A CONSTRUC;AO DO EFEITO DE (DES)COMPROMETIMENTO DOFALANTE Marize Mattos DALL' AGLIQ-HATINHER (UNESP-SJ.Rio Preto) ABSTRACI': The aim 0/ this essay is to analyze the mechanisms used to express the speaJcer'sdegree 0/ commitment in relation to the level 0/ structural organization o/the clause in which these mechanisms operate. . KEY WORDS: speaker's commitment., epistemic modality, functional grammar. As consider~6es sobre a constru~ao do efeito de (des)comprometimento do falante que aqui apresento fazem parte deum estudo maior sobre a manifesta~ao da modalidade epist!mica, desenvolvido em minha tese de doutorado (Dall'AglioHattnher, 1995). Nesse estudo, procurel evideDciar a importlncia do sujeito da enUDcia~ para 0 estudo das modalidades lingUistiCas,' considerando a subjetividade como criterio essencial para sua identifica~ao. Sendo veiculadora das atitudes do falante com rel~ao ao que dito, as modalidades pedem uma abordagem te6rica que considere a llngua em uso. Assim, foi com a ~ao pelo funcionalismo que busquei analisar os efeitos comunicativos das expressoes modalizadoras epist!micas na inter~ao verbal. Para essa analise, considerei a organiza~ao simultbea da senten~a como mensagem e como evento de intera~ao, segundo 0 modelo de organiza~ao estrutural da frase proposto por Hengeveld (1988) e Dik(1989). A represent~ao em camadas da estrutura da frase considera que todo enunciado pode ser analisado em dois niveis: 0 representacional e 0 interpe5soal. No Divel representacional urn estado de coisa descrito de maneira tal que 0 receptor seja capaz de ente.nder a que situa~ao real ou hipotetica se faz referancia. Num nivel interpessoal essa si~ao apresentada de maneira tal que 0 receptor seja capaz de reconhecer a inten~ao comunicativa do falante. A distin~iio entre as fun~Oes representacional e interpeS'soal mostrou-se bastante Util para a identifica~ao das modalidades, bemcomo permitiu que se comprovasse a existencia de uma correspondancia entre 0 grau de comprometimento do falante e 0 e e e nfvel e m que atua o. modalizador, hip6tese central de minha tese. Alem disso, a considera~ao de uma hierarquia das qualifica~oes identificadas nas diferentes camadas de estrutur~ao da frase evidenciou 0 papel que elementos como a for~a ilocucionaria ou 0 aspecto verbal tem na constru~ao do efeito de (des)comprometimento do falante. Estendendo nossa analise aos constituintes extrafrasais e a organiza~ao transfrlistica dos discursos, identificamos uma serle de elementos discursivos que concorrem para esse mesmo fun, refor~ando ou atenuando os valores de certeza ou possibilidade expressos pela modalidade epist!mica. :E sobre esses elementos discursivos.que falaremos aqui. Para 0 exame da manifesta~ao da modalidade epistemica e da constru~ao do efeito de (des)comprometimento do falante, utilizamos 13 discursos do ex-presidente Fernando Collor de Mello produzidos, em sua maioria, durante a fase de impeachment. Esses textos foram separados em dois subgrupos. 0 maior deles e composto pelos discursos produzidos durante a fase de impeachment (03 a 013), em que 0 Presidente se pronuncia sob forte coa~aomoral. Como contraponto aos 11 discursos que compoem esse subgrupo, selecionamos 0 discurso de posse (01) e 0 discurso feito na comemor~ao dos dois anos de governo Collor (02), textos em que a imagem do presidente nao esta sendo amea~ada. De acordo com 0 modelo de descri~ao dos enunciados proposto por Hengeveld (1988, 1989) e Oik (1989), a Jun~ao interpessoal estli associada a dois niveis da organiza~ao estrutural da frase: ao enunciar uma frase, 0 falante nao s6 apresenta um contelido proposicional ao destinatlirio, mas tambem transmite sua intencao comwijcativa . Muitos sao os meios linglli'sticos a disposi~ao do falante para codificar 0 conte6do ou a inten~ao que ele deseja que seja reconhecida em seu enunciado, entre eles, os recursos que constroem 0 efeito comunicativo de (des)comprometimento do falante. Os recursos indicadores de forca ilocucionliria sao urn dos meios lingiifsticos por intermedio dos quais 0 falante transmite sua inten~ao comunicativa. Considerando a distincao entre "intencao ilocucionliria do falante", "ilocucao-como-foi-codificada-naexpressao" e "interpretacao ilocucionaria do ouvinte", Dik (1989, p.2S6) descreve quatro "ilocucoes blisicas" para as lingrias