EDUARDO SPADER
(I)LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO
PROCESSO CIVIL FALIMENTAR
Monografia apresentada como requisito para
conclusão do curso de bacharelado em Direito
do Centro Universitário de Brasília.
Orientador: Prof. Vetuval Martins Vasconcelos
BRASÍLIA
2007
RESUMO
A intervenção do Ministério Público no processo falimentar tem sido objeto de
intensa controvérsia doutrinária. O dissenso decorre da dinâmica adotada pela
legislação anterior, a qual previa tal possibilidade, autorizando a atuação
ministerial, inclusive, na fase pré-falência. A hodierna disciplina falimentar
limita, ao que parece, o papel do Parquet a alguns atos específicos, dos quais se
excetuam aqueles componentes da fase que antecede o decreto de falência. Esse é
o juízo perfilhado por considerável parcela doutrinária e pelo Juízo Falimentar da
Capital Federal. Todavia, há entendimento no sentido de que, ainda que não
legalmente prevista, a intervenção ministerial não restaria defesa, porquanto a
legislação constitucional e processual civil, estabelecendo a legitimidade do
Ministério Público em causas em que exista o interesse público, por seu turno
indisponível, assim o autoriza. Nesse sentido, despontam questionamentos acerca
da efetiva conduta que deve ser assumida pelo órgão ministerial nos pedidos de
decretação de falência, demandas estas submetidas ao Judiciário. Esse dissenso
configura o objeto de estudo do presente trabalho.
Palavras-Chave: Ministério Público. Processo de Falência. Intervenção. Fase
pré-falimentar. (I)legitimidade.
3
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................... Erro! Indicador não definido.
1 O MINISTÉRIO PÚBLICO.................................................................................................8
1.1 Natureza jurídica e conceituação legal .........................................................................8
1.2 Princípios do Ministério Público .................................................................................14
1.3 Causas de legitimação do Ministério Público no processo civil brasileiro ..............16
1.4 O Ministério Público e a defesa dos interesses indisponíveis e do “interesse
público” ...............................................................................................................................19
1.4.1 Indisponibilidade no direito privado.......................................................................23
1.4.2 Indisponibilidade no direito público .......................................................................24
2 A FALÊNCIA ......................................................................................................................26
2.1 Escorço histórico...........................................................................................................26
2.2 Conceito e natureza jurídica........................................................................................29
2.2.1 A natureza publicística do instituto falimentar .......................................................31
2.3 Elementos característicos e pressupostos da falência................................................34
2.4 Noções gerais acerca do processo falimentar .............................................................36
2.4.1 Fase pré-falimentar .................................................................................................36
2.4.2 Procedimento concursal ..........................................................................................38
2.4.3 Encerramento da falência .......................................................................................40
3 A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO FALIMENTAR .........41
3.1 Disciplina antiga ...........................................................................................................41
3.2 A atuação do Ministério Público à luz da nova lei ....................................................43
3.3 Intervenção do Ministério Público na fase pré-falimentar.......................................48
CONCLUSÃO.........................................................................................................................53
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................58
INTRODUÇÃO
Sob a égide do Decreto-Lei 7.661/45, antiga Lei de Falências, os processos
de natureza falimentar que tramitavam no Judiciário brasileiro, todos, tinham a determinação
de conter manifestações do Ministério Público em todas as fases do procedimento, desde o
seu nascedouro até o findar da prestação jurisdicional. Esse estatuto legal, com o passar dos
anos, ficou defasado ante as modernas atuações empresariais – bem como pela alteração do
foco de comerciante (teoria dos atos de comércio) para empresário (teoria da empresa) – o que
mostrou por necessária sua substituição por uma lei mais moderna e condizente com o cenário
comercial pátrio.
Essa nova legislação falimentar, Lei nº. 11.101, de 09 de janeiro de 2005,
que revogou a lei anterior, manteve muitas das idéias contidas no ultrapassado Decreto-Lei,
mas também instituiu algumas alterações de relevo. No que tange às concepções mantidas
pelo legislador, uma que merece destaque e será alvo dessa pesquisa é exatamente o papel que
o Ministério Público deve assumir perante o processo civil de falência, pois essa questão tem
causado uma série de embaraços, os quais têm colocado em risco, inclusive, a efetividade da
tutela jurisdicional pretendida como escopo legal.
O espírito da lei, traduzido pelo elemento anímico do legislador, quanto a
este aspecto posto em debate, era, ao que tudo indica, a mantença da atuação ministerial tal
qual na lei anterior. Ou seja, deveria o Ministério Público atuar no processo falencial desde o
seu termo inicial, tendo palavra logo após a contestação do réu, até o encerrar da atuação
estatal, tomando parte antes e após (para tomar ciência) a sentença de encerramento da
5
falência. Essa vontade do legislador foi consubstanciada nos dizeres do artigo 4º do Projeto de
Lei que foi aprovado e enviado para sanção do Presidente da República, e que assim se
apresentava:
Art. 4º - O representante do Ministério Público intervirá nos processos de
recuperação judicial e de falência.
Parágrafo único. Além das disposições previstas nesta Lei, o representante
do Ministério Público intervirá em toda ação proposta pela massa falida ou
contra esta. 1
Ocorre que, enviado o texto para apreciação da Presidência da República, a
esta aprouve vetar o referido artigo 4º, justamente o dispositivo da Lei que mencionava os
limites de atuação do Parquet. Após a promulgação da Lei – com a manutenção do veto ao
artigo mencionado – a Lei começava a ser aplicada, a gerar seus primeiros efeitos. Um desses
efeitos foi o embate acerca da (i)legitimidade da atuação do Ministério Público na fase préfalencial, a saber, a que antecede a fase do concurso de credores (execução coletiva), tendo
em vista não haver pronunciamento legal a respeito da intervenção naquela fase.
