ESCOLAS DE MESTIÇOS, MOLEQUES E VELHOS: REPRESENTAÇÕES DE NEGROS
NA OBRA DE GRACILIANO RAMOS
Maria Fulgência Bomfim RIBEIRO
Isntituto de Educação Gastão Guiimarães - IEGG
[email protected]
Linha: Cultura e Poder
1 A educação na obra de Graciliano Ramos
Examinando a obra de Graciliano Ramos no mestrado tive a oportunidade de verificar que a
mesma foi produzida num contexto histórico em que a educação aparece como uma marca
importante nos discursos que pretendiam levar o Brasil ao rol dos países civilizados. Nas primeiras
décadas do século XX, a bandeira da educação foi erguida por diversos grupos que, a despeito das
divergências de idéias, viam a educação escolar como meio para a divulgação de certo ideário
cívico e promoção do desenvolvimento brasileiro. Associando o Brasil a imagens de atraso,
ignorância, preguiça, doenças, analfabetismo e “falta de cultura”, buscava-se resolver os problemas
nevrálgicos que o país atravessava pela via de uma educação nacional, pública e voltada para a
formação da cidadania e a promoção do patriotismo[1]. Essa visão passou a justificar ações
interventoras de educadores que se atribuíam a missão de escolarizar os altos rincões do Brasil,
sobre os segmentos predefinidos como “sem educação”[2].
Na obra de Graciliano Ramos os diferentes gêneros – crônica, ficção e memória – se
comunicam numa interpenetração que pode ser constatada na migração de frases, personagens e
temas de uma narrativa a outra. Às vezes algo que é apontado numa crônica é desenvolvido no
romance, onde, pressuponho, o escritor joga com mais liberdade de criação; outras vezes, aquilo
que aparece ficcionalizado é assumido publicamente pelo escritor no texto ensaístico; e coisas,
personagens, fatos e episódios abordados nos romances e crônicas são retomados nos livros de
memórias.
Examinei imagens de educação na obra de Graciliano Ramos, tendo em vista a sua dupla
inscrição social: homem público que esteve bem próximo dos debates em torno das questões
educacionais e escritor cuja opção estética expressa a preocupação com as mazelas da sociedade e a
“parte má das coisas”, imprimindo um caráter de denúncia à escrita literária, revelando sua
insatisfação diante da realidade. No percurso do mestrado, minha atenção foi se voltando para as
representações de negros em uma tônica essencialmente crítica que ressalta as “lutas de
representação” que envolvem idéias e práticas no âmbito educacional. Uma crítica marcada por
ironias, caricaturas, ambigüidades e paradoxos em imagens de educação encontradas tanto nas
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saberes e práticas.
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crônicas quanto nos romances e memórias.
2 Considerações teórico-metodológicas
Entendendo que a literatura em geral é mais que pura expressão artística, nesse trabalho
evidencio o diálogo entre a obra ficcional e o contexto em que a mesma foi produzida, segundo a
proposta de Antonio Candido de fundir “texto e contexto numa interpretação dialeticamente
íntegra”[3]. Isso permite o estudo da literatura na perspectiva de representação e interpretação de
processos históricos e sócio-culturais. A literatura, portanto, abarca as condições políticas, sócioculturais, econômicas e ideológicas, compondo um testemunho que, aparentemente, não tem
ligações com a história institucional. O que pode contribuir para dar uma maior liberdade ao escritor
no tratamento de questões que preocupam a sociedade em certos momentos.
Os estudiosos da obra de Graciliano Ramos já demonstraram sobejamente o seu
envolvimento em aspectos da política, da sociedade e da cultura cuja importância é verificável na
ficção através de desdobramentos teóricos/ideológicos de imagens históricas ficcionalizadas.
Imagem, aqui, está sendo tomada como texto polissêmico, na trilha de Roger Chartier[4],
enquanto representação, o que abrange tanto o domínio dos objetos materiais quanto o de esquemas
mentais e práticas que, em sentido amplo, atuam como meios de expressão e interpretação da
cultura, não apenas refletindo a realidade social e política, mas instituindo-a e/ou transformando-a.
Segundo Chartier, é através de “lutas de representação” que indivíduos ou grupos procuram impor
concepções de mundo e valores estruturados em conflitos e classificações, construídos para
perceber e organizar o mundo social.
