QUEM SOMOS NÓS?
Miriam Suzéte de Oliveira Rosa
Faculdade de Educação
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Resumo:
O estudo busca as origens da convivência Humana para situar a produção das
relações de conflito e as relações de paz, observando que a elevação dos níveis de vida
produzidos pela tecnociência vem também repercutindo na eleição de valores de
convivência social. Trabalha os princípios de esperança em Ernest Bloch e da
responsabilidade em Hans Jonas, propondo agregar o princípio da amorosidade
biológica em seu aspecto ontológico apontada por Humberto Maturana e Francisco
Varela. Focaliza a necessidade do exercício da compreensão a partir destes princípios
para gerar a antropoética em Edgar Morin permitindo a convivência planetária no
Cuidado de Si, do Outro e do Meio.
Palavras chave: Amorosidade, Convivência; Esperança; Ética da Compreensão;
Responsabilidade.
QUEM SOMOS NÓS?1
Miriam Suzéte de Oliveira Rosa2
“Humanos demasiadamente humanos”, como diria Nietzsche, por volta de 1876,
em obra homônima em que registrou suas reflexões sobre os comportamentos e
sistemas sociais da época.
Para Morin, o início da hominização se situa há sete milhões de anos e
caracteriza-se por ser um processo descontínuo devido ao aparecimento de novas
espécies e ao desaparecimento das anteriores.
Movidos ora pelo acaso, ora pela necessidade, somos a derivação de uma
espécie que se viu obrigada, em função de alterações climáticas, a migrar para novos
territórios em busca de alimentos a fim de saciar a fome.
Conviver com o espaço inóspito das savanas desencadeou a necessidade de uma
reestruturação anatomo-fisiológica que nos transformou em bípedes, tal disposição
corporal facilitou a ampliação do olhar para rastear, por antecipação, perigos eminentes
que colocavam em risco a sobrevivência, possibilitando a liberação das mãos e
permitindo o desenvolvimento de habilidades manuais mais sutis.
A constituição da oposição entre o dedo polegar e o indicador vai dar lugar ao
desempenho de maior força de preensão e de precisão aos movimentos, dando origem a
comunicação através do gestual e aos primeiros utensílios a serem utilizados na caça e
nas construções de abrigos rudimentares.
Estudos realizados com chimpanzés em processos de aprendizagem da
linguagem de sinais mostram que esses animais, tais como os humanos, não nascem
com um sistema de comunicação fixo. Este sistema tem que ser aprendido através da
experiência vivida na própria comunidade. (Fouts, 1998)
A convivência em grupo e o desenvolvimento da técnica compensaram a
fragilidade dos pequenos hominídeos. A caça desempenhou o papel transformador do
plano social no próprio ato de caçar e na posterior partilha dos alimentos, sendo
também, crucial para a intensificação e a complexificação das relações entre pé, mão,
cérebro e utensílio. O domínio do fogo possibilitou posteriormente a cozedura dos
alimentos, facilitando o processo digestivo e a liberação do sono, que subsidiaram novas
1
Texto parcialmente extraído da tese de doutoramento: Educação em Saúde: Identidade Reencontrada
apresentada ao Curso de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-SP em 2003.
2
Enfermeira Sanitarista, Mestre em Educação, Doutora em Ciências Sociais, Professora Adjunta da
Faculdade de Educação da UFRGS, [email protected]
mutações hominizantes resultando em maior liberdade nos períodos de sono e de vigília.
Talvez esta liberdade de desfrutar de um sono mais prolongado e sereno tenha sido a
contingência necessária ao alongamento do esqueleto humano. Sujeita a riscos naturais,
nossa espécie buscou através do grupo tornar-se mais apta para sobreviver às
intempéries e dificuldades apresentadas pelo seu ambiente natural. Portadora de uma
plasticidade
corpo-cerebral
invejável
possui
suas
faculdades
cognitivas
inextricavelmente ligadas a sua história vivencial. É constituída e, ao mesmo tempo
constituidora, da cultura que o constitui. Assumir essa estrutura sociobiológica do ser
humano: “equivale a colocar no centro a reflexão sobre aquilo de que ele é capaz e que
o distingue.” (Maturana & Varela, 2001, p.267)
Maturana também relaciona o surgimento da espécie humana com o
aparecimento de seu linguajar, de seu modo de vida, de suas interações recorrentes de
sensualidade personalizada e sexualidade frontal, de suas relações de partilha de
alimentos e de seu modo particular de inclusão dos machos no cuidado da prole.