Compondo esse embate, de um lado, alguns sustentam o posicionamento
hermenêutico de que a intervenção do órgão ministerial é despicienda, e, em sentido
contrário, outros defendem que a intervenção é obrigatória e que, nesse tocante, não era
vontade do legislador alterar.
A ilustrar tal dissenso, a Vara de Falências e Concordatas do Distrito
Federal, ao tratar os processos de falência sob os auspícios do antigo Decreto-Lei,
encaminhava-os para promoção ministerial toda vez que houvesse um pedido de falência,
promoção esta ofertada antes da prolação da sentença acerca da bancarrota, sob pena de
1
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Msg/Vep/VEP-0059-05.htm>. Acesso em: 03 ago. 2007.
6
nulidade processual. O que se vislumbra, atualmente, é a prolação desses decretos sem que
haja intervenção do Ministério Público, sob o argumento de que não mais seria obrigatória tal
atuação.
Intenta-se, então, concluir se a intervenção do Ministério Público no
processo de falência, sobejamente na fase pré-falimentar, apresenta-se, ou não, como cabível,
e verificar quais fundamentos emprestarão suporte a essa conclusão.
Para tal propósito, buscar-se-á minudenciar a instituição Ministério Público,
aferindo sua essência jurídica, bem como as razões que autorizam, ou impõem, sua atuação
nas demandas submetidas ao Judiciário. Por conseguinte, perseguir-se-á o objetivo de
estabelecer uma correlação entre o Parquet e o procedimento atinente à falência, de sorte a
comensurar os moldes que delineiam a necessidade da atuação ministerial face ao processo
falimentar.
Resta esclarecer que o propósito almejado neste breve compêndio pautar-seá pelo estudo da doutrina específica, bem como pela análise da legislação correlata.
Nesse sentido, far-se-á uma incursão histórica acerca dos institutos, objetos
do presente trabalho, trazendo seus conteúdos conceituais doutrinariamente estabelecidos,
verificando suas naturezas jurídicas e elementos característicos e descortinando, em última
análise, o pensamento legislativo.
Feitas essas considerações iniciais, necessário informar que, sem a pretensão
de emitir uma resposta absoluta e definitiva, a pesquisa a ser realizada no âmbito doutrinário e
jurisprudencial referente a esse assunto buscará coletar dados e informações sobre a relação
7
estabelecida entre o Ministério Público e o processo falimentar, e a possibilidade da
intervenção ministerial nessa espécie processual.
1 O MINISTÉRIO PÚBLICO
1.1 Natureza jurídica e conceituação legal
Não há um consenso doutrinário acerca das origens do Ministério Público.
Assim, sugere-se que seus primórdios datam do Antigo Egito, da Antigüidade Clássica Esparta -, ou, ainda, da Idade Média.2
Todavia, apesar da existência de tais estudos especulativos, o dissenso vem
a termo e parece superado pela tese de uma corrente majoritária, defensora da origem francesa
da instituição em comento. Nesse sentido, argumenta-se que o órgão ministerial nasceu e se
formou na França.3
Com efeito, no século XIV, a Ordenança de Felipe IV, o Belo, é invocada
como o primeiro regramento jurídico a disciplinar acerca dos procuradores do rei (les gens ou
procureurs du roi). Consoante informa a literatura, o rei impunha, por esse estatuto, que seus
procuradores prestassem juramento idêntico àquele celebrado pelos juízes.4
Ainda segundo a doutrina, a instituição ganhou estrutura adequada com a
Revolução Francesa, no século XVIII, momento em que se conferiram garantias aos membros
do Ministério Público.5
2
SOUZA, Victor Roberto Corrêa de. Ministério Público: aspectos históricos. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4867>. Acesso em: 26 ago. 2007.
3
Disponível em: <http://www.prms.mpf.gov.br/acessibilidade/inst/Institucional.htm>. Acesso em: 26 ago. 2007.
4
SOUZA, Victor Roberto Corrêa de. Ministério Público: aspectos históricos. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4867>. Acesso em: 26 ago. 2007.
5
MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 13.
9
Nesse diapasão, conveniente lembrar que o termo Parquet, adotado no
Brasil e amplamente utilizado como sinônimo para o órgão ministerial, é uma expressão
originária da língua francesa. Afirma-se que, inicialmente, os procuradores do rei assentavamse no assoalho (parquet) da sala de audiências, e, apenas posteriormente, passaram a ter
assento junto dos magistrados, sobre o estrado6.
Também em relação à expressão “Ministério Público”, utilizada
especificamente para denominar o órgão ministerial, não é possível precisar sua origem.
Contudo, há relatos de sua utilização em cartas francesas datadas do século XVIII.
Etimologicamente, tem-se que a palavra Ministério provém do latim manus (mão),
remetendo, possivelmente, aos franceses, procuradores do rei, ou “a mão do rei”. Resta
inconteste, destarte, a influência francesa na história do Ministério Público.7
Quanto ao Brasil, verifica-se um esboço da figura “promotor de justiça” em
1.609, com a criação do Tribunal da Relação da Bahia. Todavia, somente em 1.828, a Lei de
18 de setembro cuidou da designação de promotores para os Tribunais de Relação8.
