NOTAS SOBRE A IDEIA DE INTERCESSORES COMO UM CONCEITO NA
FILOSOFIA DE GILLES DELEUZE: POR UM TEATRO FILOSÓFICO
Maria dos Remédios de Brito1
RESUMO: O presente ensaio tem como objetivo desenhar algumas linhas iniciais sobre a ideia
de Intercessores como um conceito que percorre a Filosofia de Gilles Deleuze e como o mesmo
entrelaça a Filosofia desse autor como um teatro filosófico radical que percorre o pensamento
para além da representação. Tal conceito é, efetivamente, aquele que denuncia a imagem de
pensamento dogmático e promove outra imagem-pensamento para além da identidade.
PALAVRAS-CHAVE: Deleuze, intercessores, teatro filosófico.
NOTES ON THE IDEA OF INTERCESSORS AS A CONCEPT IN THE PHILOSOPHY
OF GILLES DELEUZE: BY A PHILOSOPHICAL THEATER
ABSTRACT: This essay has as an objective to draw some lines on the idea of intercessors as a
concept that runs throug the philosophy of Gilles Deleuze, and as it interlaces this philosophy as
a philosophical radical theater that runs through his thinking beyond representation. The concept
mentioned is, effectively, the one which on that denounces the image of dogmatic thought and
promotes another thinking-image beyond identy.
KEYWORDS: Deleuze, Intercessors, philosophical theater.
I
DOS INTERCESSORES
...trata-se de fazer do próprio movimento uma obra,
sem interposição; de substituir representações
mediatas por signos diretos; de inventar vibrações,
rotações, giros, gravitações, danças ou saltos que
atinjam diretamente o espírito. Esta é uma ideia de
homem de teatro, uma ideia de encenador (Gilles
Deleuze).
Deleuze em seus escritos não desenvolveu reflexão e nem artigo explícito a
respeito da ideia de Intercessores; o que se tem a esse respeito, de modo mais
particular, encontra-se em uma entrevista a Antoine Dulaure e Claire Parnet, L’Autre
Journal, n0 8, de outubro de 1985. Quem já leu, elementarmente, algum texto de
Deleuze percebe que essa ideia aparece sempre sendo atravessada em suas reflexões.
1
Graduada em Pedagogia e em Filosofia pela Universidade Federal do Pará. Pós-doutora em Filosofia da
Educação pela Universidade Estadual de Campinas, Professora da Universidade Federal do Pará/Instituto
de Educação Matemática e Científica, membro do grupo de estudo e pesquisa “Cultura e
Subjetividade”/CNPq. Coordenadora do Grupo “Transitar”. Realiza estudos no campo da Educação e da
Filosofia nas conexões com a Filosofia da Diferença. E-mail: [email protected]
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Os Intercessores é um conceito. Como o próprio autor argumenta, os conceitos são
movimentos que são constituídos a partir de encontros e problemas e são eles que
forçam o pensamento a pensar.
Os Intercessores, neste caso, são os mobilizadores do pensamento, pois a partir
deles é que se criam problemas, pois eles os instigam. Pode-se dizer, assim, que sem os
Intercessores, o pensamento não age, não inventa, não cria.
Diz Deleuze, “tudo acontece por dom ou captura” (DELEUZE, 1992, p. 156).
Então, o pensar não é natural, antes é fundamental para o pensamento ser forçado a
agir por meio de problemas, é necessário que o pensamento seja afetado por alguma
coisa. Neste sentido, os Intercessores são fundamentais para Deleuze, pois é com eles
que o pensamento entra em deslocamento, mobilidade, trânsito, criação.