A linguagem, instrumental humano por excelência, é considerada também por
Morin (2002) como a encruzilhada entre o biológico, o cultural e o social, faz parte da
totalidade humana e está nela contida. O sujeito humano configura-se em sua identidade
triúnica marcada e delimitada no complexo devir do indivíduo, sociedade e espécie em
anéis recorrentes de desorganização e auto-organização, desordem e nova ordem numa
crescente complexificação multifacetada.
O sofrimento subjetivo, provocado pelas freqüentes ausências, vai ser propulsor
de uma busca de satisfação de angústias e desejos em objetos mercantilizáveis,
desencadeando intermitentes satisfações das sensações corporais, dos anseios por poder,
por prazer, e por possuir, cultivando o apego exagerado ao que é periférico ao ser.
Ao mesmo tempo, a desresponsabilização pessoal sobre as questões sociais, bem
como o efeito da vitimização em que muitos movimentos se apóiam para dar
justificação a comportamentos anti-sociais, vão corroendo as possibilidades do
altruísmo biológico e das capacidades de amorosidade, de compaixão e de solidariedade
naturais no ser humano.
Pensar a ciência como neutra, desprovida de ambições e preconceitos, sempre
em busca apenas da verdade, tem sido o maior erro de nossa racionalidade. A história
tem mostrado que, quando ela se dissocia das conseqüências de seus atos e do
sofrimento que poderá vir a causar a outrem, torna-se monstruosa. A prova mais
contundente disso é o legado de duas guerras mundiais e a apropriação de uma técnica
que subordina a natureza e subjuga a maioria da humanidade, gerando a banalização da
vida de uns em prol a recusa da morte de outros. A elevação dos níveis de vida
produzidos pela tecnociência vem também repercutindo na eleição de valores de
convivência social. O desejo por maior liberdade de ação e por autonomia individuais
afrouxou os laços das relações interpessoais, desencadeando um isolamento doentio e
um deslocamento da convivência que nos constitui enquanto humanos.
Em meados do século vinte, em meio ao maior abalo existencial da humanidade,
é publicado “O princípio esperança”, formulado por Ernest Bloch (1959), que pretende
uma drástica mudança nos fundamentos da ética. Partindo da premissa do inacabamento
humano, este autor credita ao processo de materialização da potência do vir a ser, o que
ainda germina, a saída possível para superação da crise, propondo para o humano uma
realização que supere a mera satisfação da fome, inserindo-o no âmbito do poético
através da realização de seu prazer estético e do encontro amoroso. A potência para o
“vir a ser” em Bloch, requer uma dupla disposição, ativa e passiva e disposições
internas para tornar-se outro, bem como condições externas reais que incrementem esse
nascimento. Neste sentido a esperança em Bloch é um ato cognitivo que prevê outras
possibilidades de relações entre homens e entre humanidade e natureza concretizando
assim uma nova aliança que naturalize a sociedade e humanize a natureza.
O entendimento que temos de esperança em Bloch é a que pressupõe uma espera
vigiada, aquela que lança mão da ação no momento oportuno para realizar a utopia de
ser mais humanidade. Entretanto, esperança tem sido interpretada como uma atitude de
passividade o que vem sendo questionado, por autores oriundos, tanto da direita como
da esquerda política.
O princípio responsabilidade, de Hans Jonas (1995), do final da década de
setenta, constituí-se no maior contraponto à obra de Bloch. Preocupado com a
continuidade da espécie e do planeta que a sustenta, Jonas questiona em Bloch o
“utopismo de maior realização humana” independente de uma retomada de suas
relações com a natureza. Jonas indica que, dada as atuais circunstâncias de
vulnerabilidade, conseqüência da aguda interferência tecnológica, cabe ao homem
chamar a si deveres de resguardar o planeta. A ciência que tinha como objetivo prático
melhorar a qualidade de vida dos humanos, através do domínio e subjugo da natureza,
atualmente representa a maior ameaça à sobrevivência da espécie.
Penso que esses dois autores, apesar das constantes contraposições que ainda são
feitas por adeptos de uma ou de outra corrente, podem sustentar o nascimento de uma
orientação ética que ultrapasse a espacialidade nos modos de convivência.