Posteriormente, em 1832, o Código Penal do Império trouxe dispositivos
definidores da atuação ministerial.9 Seguiram-se a esse estatuto outros diplomas legais a
disciplinar o tema, a saber, códigos e constituições10. O assunto possui, atualmente,
tratamento legislativo específico pertinente ao Parquet, sendo a legislação em voga a seguir
minudenciada.
6
SOUZA, Victor Roberto Corrêa de. Ministério Público: aspectos históricos. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4867>. Acesso em: 26 ago. 2007.
7
Disponível em: <http://www.prms.mpf.gov.br/acessibilidade/inst/Institucional.htm>. Acesso em: 26 ago. 2007.
8
Disponível em: <http://www.prms.mpf.gov.br/acessibilidade/inst/Institucional.htm>. Acesso em: 26 ago. 2007.
9
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 474.
10
MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 17.
10
A Constituição Federal de 1988 enuncia, em seu artigo 127, o conceito legal
de Ministério Público para o Direito brasileiro, e o faz nas seguintes palavras:
Art. 127 - O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do
regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. 11
Evidencia-se, pela análise do texto constitucional, a característica ínsita ao
órgão ministerial, que o justifica e legitima. Desta feita, a consecução da efetividade da
justiça, bem assim a salvaguarda de preceitos constitucionais, apresentam-se como objetivos
buscados pelo Parquet.
O entendimento supramencionado resta corroborado pela doutrina correlata.
Quanto ao tema, assevera Antônio Cláudio da Costa Machado, ao conceituar a instituição:
O Ministério Público não é, nada mais, nada menos do que tudo isso, um
ente eminentemente social, a princípio pré-jurídico, mas que sempre
transcendeu os limites do direito positivo, e por isso se desenvolveu tanto,
sendo hoje parte do próprio Estado para a concretização de uma das suas
grandes aspirações: a realização da justiça. É algo que nasceu
espontaneamente, como fruto de uma determinada necessidade social num
determinado momento histórico, e que se desenvolveu por meio de novas
necessidades em outros momentos, adquirindo o caráter de permanência
durante esse processo de evolução. Na medida em que crescia, mais concreto
e definido se tornou o seu escopo, mais claro se tornou o seu papel social. O
Ministério Público é, portanto, este ser jurídico permanente, posto que
extrapola o indivíduo no tempo e no espaço, e que possui vida e disciplina
próprias, forças e qualidades particulares e uma vocação especial de bem
servir a própria sociedade que o criou.12
11
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro
de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em 07
jul. 2007.
12
MACHADO. Antônio Cláudio da Costa . A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 24-25.
11
No que toca ao desempenho de suas funções, é de se evidenciar que o
Ministério Público não está subordinado a nenhum dos poderes do Estado. Antes, afigura-se
como instituição autônoma.13
Nesse diapasão, tem-se o juízo perfilhado por Guilherme Peña de Moraes,
lecionando que:
Sem embargo da posição do Supremo Tribunal Federal, que firmou
jurisprudência no sentido da ‘integração do Ministério Público na estrutura
do Poder Executivo’, cremos que o Parquet é revestido da natureza jurídica
de órgão independente, que se posta ao lado dos Poderes do Estado, com
elevado status constitucional, a exemplo do Tribunal de Contas.14
Essa conclusão pode ser extraída da própria Carta Constitucional, que
dispensou tratamento legislativo exclusivamente para o Ministério Público, dissociando-o dos
demais Poderes, e o fez mui acertadamente, pois “o Parquet não deve estar atrelado ao
Executivo, cujas ingerências podem comprometer o bom desenvolvimento de suas funções.
Também não é nada lógico que se vincule ao Judiciário, vez que a defesa eficiente dos
interesses indisponíveis da sociedade perante este é exercida e tal vinculação atentaria contra
a preservação de sua independência no que tange à propositura de ações e intervenções em
processos já instaurados.”15
Em análise do conceito posto no artigo mencionado acima, tem-se que o
Ministério Público é uma “instituição permanente”. Isso quer dizer que é um órgão por meio
do qual o Estado manifesta sua soberania, de modo que não há como existir manobras
13
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 1.675.
MORAES, Guilherme Peña de. Direito Constitucional: Teoria do Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006, p. 193.
15
MACHADO. Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 37.
14
12
legislativas no sentido de se reformar a Constituição Federal para extirpá-lo do mundo
jurídico.16
Já por “essencial à função jurisdicional do Estado”, deve-se entender que,
naquelas situações processuais em que o Ministério Público deva atuar, em não o fazendo, a
justiça não se perfaz em sua plenitude, ou ainda, se perfaz de forma viciada, da qual decorre
necessária nulidade processual.17
A obrigatoriedade dessa intervenção estatal, que se materializa por meio da
função jurisdicional, encontrava supedâneo já nas lições de Léon Duguit, restando motivada,
segundo esse autor, pela necessária transformação econômico-social, conforme se infere de
suas palavras:
[...] mas eu devo constatar que a tendência geral é, dentre todos os países
modernos, o aumento considerável da atividade estatal. [...] Existe, nela, um
fato inevitável e indubitável. Este é a conseqüência inelutável da
transformação econômica dos povos e do progresso do qual é conveniente
chamar de civilização.18 [tradução nossa]
Adiante, ressalta a importância dessa função estatal:
Enfim, pela função jurisdicional o Estado resolve uma questão de direito que
lhe é apresentada. Para tanto, ele declara se existe ou não violação de uma
regra de direito, originada ou não de uma situação jurídica objetiva ou
subjetiva, que alcança ou não uma situação de direito objetivo ou de direito
subjetivo [...].19 [tradução nossa]
16
PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre o Ministério Público no processo não-criminal. Rio de Janeiro: Aide, 1998,
p. 15.