Para o filósofo, já não há uma origem como ponto de partida, agora, mas o que
deve passar são os movimentos, as órbitas devem girar. Isso parece ser fundamental
para Deleuze, pois para que o pensamento crie são necessárias as ligações, as
conexões, os agenciamentos; assim, o esforço, agora, não é para encontrar a causa, mas
o entre. Tudo deve passar entre dois, três, sempre pelo meio. É por isso que para o
autor o essencial são as ligações, as correspondências, as intensidades. Como diz,
Se hoje em dia o pensamento anda mal é porque, sob o nome de
modernismo, há um retorno às abstrações, reencontra-se o problema
das origens, tudo. De pronto, são bloqueadas todas as análises em
termos de movimentos, de vetores (...). No entanto, a filosofia
acreditava ter acabado com o problema das origens. Não se trata mais
de partir nem de chegar. A questão era antes: o que se passa “entre”?
(DELEUZE, 1992, p. 151).
Ele observa que ainda se pensa em nome dos universais, que agora os direitos
dos homens exercem a função de valores eternos. Assim, as opressões são terríveis,
pois para o filósofo, o grande problema é que há o impedimento dos movimentos, pois
eles são bloqueados, porque tendem a ofender as generalidades e o eterno.
Deleuze, nessa mesma entrevista, diz que não basta dizer que “os conceitos se
movem. É preciso construir conceitos capazes de movimentos intelectuais”
(DELEUZE, 1992, p. 152). Assim, os Intercessores oferecem esse movimento ao
pensamento deleuziano, retirando o pensamento da imobilidade e de sua suposta
naturalização, por isso que para ele é efetivamente importante a relação da Filosofia
com outros conhecimentos. Pode-se dizer que o conceito de Intercessores vai de
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encontro com a ideia de pensamento dogmático, que pretende a semelhança, a
generalidade, a identidade. Os Intercessores é um conceito não só porque ele convida o
pensamento a sair do dogmatismo, mas porque ele é mesmo o mobilizador do
pensamento deleuziano para produzir a criação conceitual, pois se a “filosofia está em
estado de perpétua digressão ou digressividade” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.
36), isso ocorre porque a mesma não para de forjar suas relações, de buscar suas
intercessões. Dessa maneira, o que o torna importante para o pensamento, como diz
Deleuze, conceituando-os:
O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores.
Sem eles não há obra. Podem ser pessoas – para um filósofo, artistas
ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artista – mas também
coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais,
animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios
intercessores. É uma série. Se não formamos uma série, mesmo que
completamente imaginária, estamos perdidos. Eu preciso dos meus
intercessores para me exprimir, e eles jamais se exprimem sem
mim: sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê
(DELEUZE, 1992, p. 156, grifo meu).
Deleuze usa o conceito de Intercessores sempre no plural, nunca no singular,
visto que tal conceito só pode se manifestar por componentes, por variações,
heterogeneidade, multiplicidade e intensidade, como requer a operação conceitual. Tal
conceito configura a orientação filosófica e metodológica da sua Filosofia. Ele afirma
claramente em sua entrevista a Antoine Dulaure e Claire Parnet que o que lhe interessa
são relações, e diz:
Há relações entre as artes, a ciência e a filosofia. Não há nenhum
privilégio de uma destas disciplinas em relação à outra. Cada uma
delas é criadora. O verdadeiro objeto das ciências é criar funções, o
verdadeiro objeto da arte é criar agregados sensíveis e o objeto da
filosofia, criar conceitos. A partir daí, se nos damos essas grandes
rubricas, por mais sumárias que sejam – função, agregado, conceito –,
podemos formular a questão dos ecos e das ressonâncias entre elas.
Como é possível, sobre linhas completamente diferentes, com ritmos e
movimentos de produção inteiramente diversos – como é possível que
um conceito, um agregado e uma função se encontrem? (DELEUZE,
1992, p. 154).
