As inúmeras modificações que estão
sendo feitas em alguns dos milhares de
genes de camundongos já oferecem uma
lista de centenas de animais “knockouts”
ou transgênicos, à disposição de cientistas de todo o mundo.
Aron Jurkiewicz
Diretor Geral do Centro de
Desenvolvimento de Modelos
Experimentais em Medicina e Biologia
(CEDEME) e
Professor Titular de Farmacologia da
EPM/UNIFESP
FOTO CEDIDA PELO AUTOR
A maioria dos genes humanos parece ter uma versão equivalente em
outros animais, o que torna possível
obter novos e melhores conhecimentos sobre a fisiologia, farmacologia e
enfermidades humanas usando, por
exemplo, camundongos modificados geneticamente.
Estima-se que, somente
no ano passado, foram criados e utilizados 25 milhões
de camundongos em todo o
mundo, destinados a pesquisas em biomedicina, prevendo-se um aumento de 10% a
20% por ano, na primeira
década do novo milênio (Malakoff, 2000). Parte desses camundongos pertence ao grupo dos animais geneticamente modificados (AnGMs ). As
inúmeras modificações que
estão sendo feitas em alguns
dos milhares de genes de
Figura 1 – Caixa de passagem (“pass-through”) de aço inoxidável,
aberta, em um laboratório de criação. Notar: 1- As duas portas internas abertas mostram o interior da caixa de passagem. 2- Gaiolas de
camundongos no interior, para dar uma idéia do espaço disponível; 3A parte interna das duas portas do lado oposto, fechadas, ao fundo.
Essas portas externas estão travadas, enquanto as portas internas estão
abertas. Fechando-se as portas internas, acende-se uma luz UV interna,
por algum tempo, sendo que as portas interna e externa ficarão
travadas durante esse período. 4- Painel de controle, em que a lâmpada piloto vermelha está acesa, indicando que alguma porta está aberta.
Há um outro painel e uma lâmpada na parede oposta, que não sâo
mostrados. 5- Visor de vidro isolante térmico e acústico, que permite a
observação do laboratório a partir do corredor externo
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camundongos já oferecem uma lista de
centenas de animais “knockouts” (ou seja,
com gens deletados) ou transgênicos, à
disposição de cientistas de todo o mundo.
Há dois anos atrás, o catálogo de um dos
produtores comerciais, os Laboratórios
Jackson (1998), nos Estados Unidos, listava modelos de animais com deficiência ou
com superexpressão de receptores de drogas (como adrenalina, angiotensina e insulina), de enzimas (como as produtoras
de óxido nítrico), de substâncias endógenas (como interferon), entre inúmeros
outros modelos.
Sob o ponto de vista econômico, o uso
de AnGMs tem sido alvo de importantes
análises, críticas e especulações. Apenas
para exemplificar sua importância econômica, sabe-se que a manutenção de duas
a três mil gaiolas de camundongos transgênicos custa anualmente de US$
800.000,00 a US$ 1.000.000,00 (Vogel,
2000). Outros aspectos, como os relativos
a direitos de patentes, têm gerado muitas
discussões (Marshall, 2000) que, entretanto, fogem do objetivo do presente artigo.
Pretendemos, neste artigo, discorrer
sobre a biosseguranca em relação a AnGMs, quanto à produção, manutenção e
utilização desses animais em laboratório.
Por que biossegurança
para AnGMs ?
Embora possamos antever inúmeros
benefícios em conseqüência do desenvolvimento e das pesquisas com animais
geneticamente modificados, existem, pelo
menos, três tipos de risco que devem ser
evitados. Basicamente, podemos enumerar: 1) contaminação acidental do
pesquisador ou do tratador; 2) liberação acidental de um AnGM potencialmente danoso; 3) contaminação de
animais não-GM ou de outros An-GMs.
Portanto, a biossegurança trata fundamentalmente de medidas que visam a
controlar e evitar esses riscos.
Níveis de biossegurança
Os riscos podem variar de acordo
com as características do AnGM, já
que, obviamente, esses animais diferem entre si segundo o risco que
poderiam oferecer. Dessa forma, os
AnGMs são classificados em 4 níveis de
biossegurança (tabela 1). Em resumo,
os AnGMs são de nivel de biossegurança cada vez mais elevado, conforme o
eventual risco de transmissibilidade de
doenças (devido, por exemplo, à incorporação de uma parte do genoma
de um vírus que tenha sido utilizado na
fabricação do AnGM ), de produção de
substâncias tóxicas; de sua susceptibilidade a infecções que não ocorrem na
espécie equivalente não geneticamente modificada; ou da sua maior aptidão
de sobrevivência em relação aos equivalentes não geneticamente modificados.
