INTERDISCIPLINARIDADE: POR UMA PEDAGOGIA NÃO FRAGMENTADA
Everton Moreira Magalhães1
“As capelas cientificas, fundadas sobre o
signo da especialização, vivem muito mais a
vontade num mundo fechado, onde a verdade
de cada um é menos contestada, do que num
mundo aberto, onde estão expostas aos ventos
da crítica.”
HILTON JAPIASSU
O conhecimento está sendo construído de forma fragmentada, cada vez mergulhamos em uma
maior especialização, a matemática já vem há muito tempo sendo ensinada dividida em geometria,
trigonometria, aritmética entre outras áreas; já a língua portuguesa se reparte em gramática, ortografia,
e literaturas. As outras matérias dos ensinos médio e fundamental também se repartem, como se a
simples existência destas disciplinas já não significasse um conhecimento partido, e cada vez mais
longe da realidade do aluno.
A especialização levada ao extremo, como a que ocorre hoje, faz com que o conhecimento
produzido só tenha sentido para os especialistas de cada área. As informações científicas desligadas do
mundo real, fechadas cada vez mais em intradisciplinas, como a termofísica-nuclear, não tem sentido
algum para o aluno de ensino médio. Isto leva ao questionamento sobre até onde tais informações
dadas para os alunos seria realmente produzir conhecimento. É para ir contra esta corrente que se
levanta o conceito de interdisciplinaridade.
A interdisciplinaridade busca um conhecimento universal, ou seja, um conhecimento que não
seja partido em vários campos, o que faz com que cada vez mais se sinta a necessidade de se estar
afastado do mundo real e fechado em apenas uma área, o que acaba por abstrair seu objeto de estudo.
O formalismo jurídico de uma teoria abstrata, desligado de toda referência à
vida real, pode conduzir aos piores absurdos, traindo, assim, a essência mesma
da função jurídica. De modo semelhante, o formalismo rigoroso desta ou
daquela teoria cientifica pode desenvolver, sob aparências enganadoras da
perfeita exatidão, o desconhecimento das implicações próximas e longínquas
da existência humana (GUSDORF, Georges in JAPIASSU, Hilton. 1976,p. 17)
Assim cativado pelo detalhe, o especialista perde o sentido do conjunto, não
sabendo mais situar-se em relação a ele. (JAPIASSU, 1976, p. 94)
A idéia interdisciplinar ganha força na década de 60 na Europa, isto devido a um movimento de
alunos e professores do ensino superior contra a fragmentação do conhecimento. A idéia e a proposta
pedagógica nela contida são trazidas à tona por Georges Gusdorf no final da década de 60, e é este
autor que influencia os dois maiores teóricos brasileiros; Hilton Japiassu e Ivani Fazenda. Sendo que
Japiassu veio a trabalhar o conceito no que denominamos campo epistemológico, enquanto Fazenda
continua a produzir uma obra extensa no campo pedagógico. São estes dois teóricos que influenciam
praticamente toda produção bibliográfica sobre o assunto no Brasil.
Porém, mais importante para educação é perceber os frutos que estes conceitos, quando
corretamente aplicados, podem produzir. É fato claro o desinteresse cada vez maior dos alunos pelo
1
Graduando do curso de História da UFOP.
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ensino, e não poderia ser diferente. Afinal em um mundo dinâmico no qual as crianças e os jovens cada
vez mais “precisam” reter uma dose gigantesca de informações, as práticas didáticas mostram-se
retrógradas.
O discurso de que o conhecimento é a base fundamental da civilização é insuficiente, no
mínimo incompreensível para o estudante que acaba por ficar alheio ao saber dito clássico2. No ensino
de história podemos citar falhas graves das práticas mais comuns hoje, por exemplo: o fato de explicar
o presente pelo passado em uma prática de simples exposição de fatos, acaba não colocando o aluno
como construtor da história; ou a muito combatida, pela academia, prática da história dos heróis que
ainda é usual no ensino fundamental e médio, o que diminui o aluno diante da história, dando a ele um
panteão de heróis praticamente míticos3.
Isto ocorrendo em depreciação de uma análise de conjuntura ou de práticas sociais que
poderiam aparecer como algo mais tangível para os alunos e, mesmo com as diferenças de época, o
aluno conseguiria identificar signos que lhe seriam comuns e contrastar as diferenças. As práticas
interdisciplinares tendem a, como já foi dito, buscar um conhecimento unitário, onde a integração de
todas as disciplinas e a ligação delas com a realidade do aluno tornam o conhecimento real e atrativo,
sendo que as vezes o aluno consegue enxergá-lo como essencial.
