selva etc...É evidente que há, sim, situações em que tais conhecimentos e treinamentos se fazem imprescindíveis para o adequado desempenho da atividade policial, sobretudo no combate à criminalidade violenta que persiste, mas o que se questiona é a generalização desta mentalidade e o estímulo pelo seu incremento, em detrimento de capacitação igualmente importante no atendimento digno aos cidadãos e na defesa de bens tão importantes quanto os individuais. 4.3-O Treinamento que não Existe Se partirmos da premissa alhures explorada de que a verdadeira criminalidade, ou pelo menos a mais perniciosa, é a de colarinho branco, ficará evidente a razão pela qual o Estado não se interessa pela formação de uma polícia voltada à investigação e repressão desta modalidade criminosa. Em um primeiro momento porque os responsáveis pela estruturação de uma polícia que se destine a investigar fraudes a licitação, ilícitos fiscais, corrupção em altos escalões públicos, crimes ambientais de vulto, desvios públicos, crimes previdenciários, etc... são, em verdade, aqueles que serão atingidos pelas medidas adotadas. Como ficariam os financiamentos de campanha, a distribuição de cargos e obras, as emendas do orçamento, as grandes licitações, as viagens de jatinho, as mansões não declaradas, as relações espúrias, os almoços e jantares em restaurantes caríssimos nas cortes financiados por ou para servidores públicos cujos subsídios oficiais são limitados pelo teto salarial de ministros do STF, para ficarmos em exemplos franciscanos?É mais conveniente um treinamento conjunto de policiais de elite nos morros cariocas, atirando, suando, correndo, se barricando. É mais estético também, fica bem no jornal das oito, agrada ao imaginário popular influenciado pelos enlatados norte americanos. Por outro lado, qual o glamour em se patrocinar o treinamento de um grupo de policiais engravatados, de terno, armados com laptops de última geração e softers avançados, em uma força tarefa junto a especialistas da Receita Federal, ou técnicos do Banco Central ou Controladoria Geral da União, todos reunidos e se aperfeiçoando no combate a crimes de sonegação fiscal ou outros tão ao gosto da criminalidade organizada? A quem interessa, ou a quem não interessa, aparelhar a polícia com sistemas informatizados interligados, com acesso a bancos de dados de todas as instituições de fiscalização estatal, selecionar contadores, contabilistas, economistas para seus quadros? A quem interessa, ou a quem não interessa, policiais que dominem outros idiomas, que realizem intercâmbio com agências de outros países?Que utilizem tecnologias e técnicas modernas de investigação? 4.4- “Delegado Natural” Uma polícia com garantias funcionais de inamovibilidade e independência funcional, com maior autonomia em relação ao executivo, é imperativo cuja não implementação uma vez mais deve ser atribuída às forças subterrâneas que não desejam uma polícia forte e atuante. O combate a crimes de alta indagação exige embate direto e frontal com poderosos empresários e influentes políticos que mantém entre si relação íntima e promíscua que não tolera afrontas. A crônica policial registra episódios vários de remoções e destituições de delegados que ousaram investigar as falcatruas que envolvem “o andar de cima”. Se seria para muitos precipitado cogitar-se da figura do “Delegado Natural”, em analogia ao Juiz natural e ao Promotor natural, não se afigura indefensável a tese de se estender aos indômitos policiais as mesmas garantias gozadas pelos promotores, uma vez que o desejo de justiça do Parquet não é menor nos delegados de polícia. Evidentemente sob o controle rigoroso e implacável de órgãos internos (corregedorias) e externos ( Conselho de Polícia e Ministério Público). 5- Delegados Pensantes? 5.1- A responsabilidade Policial Durante muito tempo os juízes foram apenas as bocas da lei, porém a magistratura se aperfeiçoou, conscientizou-se de seu papel social na construção do Estado Democrático e Social de Direito. As lutas foram ingentes, encarniçadas até, em trincheiras anônimas inicialmente, mas cada vez mais articuladas e organizadas, com coragem e desprendimento, com avanços e recuos, e ainda há muito mais por fazer. A transformação operou-se a partir dos gabinetes, quase sempre nos gabinetes. A polícia está no front, em contato com as massas, com o povo oprimido e marginalizado,e deve influenciar a construção de um direito penal empírico, de carne e osso, suor, sangue e lágrimas. A experiência social do policial, diuturnamente lidando com os maiores dramas humanos, o qualifica como agente de transformação, desde que se liberte das peias impostas pelo sistema elitizado de controle social que mais oprime que alforria. Os delegados, como gerentes funcionais