Frente a esse diagnóstico sombrio nos restam apenas duas atitudes a tomar: a do
aguardo complacente a um desfecho final de aniquilamento planetário, ou a crença de
que onde habita o maior risco germina a maior esperança. (Morin, 2000)
Pensando na possibilidade de construção de uma ética da compreensão, Morin
aposta nas contribuições das contracorrentes de movimentos sociais que geram novos
conhecimentos sobre relações ecológicas, ambientes auto-sustentáveis, parcimônia no
consumo supérfluo, expansão da qualidade de vida prosaíco-poética dando lugar a
expressão do homo-complexus e as éticas pacifistas. (Morin, 2002)
A cultura da compreensão não só poderá como deverá reconciliar o preceito de
responsabilidade de Jonas e o de esperança de Bloch, pois estes dois princípios
conciliam uma ética que tem prolongamentos no espaço-tempo, contribuindo com o
cuidado das novas gerações e com a vida de todos os seres sem exceção. 3
Acredito que devemos incluir como terceiro pilar da ética da compreensão o
domínio da amorosidade em Maturana:
“... para ter preocupações éticas, para ser responsável, para ser livre, é
preciso ver o outro ou a si mesmo em sua legitimidade, sem que seja preciso
justificar a sua existência, isto é, é preciso operar no amor.” (Maturana, 2001,
p.75)
A equanimidade poderá ser o preceito ético necessário ao tratamento de
diferenças sem provocar desigualdades.
O processo de relembrar histórias que já estão perdidas no tempo, usar da
narrativa para dá-las a conhecer no contexto da religação dos saberes, tendo como pano
de fundo o referencial teórico da complexidade, fez com que eu refletisse sobre as
limitações lingüísticas que temos para retratar o momento mágico de nascimento de um
ser amoroso. O humano que só poderá existir em sua potência a partir do Cuidado
exercido não só como ação demandada de fora para dentro mas como uma atitude
ontológica.
3
Proposição de Morin no seminário: Cultura, poder e tolerância em um mundo complexo, realizado em
Porto Alegre, setembro de 2002.
Histórias humanas comportam efeitos curativos, educativos e evolutivos quando
estamos abertos para aceitar a diversidade.
Constituímo-nos como humanos, no conviver com o outro, somos portadores e
partejadores da história humana, acatamos as singularidades como componentes
enriquecedores do processo coletivo. Precisamos nos munir de mãos operosas, mentes
abertas, corações apaziguados e paciência histórica, exercitando tempos de Kairós, para
dar continuidade ao projeto utópico de desenvolvimento de mais humanidade para toda
humanidade.
BIBLIOGRAFIA
ALBORNOZ, Suzana. O enigma da esperança: Ernest Bloch e as margens da história
do espírito. Petrópolis: Vozes, 1998.
BOHM, David. A Totalidade e a Ordem Implicada: uma nova percepção da realidade.
São Paulo: Cultrix, 1992.
CYRULNIK, Boris. Memória de Macaco e Palavras de Homem. Lisboa: Instituto
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____. Do Sexto Sentido: O Homem e o Encantamento do Mundo. Lisboa: Instituto
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DUSSEL, Enrique. Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão.
Petrópolis: Vozes, 2000.
FOUTS, Roger. O parente mais próximo: o que os chimpanzés me ensinaram sobre
quem somos. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.
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tecnológica. Barcelona: Herder, 1995.
MATURANA, Humberto R. Emoções e linguagem na Educação e na Política. Belo
Horizonte: UFMG, 1998.
MATURANA, Humberto R. & VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento: as
bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2001.
MORIN, Edgar. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez;
Brasília, DF: UNESCO, 2000.
____. O Método V: a humanidade da humanidade. Porto Alegre: Sulina, 2002.
MÜNSTER, Arno. Ernest Bloch: Filosofia da práxis e utopia concreta. São Paulo:
UNESP, 1993.
VARELA, Francisco, THOMPSON, Evan & ROSCH, Eleanor. A Mente Corpórea:
Ciência Cognitiva e Experiência Humana. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.
“Humanos demasiadamente Humanos”
( Nietzsche, 1876)
FACED/UFRGS
O estudo busca as origens da convivência Humana para situar
a produção das relações de conflito e as relações de paz, observando que
a elevação dos níveis de vida produzidos pela tecnociência vem também
repercutindo na eleição de valores de convivência social.
Trabalha os princípios de esperança em Ernest Bloch e da
responsabilidade em Hans Jonas, propondo agregar o princípio da
amorosidade biológica em seu aspecto ontológico apontada por
Humberto Maturana e Francisco Varela. Focaliza a necessidade do
exercício da compreensão a partir destes princípios para gerar a
antropoética em Edgar Morin permitindo a convivência planetária no
Cuidado de Si, do Outro e do Meio.
Palavras chave: Amorosidade, Convivência; Esperança; Ética da
Compreensão; Responsabilidade.
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