Importa ressaltar que, quando Deleuze trata do conceito de Intercessore, não é
porque entende uma mera relações entre a arte, ciência e filosofia, também não é
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porque defenda que a Filosofia tenha que se comunicar com o não filosófico, mas
porque compreende que esses domínios podem ser tratados como filosóficos. Quando
Deleuze se envolve, por exemplo, com o cinema, o que ele fazia não era sua mera
interpretação, mas o que estava verdadeiramente em questão era o problema de
orientação filosófica, ou seja, o que interessa é o que o cinema pode produzir de
conceito para a Filosofia, ou melhor, o que a Filosofia pode fazer filosoficamente com
a potência desse encontro.
Seus livros sobre cinema são verdadeiras produções
conceituais. Também são verdadeiras produções conceituais os textos sobre pintura,
literatura, teatro.
Em sua obra Kafka: por uma literatura menor, por exemplo, ele não deseja
priorizar a interpretação sobre Kafka, embora exista isso, mas o que está em jogo é o
que pode produzir de conceito filosófico por vias da literatura kafkiana. Neste livro,
fala da ideia de uma literatura menor, e depois toma esse conceito como menor e
desenvolve em outros textos, como em Mil Platôs ou na sua análise do teatro de
Carmelo Bene, que fala de um teatro menor.
Por vias desse conceito de “menor”, Deleuze sugere uma espécie de “Filosofia
menor”, uma Filosofia que pode emergir fora da Filosofia oficial, que não seja mais
pela perspectiva da representação, mas uma Filosofia do acontecimento, um
pensamento que passe entre as linguagens majoritárias, operando alianças,
menoridade, seguindo linhas de transformação e deformação, que saltem para fora,
assim como a ideia de teatro menor. Uma Filosofia menor que produz um pensamento
ativo, político, inventivo, uma língua menor, capaz de rasgar ou fissurar aquilo que se
mostra como dado, fixo, regular, para então, produzir variações, desmoronamentos,
que não deseja mais o centro, o lugar, mas que invente novas forças. Não mais um
pensamento esgotado, sem vida, sem força, resignado à lei, mas um pensamento que
ouse se transformar.
Essa imagem de pensamento filosófico não suporta mais o julgamento, segundo
Deleuze. Um pensamento de teatro, que faça saltos e assuma outras formas, outras
vestimentas. Trata de ter uma tomada de consciência de uma grande potência, que não
é conduzida para soluções e representações, mas é exatamente quando a consciência
abandona qualquer tipo de solução, de interpretação que ela pode conquistar a luz
(DELEUZE, 2010, p.64). Há todo um jogo político, um jogo de como construir novos
modos de vida e pensamento.
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O que demarca o seu envolvimento com outras áreas de conhecimento não é
efetivamente suas interpretações criativas e ousadas, mas como essas obras, que vão da
literatura à biologia, por exemplo, podem liberar novos conceitos para a Filosofia. O
que importa para Deleuze são as linhas que passam entre uma coisa e outra e num
devir que as leve para outros modos:
num devir que as leva a ambas, numa intensidade que as codetermina. A figura teatral e musical de Dom Juan se tornará
personagem conceitual com Kierkegaard, e o personagem de
Zaratustra em Nietzsche já é uma grande figura de música e de teatro.
É como se de uns aos outros não somente alianças, mas bifurcações e
substituições se produzissem (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 88).
Por isso, os Intercessores não podem ser entendidos como meros encontros,
ligações, mas como tais ligações, tais encontros efetivam produções, criações, torções
para a Filosofia, nesse caso os encontros, os signos, estão sempre orientados. É por
meio dos Intercessores, que o pensamento fissura o mero dado, produz outras
inferências e criações conceituais. Os Intercessores são essa possibilidade de fazer a
Filosofia, o conceito deslizar por meio de vários planos a tal ponto que determinadas
extensões de um plano sejam ocupado por outros. Por meio dos Intercessores, o
pensador pode modificar decisivamente um modo de pensar, traçar uma nova imagem
de pensamento e, assim, instaurar um novo plano (DELEUZE; GUATTARI, 1992).