Assim, busco perceber, nos elementos substanciais que o autor seleciona dos contextos préexistentes para compor o texto ficcional, as representações de negros que se inserem num conjunto
complexo e paradoxal, descritivo das precariedades vivenciadas pelo ensino escolarizado no Brasil,
constatando e denunciando as assimetrias nas relações entre alfabetizados e analfabetos, entre
brancos e pretos.
É possível inferir que Graciliano Ramos ao interagir com as imagens de educação
produzidas e veiculadas pelos proponentes e implementadores de medidas educacionais voltadas
para nordestinos, sertanejos, negros, mulheres, trabalhadores e pobres, selecionou-as e combinou-as
em sua obra, ressaltando conflitos, competições e valores perceptíveis nas “lutas de representação”,
através de imagens da educação formal e informal, pois, como afirmou Antonio Gramsci, em
Concepção Dialética da História:
A relação pedagógica não pode ser limitada às relações especificamente escolásticas, através das
quais as novas gerações entram em contato com as antigas e absorvem as suas experiências e os
seus valores historicamente necessários, amadurecendo e desenvolvendo uma personalidade
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própria e culturalmente superior. Esta relação existe em toda sociedade no seu conjunto e em todo
indivíduo, com relação aos outros indivíduos, bem como entre camadas de intelectuais e não
intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos,
entre vanguardas e corpos de exército. Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma
relação pedagógica, que se verifica, não apenas no interior de uma nação entre as diversas forças
que a compõem, mas em todo o campo internacional e mundial[5].
3 Os negros na obra de Graciliano Ramos
Examinando a obra de Graciliano Ramos, especificamente nos volumes Angústia, Linhas
Tortas, Viventes das Alagoas, Infância e Memórias do cárcere (análise em andamento) foi possível
encontrar representações de negros em um significativo repertório de personagens.
Em sua maioria são analfabetos e anônimos mas alguns têm escolaridade suficiente para
ministrar aulas aos filhos da sociedade dominante. Isso nos leva a indagar como, onde e quando os
negros que cruzaram a vida do menino Graciliano tiveram acesso à educação escolarizada? São
questões que ainda carecem de investigação. É interessante observar que justamente os negros
analfabetos são referidos pelo escritor como grandes professores, que lhe teriam ensinado grandes
lições.
Mapeamento preliminar de personagens negros na obra de Graciliano Ramos
Volume
Viventes
Alagoas
Gênero
das Crônicas
Ano
1962
Título
Personagens
Desfio
Cantadores Inácio
da Catingueria e
Romano
Dr. Pelado
Raimundo Pelado
A decadência de Mulato claro feito
um senhor de promotor
engenho
Um
notável
Linhas Tortas
Crônicas
1962
homem Canalha da roça
mais ou menos
preta
Inácio
Catingueira
Romano
da Os
cantadores
e Inácio
da
Catingueira
e
Romano
Booker
Washington
Booker
Washington,
negro
norteamericano autor
do único livro que
G.R. traduziu
O que deveríamos Artur Ramos
fazer
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saberes e práticas.
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Volume
Gênero
Ano
Título
Personagens
Um homem forte
Angústia
Romance
1937
Infância
Memórias
1945
Domingos
da Costa
Jorge
Vitória,
mestre
Domingos
(exescravo), José da
Luz,
Quitéria,
filhos de Quitéria,
moleque
da
bagaceira.
O moleque José
Preta Quitéria e
seus filhos: dos
machos
(anônimos)
nomeia moleque
José e as fêmeas:
Luíza e Maria
Joaquina (filha de
Maria)
Um incêndio
Duas
pretinhas
anônimas
José da Luz
Soldado mestiço
José da Luz
Escola
Negro Velho
Meu avô
Maria
Vitória
Adelaide
D. Maria do Ó
Um
professor
Moleca,
novo Professor mestiço
e seu irmão
Em Infância[6] o narrador reapresenta personagens de Angústia, pessoas comuns com as
quais conviveu. Os últimos rebentos da preta Quitéria, Maria Moleca e o moleque José, analfabeto,
que, no entanto, conhecia a vida, deu-lhe “várias lições” e o fez ver o horror que atingia os negros;
José da Luz, policial cafuzo, “ótimo professor”; a mulata Maria do Ó, professora normalista que
excedia nos castigos físicos, invertendo a ordem social com Adelaide, a prima do narrador e
vingando-se dos antepassados; o anônimo professor mestiço, que “era um tipo mesquinho, de voz
fina, modos ambíguos, e passava os dias alisando o pixaim com uma escola de cabelos duros” e
tinha um irmão, claro e simpático, que vivia a reclamar: “– Tenho o meu lugar definido na
sociedade”.