17
PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre o Ministério Público no processo não-criminal. Rio de Janeiro: Aide,
1998, p. 17.
18
“[...] mais je dois constater que la tendance générale est, dans tous les pays modernes, l’augmentation
considérable de l’activité étatique. [...]il y a là um fait inévitable et indéniable. Il est la consequence ineluctable
de la transformation économique des peoples et des progrés de ce qu’on est convenu d’appeler la
civilisation[...].” DUGUIT, Léon. Traité de Droit Constitutionnel: La Théorie Genérale de L’État. Paris:
Ancienne Librarie Fontenoing & Cie, 1923, p. 133.
19
“Enfin, par la fonction juridictionnelle, l’État résout une question de droit qui lui est posée. Pour cela, il
déclare s’il y a eu ou non violation d’une règle de droit, naissance ou non d’une situation juridique objective ou
13
Dizer que o Ministério Público atua em defesa da ordem jurídica significa
que tal instituição atua em prol da manutenção da ordem constitucional, entendida esta como
ordenamento jurídico fundamental da qual derivam todas as demais normas. Isso implica que,
quando essa ordem se encontrar, sob qualquer situação, violada, caberá ao Parquet tomar as
medidas cabíveis para que seja restabelecida, sejam estas medidas de caráter processual ou
extraprocessual. Além de velar pela ordem jurídica fundamental, cabe ao Ministério Público,
também, a defesa da correta aplicação da legislação infraconstitucional, seja qual for sua
hierarquia, para que se ultime a defesa da ordem jurídica.20
Sob essa ótica, fácil verificar o papel atribuído ao Ministério Público de
garante do Estado de Direito, porquanto este último, também denominado Estado
Constitucional21, vincula-se à existência de uma Norma Maior, segundo o magistério de
Carlos Ari Sundfeld, já esposado no Capítulo 1 desta obra.
Atuar em defesa do regime democrático significa, em outras palavras, que o
Ministério Público deve atuar em defesa da democracia, enquanto regime de governo, e seus
princípios, dentre os quais a soberania popular, pedra angular que lhe serve de sustentáculo.22
Destarte, sobreleva-se, por atribuição precípua atinente às funções
ministeriais, a garantia de efetivação do Estado Democrático de Direito, corolário
constitucional cujos reflexos buscam alcançar todo o ordenamento jurídico pátrio.
subjective, atteinte ou non à une situation de droit objectif ou de droit subjectife[...].” DUGUIT, Léon. Traité de
Droit Constitutionnel: La Théorie Genérale de L’Etat. Paris: Ancienne Librarie Fontenoing & Cie, 1923, p. 137.
20
PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre o Ministério Público no processo não-criminal. Rio de Janeiro: Aide,
1998, p. 18-19.
21
SANTOS, Marcelo Fausto Figueiredo. Teoria Geral do Estado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 91.
22
PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre o Ministério Público no processo não-criminal. Rio de Janeiro: Aide, 1998,
p. 21.
14
Por fim, ao Ministério Público incumbe a defesa dos interesses sociais e
individuais indisponíveis. É sabido que, dentro das relações jurídicas que se estabelecem pelo
convívio em sociedade, existirão aquelas que envolverão direitos disponíveis e aquelas que
envolverão direitos dos quais não cabe às partes abrirem mão sob qualquer pretexto. Quanto
aos primeiros, sabe-se que sua defesa é feita pelos próprios interessados, enquanto que os
segundos ficam, por vezes, órfãos de iniciativa, sem ter quem os persiga. É daí que surge a
necessidade de tutela desses direitos por parte do Estado.23 Para que não seja comprometida a
imparcialidade do juiz no trato com as partes e nem se deixem desabrigados os direitos dessa
natureza, foi conferida ao Parquet a legitimidade para a tutela de tais interesses.
1.2 Princípios do Ministério Público
A redação constitucional colaciona, em seu artigo 127, § 1°, os princípios
regentes da instituição em exame, quais sejam, unidade, indivisibilidade e independência
funcional.
Tais garantias conferidas ao Parquet mostram-se imperativas, porquanto
permitem ao (re)presentante ministerial a tranqüilidade e a isenção necessárias ao escorreito
exercício de suas atribuições.24
Por ser importante ao estudo da instituição, discorrer-se-á, nas linhas
seguintes, acerca desses postulados, caracterizando-os um a um.
O princípio da unidade informa que os membros do Ministério Público,
reunidos e considerados como um todo, integram um único órgão, gerido por um Procurador-
23
PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre o Ministério Público no processo não-criminal. Rio de Janeiro: AIDE
Editora, 1998, p. 23.
24
MAZZILLI, Hugo Nigro. O acesso à justiça e o Ministério Público. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 165167.