Segundo Roberto Machado:
A ideia de pensar a partir de intercessores é essencial para ele. Mas
evidentemente nem todo pensador é um bom intercessor. Lembro de
Deleuze dizendo numa aula que filosofar é passear com um saco e, ao
encontrar alguma coisa que sirva, pegar. Essa "alguma coisa" é
essencial, pois mostra que é preciso um critério para integrar algum
pensamento ao seu próprio modo de pensar. Esse critério é a diferença.
Dito de outro modo, a Filosofia de Deleuze, em vez de supor que o
pensamento tem uma história linear e progressiva, como em Hegel, ou
mesmo uma história descontínua, como em Foucault, privilegia a
constituição de espaços ou de tipos de pensamento. O que interessa a
Deleuze em todos seus estudos é construir um espaço em que seja
possível criar - a partir de pensamentos passíveis de entrar em relação
- conceitos que expressem um pensamento da diferença que funcione
como alternativa ao pensamento da identidade ou da representação. Se
a Filosofia de Deleuze é mais geográfica do que histórica é porque
estabelece duas dimensões, ou melhor, dois espaços do pensamento: o
espaço do pensamento sem imagem, que é pluralista, ontológico, ético,
trágico; e o espaço da imagem do pensamento, que é dogmático,
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metafísico, moral, racional (...). Ele se insere especificamente nesse
espaço do pensamento sem imagem, privilegiando a questão da
relação entre termos ou entre séries, ou seja, é sempre a questão da
relação que permite esclarecer a leitura deleuziana dos filósofos e dos
não filósofos. Assim, enquanto o aspecto crítico de sua Filosofia tem
sempre como alvo um tipo de relação que subordina a diferença à
identidade, o procedimento filosófico deleuziano é fundamentalmente
o projeto de afirmar a divergência ou a disjunção das séries para dar
conta da identidade da diferença. (entrevista de Roberto Machado,
retirada da internet, site: Entrevista de Roberto Machado retirada da
internet, site: htttp/portalcienciaevida. Interdisciplinaridade para a
filosofia da diferença. Acesso em 22 de abril de 2012, grifo meu).
Para Deleuze, toda a questão agora é com o entre, pois como o mesmo diz, o
problema não é acompanhar o vizinho, mas fazer o próprio movimento, pois uma
disciplina que desse para si o trabalho de apenas seguir um movimento, abandonaria
ela mesma toda a potência de criação (DELEUZE, 1992). Do mesmo modo que não se
cria apenas com interferências, pois tudo acontece por captura e roubo.
Por isso, quando Deleuze estuda Hölderlin, Mallarmé, Kafka, Artaud,
Lawrence, Sacher-Masoch, Zola, Lewis Carroll, Tounier, Fitzgerald, Nietzsche,
Espinosa, Hume, Kant, Bergson, Gilbert Simondon, Francis Bacon etc., certamente,
não é para fazer síntese, mas bifurcar, pois agora se trata de configurar um exercício
superior. De acordo com palavras de Machado:
Cada faculdade produz um acordo discordante que exclui o privilégio
da identidade. No exercício superior ou transcendente das faculdades é
a diferença que articula ou reúne (...), e esse é o tema de todos os seus
estudos sobre filósofos, artistas ou literatos (Entrevista de Roberto
Machado retirada da internet, site: htttp/portalcienciaevida.
Interdisciplinaridade para a filosofia da diferença. Acesso em 22 de
abril de 2012).
Nesse sentido, o plano de imanência deleuziano dialoga com diferentes
pensamentos e em diferentes áreas (cinema, pintura, teatro, literatura, biologia,
antropologia, matemática, geologia, linguagem), e o que estava em jogo era pensar o
seu conceito de diferença. Machado afirma que ele procede assim, porque pretende
negar a representação e porque entende que pensar é criar no próprio pensamento por
vias de outras conexões, interações. Assim, sua leitura é sempre orientada, mas para
isso ele precisa metodologicamente de seus Intercessores (VASCONCELLOS, 2005;
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2006). Portanto, os Intercessores põem em devir o plano de imanência de Deleuze
(VASCONCELLOS, 2005).