É necessário delimitar a idéia do que é interdisciplinaridade, por uma questão de praticidade
para qualquer trabalho acadêmico, pois a diferença de conceituação entre os principais teóricos é
gritante, o que torna necessário a delimitação do conceito citado, assim como de outros conceitos como
multidisciplinaridade, intradisciplinaridade, pluridisciplinaridade e transdisciplinaridade.
MULTIDISCIPLINARIDADE OU PLURIDISCIPLINARIDADE
Esta é uma estratégia pedagógica muitas vezes confundida com a interdisciplinaridade. Consiste
de um trabalho constituído por duas ou mais disciplinas. Nela temos a escolha de um tema comum,
onde cada professor contribui com o conhecimento especifico de sua área. Por exemplo, trabalhando o
tema as “grandes navegações”: o professor de matemática pode mostrar como é importante a utilização
da geometria para a construção das caravelas, ou mesmo para a prática da navegação; já o professor de
geografia mostrará a evolução da cartografia; enquanto que o professor de literatura poderá tratar da
vasta produção literária que faz uso do tema.
Temos assim a integração de várias disciplinas, trabalhando “juntas” durante algum período. É
inegável que tal estratégia pode obter sucesso em sala de aula, afinal acaba por mostrar aos alunos uma
aplicação prática do conhecimento até então intangível. Mas tal proposta pedagógica não pode ser
confundida com uma atitude interdisciplinar. O que ocorre, em geral, é que as disciplinas estão apenas
utilizando o tema comum como um exemplo prático de seu universo fechado, não criando uma relação
com as demais disciplinas. Chegamos assim ao velho adágio chinês: “Uma casa é feita de um punhado
de tijolos, mas um punhado de tijolos não é uma casa”.
Para Hilton Japiassu existe uma diferenciação entre os dois termos. A multidisciplinaridade, no
sentido trabalhado por ele, trata-se de um sistema onde as disciplinas trabalham o mesmo tema mas não
há nenhuma cooperação entre elas, ou seja, o tema comum aparece como um meio para se chegar ao
fim original da disciplina. Já a pluridisciplinaridade traria a existência de cooperação entre as
disciplinas, mas cada disciplina ainda estaria apegada ao seu fim original, sendo assim, o tema ainda
aparece como um artificio da disciplina.4
Um caso multi ou pluri disciplinar é o que pode ocorrer com nossos temas transversais. Estes
são propostos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). São temas aglutinadores dos quais
2
NETO, p. 57. 2002
NETO, p. 64. 2002
4
JAPIASSU, Hilton, p.41 1976.
3
2
devem tratar todas as disciplinas, são eles: ética, pluralidade cultural, saúde, orientação sexual e meio
ambiente.
A intenção aqui seria termos um trabalho interdisciplinar. Veremos mais tarde que este termo
muitas vezes não pode ser aplicado. O que ocorre, em geral, é que as disciplinas ficam fechadas em sua
áreas apenas usando os temas transversais como estudo de caso. Ainda existe a possibilidade destes
temas se tornarem o fim das “ditas” agora disciplinas, “ditas” pois os temas transversais agora é que
tomam para si o caráter retrógrado das disciplinas5.
INTRADISCIPLINARIDADE
Este é um fenômeno cada vez mais comum, trata-se da criação de subdisciplinas. Podemos citar
como exemplo a Psicologia e a Psicologia da educação, estamos portanto a tratar de uma especialização
dentro de outra especialidade. É necessário lembrar que as subdisciplinas podem ajudar muito no
desenvolvimento de sua “disciplina mãe”, como ocorre no caso do exemplo citado. Mas é preciso estar
atento ao fato de que facilmente as subdisciplinas perdem contato com suas disciplinas de origem,
assim criando um universo dentro de outro, ajudando no fenômeno de uma crescente especialização
sem contato com o mundo real.
INTERDISCIPLINARIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE
Para Hilton Japiassu, é necessário antes de se definir o que é interdisciplinaridade criar uma
precisão terminológica para disciplinaridade. Define ele a disciplina como “ciência”, e a
disciplinaridade portanto seria a exploração do universo desta ciência6. O que seria portanto a
interdisciplinaridade do que a negação das fronteiras disciplinares? Como já foi explicitado é
necessário que não se confunda o termo em questão com as limitações que trazem os conceitos pluri e
multidisciplinar. A interdisciplinaridade se distingue dos demais conceitos por não se limitar as
metodologias de apenas uma ciência7, buscando assim o conhecimento unitário e não partido em
fragmentos que parecem cada vez mais, como já explanado anteriormente, irreais.