15
Geral. Essa unidade, todavia, ocorre na esfera de cada Ministério Público, não subsistindo nas
relações que se travam entre os seus diversos ramos.25
Por indivisibilidade, entende-se que os membros do Ministério Público não
se vinculam aos processos em que atuam, sendo facultado substituírem-se uns pelos outros.26
Melhor definição desses princípios apresenta Cintra Grinover Dinamarco,
proferindo que:
[...] ser una e indivisível a Instituição significa que todos os seus membros
fazem parte de uma só corporação e podem ser indiferentemente substituídos
um por outro em suas funções, sem que com isso haja alguma alteração
subjetiva nos processos em que oficiam (quem está na relação processual é o
Ministério Público, não a pessoa física de um promotor ou curador).27
A independência (ou autonomia) funcional importa que o Parquet não se
sujeita a ordens estranhas à Instituição, atendo-se, obrigatoriamente, no cumprimento de suas
atribuições, apenas aos preceitos legais.28
Assim, o “órgão do Ministério Público é independente no exercício de suas
funções, não ficando sujeito às ordens de quem quer que seja, somente devendo prestar contas
de seus atos à Constituição, às leis e à sua consciência”.29
Outro princípio concernente ao Parquet consagrou-se pelo paralelo traçado
entre este e a magistratura pátria.
25
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p.
587.
26
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 480.
27
Apud MACHADO. Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil
brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 40.
28
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 481.
29
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 548.
16
Deste modo, o princípio do promotor natural veda a figura do promotor
de exceção, proibindo eventuais designações arbitrárias por parte do (re)presentante máximo
do Ministério Público.
Segundo Alexandre de Moraes,
[...] o plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência do
princípio por maioria de votos, no sentido de proibirem-se designações
casuísticas efetuadas pela chefia da Instituição, que criariam a figura do
promotor de exceção, em incompatibilidade com a Constituição Federal, que
determina que somente o promotor natural é que deve atuar no processo,
pois ele intervém de acordo com seu entendimento pelo zelo do interesse
público, garantia esta destinada a proteger, principalmente, a imparcialidade
da atuação do órgão do Ministério Público, tanto em sua defesa quanto
essencialmente em defesa da sociedade, que verá a Instituição atuando
técnica e juridicamente30.
1.3 Causas de legitimação do Ministério Público no processo civil brasileiro
Superada a explanação da conceituação constitucional concernente ao órgão
estatal “Ministério Público”, tem-se que este desempenha na sociedade brasileira algumas
funções, as quais serão destacadas aqui, sobejamente no tocante à sua atuação no Processo
Civil brasileiro.
Enuncia o art. 129 da Constituição Federal o seguinte:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de
relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo
as medidas necessárias a sua garantia;
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do
patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos
e coletivos;
IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de
intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição;
V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;
30
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 549.
17
VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua
competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na
forma da lei complementar respectiva;
VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei
complementar mencionada no artigo anterior;
VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito
policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações
processuais;
IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis
com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria
jurídica de entidades públicas.
É importante ressaltar, contudo, que este rol descrito na Carta
Constitucional não esgota as possibilidades de atuação do órgão ministerial. Em se tratando
de matéria processual, situações outras há que ensejam a manifestação do Parquet.
Em consonância com a legislação processual brasileira, verifica-se que o
(re)presentante ministerial possui atribuições para atuar, primordialmente, nas áreas cível e
penal. Nessas duas searas, todavia, a intervenção ministerial se dá de forma distinta,
apresentando sua atuação, em cada caso, nuances e características próprias.31
No que diz respeito à esfera criminal, atua o Ministério Público em
observância do interesse da sociedade. Nas demandas de natureza cível, são duas as
possibilidades de atuação do Parquet, podendo o mesmo ingerir-se judicial ou
extrajudicialmente. Nesse sentido, Guilherme Peña de Moraes empresta valiosa lição à
doutrina, cujo conteúdo se transcreve a seguir:
A atuação no interesse da sociedade é delineada pela promoção exclusiva da
ação penal de iniciativa pública, requisição para instauração de inquérito
policial, realização de investigações criminais e controle da atividade
policial.32
E prossegue:
31
MAZZILLI, Hugo Nigro. O acesso à justiça e o Ministério Público. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 3334.
32
MORAES, Guilherme Peña de. Direito Constitucional: Teoria do Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006, p. 199.
18
A atuação extrajudicial é denotada pela promoção da administração pública
dos interesses privados, participação nos Tribunais e Conselhos de Contas e
atendimento ao público.
A atuação judicial é desmembrada em iniciativa e intervenção em juízo.
Com efeito, na atuação judicial com a condição de órgão agente, o
Ministério Público tem a iniciativa em juízo, figurando como demandante
(autor, exeqüente ou requerente). Demais disso, na atuação judicial com a
condição de órgão interveniente, o Ministério Público tem a intervenção em
juízo, por motivo da natureza da lide ou qualidade da parte, funcionando
como fiscal da correta aplicação da regra jurídica ao caso concreto [...].33
Em todo caso, essa atuação processual estará marcada basicamente pelo
interesse público ou se efetivará em razão da qualidade da parte ou, ainda, por determinação
legal.34
A assertiva acima se afigura possível a partir da leitura do Código de
Processo Civil brasileiro, o qual, estabelecendo competências do Ministério Público, não o
autoriza, mas determina sua intervenção em demandas específicas. É o que se infere do
excerto a seguir transcrito:
Art. 82. Compete ao Ministério Público intervir:
I – nas causas em que há interesses de incapazes;
II – nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela,
curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de
última vontade;
III – nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas
demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da
lide ou qualidade da parte.
Destarte, mister reconhecer, à luz da disciplina legal vigente, a
obrigatoriedade de intervenção do (re)presentante ministerial nas causas em que o interesse
público restar caracterizado.