naturais. Interpretadas como instrucoes do falante para que 0 ouvinte efetue certas mudancas na inform~ao pragmlitica que possui, essas ilocuCOesblisicas correspondem as formas declarativ8, interrogativ8, imperativ8 e exclamativ8. Por meio da opera~ao de "conversao ilocucionaria", a ilocu~ao blisica de uma expressao pode ser convertida em outros valores ilocucionarios, dos quais resultam diferentes efeitos comunicativos. Observe-se, por exemplo, os efeitos decorrentes da conversao de uma declara~ao em uma interrogacao: (1) Peeo aos brasileiros que facam urn exercicio de retrospectiva hist6rica e respondam: quando houve urn periodo de tal equilibrio, autonomia e independencia entre os Poderes? Quando a imprensa operou com maior liberdade de informaeao para fazer criticas e denuncias de todo 0 tipo? Quando os partidos politicos, sindicatos e outras organizaeoes sociais dispuseram de maior autonomia de aeao? A resposta a essas perguntas e a seguinte: agora, em meu governo! (02) Em todo 0 corpus, as frases interrogativas sao bastante freqiientes, e seu uso obedece a urn padrao geral: elas servem para enaltecer as qualidades de Collor e seu governo ou para apontar as injusticas cometidas contra ele. Os efeitos comunicativos obtidos com essas perguntas SaD vanos. Em vez de declarar simplesmente que seu governo tern qualidades ou que 0 julgamento a que esta sendo submetido e injusto, Collor questiona 0 ouvinte sobre esses assuntos. Obviamente, essas perguntas sao ret6ricas e, invariavelmente, as respostas, que disfarcam as opinioes do falante, sao imediatamente fornecidas. Observa-se, assim, que 0 falante compos um quadro ilocucionario em que sua afirmaeao, na forma da resposta, veio limpa de modalizadores. 0 comprometimento do falante fica, entiio. atenuado, uma vez que parte do conteudo da sua declaraeao, geralmente a mais incisiva. fica mascarada no conteudo da interrogacao. Em contrapartida, 0 ouvinte e indiretamente envolvido, urna vez que, por meio da interrogacao, 0 falante the solicita urna informacao verbal. ainda que essa informacao nao possa ser fornecida nesse tipo de interacao. Em alguns enunciados, a forca ilocucionana foi alterada sem que se alterasse seu tipo ilocucional basico. Nesses casos. operadores e satelites de ilocucao foram empregados em duas estrat6gias: atenua~ao (mitigation) e asseveracao (reinforcement) (Hengeveld. 1988. p.140). A funcao geral da atenua~ao e reduzir a forca de urn ato de fala; seus objetivos podem ser a preservacao da face, a polidez ou a criacao de urn espaeo para que 0 ouvinte discorde. A funcao geral da asseveracao e impor 0 ato de fala de maneira mais forte sobre 0 ouvinte; seus objetivos especificos podem ser 0 convencimento do ouvinte, a expressao de impaciencia ou a demonstra~ao de superioridade. Entre os mecanismos de asseveracao, os verbos de elocu~ao sao os mais freqUentesem todo 0 corpus: (2) (3) Mais uma vez reararmo meu compromisso rigoroso, inabalavel e indeclinavel com a transparencia, a lisura e a probidade administrativa. (02) Asseguro que tudo farei para que nenhum dos eventuais culpados fique impune... (010). Sempre servindo It busca do convencimento. esses verbos expressam urn forte comprometimento do falante. Ainda com relacao It modificacao do valor ilocucionario de urn enunciado. podemos apontar 0 uso de adverbios modalizadores intersubjetivos. que qualificam "a relacao do falante com 0 interlocutor em face da proposicao" (Castilho e Moraes de Castilho, 1990, p. 254), como se ve em: (4) Responderei ao que creio. sinceramente. sejam profundas injusticas. prejulgamentos e posturas nitidamente eleitorais... (010) Esse tipo de adverbio promove nao s6 0 comprometimento do falante. mas tamb6m 0 envolvimento do ouvinte. na medida em que explicita uma atitude que 0 falante assume. diante do interlocutor, em relacao a proposicao: "sou sincero com voce em relacao ao que you dizer". Por essa razlio. esses adverbios sac denominados "adverbios orientados para 0 falante". Os constituintes extrafrasais, embora nao facam parte da frase, estao associados a ela e desempenham varias funcoes pragmatic as. relacionadas a "i) 'gerenciamento' da interacao. ii) 'comentarios' sobre 0 conteudo da pr6pria frase e iii) organizacao do conteUdoda expressao em relacao ao contexto em que ela ocorre" (Oik, 1989. p.265). Oois tipos de