Para Japiassu, a interdisciplinaridade surge como uma necessidade imposta pelo surgimento
cada vez maior de novas disciplinas. Assim, é necessário que haja pontes de ligação entre as
disciplinas, já que elas se mostram muitas vezes dependentes umas das outras, tendo em alguns casos o
mesmo objeto de estudo, variando somente em sua análise8. Caso mais freqüente nas ciências humanas,
já que ao contrario das naturais não existe uma hierarquia entre elas.
Nas ciências naturais, podemos descobrir um tronco comum, de tal forma que
temos condições de passar da matemática à mecânica, depois à física e à
química, à biologia e à psicologia fisiológica, segundo uma série de
generalidade crescente (esquema comtiano). Não se verifica semelhante ordem
nas ciências humanas. A questão da hierarquia entre elas fica aberta...
(JAPIASSU, 1976, p. 84)
Para ele, trata-se também de uma exigência estudantil, devido ao universo global e
multidimensional. A luta contra uma formação baseada em especialidades é lógica, devido as
exigências que o mercado faz aos recém formandos: que cada vez mais sejam profissionais
polivalentes. Fato que as graduações baseadas em disciplinas fechadas umas as outras, e ao mundo
5
FREITAS NETO, José. p. 61. 2004
JAPIASSU, Hilton. p. 81.,1976
7
JAPIASSU, Hilton. p. 74.,1976.
8
JAPIASSU, Hilton. p. 53, 1976
6
3
exterior aos cursos superiores, não se mostram capazes de realizar. Assim os alunos dos cursos
superiores estão em geral buscando um conhecimento que vá contra o saber fragmentado e o
“babelismo” empregado pelas disciplinas.
Japiassu também explana quanto a questão da pesquisa interdisciplinar, já que, para ele, é fato
que qualquer metodologia independente da disciplina a qual pertença tem limitações claras quanto a
sua capacidade de interpretação9. Assim, o confronto com o resultado obtido por outras metodologias
pode se mostrar muito frutífero para própria disciplina já que pode ela usufruir de análises as quais não
seria capaz de fazer.
É necessário atentar, também, para o fato de que a interdisciplinaridade propõe a mudança do
“status” das disciplinas, que são tomadas por seus especialistas como um fim e não um meio para se
alcançar o conhecimento. Segundo os teóricos que trabalham o conceito interdisciplinar, para que o
saber se torne real para os alunos é necessário que a disciplina se torne um meio para a produção e
debate do conhecimento. Deixando assim de lado seu caracter dogmático, que parece diminuir os
alunos frente a um saber que para eles parece imutável.
Japiassu lança ainda um outro conceito que estaria além dos parâmetros que ele delimita como
limítrofes para a interdisciplinaridade, a transdisciplinaridade, onde os limites disciplinares parecem
deixar de existir totalmente, e as disciplinas dialogam não somente entre elas, trocando suas
informações de caráter cientifico, mas também com o conhecimento socialmente produzido dos alunos
e professores, como sua vivência social, por exemplo10. É nesta afirmação que temos a discordância
dos dois principais teóricos brasileiros, Ivani Fazenda não distingue um limite entre o saber
interdisciplinar e o transdisciplinar.
Para Alessandra Siqueira, Japiassu trata a interdisciplinaridade como a negação das
disciplinas11, leitura que ao se contrapor com a obra do autor parece errônea, pois como já foi dito
Japiassu lança mão do conceito “transdisciplinar”, no qual as disciplinas deixariam de existir. O autor
fala sim da negação das fronteiras disciplinares.
...podemos retomar essa distinção ao fixarmos as exigências do conhecimento
interdisciplinar para além do simples monólogo de especialistas ou do ‘diálogo
paralelo’ entre dois dentre eles, pertencendo a disciplinas vizinhas. Ora, o espaço
interdisciplinar, quer dizer, seu verdadeiro horizonte epistemológico, não pode ser
outro senão o campo unitário do conhecimento. Jamais esse espaço poderá ser
constituído pela simples adição de todas as especialidades nem tampouco por uma
síntese de ordem filosófica dos saberes especializados. O fundamento do espaço
interdisciplinar deverá ser procurado na negação e na superação das fronteiras
disciplinares. (JAPIASSU, 1976, p. 74-75)
Já sua análise sobre o livro de Heloísa Luck trás uma afirmativa interessante: a de que a
interdisciplinaridade é algo mais que o trabalho de duas ou mais disciplinas como meio de se chegar ao
conhecimento, trata-se, na verdade, de uma articulação e coerência de todo o conhecimento12.
