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Corpo em transe:
experimentos de transcinema e performance para um teatro desessência1.
Clarissa Alcantara2
Resumo: No desvio dos estilos de formas de expressão e conteúdo, o que resta é o
domínio do acaso, a "inorganização real": um corpo em transe no trânsito entre o
molecular e o molar, alimentando uma máquina revolucionária. Um corpo que, no
uso e montagem de suas imagens, produz um corpo sem imagem, um corpoalíngua,
numa resistente inconstância assignificante, que descola a pele dos rostos, o fio dos
tecidos, a linha dos textos, a sustentar-se escorregadio à superfície da teia/tela
estendida sobre o espaço onde se encontra inengendrado um corpoema sem palavras,
um atoprocesso sem estrutura, um teatro desessência.
Corpo em transe, em trânsito, transitivo e impessoal, esgarçando contornos por cem mil
linhas desmedidas, autoproduzido e funcionando por grandes conjuntos, populações e
máquinas. Por onde passa meu corpo quando nada nele diz o que ele é, muito menos de
quem é? Um corpo ora desperto, ora aniquilado entre forças inseparáveis: as forças
elementares de onde um inconsciente se produz, e as forças resultantes, residuais, que
reagem sobre o que se autoproduz. O que há entre desejo e máquina? “O inconsciente,
afirmam Deleuze e Guattari, diz respeito a física”3 e um corpo desprovido de órgãos com
suas intensidades são a própria matéria. E perguntam: “como falar de máquina, aí onde há
desejo, isto é, não apenas funcionamento, mas formação e autoprodução”. Aqui, há uma
relação extrínseca entre máquina e desejo, um laço secundário e indireto: o desejo como
um “efeito determinado por um sistema de causas mecânicas”; e a máquina “um sistema
de meios em função dos fins do desejo”. No entanto, verificando mais a fundo, “não
faríamos parte do sistema reprodutor das máquinas”, já que saímos de óvulos e
espermatozóides cuja identidade é inteiramente distinta da nossa e que, no entanto, fazem
parte do sistema reprodutor? Há “tantos seres vivos na máquina quanto máquinas no ser
vivo”.4
1
Texto apresentado na II Jornada de Arte, Gêneros e Processos de Subjetivação, UNESP, Assis/SP, de 22 a
23 de outubro de 2012.
2 Graduação em Filosofia (UFPEL/RS), doutorado e pós-doutorado em Teoria Literária (CNPq e CAPES UFSC/SC) e Psicologia Clínica (FAPESP - PUC/ SP). E-mail: [email protected]
3 DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 2010, p.
373.
4 Idem, p. 377.
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Um corpo em experienciação autoprodutiva é um corpo em ultrapassagem. Deposto de
sua unidade pessoal e específica e desfeita a unidade estrutural e dominante da máquina,
no “trans”, na passagem, aflora uma relação intrínseca, o liame direto, primário, entre
desejo e máquina: “a máquina passa ao coração do desejo”, “a máquina é desejante e o
desejo é maquinado”. O desejo não está no sujeito, é a máquina que está no desejo.
Desejo é máquina, agenciamento maquínico, uma produção desejante. Aqui, nada falta ao
desejo. Está-se na direção intrínseca das multiplicidades, onde há compenetrações,
comunicação direta, compartilha intensiva entre os fenômenos moleculares e as
singularidades do ser vivo. A diferença não está entre máquina e ser vivo, e sim, entre
dois estados de máquina que são também dois estados do ser vivo. De um lado, tem-se
os grandes conjuntos, as máquinas molares (sociais, técnicas, orgânicas), explicando o
funcionamento do organismo sem dar conta de sua formação, pois suas condições
determinadas separam a própria produção do seu produto, subordinadas que estão ao seu
fenômeno de massa; do outro lado, está-se no nível submicroscópico das máquinas
desejantes, cujo funcionamento é indiscernível da formação, isto é, o produto é o produzir
e as próprias falhas são funcionais, máquinas apreendidas em singularidades que
subordinam a si os fenômenos de massa: “nada representam, nada significam, nada
querem dizer, e são exatamente o que se faz delas, aquilo que se faz com elas, o que elas
fazem em si mesmas”. De um lado, máquinas orgânicas, técnicas ou sociais, do outro,
máquinas desejantes; são as mesmas máquinas em condições determinadas, mas de modo
algum o mesmo regime. Para Deleuze e Guattari, trata-se de “mostrar a comum
participação das máquinas sociais e das máquinas orgânicas nas máquinas desejantes.”5
E como transita a arte entre esses diferentes estados de máquina? Há como nomeá-la,
classificá-la, conceituá-la, falar sobre ela sem dela roubar seu susto e maravilhamento
assignificante, sua ausência de estilo: “momento em que a linguagem não se define mais
pelo que ela diz, e ainda menos pelo que a torna significante, mas por aquilo que a faz
correr, fluir e romper-se - o desejo” 6 ? Os grandes conjuntos molares pesam sobre os
ombros da arte, arqueando-a a serviço das máquinas coercivas, recalcando seus fluxos
5
6
Idem, p. 381.
