Quem não é por nós, é contra nós No dia 14 de Junho de 2011, data em que se comemorava o Dia Mundial do Dador de Sangue, fomos surpreendidos com uma notícia que mereceu honra de primeira página num jornal diário de âmbito nacional, onde se lia que o Plasma era lançado ao lixo. Os danos provocados com esta notícia ainda não foram reparados. A institucionalização do Dia Mundial do Dador de Sangue pela Organização Mundial de Saúde (OMS) devia merecer mais respeito. Torna-se necessário celebrarmos esta data duma forma muito especial, pois sempre que uma pessoa precisa de transfusão de sangue para sobreviver ela tem de contar impreterivelmente com a solidariedade de outras pessoas, apesar de haver quem não concorde com um simples gesto que ajuda a salvar vidas. Esta data deve constituir a expressão oficial desse reconhecimento público, e servir para evidenciar, junto da população em geral, o valor social e humano da dádiva de sangue, estimulando a sua prática como acto imprescindível. Contudo, a realidade que hoje vivenciamos é bem diferente, na medida em que foram retirados os incentivos à dádiva e os dadores por sua vez sentem-se desvalorizados. É caso para dizer que, quem não é por nós, é contra nós. Este dia é comemorado num ambiente de total desunião, de desconforto entre as associações de dadores, por contágio do iníquo Decreto-Lei 113/2011 de 29 de Novembro que retirou a isenção das taxas moderadoras aos dadores benévolos de sangue nos hospitais públicos. Tenho afirmado ao longo destes quase oito anos de existência da ADASCA, que os dadores não são respeitados no Serviço Nacional de Saúde, somos tratados como seres dispensáveis. Com aquele Decreto-Lei podemos dizer que com uma mão tiram-nos o sangue, com a outra sacam-nos o dinheiro da carteira, obrigando-nos a pagar o que por imperativos de justiça social não devíamos. Quem não é por nós, é contra nós. A quebra substancial de dádivas deve-se à implementação desta ganância economicista desenfreada, não por outras razões como se tem vindo a passar para a opinião pública, que as consideramos infelizes, onde dirigentes foram classificados como “assassinos”, interesseiros, indiferentes às necessidades de sangue que se tem feito sentir. Alguém quer sacudir o peso das responsabilidades que devia assumir. Quem não é por nós, é contra nós. “O sangue é um bem imprescindível e insubstituível, cuja obtenção depende exclusivamente da dádiva voluntária e benévola”. Se é tão imprescindível porque os dadores continuam a ser desrespeitados nos hospitais? Devem pagar para ser solidários, é isso que se pretende? Mais: “O valor que esta dádiva representa para a comunidade e o mérito dos dadores, que dedicada e persistentemente ao longo de toda a uma vida contribuem de forma desinteressada e altruísta com um bem indispensável à vida daqueles que dele carecem, devem ser mais fortemente sublinhados”. Boas intenções e discursos bonitos não provocam motivação para a dádiva. Estamos perante afirmações que já pouco ou nada nos dizem, aliás, ultrapassadas no tempo. Quem não é por nós, é contra nós. “Justifica-se, pois, que estes actos de inequívoco relevo e solidariedade social sejam reconhecidos ao mais alto nível da hierarquia do Ministério da Saúde”. O que na verdade assistimos na prática diária? Não nos parece que o ministro da saúde tenha lido estas declarações antes de impor o Decreto –Lei nº. 113/2011, caso contrário teria sido mais consciencioso, tendo em conta que também é dador de sangue. Na prática a isenção das taxas moderadoras, referente aos dadores de sangue nunca funcionou em pleno. A deficiência estava no anterior cartão de dador, certo é que ninguém fez nada para alterar a situação. Hoje é porque não existe equipamento informático para ler o Cartão Nacional de Dador de Sangue. A situação agrava-se quando é dito que: “É considerado documento idóneo e bastante, análogo ao previsto na lei, o Cartão Nacional de Dador de Sangue, instituído pelo Ministério da Saúde vs IPST na versão mordera. Quem não é pior nós, é contra nós. Com a alteração