Os Intercessores, nesse sentido, se tornam um conceito de ordem fundamental
para Deleuze pensar a diferença, aliás, o próprio conceito de Intercessores já é a
diferença que trabalha, porque cada encontro, cada intercessor faz cruzamento, prova
aberturas, rasgos.
Como aranha sempre refazendo sua teia, Deleuze extrai, seleciona de
cada um de “seus” filósofos um universo virtual de conceitos que
dobra sobre um mundo real de forças, de maneira que eles constituirão
os únicos “sujeitos” de sua filosofia (princípio altruísta de toda leitura
generosa, já que nunca se é tão bem servido quanto por seus
encontros), destinados a serem investidos como heterônimos,
intercessores, personagens conceituais que entram em ressonância
num teatro multiplicado onde a dança das máscaras leva a potência do
falso a um grau que se efetua não mais na forma (é o falsário), mas
na transformação (ALLIEZ, E, 1996, p. 37, grifo do autor).
A heterogeneidade e as transmutações, por meio de encontros, configuradas
pelos Intercessores, formam sínteses disjuntivas. O que se pode afirmar é sempre a
heterogeneidade do conceito que se estabelece como uma experiência radical no plano
de imanência. “Deleuze não é autor, pois comenta, tampouco é comentador, pois fala à
la Deleuze” (ALLIEZ, A, 1996, p. 38). Dessa forma, “Formar encontros e pensar a
partir deles talvez seja uma posição conquistada por um procedimento de subtração –
constituição e por uma forma de expressão adequada” (ABREU,O, 1999, p. 203).
Ora, a criação atua com a fabricação dos Intercessores, mas fabricar, criar e
encontrá-los exige uma operação de subtração. Os Intercessores, movimentados pelo
pensamento daquele que foi afetado, sofrem uma manobra, pois eles, que são
elementos para a construção do conceito, estão submetidos a variações. O operador do
conceito, que é o filósofo, faz o conceito variar, sendo posto nas suas coordenadas
intensivas. Assim, o procedimento de subtração-criação-constituição age com uma
zona de indiscernibilidade entre o criador do conceito (filósofo) e os Intercessores.
Nesse entre, é desencadeado um devir em que o filósofo e seus Intercessores já não
estão em uma zona de separação, mas de pura intensidade.
Nessa zona, onde já não se sabe mais quem é o filósofo e quem são os
Intercessores, pois já estão atravessados, dobrados, maneirismo de uma criação
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contínua, a potência do falsário2 não produz forma, mas transmutação, deformação.
Por isso, Deleuze (1992, p.156) diz: “eu preciso de meus intercessores para me
exprimir e os Intercessores não se exprimem sem mim”. O suposto “eu” do filósofo
entra em cena e prolifera a sua explosão por via dos seus Intercessores, e esse suposto
“eu” se distribui em máscaras, em personagem, causando em cada intercessor uma
variação, uma desmontagem, em que os monstros vão sendo proliferados pelas da
diferença.
O intercessor é provocador do pensamento, mas quando esse pensamento faz
seu jogo produtivo, faz por vias de manobras, deslocamentos. Com isso, o
procedimento de subtração-criação-constituição não opera por uma lógica histórica,
pois aqui o tempo sofre uma indiscernibilidade, já que uma outra coisa emerge no
tempo do conceito que passa. Então, para Deleuze, será interessante pensar em
paisagens, em rizoma3, em cartografias do conceito e não em história. Também não
age com uma lógica da verdade, porque o falsário não quer ser um homem verídico.