Toda a produção bibliográfica de Ivani Fazenda se baseia na aplicação pedagógica da
interdisciplinaridade. E apesar dela não diferenciar em momento algum a interdisciplinaridade da
transdisciplinaridade, vemos que sua produção está densamente concentrada em experiências que
Japiassu claramente definiria como transdisciplinares.
Vemos aqui a louvável atitude de ir contra o pragmatismo acadêmico que tende a excluir o
conhecimento popular, não dando a ele nenhum valor e colocar o saber clássico como uma tábua da
9
JAPIASSU, Hilton. p. 104-105, 1976.
JAPIASSU, Hilton. p. 74, 1976
11
SIQUEIRA, Alessandra. p. 92. 2004.
12
SIQUEIRA, Alessandra. p. 92. 2004.
10
4
salvação, sendo este baseado em rigorosos métodos dogmáticos e inquestionáveis. A idéia proposta por
Ivani Fazenda propõe a contraposição das duas categorias de conhecimento. Assim teríamos a
valorização do conhecimento real, mostrando-se tangível para os alunos.
Rubem Alves, em seu livro Lições de Feitiçaria, cita o fato dos gregos saberem que a verdade
mora na escuridão, ou seja: os que podem vê-la são cegos13. Ensinamento que se aplica bem ao modelo
didático de nossas disciplinas, onde seus especialistas vêem nelas conhecimento, conhecimento que
perde sentido para o mundo, já que não é aplicável, enquanto que a sabedoria popular, muitas vezes
base da vivência social é desprezada pelos acadêmicos. Podemos citar como exemplo a medicina de
nossos indígenas, baseada nas plantas das regiões em que moram, das quais já se fabricaram inúmeros
remédios.
A IDÉIA DOS PROFESSORES
Joe Garcia fez uma análise da idéia do que os professores da rede pública de ensino médio e
fundamental do estado do Paraná e Santa Catarina entendem por interdisciplinaridade. A pergunta
apresentada nos cursos de pós-graduação ministrados por Garcia aos professores era “o que é um
professor interdisciplinar?”.
Segundo os resultados obtidos por Garcia, os professores acham que para chegarem a um
conhecimento interdisciplinar é necessário que antes se aprofundem em suas disciplinas. Pois, assim o
professor seria capaz de melhor planejar um currículo integrado com as outras disciplinas. Vemos que
os professores estão de acordo com os teóricos no que diz respeito a necessidade de revisão das práticas
pedagógicas.
Garcia enxerga diferenças no modo como os teóricos e os professores vêem as disciplinas e o
processo de integração entre elas. Os teóricos estão apegados a visão das disciplinas como universos,
enquanto para os professores elas assumem a metáfora de avenidas a serem percorridas e ainda podem
e devem ser interligadas14.
Por fim, o autor ainda aponta um contraste com mais ênfase em seu texto, onde os teóricos
dariam maior importância para a preparação dos trabalhos interdisciplinares, enquanto os professores
apontariam a vivência do trabalho. Ou seja, os teóricos estariam mais preocupados com a relação entre
as disciplinas, enquanto os professores se preocupam com o distanciamento humano. O apontamento
do autor é que o fato dos teóricos priorisarem atitudes reativas, devido a insatisfação com as práticas
atuais e os professores buscarem atitudes de transformação, onde se dá importância a abertura das
mentes, trocas de experiência e a busca de novos métodos de interação sintetizam um grande abismo
entre as duas visões15.
Ao contrário do que Joe Garcia aponta, acredito que os professores são os únicos que podem
pensar a vivência do conceito interdisciplinar, pois são eles que organizam e vivenciam o processo
junto com os alunos, estando a par das práticas que obtém sucesso ou fracasso na tentativa de provocar
o aluno em buscar o conhecimento. Já os teóricos, por sua vez, podem, enquanto se mantiverem
restritos no campo do pensar a “idéia”, apenas se preocupar com as delimitações terminológicas. Esta
diferente postura das duas classes não consiste em um abismo, afinal é possível ver claras ligações
entre as duas posições, o que ocorre é apenas uma preocupação particular com suas respectivas áreas de
trabalho. Temos os caso onde os teóricos se prestam a analisar as práticas pedagógicas, onde podemos
citar novamente a produção acadêmica da professora Ivani Fazenda, e o trabalho aqui citado de Joe
Garcia.
13
ALVES, Rubem. p. 49. 2003
GARCIA, Joe. p. 7, 2001
15
GARCIA, Joe. p.7, 2001
14
5
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Everton Moreira Magalhães - Instituto de Ciências Humanas e Sociais