Segundo a instrução normativa n.
12 da CTNBio, considerando os respectivos níveis de biossegurança, os
AnGMs são classificados em 2 grandes
grupos de risco: o grupo I (compreendendo AnGMs do nivel de biossegurança 1) e grupo de risco II (compreendendo AnGMs dos níveis de biossegurança 2, 3 e 4). Obviamente, as medidas de biossegurança variam de acordo com o grupo de risco e o respectivo
nível de biossegurança.
Critérios e normas de
biossegurança para AnGMs como evitar e controlar os riscos
Os mecanismos ou procedimentos
disponíveis para controlar e evitar riscos foram por nós divididos arbitrariamente em, pelo menos, sete grupos
distintos, a saber:
1) Estabelecimento de um sistema
de controle e de credenciamento institucional, em nível governamental;
2) Existência de edificações especiais e adequadas;
3) Uso de equipamentos e outros
materiais apropriados;
Tabela 1 - Classificação dos animais geneticamente modificados (AnGMs)
quanto ao nível de biossegurança
Nível 1 Aqueles que, após manipulação genética, não tiverem alteradas as
características de transmissibilidade de doenças. Podem conter genoma,
mesmo que completo, de vírus que não leva a doenças infecciosas
transmissíveis
Nível 2 Aqueles que, passam a expressar substâncias sabidamente tóxicas,
para as quais existam formas de prevenção ou tratamento. Aqueles que
tiverem mais de 75% do genoma de vírus (da classe de risco 2) capaz de
levar a doenças infecciosas transmissíveis; e aqueles que passam a ser
susceptíveis a infecções que não ocorrem na espécie equivalente.
Nível 3 Aqueles que tiverem mais de 75% do genoma de vírus (da classe
de risco 3) capazes de levar a doenças infecciosas transmissíveis. Aqueles
que passam a ser mais aptos à sobrevivência que os equivalentes não
geneticamente modificados.
Nível 4 Aqueles que tiverem mais de 75% do genoma de vírus (da classe
de risco 4) capazes de levar a doenças infecciosas transmissíveis. Aqueles
que passam a expressar substâncias sabidamente tóxicas, para as quais
não existam formas de prevenção ou tratamento.
4) Participação de pessoal treinado;
5) Uso de sistemas de controle e
vigilância institucionais;
6) Outros mecanismos como controle sanitário, genético, nutricional e
ambiental;
7) Outras atividades: fabricação de
AnGMs, pesquisa , banco de embriões,
etc.
Controle institucional
e governamental
Esse setor está bem estruturado em
nosso país e permite o trabalho com
AnGMs sob um controle eficiente e
sem grandes exigências burocráticas.
Em 5 de janeiro de 1995, o Brasil
regulamentou a competência da Comissão Técnica de Biossegurança (CTNBio), através da Lei 8.974, que foi
recentemente alterada pela Medida
Provisória 2.137, de 28 de dezembro
de 2000. Compete à CTNBio, entre
outras atribuições, o estabelecimento
de normas técnicas de biossegurança
para atividades que envolvam Organismos Geneticamente Modificados
(OGMs). A manipulação de AnGMs só
pode ser realizada por instituições que
possuam Certificados de Qualidade
em Biossegurança (CQBs) e que tenham constituído Comissões Internas
de Biossegurança (CIBios), segundo a
Instrução Normativa n. 1 da CTNBio.
Essas instituições devem apresentar
relatórios anuais de suas atividades
com OGMs e podem ser vistoriadas
pela CTNBio. Pelas instruções normativas 12, 13 e 15 da CTNBio foram
estabelecidos critérios para trabalhos
em contenção com AnGMs (cujos detalhes veremos, em parte, abaixo), para
importação de AnGMs e para trabalho
com animais não-AnGMs, onde AnGMs são manipulados.