A ideia de rizoma é bastante apropriada para pensar a ideia de produção
conceitual, pois eles são constituídos por linhas, agenciamentos, territórios e
desterritorialização, reterritorialização, o conceito tal como o rizoma vai fomentando
suas desestratificação, constituindo velocidades, sejam lentas ou apressadas. O
conceito faz movimentos, entra em conexões com outros conceitos, promove um
espaço liso. Portanto, quando Deleuze e Guattari tratam a ideia de rizoma na obra Mil
Plâtos, eles discorrem a respeito de duas imagens de mundo, de conhecimento ou
mesmo de pensamento. Uma imagem arborescente, que comporta uma raiz pivotante e
que não compreende a multiplicidade, tende a persistir a lei do uno, do idêntico, “a
2
Sobre a ideia da Potência do Falsário, ver o 6 item, da sua obra Cinema II: Imagem tempo, com título “As potências
do Falso”.
3
Sobre a questão do rizoma, Deleuze e Guattari, descrevem na obra Mil Platôs, v 1 algumas características que trata
conectado a qualquer outro e deve sê-lo (...) 3o – princípio de multiplicidade: é somente quando o múltiplo é
efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como
sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo. As multiplicidades são
rizomáticas e denunciam as pseudomultiplicidades arborescentes (...) Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem
objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza (...) um
rizoma, ou multiplicidade, não se deixa sobrecodificar, nem jamais dispõe de dimensões suplementar ao número de
suas linhas, quer dizer, à multiplicidade de números ligados a estas linhas (...) As multiplicidades se definem pelo
fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se
conectarem às outras (...) 4o – Princípio de ruptura a-significante: contra os cortes demasiado significantes que
separam as estruturas, ou que atravessam uma estrutura. Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar
qualquer, e também retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas (...). 5º e 6º - Princípio de
cartografia e de decalcomania: um rizoma não pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo. Ele é
estranho a qualquer ideia de eixo genético ou de estrutura profunda (...) (DELEUZE, GUATTARI, 1995, p. 15/21).
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lógica binária é a realidade espiritual da árvore-raiz” (DELEUZE, GUATTARI, 1995,
p. 13).
A imagem rizomática, que se diferencia da imagem árvore é um sistema, tem
formas diversas, suas extensão ramifica em muitos sentidos, pois o rizoma não cessa
de encadear, conectar, agenciar, descentrar. Há uma efetiva atividade, quase se
aproximando dos tecelões. As linhas vão sendo atravessadas diversamente, fazendo
suas passagens, suas variações.
O rizoma é uma potência de criação, pode-se dizer assim, tal como o conceito.
Todo o trabalho dessa perspectiva de pensamento é deixa-lo passar, criar, inventar.
Deleuze (2007) afirma que a literatura atua com essa potência da invenção e do
falsário, mas também a Filosofia fez esse trabalho. Segundo ele, o maior texto em
Filosofia que trabalhou com essa potência do falsário foi Nietzsche, em sua obra Assim
Falou Zaratustra, e precisamente o quarto livro mostra essa perspectiva, e na literatura
com Melville, na obra The confidence man.
As transformações, as mutações e
metamorfoses produzidas por essa potência do falsário vão substituindo a forma do
verdadeiro, do bom e do reto pensamento, restando um trabalho efetivo de criação do
pensar, tomando como atravessamentos as intensidades, as afecções. Assim, a
literatura, por exemplo, por meio da fabulação4, faz esse trabalho, quando estabelece
para o pensamento somente a potência do devir, um pensamento posto pelo
inacabamento, pela não verdade e pela experimentação. Ele destaca para si somente a
expressão, a linha de fuga, furtando a formalização fechada para o pensamento.
A fabulação é sempre a construção de um povo, diz Deleuze em sua obra
Crítica e Clinica, de um povo menor, colocando para o pensamento a sua potência
política. Pensar é inventar outras formas de vida e modos de existência e isso requer
outra escrita e linguagem.