33
MORAES, Guilherme Peña de. Direito Constitucional: Teoria do Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006, p. 199.
34
PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre o Ministério Público no processo não-criminal. Rio de Janeiro: Aide, 1998,
p. 32-33.
19
Cumpre registrar, nesse tocante, que, se a atuação do Ministério Público em
causas que a prescindem não acarreta nulidade do processo35, o entendimento contrário - a
saber, sua ausência quando obrigatória a intervenção ministerial - não se faz possível. Assim,
prevê o estatuto processual civil, em seu artigo 85, que, “quando a lei considerar obrigatória a
intervenção do Ministério Público, a parte promover-lhe-á a intimação sob pena de nulidade
do processo”.36
Vista disso, importante magistério de Alexandre de Moraes dirime
quaisquer dúvidas acerca da importância e legitimidade da atuação ministerial:
Ao erigir o Ministério Público como garantidor e fiscalizador da separação
de poderes e, conseqüentemente, dos mecanismos de controle estatais (CF,
art. 129, II), o legislador constituinte conferiu à Instituição função de
resguardo ao status constitucional do cidadão, armando-o de funções,
garantias e prerrogativas que possibilitassem o exercício daquelas e a defesa
destes.
Incorporou-se em nosso ordenamento jurídico, portanto, a pacífica doutrina
constitucional norte-americana sobre a teoria dos poderes implícitos –
inherent powers -, pela qual no exercício de sua missão constitucional
enumerada, o órgão executivo deveria dispor de todas as funções
necessárias, ainda que implícitas, desde que não limitadas (Myers v. Estados
Unidos – US 272 – 52, 118), consagrando-se, dessa forma, e entre nós
aplicável ao Ministério Público, o reconhecimento de competências
genéricas implícitas que possibilitem o exercício de sua missão
constitucional, apenas sujeitas às proibições e limites estruturais da
Constituição Federal.37
1.4 O Ministério Público e a defesa dos interesses indisponíveis e do “interesse
público”
Conforme ensina a literatura dedicada ao assunto, é conferida ao Estado a
competência para joeirar os interesses coletivos e individuais eleitos como prevalecentes na
35
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. AgRg no Ag 335.137-MG. Ementa: “Não gera nulidade a
intervenção do MP na qualidade de fiscal da lei em processo no qual isto não é obrigatório.” Relator: Ari
Pargendler. Brasília, DF, 18 dez. 2001. DJ de 25.3.02.
36
BRASIL. LEI Nº. 5.869, de 11.1.73. Institui o Código de Processo Civil. DOU de 17.1.73. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5869.htm>. Acesso em: 03 ago. 2007.
37
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 553-554.
20
sociedade. Essa atribuição é levada a efeito, precipuamente, por meio da atividade legislativa,
de sorte a emprestar juridicidade a tais interesses.38
Exsurgindo, pois, os direitos positivados a partir da providência legiferante,
cabe ao agente do Poder Legislativo ponderá-los e valorá-los. A acepção deverá ser realizada
observando-se o critério da necessidade, ou importância, do direito individualmente
considerado, no seio da sociedade. Quanto ao tema, Antônio Cláudio da Costa Machado
informa que:
De acordo com o critério que poderíamos chamar de ‘essencialidade social’,
concebido como o conjunto de valores essenciais do Estado, aos quais todos
os interesses sociais devem estar subordinados, o legislador distingue duas
categorias de interesses juridicizados ou direitos subjetivos. De um lado, os
direitos que devem servir, atender diretamente àqueles valores; direitos que
correspondem imediatamente a esses interesses maiores e que se identificam
com o escopo último da ordem pública, a preservação do próprio Estado. De
outro lado, aqueles direitos periféricos aos valores fundamentais que só
indireta e mediatamente servem à ordem pública, embora também nela
encontrem balizamento.39
Nesse contexto, configuram-se os chamados direitos indisponíveis,
“interesses máximos da sociedade”40, cuja tutela se apresenta como atribuição primeira do
Ministério Público, porquanto imposta pela Constituição da República. Relevante considerar
que a salvaguarda dos direitos em comento vincula-se intrinsecamente à “defesa da ordem
jurídica”, uma vez que é esta última quem os estabelece.
Mister reconhecer, à luz da característica da “indisponibilidade” atribuída a
tais sortes de direitos, que, com a configuração dessa prerrogativa, possibilita-se lhes
38
MACHADO. Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 45.
39
MACHADO. Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 45.
40
MACHADO. Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 46.
21
outorgar, simultaneamente, o interesse público, instituto de natureza eminentemente social e
de difícil conceituação.
Cuida-se, porém, de tarefa por demais controvertida entre os jurisconsultos
a definição do que se apresenta como “interesse público”.41 Assim, face à omissão legislativa
em apontar um conceito norteador da aplicabilidade do instituto em comento, coube à
doutrina devotada ao tema o suprimento de tal ausência.
Apresentam-se, a seguir, algumas expressões literárias nesse sentido:
O interesse público é muitas vezes aqueles mesmos interesses sociais, mas
que o Estado, como organização política e administrativa, transforma em
seus próprios interesses, pois em determinada fase da evolução da sociedade
esses interesses dizem respeito à própria sobrevivência do Estado.