Normas para trabalho em
contenção com AnGMs
Essas normas envolvem critérios
operacionais, descrição de edificações
e laboratórios, equipamentos e outros
materiais apropriados, cuidados com o
pessoal que manipula os animais e
sistemas de vigilância e controles locais. Os critérios mínimos necessários,
mas não suficientes, são simples. Basicamente, os animais devem estar alojados em área física separada, de fácil
limpeza e munida de barreiras contra
insetos e outros animais. O acesso só
deve ser permitido a pessoal credenciado (tabela 2). A partir desses critérios
mínimos, os biotérios e salas de experimentação são divididos em quatro
níveis de biossegurança, de NB-A1 a
NB-A4, que estão apresentados nas
tabelas de 3 a 6. Para animais de nível
NB-A1, a única exigência adicional é
que o descarte de animais e outros
materiais e a criação sejam feitos com
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Tabela 2 - Características mínimas necessárias, mas não suficientes, para
que Biotérios e Salas de Experimentação possam ser usados para trabalhos
com AnGMs (Instrução normativa nº. 12, de 27/5/98)
Elemento
Porta principal
Acesso ao biotério
Construção
Animais
Barreiras físicas para insetos e
outros animais
Condição
Sempre trancada
Restrito a pessoas credenciadas
Deverá:
a) facilitar a limpeza e a desinfecção
b) Evitar acúmulo de poeira
Alojados em áreas fisicamente separadas, se de diferentes espécies e não
envolvidos em um mesmo experimento.
Presentes em todas as áreas que permitam ventilação
Tabela 3 - Características do Biotério e Sala de experimentação NB-A1
(Adequados para trabalhos com AnGMs de Nível de Biossegurança 1)
Elemento
Características mínimas descritas
na tabela 2
Descarte de material proveniente
de OGMs
Manipulação
Condição
Presentes
Feito de forma que evite seu uso
como alimento de outros animais,
salvo em condições especiais.
Feita de forma que evite a liberação acidental do animal no meio
ambiente.
Tabela 4 - Características do Biotério e Sala de experimentação NB-A2
(Adequados para trabalhos com AnGMs de Nível de Biossegurança 1 e 2)
Elemento
Condições exigidas para NB-A1
Normas de acesso para pessoas
autorizadas, qualificadas e cientes dos
riscos inerentes aos experimentos.
Vacinação de pessoal contra agentes
infecciosos usados nos experimentos
Presença de ante-sala
Condição
Presentes
Elaboradas pela CIBio,
Quando apropriado.
Obrigatória, entre área de circulação e área de alojamento dos
animais
Material contaminado
Acondicionados apropriadamente
para desinfecção, que poderá ser
feita fora do biotério
Agulhas, seringas, ou instrumentos que Devem ser acondicionados em
recipientes resistentes, até o
possam ferir a pele.
momento da descontaminação
Obrigatório
Uso de máscara, gorro, luva e protetores para os pés, todos descontaminados.
maior rigor, para evitar a liberação no
meio ambiente (tabela 3). Para NB-A2,
além das características anteriores, aumentam-se as exigências quanto ao
pessoal (vestimenta especial e eventual vacinação), edificação (ante-sala) e
descarte (tabela 4). Embora não exigível, é recomendável o uso de câmara
de passagem de dupla porta (“pass32
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throughs”). Essa câmara permite a saída de gaiolas e outros materiais usados
(Figura 1). Para NB-A3, as exigências
são ainda maiores (tabela 5), destacando-se, basicamente, a obrigatoriedade
de autoclave de dupla porta para a
entrada de material e alimentos, pressão de ar diferenciada nas salas e
corredores, com detectores, microiso-
ladores para os animais, incinerador e
alarmes. Finalmente, para NB-A4 as
exigências são ainda maiores (tabela
6).
Outros controles: sanitário,
genético, nutricional, ambiental
Embora esses controles, bem como
as outras atividades referidas abaixo,
não se relacionem diretamente com
biossegurança de AnGMs, é fundamental que os biotérios tenham um
sistema de controle sanitário (para
detectar a presença de ecto e de endoparasitas, e de infecções por microorganismos e vírus); genético (para detectar eventuais mutações ); nutricional (para garantir a qualidade dos
alimentos e do animal); e ambiental
(para controlar eventuais alterações de
temperatura, umidade e presença anormal de gases e vapores).
Outras atividades:
fabricação de AnGMs,
pesquisa, banco de embriões
Entendemos que um biotério moderno deva estar envolvido com pesquisa científica em todos os níveis,
incluindo aquela relacionada com a
fabricação de animais transgênicos.
Outro setor de maior importância deve
ser o da criopreservação, que deve
manter um banco de embriões congelados, que podem servir de salvaguarda em caso de acidentes que levem à
extinção de uma ou mais colônias.
Referências Bibliográficas
CTNBio –MCT, Resolução n. 03, de
30/10/1996 - aprova o estatuto nacional da Comissão técnica Nacional de
Biosegurança - CTNBio, Cadernos de
Biossegurança 1 (CTNBio) - Legislação, p. 61, 2000.