É por isso que os Intercessores requerem o pensar no entre e até na
indiscernibilidade. Deleuze afirma, em relação a sua construção conceitual com Félix
Guattari, que ambos são Intercessores um do outro (DELEUZE, 1992). Ele diz que
“todas essas histórias de devires, de núpcias contra-natura, de evolução a-paralela, de
bilinguismo e de roubo de pensamento, foi o que eu tive com Félix. Eu roubei Félix, e
espero que ele me tenha feito o mesmo” (DELEUZE, 2004, p. 28).
4
Sobre essa questão, conferir o livro de Eduardo Pellejero: “A postulação da realidade: Filosofia,
Literatura e política”. Edições Vendaval, 2009.
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Entre Deleuze e Félix Guattari, tudo era percorrido pelo meio. Deleuze afirma
que ambos eram falsários um do outro, um compreendia, a seu modo, o outro, mas
para Deleuze, é exatamente a potência do falsário que faz correr a produção; é por
isso, para ele, que se deve dizer dessa potência, “Intercessores”. A potência do falsário
não quer dizer se um pensamento criado, produzido esteja na ordem do falso ou
verdadeiro, pois não é isso que importa para Deleuze, mas a força que ele produz, o
que ele faz desmontar, rasgar, arrastar. Ele não queria fazer um pensamento da
semelhança, da cópia com Guattari, produziu o roubo, que é da ordem da invenção. Tal
potência diz da captura, do roubo, que nunca é imitar, repetir o mesmo, mas fazer de
outro modo, dizer de outra forma. Daí a ideia de criação, invenção de outros modos,
de outros horizontes, por meio do conceito. Esse parece ser o campo da
experimentação e não da recognição.
Assim, para Deleuze, não existe nenhuma verdade que não se falseie, pois a
“verdade é uma criação” (DELEUZE, 1992, p. 157). A operação da verdade constitui
uma série de falsificações, que constitui um movimento, um trabalho, por isso, o seu
trabalho com Félix Guattari produziu uma série de falsificações. Guattari, de algum
modo, foi um personagem conceitual para Deleuze, e vice e versa.
É exatamente por isso, que a potência do falsário remete a um teatro de
personagens e Intercessores, que permitem proliferar máscaras e sentidos. Teatro
filosófico é o que sugere a filosofia de Deleuze percorrida pela montagem e
desmontagem de seus Intercessores como um conceito.
II
POR UM TEATRO FILOSÓFICO
O pensamento nos obriga a descortinar, a abrir clareira para
melhor enxergar afora as concreções do cotidiano e solidificações
do hábito: tudo e vibração, movimento, fluxo (Daniel Lins)
Essa ideia do teatro filosófico é tratada por Foucault em seu texto intitulado
Theatrum philosophicum. Nesse texto, Foucault faz uma análise de duas obras de
Deleuze, Diferença e Repetição e Lógica do Sentido, e afirma que a Filosofia de
Deleuze concebe a cena, quando coloca tudo em movimento, em conexões, em saltos,
em danças, em fluxos, em superfície. Quando ele ressalta as misturas, o fantasma e
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nada em profundidade, ele ignora o fundo, a interioridade. Negando o modelo, o que é
idêntico à semelhança, Deleuze prolifera “o teatro multifacetado, policênico,
simultâneo, esfacelando em cenas que se ignorem e se fazem signo, e onde sem nada
representar (copiar, imitar) máscaras dançam, corpos gritam, mãos e dedos gesticulam”
(FOUCAULT, 2000, p 235).
É por meio dessa topologia cruel que Deleuze faz correr o movimento no
pensamento e na criação conceitual, pois segundo ele “o teatro é o movimento real”
(DELEUZE, 2006, p. 30), sugerindo que uma Filosofia da criação, da produção, deve
inserir o movimento, as ligações, sob os quais os Intercessores são puros personagens
principais de tais deslocamentos e montagem, pois eles são os vetores da criação
conceitual.
Quando se fala em teatro, Deleuze, não defende um teatro da representação, ao
contrário, ele destaca a ideia de espaço cênico, o vazio desse espaço, mas também na
forma como ele é preenchido, configurado por signos, máscaras, por meio dos quais o
ator desempenha um papel, ou papéis, como a cena atravessa pontos, tece pontos
notáveis e a repetição vai sendo tecida, compreendendo a diferença (DELEUZE, 2006,
p. 31).