constituintes extrafrasais ocorrem em todo 0 corpus: os chamados "parenteses modais" e os vocativos. Os parenteses modais foram utilizados para transferir a responsabilidade do falante para uma terceira pessoa (7) ou para apresentar o saber do falante como compartilhado com 0 ouvinte (8): (5) Ao longo de todo urn s6culo. ate a d6cada de 80, 0 Brasil foi, na opiniio de historiadores economlcos abalizados, 0 pais que mais cresceu. (01) (6) Saberemos conciliar sem complexos a defesa de nossa soberania com uma atitude positiva e conseqiiente, nao apenas defensiva, frente a um problema cuja dimensao afeta, como todos n6s sabemos, 0 destine do genero humano em seu conjunto.(OI) Ate mesmo nessas ocorrencias, em que a divisao de responsabilidades poderia diminuir 0 comprometimento do falante, 0 que se observa e que 0 efeito comunicativo resultante e de asseveracao do conteudo enunciado. A atribuicao de voz It coletividade ou a uma terceira pessoa "abalizada" produz 0 efeito de que as opinioes do falante estao em consonancia com as opiniOesdos ouvintes. Em todo 0 corpus. 0 vocativo e urn recurso bastante explorado. Alem do indefecuvel "Minha gente", que ocorre 31 vezes, e grande a !ista de expressoes utilizadas pelo enunciador para buscar a aproximacao do enunciatario: (7) Creio firmemente, Senhores Senadores, que a dignidade do governo implica essencialmente urn s6lido respeito pelos dois outros Poderes da RepUblica.(D1) (8) 0 voto da maioria dos brasileiros fez-me guardiao destas institui~oes, que estao acima deminha pessoa, de meus parentes e ate mesmo, minha gente, do meu sofrimento e da minha dor. (04) No nivel da organiza~ao transfrastica, podemos apontar os operadores argumentativos que invertem a escala da argurnenta~ao, do tipo de mas, porem, etc., relativizando a modaliz~ao do certo ou do possfvelja feita, como se ve em: (9) Poderia estar morando num desses endere~os, com todas as despesas pagas, como e direito do Presidente da Republica. Mas sempre preguei austeridade no Servi~o PUblico e me pareceu mais conveniente continuar morando na casa da minha familia, arcando com as minhas despesas. (DID) As ora~oes intercaladas, quer sejam indicadoras de certeza ou de possibilidade, funcionam como placas indicadoras da maneira como 0 falante avalia seu enunciado e como ele gostaria que fosse interpretado: (10) Vivemos, e verdade, um momenta dificil, mas vamos supera-Io com coragem cfvica e fe. (DS) (11) Cada uma dessas propostas, estou seguro, recebera aqui toda aten~ao de apoio, pois bem sabem que lhes apresento todas elas com a chancela das urnas... (D1) Nurn nivel mais amplo, que vai da organiza~ao tematica a ideologia subjacente, muitos sao os elementos que interferem no jogo de produ~ao e interpre~ao das inten~oes do enunciador. Consideradas as diferentes situa~oes de prod~ao apontadas anteriormente. encontramos, nos diversos discursos, uma sene de elementos responsaveis por urn distanciamento maior ou menor entre conte6do proposicional e enunciador. 0 discurso de posse, por exemplo, e composto por uma serie de paragrafos iniciados em primeira pessoa, numa nitida tentativa de criar intimidade, de aproxima~ao entre enunciador e enunciatmo: ° (13) Venho trazer ao Poder Legislativo, ante 0 qual. seguindo preceito da Constitui~ao, acabo de assumir a Presidencia da Republica, meu apre~o e minha homenagem. Quando passa a falar. dos problemas que 0 Brasil tent de enfrentar, 0 presidente deixa de usar a primeira pessoa e se utiliza de modalizadores do certo. Nesse recurso, 0 enunciador nao se coloca mais como 0 sujeito, como 0 senhor da situa~ao: (14) Certo e, porem. que a virtude republican a, determinado clima moral. 0 espirito de cidadania pressupoe (15) A infla~ao nos desorganiza e nos desmoraliza. Ela e, sabidamente, 0 imposto mais cruel. A primeira pessoa tambem e evitada quando se trata de atribuir a coletividade opinioes e conhecimentos que servem a argument~iio do falante. Recurso usado a exaustlio para comprometer 0 enunciatario com a verdade da proposi~ao, as afir~oes do saber feitas na 3- pessoa do plural colocam 0 saber do enunciador como urn saber coletivo: (16) Todos sahem que nao protejo os que traem 0 voto que me trouxe a Presidencia da Republica. (03) (17) Todos sahem, m.esmoos que se opuseram a mim. que nao existe solu~ao sem uma profunda reforma do