Em Angústia[7], o mestre Vitório, que havia sido escravo do avô de Luís da Silva, cujos
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saberes e práticas.
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músculos eram do velho Trajano e mesmo após o fim da escravidão, prestava deferência ao velho
bêbado; a preta Quitéria também alienada dos músculos e do ventre, permanecia na fazenda por não
ter aonde ir; Quitéria e outras semelhantes “povoaram a catinga de mulatos fortes e brabos que
pertenciam a Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva”[8].
No volume Vivente das Alagoas[9], a crônica “Um homem notável”, além da relação entre
um homem analfabeto com uma “secretária formada pela escola normal” (situação semelhante ao
que vemos em São Bernardo, embora sem o mesmo fim trágico), Graciliano Ramos aborda,
também, embora por via indireta, a questão racial. O narrador já inicia a crônica apontando tensões
antigas: “Residia no interior e tinha duas qualidades que lhe adoçaram a vida, e eximiram de
inquietações: era branco e analfabeto”[10].
Nessas duas qualidades do homem notável, são evidenciadas marcações históricas
importantes na sociedade brasileira. Situado na fronteira de grupos opostos, o personagem efetuava
uma leitura pragmática da realidade, utilizando a seu favor tanto o capital financeiro, quanto o
cultural e o social:
Se não fosse branco, nivelar-se-ia à canalha da roça, mais ou menos cabocla, mais ou menos
preta, sentir-se-ia pequeno, disposto à obediência. Se não fosse analfabeto, consumir-se-ia em
exercícios inúteis à lavoura do algodão e da mamona, leria romances e telegramas da Europa,
alargaria pelo mundo, à toa, pensamentos improdutivos (Idem).
Utilizando-se do condicional, o cronista levanta, por oposição, situações de submissão que
têm origem histórica. A exemplo da mediação social da clivagem de cor imposta aos afrodescendentes. E podemos depreender que o analfabetismo, somado a outras condições de
subalternidade – pobre, preto, sertanejo, criança – aumenta proporcionalmente o peso da hierarquia.
Graciliano Ramos estava atento para essas nuanças, como podemos perceber em sua obra e na ação
que levou crianças pobres para a escola, durante a sua gestão como diretor de Instrução Pública em
Alagoas.
O homem notável, embora analfabeto, era leitor atento e pragmático do texto social:
Mas como dispunha de olhos azuis, pele clara e cabelos de gringo, viu com desprezo as
figuras chatas, encarapinhadas, foscas e oblíquas dos arredores, convenceu-se de que possuía
requisitos para dominá-las e arrogou-se direitos muito superiores aos delas. E como não esbanjava
tempo nas cogitações distantes que os livros sugerem, observou solícito as coisas próximas e
necessárias, as que se podiam juntar e levar ao mercado (Idem).
Essa leitura de viés extremamente pragmático, gerava aprendizados que o homem notável
usava a seu favor, garantindo um ganho pessoal econômico considerável e mantendo a estrutura de
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saberes e práticas.
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dominação em relação aos outros.
Situação semelhante vamos encontrar nas crônicas “Desafio” e “Inácio da Catingueira e
Romano”, nas quais a clivagem branco/preto e a tensão entre alfabetizado/analfabeto e cultura
livresca/cultura popular são evidenciadas no lendário episódio da famosa dupla de cantadores:
No interior da Paraíba viveram há mais de meio século dois cantadores famosos, ouvidos
com admiração e respeito em cidades e vilas: Inácio da Catingueira, preto, e Romano, branco, de
boa família, cheio de fumaças. O negro, isento de leituras, repentista por graça de Deus, exprimia-se
com simplicidade, na língua comum do lugar. O branco exibia conhecimentos: andara uns meses na
escola e, em razão da palmatória e dos cascudos, saíra arrumando algarismos, decifrando por alto o
mistério dos jornais e das cartas. Possuía um vocabulário de que não alcançava direito a
significação e lhe prejudicava certamente o estro, mas isto o elevava no conceito público. Nos
torneiros consideráveis reunia palavras esquisitas, de pronúncia difícil, e atrapalhava o adversário.