Nessa configuração, um pensamento se põe a tecer cenas, espaços cênicos, e
experimenta forças, traços dinâmicos que se deslocam; ele também experimenta o
corpo, a linguagem, os gestos, os olhares, antes do corpo organizado, “máscaras antes
das faces, espectros, fantasmas, antes dos personagens” (DELEUZE, 2006, p. 31). É
por esse motivo que ele prefere o teatro de Carmelo Bene, Antonin Artaud, pois aí,
toda uma potência do falsário prolifera, caminha na superfície, visto que o jogo é a
busca pela força, pela intensidade, fazendo surgir algo ainda que não existe.
O conceito de Intercessores só demonstra o quanto a Filosofia de Deleuze põe
em cena as relações, os encontros com o filosófico e o não filosófico, fazendo com o
procedimento de roubo de conceitos faça torções, a fim de integrá-las às suas questões
de interesse. Ao se tomar ou roubar de seus Intercessores determinados conceitos, ou
mesmo transformar/deformar conceitos, ou o que não está na ordem conceitual, estáse, segundo Machado:
sempre criando a diferença, como se fosse um dramaturgo que
escrevesse as falas e dirigisse a participação de cada pensador que
integra a sua filosofia. Assim, é a compreensão da amplitude e do
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modo de funcionamento desse procedimento que modifica o texto,
produzindo seu duplo, que possibilita explicar o diferencial próprio do
pensamento de Deleuze” (2010, p. 11).
Então, é por meio dos Intercessores ele que elabora sua própria Filosofia, e faz
isso como uma espécie de colagem. Segundo Machado, Deleuze faz isso tal como o
dadaísmo fez na pintura “para que, por exemplo, sob a máscara de Sócrates apareça o
riso do sofista, ou para que Duns Scot, o grande filósofo medieval, receba os bigodes
de Nietzsche, um Nietzsche, aliás, fantasiado de Klossowski ou Blanchot” (2010, p.
11).
É sempre um procedimento do falsário, do teatral e do cênico que Deleuze faz
passar em seu processo criador, por meios de seus Intercessores, por meio de uma
necessidade de fissurar aquilo que é mais caro para a Filosofia, o conceito de verdade.
Por isso, experimenta “força puras, traçados dinâmicos no espaço que, sem
intermediário, agem sobre o espírito (...) experimentamos uma linguagem que fala
antes das palavras” (DELEUZE, 2006, p. 31)
Deleuze, afirma em Diferença e Repetição que esse modo de fazer Filosofia já
fora inaugurado por Nietzsche, pois ele foi o maior mestre de uma Filosofia teatral,
visto que seu Zaratustra foi criado para a cena. Nietzsche efetiva um teatro da
crueldade, em que o humor e a ironia entram em cena, promove um movimento
vertiginoso, estabelece uma força seletiva, que expulsa, assim como cria, destrói e
produz, não o retorno do mesmo, mas da diferença (DELEUZE, 2006). Por isso,
Deleuze afirma que a grande ideia fundamental de Nietzsche “é fundar a repetição no
eterno retorno” (DELEUZE, 2006, p. 32). Nietzsche, efetivamente inspirou Deleuze à
elaboração de novos modos de pensar a produção filosófica.
Os Intercessores permitem que o pensamento seja atravessado pela máscara e
pela montagem da duplicação sem semelhança, opondo-se ao pensamento da
representação. Com os Intercessores, Deleuze, deseja produzir forças dinâmicas, traços
intensivos e, assim, buscar experimentar o pensamento/o conceito, novas linguagens,
para fazer o pensamento variar e dançar, retirando-o de sua imobilidade.
ALEGRAR nº11 - jun/2013 - ISSN 18085148
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