Entretanto, outros valores de caráter ideológico ou político confundem-se
com os próprios interesses do Estado, daí a coloração de públicos a esses
interesses. Outras vezes, são interesses de ordem privada e familiar que se
tornam públicos, tais como a formação, organização e dissolução dos grupos
familiares.42
Noutra acepção, vinculando interesse público e ordem pública, tem-se a
importante preleção de Harold Laswell:
Quando nos referimos ao interesse público temos em mente o sistema
fundamental de participação de valor e as instituições estabelecidas que são
protegidas e completadas pela ordem legal. Uma vez que a ordem legal
protege a si mesma, ela é, naturalmente, parte total da ordem pública.43
Por fim, impõe-se verificar a definição que importa, de fato, ao estudo ora
realizado, a saber, a delimitação das características atinentes ao interesse público que
autorizam a intervenção do Ministério Público nas lides processuais. Sob esse aspecto:
41
CAMPOS, Benedicto de. O Ministério Público e o novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1976, p. 96.
42
CAMPOS, Benedicto de. O Ministério Público e o novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1976, p. 97-98.
43
Apud FRIEDRICH, Carl J.. O Interesse Público. Tradução de: Edilson Alkmin Cunha. Rio de Janeiro: O
Cruzeiro, sem data. Edição original: The Public Interest. Atherton Press, 1962, p. 77.
22
O interesse público que motiva a intervenção do Ministério Público deve ser
entendido como aquele primário, ou seja, aquele que diz respeito ao
conjunto da sociedade, não identificado com o interesse do Estado enquanto
entidade autônoma, que não diversos dos interesses gerais.44
Resta indene de dúvidas, portanto, que o conteúdo definidor do que seja
interesse
público
encontra-se
inexoravelmente
atrelado
à
concepção
havida
por
indisponibilidade de direitos, e, por conseguinte, à idéia de interesse da sociedade. Assim o é
que os direitos de natureza pública ou privada, representando os valores que o corpo social
entende necessários e desde que regulados por normas de ordem pública, não são passíveis de
disposição por parte de seus eventuais titulares, e reclamam, por esse fato, a proteção estatal,
evidenciando o interesse público de que se revestem.
Retomando, pois, as considerações acerca da atividade legislativa, é
necessário considerar que, quando da efetivação desta, o agente (legislador) confere a
determinadas leis o atributo da cogência, da imperatividade genérica, ao revés das demais,
aplicáveis somente na ausência de declaração de vontade dos seus subordinados.45
As normas de caráter imperativo e geral, que disciplinam as regras
imprescindíveis à adequada estruturação da sociedade, são denominadas “leis de ordem
pública”. Nesse sentido, Clóvis Beviláqua assim define tal espécie normativa:
As [leis] de ordem pública, umas vezes, referem-se às bases econômicas ou
políticas da vida social, como as de organização da propriedade, e as
constitucionais; outras vezes, são protetoras do indivíduo no grêmio social,
como as de capacidade [...]. [...] são as que, em um Estado, estabelecem os
princípios cuja manutenção se considera indispensável à organização da
vida social, segundo os preceitos do direito.46 [grifo nosso]
44
FERRAZ, Antônio Augusto Mello de Camargo (Coord.). Ministério Público: Instituição e Processo. São
Paulo: Atlas, 1999, p. 245.
45
MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 45-46.
46
Apud MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil
brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 48.
23
Forçoso concluir, então, que a caracterização do interesse público é
realizada a partir da identificação da regência do direito tutelado por uma lei de ordem
pública.
1.4.1 Indisponibilidade no direito privado
No tocante ao direito privado, assim considerado aquele que prescinde da
participação estatal (mas não a rejeita) nas relações jurídicas que o tem por objeto, verifica-se
a possibilidade de se revesti-lo de interesse público.47
Têm-se, nesse caso, os princípios que, embora de direito privado, atuam na
tutela do bem coletivo e se regem também pelas diretrizes indispensáveis à organização da
sociedade, as quais sói denominarem-se leis de ordem pública. E, por essa razão, apresentamse esses interesses privados como sendo de caráter indisponível.48
Quanto ao alcance das premissas em análise, Clóvis Beviláqua assevera que:
[...] seu campo de ação é o direito privado, porque instituem a normação das
relações entre pessoas singulares; mas sua repercussão na vida coletiva e a
imperatividade do comando estatal que os acompanha imprime-lhes funda
analogia com o direito público.49
Tais espécies jurídicas, constituindo, como observado, interesses individuais
indisponíveis, sujeitam-se à tutela estatal, a qual, consoante ordenado pela legislação
processual pátria, compete ao Parquet velar.
47
MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 47.
48
MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 48.
49
Apud MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil
brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 48.
24
1.4.2 Indisponibilidade no direito público
Tem-se por inquestionável a assertiva de que se reveste de indisponibilidade
o direito público regulado pelas leis de ordem pública. Por conseqüência, evidencia-se a
legitimidade do Estado para garantir a consecução destes.50
Admitida, pois, a titularidade ministerial para velar pelo efetivo
cumprimento das disposições legais atinentes à seara do direito público, é de se elencar os
ramos jurídicos que reclamam tal intervenção.