Processo desleal[11] (VA, “D”, p. 71-4).
E o cronista arrematou afirmando que
Nas cantigas de violeiros, como em outras cantigas, na Paraíba e em toda parte, saem-se bem as
pessoas que dizem a última palavra. Quem não fala muito, aos berros, é incapaz. Os descendentes
de Inácio da Catingueira cantam em voz baixa, para um número pequeno de criaturas (Idem).
Cantar em voz baixa significa que o cantor somente seria ouvido pelos que estavam
próximos, pelos que faziam parte de sua comunidade, e tinham a mesma visão global da realidade.
A crônica “Inácio da Catingueira e Romano” remete novamente ao desafio entre os dois
cantadores, ressaltando o mesmo episódio em que Romano introduziu a mitologia romana na
cantiga, esmagando o “inimigo com uma razoável quantidade de burrices, tudo sem nexo, à toa”, a
que Inácio não podia responder, pois era analfabeto. E assim foi considerado derrotado, pelo
público:
Muita gente aceita isso. Nauseada, mas aceita, para mostrar sabedoria, quando todos deviam gritar
honestamente que, tratando-se de ‘martelo’, Netuno e Minerva não têm cabimento.
Inácio da Catingueira, que homem! Foi uma das figuras mais interessantes da literatura brasileira,
apesar de não saber ler. Como os seus olhos brindados de negro viam as coisas! É certo que temos outros
sabidos demais. Mas há uma sabedoria alambicada que nos torna ridículos[12] (VA, “ICR” p. 120-2).
Mais uma vez a apreciação de Graciliano Ramos sobre o episódio lendário dos cantadores
nordestinos expressa a crítica a uma generalizada concepção de cultura ou como ornamento, floreio
e pedantismo beletrista ou como um bem a ser apropriado para a promoção social. A visão clara da
realidade demonstrada por Inácio em oposição a Romano, bêbado de si mesmo, é a deixa para falar
de um estudante de gramática que, embora alardeasse um conhecimento que não tinha, não era
contestado pelos leitores:
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O ano passado vi o livro dum sujeito notável que declarava, com medonhos solecismos, ter sido um
ótimo estudante de gramática. Não podia haver coisa mais extraordinária. O cidadão a afirmar,
numa linguagem erradíssima, que sabia escrever.
Imaginei as caras dos outros leitores. Não vi nenhuma. Como, porém, ninguém protestou, julgo que
todos, gramáticos e literatos, engoliram o que o homem disse, exatamente como aconteceu em
Patos, há setenta anos.
Que pedantismo e que miséria! Ali bocados de mitologia, aqui um português arrevezado,
pretensioso e manco (Idem).
Como o público ignorante e indeciso que aplaudiu Romano, a comunidade letrada também
tinha limitações que a pretensão impedia de superar. O silêncio impedia o debate e o
questionamento das “verdades” estabelecidas e partilhadas.
E novamente o cronista arremata: “certamente muitos preferem descender dos Romanos, que
sempre foram os donos intelectuais do Brasil”. Preferir descender dos Romanos é afirmar a filiação
a uma tradição que mantinha o controle do poder, à tradição cultural dos colonizadores; descender
dos Romanos é participar de um capital simbólico tido como importante, fazendo-se parte do grupo
dos homens ilustrados, que se opõem aos grupos considerados hierarquicamente inferiores na escala
sócio-econômica, a exemplo dos negros.
Em Memórias do cárcere[13] vê-se que a crítica de Graciliano Ramos vai além da escrita
literária e é exemplificada pela prática. No período de tempo em que permaneceu no cargo de
diretor de Instrução Pública, Graciliano Ramos teve como interlocutora a d. Irene, diretora de uma
escola que, a princípio, atendia clientela elitizada, mas passou por mudanças interessantes:
No estabelecimento dela espalhavam-se a princípio duzentos e poucos meninos, das famílias mais
arrumadas de Pajuçara. Numa campanha de quinze dias, por becos, ruelas, cabanas de pescadores,
D. Irene enchera a escola, aumentando o material, divididas as aulas em dois turnos, mais de
oitocentas crianças haviam superlotado o prédio, exibindo farrapos, arrastando tamancos. Ao vêlas, um interventor dissera indignado:
– Convidam-me para assistir a uma exposição de misérias (Idem, p. 45-6).