Estado. (D5) No discurso da renlincia, nota-se uma interessante distribui~ao dos paragrafos. Apos urn paragrafo iniciado em la. pessoa, segue-se urn ou mais paragrafos narrativos, em que 0 enunciador relataprocessos de impedimentos de outros governos e as a~oes da sua administra~ilo. Nos parligrafos em primeira pessoa, 0 enunciador constr6i sua imagem de vitima: (18) Em nome da democracia que jurei defender, nao posso permitir que a tentativa de deposi~ao de urn presidente da Republica, eleito pela maioria dos brasileiros, se assemelhe a urn processo de rito mais sumlirio que 0 despejo de um inquilino incOmodo. (19) E ao tribunal da opiniao publica irei em busca da verdade, com a convic~ao de que ela prevalecera sobre 0 radicalismo das paixoes que se desencadearam contra mim. Nos paragrafos narrativos, 0 enunciador se utiliza de UJ!)asene de expressoes impessoais, referindo-se a ele proprio como "0 presidente di Republica", "Poder Executivo", "a administr~ao", "urn govemo", numa clara tentativa de transferir para a institui~ao as acusa~oes que estavam sendo feitas a sua pessoa. Alem das aflIm~oes do saber, Collor faz freqiientes indica~oes do carater factual das suas informa~oes: (20) Na Europa, Portugal sera necessariamente 0 interlocutor mais proximo do Brasil. Esse e urn fato que dispensa explic~oes. (01) (21) Vamos aos fatos: em primeir.o lugar, preciso deixar bem claro que nem mesmo no relat6rio da CPl existe a afirma~ao de que a oper~ao financeira feita para custear as despesas de minha campanba teria sido ilegal, inexistisse ou que tivesse afrontado qualquer norma regulamentadora, a despeito de eventuais insinua~Oes. (010) Obviamente, essas constru~oes dispensam a qualifica~ao epistemica. Utilizadas em momentos em que nao e conveniente para 0 falante marcar que e ele quem julga, essas constru~oes demonstram que a dispensa da qualific~ao epistemica tambem tern 0 seu significado. Ha ainda urn ultimo mecanismo, a que Saint-Pierre chama "metadiscursivo", bastante utilizado por Collor. Ciente dos efeitos de sentido que lhe interessa criar, 0 enunciador trabalha com a estrutura de seu texto, refazendo, comentando ou anunciando como verdadeiras as suas afirma~oes. Alem do efeito asseverador, esse mecanismo cria a impressao de que 0 texto esta sendo preparado no mesmo momenta em que esta sendo lido. (22) Mas nao podemos, minha gente - isso nao podemos mesmo - e tolerar 0 abuso, 0 furor denunciat6rio, que atende somente a objetivos politicos subalternos, mesquinhos e, sobretudo, impatri6ticos. Isso nao. Absolutamente nao. (05) Entendendo a linguagem como instrumento de inter~ao dotada de intencionalidade, identificamos, nos itens an~iores, uma serie de mecanismos utilizados pelo enunciador para, atuando sobre 0 seu enunciado, atuar sobre 0 "outro". Embora esses elementos discursivos tambem possam construir efeitos de (des)comprometimento do falante, eles nao sao necessariamente modalizadores. Por meio da modalidade epistemica, 0 falante qualifica como certo ou possivel 0 contetido dos enunciados que produz e dessa qualifica~ao decorre urna maior ou menor adesao-dOfalante. AJ frases interrogativas, as ora~oes intercaladas, os verbos de elocu~ao ou ate mesmo a organiza~aodos paragrafos, por sua vez, poderm refor~ar essa qualifica~ao. A modaliz~ao, na verdade, e apenas urn dos elementos na constru~ao do sentido de urn discurso. Dessa forma, a analise dos enunciados modalizados s6 se completa com a analise desses elementos discursivos, de complexidade bastante diferente, que refor~am ou atenuam os valores de certeza ou possibilidade expressos pela modalidade episremica. RESUMO: Este trabalho objetiva analisar os mecanismos utilizados para expressar 0 comprometimento do falante, relacionando-os com 0 n(vel de organiza~ao estrutural da senteTlfa em que ocorrerm. PALA VRAS-CHA VB: comprometimento do falante. modalidade epistemica, gramAtica funcionaL CASTILHO, A T. , MORAFS DE CASTILHO, C. M. (1992) Adv6:biOl modalizadores. In: ILARI, R. (Org.). Gramthica do portuguls faloilo. Vol. n. Campina.s,SP: EDUNICAMP. DAll'AGIlQ-HAlTNHBR, M. (1995) A manif~ da modal~ epilt&nica: UDl exerclcio de analise DOl discursOl do ex-presidente Collor. Araraquara, FCUUNESP, Tete de Doutorado. HENGEVELD, K. (1988). rnocution, mood and modality in a Functional Grammar of SpWJh. J. S_-'ics, 6, p.227-69.