Idem, p. 180.
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livres, extemporâneos, a-históricos, exigindo-lhe rosto, território e destino. As máquinas
socias, técnicas e orgânicas, ocupadas com suas superfícies de registro e controle,
impõem à arte o uso da máscara, projetando-a no muro branco das significâncias sobre o
qual se inscrevem os melindres astuciosos da representação e suas redundâncias, e onde a
subjetivação não existe sem um buraco negro para alojar sua consciência e paixão.
Contorno e fixidez são condições determinadas das formas estatísticas, unificando,
estruturando e procedendo por grandes conjuntos pesados; assim, classificam-se gêneros,
sexos, enumeram-se classes, estilos, listam-se nomes. É possível uma arte clandestina e
sem nome que ponha em funcionamento a invenção de mundos em novos modos de
individuação, sem mais sujeito, sem mais objeto? Uma arte que produza um corpo de
conexões
transversais,
de
disjunções
inclusivas,
conjunções
nômades,
de
“transexualidade microscópica”, de n sexos, como sugerem Deleuze e Guattari, que
deflagre na mulher os tantos homens que ela contém, quanto o homem mulheres,
“capazes de entrar, uns com os outros, umas com as outras, em relações de produção de
desejo que subvertem a ordem estatística dos sexos.”7
Transcinema e arte da performance: espaços lisos de superfícies em que se pode ir
através. Na arte da performance, em suas variações infinitas, o desafio está numa
investigação que se desfaça da separação entre observador e observado, onde não mais se
distancie pensamento e pensador. No desvio dos estilos de formas de expressão e
conteúdo, o que resta é o seu domínio do acaso, sua “inorganização real”: um corpo em
transe no trânsito entre o molecular e o molar, alimentando uma máquina revolucionária.
Como funcionam essas operações maquínicas performáticas nos sistemas semióticos, no
regime de signos dos processos de produção artística? Que uso você faz de suas máquinas
desejantes pulsionais em todas as transições do molecular ao molar e vice-versa? O que
pode um corpo em performance? Pode desprover-se de toda a memória, de toda intenção,
de um fim, de um sentido, pois este corpo se produz tal como funciona, no instante
móvel, instável em que se forma informe. Um corpo que, no uso e montagem de suas
imagens, produz um corpo sem imagem, um corpoalíngua, numa resistente inconstância
assignificante, que descola a pele dos rostos, o fio dos tecidos, a linha dos textos, a
7
Idem, p. 390
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sustentar-se escorregadio à superfície da teia estendida sobre o espaço onde se encontra
inengendrado um corpoema sem palavras, um atoprocesso sem estrutura, 8 um teatro
desessência.
“É possível viver sem uma imagem de si mesmo?”, pergunta o homem livre cansado de
carregar espelhos. É que... “Te vejo apenas em fotografia”.9
Diagnóstico: a subordinação ao idêntico. O que fere e faz doer a ferida é a imagem. Meu
rosto é meu corpo inteiro projetando autoimagens de um outro corpo. Identificação –
identidade.
Ritual de cura: a diferença clandestina. É possível um corpo sem imagem? O que pode
este corpo? Perder o rosto num corpo informe esquecido de imagens. O sem-rosto produz
corpo sem imagem. Diferença nua.
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ALCANTARA, C. Corpoalíngua: performance e esquizoanálise. Curitiba: Ed. CRV, 2011, p. 11.
Referente à ação performática "Te vejo apenas em fotografia", proposta pelo performer Saulo Salomão ao
Obscena - agrupamento independente de pesquisa cênica, realizada no Centro Cultural da UFMG, em 03
de maio de 2012, Belo Horizonte. A ação propunha que os performers escrevessem um diagnóstico
qualquer e um ritual de cura para ser realizado no local da ação. Criaram-se ações simultâneas com
distintos diagnósticos e rituais de cura. Meu diagnóstico e ritual de cura foram processados na
compenetração de corpo e máquina fotográfica no registro das ações. A máquina captando em seu próprio
código um fragmento de código de uma outra máquina, dois estados de máquina e dois estados de corpo;
produto-produzir do corpo num vídeo-livro de fotografia. Acesso ao vídeo:
http://www.youtube.com/watch?v=TQGOwBU9754 e http://obscenica.blogspot.com.br/2012/05/te-vejoapenas-em-fotografia-video.html
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