legal na Isenção das Taxas Moderadoras para Dadores de Sangue, e consequentemente com a publicação do Decreto-Lei acima referido, que regula o acesso às prestações do SNS por parte dos utentes no que respeita ao regime das taxas moderadoras e à aplicação de regimes especiais de benefícios, tendo revogado os normativos anteriores que regulavam esta matéria, a ausência dos dadores nos locais de colheitas traduziu-se numa redução preocupante, tanto que os apelos à dádiva de sangue são uma constante pelos mais diversos meios de comunicação. Quem não é por nós, é contra nós. A legislação em vigor prevê a isenção do pagamento de taxas moderadoras para os dadores benévolos de sangue, apenas nas prestações em cuidados de saúde primários, neste caso em concreto nos Centros de Saúde, onde, nem sempre funciona. No que diz respeito aos critérios para atribuição de isenção aos Dadores de Sangue, as Circulares Normativas da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), com os N.ºs 36 e 8, de 28 de Dezembro de 2011 e 19 Janeiro de 2012, explicitam que os Dadores de Sangue podem apenas (!) beneficiar da isenção do pagamento dos valores das taxas moderadoras nas seguintes condições, passo a citar: se tiverem efectuado mais de 30 dádivas na vida (designado por dador benemérito) ou se tiverem duas dádivas nos últimos 12 meses, incluindo os candidatos à dádiva impedidos temporária ou definitivamente de dar sangue desde que tenham efectuado 10 ou mais dádivas válidas. Apetece-me dar um grito de guerra contra esta imposição. Mais uma vez: quem não é por nós, é contra nós. As declarações comprovativas das condições anteriormente referidas são emitidas pelos Serviços de Sangue, neste caso pelo IPST, nem sempre aceites nos centros de Saúde. Aqui está a razão que me motiva a afirmar que, com uma mão tiram-nos o sangue, com a outra vão-nos à carteira. Isto revela uma notória falta de sensibilidade social pela causa da dádiva de sangue, que além surrealista, arrepiante, é injusta, ainda que venham todos juntos tentar justificar o contrário. O descontentamento e número de queixas que nos são transmitidas pelos dadores associados da ADASCA é preocupante, muitos declaram mesmo que não regressam mais aos locais de colheitas de sangue, porque se sentem enganados, aliás, muitos deixaram de comparecer. Devo dar-lhes razão, por quem não é por nós, é contra nós, as provas são mais que evidentes. O ministério da saúde, esqueceu-se da parte mais importante: as motivações humanas que levam as pessoas a doar sangue, a sua mais-valia social, pensou unicamente no lucro fácil, ou seja: o dador deve suportar o SNS pela via da dádiva e pagando simultaneamente os valores das taxas moderadas nos hospitais quando estes não abdicam do seu gesto solidário. Estamos perante um Decreto-Lei injusto, egoísta, penalizador, ignóbil e iníquo, com o qual a ADASCA não pode concordar, assim deve ser entendida a nossa postura crítica na defesa dos 3454 dadores de sangue seus associados. O actual ministro da saúde vai ser recordado na história da dádiva de sangue pela coragem que teve, em obrigar os dadores a pagarem a derrapagem que encontrou nas contas do ministério. A escassez de sangue não deve ser imputada aos dadores ou às associações, deve sim ser atribuída a quem destruiu todo um trabalho que demorou anos a erguer. Quando foi a votos na Assembleia da República a reposição das taxas moderadoras para os dadores nos hospitais, os partidos que sustentam o governo votaram contra. O que têm estes partidos a apontar contra os dadores de sangue? Quem não é por nós, é contra nós. Finalmente, porque razão o estatuto do Dador de Sangue não já regulamentado? Porque não interessa? Não interessa a quem? Pelo que faz sentido manter a máxima: quem não é por nós, é contra nós. Muito mais há para dizer, o melhor é ficar por aqui, porque nós é que somos os maus da fita, os malandros, assim nos pintam junto das famílias dos doentes e à opinião pública. Joaquim Carlos *Fundador/Presidente da Direcção da ADASCA Aveiro, 14 de Junho de 2014