A abertura da escola para alunos pretos e pobres e a viabilização de medidas que garantissem
a sua permanência no sistema escolar com o fornecimento de fardamento e material, ganharam ares
revolucionários na visão dos que naturalizavam a exclusão da maioria e o privilégio da elite.
As ações implementadas pelo diretor de Instrução Pública de Alagoas, de um lado o
colocaram na vanguarda dos movimentos educacionais que, encampados pelos reformadores,
buscavam assegurar, constitucionalmente, o direito de todos à educação; e de outro o colocavam na
contramão dos interesses dos figurões locais. Na “democratização” do acesso à escola, Graciliano
Ramos mostrava como era mais importante agir do que falar e que, além das mudanças teóricas, a
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prática política deveria mudar.
Questões como as vistas acima impregnam as imagens que representam a educação na obra
de Graciliano Ramos. A criação artística recompõe aspectos delicados, recorrentes ou interditados
na história brasileira, através de narradores, personagens e enredos que manifestam uma postura
complexa e ambígua diante das relações étnicas e raciais, gerando situações aparentemente
contraditórias. Tais posturas, ao invés de caracterizar indefinição, fraqueza ou dúvida, ao contrário,
abrem a possibilidade de discussões dessa temática sob perspectivas variadas.
A ironia é um recurso estilístico para evidenciar as contradições do real e, também, um
esforço para superar as limitações do narrador diante da complexidade do real. Como afirmou
Graciliano Ramos, evidenciando a sua relação tensa com o contexto político – que o condenou
arbitrariamente à prisão – e com a ideologia – que censurou a sua obra:
Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às
voltas com a Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a
lei, ainda nos podemos mexer[14].
Na crítica do escritor aos que se referiam à coação – real, sem dúvida – para evitar
pronunciamentos sobre o contexto político repressor da época, Graciliano Ramos reafirmava a sua
obstinada luta com a linguagem diante da impossibilidade de superar as contradições inerentes ao
real. Para tais contradições o escritor não apontava respostas, soluções prontas ou ferramentas préestabelecidas, mas também não eliminava a possibilidade de as mesmas serem construídas no
processo de representação do real através da linguagem.
Como se pode examinar, nas representações de educação nas obras do escritor Graciliano
Ramos, especificamente aquelas interações literárias com representações de negros, a ironia, é uma
ferramenta eficientemente utilizada pelo escritor para resolver certas situações delicadas, como
aquelas apresentadas nas escolas da vida, onde o texto social se dá a ler em representações que
organizam a apreensão do mundo: imagens ligadas à cor, ao gênero, à origem geográfica, ao poder
aquisitivo, somadas ao grau de escolaridade, à profissão, etc. e constituem marcações
historicamente construídas para sustentar clivagens.
[1] CARVALHO, Marta Maria Chagas de. “Educação e política nos anos 20: a desilusão com a República e
o entusiasmo pela educação. In: A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. Helena Carvalho de
Lorenzo, Wilma Rios da Costa (org.) São Paulo: Editora da UNESP, 1997.
[2] Idem, p. 119.
[3] CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Ed.
Nacional, 1980.
ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 04: História e Educação: sujeitos,
saberes e práticas.
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[4] CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela
Galhardo. DIFEL/Editora Bertrand Brasil S. A.: Lisboa/Rio de Janeiro. (Memória e Sociedade), 1998.
[5] GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. 3a. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978.
[6] RAMOS, Graciliano. Infância. Rio/ São Paulo: Record, 1995.
[7] RAMOS, Graciliano. Angústia. 59 ed. Rio, São Paulo: Record, 2004.
[8] Idem, p. 174.
[9] RAMOS, Graciliano. Viventes das Alagoas: quadros e costumes do Nordeste. 5 ed. Rio, São Paulo:
Record/Martins, 1975.
[10] Idem,
pp. 109-112.
[11] Idem, pp. 71-74.
[12] Idem, pp. 120-122.
[13] RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 9 ed. Rio, São Paulo: Record, Martins. (2 v), 1976.
[14] Idem, p. 33-34.
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