CTNBio –MCT, Instrução Normativa n. 01, de 6/9/1996 - Dispõe sobre o
requerimento e a emissão do certificado de qualidade em biossegurança CQB e a instalação e o funcionamento
das comissões internas de biossegurança - CIBio, Cadernos de Biossegurança 1 (CTNBio) - Legislação, p. 75,
2000.
CTNBio –MCT, Instrução Normativa n. 12, de 27/5/1998 - Normas para
trabalho em contenção com animais
geneticamente modificados, Cadernos
de Biossegurança 1 (CTNBio) - Legis-
Tabela 5 - Características do Biotério e Sala de experimentação NB-A3 (Adequados para trabalhos com AnGMs de
Nível de Biossegurança 1, 2 ou 3)
Elemento
Condições exigidas para NB-A2
Quatro áreas distintas: (1) ante-sala, (2) sala de materiais, (3) sala de a-nimais, (4) sala de experimentação.
Fluxo de ar
Pressão de ar
Detector de alterações de pressão de ar
Alojamento dos animais em microisoladores.
Animais
Material biológico capaz de propagar o agente infeccioso
Líquido efluente do biotério (pias, ralos, etc)
Pia e chuveiro acionáveis sem o uso das mãos.
Ralos
Autoclave de dupla porta
Incinerador de animais
Descontaminação de superfícies
Procedimentos de emergência (incluindo o uso de
alarmes) em caso de acidentes.
Coleta de amostras de soros dos usuários no início
dos experimentos.
Condição
Presentes
Presentes
No sentido de 1 para 4, com filtros esterilizantes na
entrada e na saída de ar. No final, o ar deve ser jogado
no meio externo.
Sala dos animais e de experimentação com pressão
negativa em relação à sala anterior.
Presentes
Obrigatório
Jamais poderão deixar as salas apropriadas
Não poderá deixar o biotério sem descontaminação.
Deverá ser descontaminado antes de esgo-tamento
sanitário, em caixas de contenção.
Presentes na ante-sala e na sala de materiais. Ausentes
na sala de animais ou de experimentação.
Ausentes na sala de animais ou de experimentação.
Presente
Presente.
Diariamente
Presentes
Obrigatório
Tabela 6 - Características do Biotério e Sala de experimentação NB-A4 (Adequados para trabalhos com AnGMs de
Nível de Biossegurança 1, 2, 3 ou 4)
Elemento
Condições exigidas para NB-A3
Construção
Usuário
Condição
Presentes
Prédio isolado, patrulhado 24 horas por dia.
Acesso por cartão magnético ou digital. Registro obrigatório do nome do usuário e do tempo de cada permanência.
Toda informação será arquivada por tempo 5 vezes maior
que o maior período de incubação das doenças a que
estão expostos.
Duas áreas adicionais: 1) sala de troca de vestimenta, Presentes, com incineração obrigatória dos animais antes
com chuveiro central, armários e pia; 2) sala de
do descarte.
necropsia com incinerador.
Comunicação entre salas
Dupla porta, abertura sem mãos.
Filtração e exaustão de ar
Dupla barreira de filtragem, para caso de mal funcionamento de uma delas.
Sistema de contenção de 100% do ar circulante, em Presente
relação aos usuários
Sistema automático de alarme com travamento de
Presente
portas em caso de vasamentos de ar
lação, p. 195, 2000.
CTNBio –MCT, Instrução Normativa
n. 13, de 29/5/1998 - Normas para
importação de animais geneticamente
modificados (AnGMs) para uso em trabalho em regime de contenção, Cadernos de Biossegurança 1 (CTNBio) Legislação, p. 207, 2000.
CTNBio –MCT, Instrução Normativa
n. 15, de 8/7/1998 - Normas para
trabalho em contenção com animais
não geneticamente modificados, onde
organismos geneticamente modificados são manipulados, Cadernos de
Biossegurança 1 (CTNBio) - Legislação,
212, 2000.
MALAKOFF, D. , The rise of the
mouse, biomedicine’s model mammal,
Science 288, 217-388, 2000
MARSHALL, E., A deluge of patents
creates legal hassles for research, Science
288, 217-388, 2000
THE JACKSON LABORATORY, Induced mutant resource, Bar Harbour, ME,
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VOGEL, G., The mouse facility as a
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As inúmeras modificações que estão sendo feitas em alguns dos