do sistema policial, nem melhores ou piores que os demais agentes policiais, possuem uma responsabilidade maior como administradores que são. Devem se assumir como autoridades públicas, como operadores jurídicos, e contribuir para a formação de uma consciência crítica cada vez maior, adotando posturas pautadas pelo respeito aos direitos humanos e no esclarecimento do público alvo da polícia. Até o dia em que este público alvo, selecionado pelas circunstâncias que analisamos acima deixe de ser estereotipado e amadureça a sua consciência de cidadãos. A prioridade da polícia deve ser o combate ao crime organizado e às elites espoliadoras que empregam métodos sutis e ardilosos na prática reiterada de infrações infinitamente mais deletérias à malha social. A criação de seções policiais, delegacias e departamentos especializados na investigação de crimes do colarinho branco e a reformulação da mentalidade policial são estratégias eficazes para a mudança de paradigma. 5.2- Os Saberes Penais A cobrança de políticas de segurança pública que valorizem a formação humanística do policial não deve ficar ao alvedrio e iniciativa dos governantes, e tampouco na dependência de mobilização popular das massas, já que os primeiros não têm interesse em uma polícia nestes moldes e os segundos têm compreensão apenas intuitiva desta necessidade. O policial responsável e ciente de seu papel deve procurar aperfeiçoar-se cotidianamente. A busca da universidade, da intelectualidade acadêmica, certamente encontrará profissionais interessados em contribuir no mundo real com um conhecimento teórico que, aliado à experiência de rua, produzirá resultados apreciáveis. O intelectual teme a polícia, como o policial resiste ao intelectual, e a superação desta barreira será enriquecedora para ambos. Com o desempenho inevitável de um serviço mais adequado e de qualidade, conseqüência desta nova formação, a própria sociedade pressionará os administradores pela institucionalização das medidas. O estudo da criminologia, da sociologia e da filosofia, irá burilar e aprofundar um conhecimento empírico adquirido diariamente pelos policiais, permitindo-lhes que compreendam o fenômeno sob perspectivas diferentes. Mas atentando-se para a advertência de Luciano Feldens de que “a grande miséria da Criminologia é de ter sido somente uma Criminologia da miséria” 6- Utopia Final A demanda criminal que alimenta as estruturas do sistema penal em grande parte é introduzida pelas instituições policiais, construindo um círculo vicioso que aprisiona todos os agentes estatais da persecução e dificultam as transformações. Milhares de inquéritos policiais instaurados para apuração das infrações selecionadas pelo legislador (roubos, furtos, lesões, dano, ameaças etc...) e para a persecução de delinqüentes também selecionados são responsáveis por milhares de denúncias e milhares de sentenças, recursos que emperram as engrenagens do sistema e tornam lenta e dispendiosa a máquina. Os operadores especializam-se com base nestas experiências para a produção de doutrinas que orientem respostas mais adequadas e céleres. O direito circula em torno desta realidade respirada diuturnamente nas delegacias, fóruns e promotorias, na qual os agentes estatais de segurança adquirem domínio de uma dogmática específica para atenderem às exigências prática. Não há tempo e nem energia para se reprimir a criminalidade organizada. Um dado singelo, porém esclarecedor, é o volume de doutrina que esmiúça os delitos contra o patrimônio. Obviamente se medita e se escreve muito mais sobre as questões com as quais se tem mais contato. Em contrapartida, é insignificante a doutrina em torno de crimes contra ordem econômica, sistema financeiro, delitos fiscais e previdenciários, de colarinho branco, enfim, e ainda mais medíocre o estudo nas faculdades e academias de polícia.Tal se verifica, dentre outros motivos, porque trata-se de uma realidade que não aporta nas barras dos tribunais com a freqüência desejada. Entretanto, a partir do momento em que a polícia instaurar mais e mais inquéritos policiais para investigar a criminalidade de colarinho branco que permanece nas cifras negras, mais e mais denúncias originarão outro tanto de processos/sentenças e consequentemente mais “know how”.Certamente o início será difícil, como todo começo, mas com tempo e persistência, novas tecnologias e saberes serão desenvolvidos para enfrentar adequadamente as novas necessidades. Como dizia Guimarães Rosa, “O sapo não pula por boniteza, mas sim por precisão”. A polícia uma vez mais terá cumprido seu fundamental papel de agente de transformação social e será valorizada e respeitada como deve e merece ser. Nas lições de Eduardo Galeano: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”