A Constituição Federal traz em seu bojo dispositivos vários que evidenciam
o atributo da publicidade. Assim, a “proteção do patrimônio público e social, do meio
ambiente” (artigo 129, III, CF) ou a defesa dos “direitos e interesses das populações
indígenas” (artigo 129, V, CF) afiguram-se como mandamentos que versam, de forma
patente, sobre direito público.51
Também no âmbito penal, revela-se indene de dúvidas a legitimidade
ministerial para resguardar o interesse social. Inegável, aqui, a indisponibilidade característica
do direito punitivo estatal. Tendo isso em vista, “mesmo na qualidade de órgão acusador, não
perde o Ministério Público a sua condição de custos legis, ou seja, a condição de interessado
na realização da justiça, o que muitas vezes significa admitir que a punição não é devida”.52
Outros ramos jurídicos revestem-se de caráter indisponível, bem assim o
Direito Eleitoral. Nessa seara, o órgão ministerial exerce, conforme lição de Octacílio Paula
50
MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 45.
51
MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 53.
52
MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 57.
25
Silva, “papel fiscalizador no processo eleitoral (sentido lato e não jurídico), além de deter o
direito de ação criminal”.53
Ademais disso, o Direito Processual Civil comporta dispositivos que
encerram os direitos indisponíveis autorizadores da intervenção do Parquet. Nesse sentido, os
conflitos de competência (artigo 116, parágrafo único) e a declaração incidente de
inconstitucionalidade (artigo 480) exemplificam a assertiva supra e demonstram que a
presença ministerial se justifica pela necessidade de garantia da eficácia social dos decretos
emitidos pelo Poder Judiciário.54
53
Apud MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil
brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 59.
54
MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro.
2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 61.
2 A FALÊNCIA
2.1 Escorço histórico
O instituto da falência possui intrínseca correlação com a dinâmica
conceitual de obrigação, considerada esta na seara do direito.55
Assim, entre os primeiros grupos humanos socialmente organizados, a
aquisição de dívidas era sancionada com a privação de direitos basilares, tais quais a liberdade
e a vida.56
Nesses moldes, o direito romano mais primitivo possibilitava ao credor
transformar o autor da dívida cujo pagamento lhe era devido em seu serviçal por determinado
período. Findo esse lapso temporal e não solvido o débito, era permitido ao credor vender o
devedor no estrangeiro, ou mesmo matá-lo.57
No ano de 428 a.C, houve uma alteração desse quadro, ocasião em que,
promulgada a Lex Poetelia Papiria, a execução patrimonial foi inserida no ordenamento
jurídico romano. Dessa forma, o devedor era desapossado de seus bens por meio de
determinação exarada pelo pretor.58
A Lex Julia Bonorum (737 a.C.), inovando com a criação da cessio
bonorum, facultava ao devedor a cessão de seus bens ao credor. Esse estatuto é tido, por parte
55
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 3.
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 3.
57
MAGALHÃES, José Hamilton de. Direito falimentar brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 1-3.
58
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 3.
56
27
da literatura, como o marco original da falência. Corroborando tal assertiva, tem-se o
magistério de Waldemar Ferreira:
Não poucos romanistas divisam na Lex Julia o assento do moderno Direito
Falimentar, por ter editado os dois princípios fundamentais – o direito dos
credores de disporem de todos os bens do devedor e o da par condictio
creditorum.59
Na seqüência histórico-cronológica, percebe-se, na Idade Média, a assunção
da prestação jurisdicional por parte do Estado. Assim o é que se verifica datarem da Idade
Média os primeiros esboços do Direito Falimentar, quando o Estado assume a posição de
responsável pela tutela jurisdicional, e, especificamente, das ações de execução. É o que se
depreende da lição de Manoel Justino Bezerra Filho:
A par da evolução no sentido de a execução passar a incidir exclusivamente
sobre o patrimônio do devedor, ocorre também o deslocamento da iniciativa
da execução, que, em um momento histórico regresso, era do próprio credor,
para, na seqüência, passar às mãos do Estado, de tal forma que só pode ser
efetuada sob a tutela estatal, proibida qualquer execução de mão própria.
Aquele anterior concursum creditorum, dirigido pelos próprios credores,
passa a ser feito sob a rígida disciplina judiciária do Estado; já na Idade
Média, a partir do século XIII, está em formação um direito comercial
informal e cosmopolita, decorrente dos usos e costumes comerciais das
corporações de ofício. Estabelecem-se aí os primeiros delineamentos do
direito falimentar, estendendo-se a falência tanto ao devedor comercial
quanto ao devedor civil, sendo o falido coberto de infâmia, tido como
fraudador, réprobo social, sujeito a severas medidas penais, além da perda
total de seu patrimônio.60
Sob essa perspectiva, resta patente que o processo de falência tem por
precursor o processo civil coletivo de execução. Ainda, evidencia-se aqui uma disciplina
atinente ao processo de execução, com o estabelecimento de regras acerca do concurso
creditório. Importante destacar, nessa conjuntura, a obrigatoriedade de os credores se
habilitarem em juízo a fim de participarem do processo em comento.
59
Apud ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 5-6.
60
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências: comentada. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, p. 32-33.
28
Nesse contexto, surge, em face da expansão do comércio nas cidades
italianas (em especial, o marítimo), a Falência, originária do sistema de concurso de credores.
O falido é tido, nessa época, como um criminoso, e a ele eram impostas sanções diversas,
dentre as quais, a prisão ou, até mesmo, a mutilação.61
Afigura-se esclarecida, por essa ótica, a razão da utilização do termo
falência, que, em sua concepção etimológica, provém do latim fallere (enganar, falsear).
Difundindo-se por outros países, a legislação italiana teve grande aceitação
também na França, nas Ordenações de 1.673, bem como no Código Napoleônico (Código
Comercial francês), de 1.807. Cumpre ressaltar que, nesse último regramento, impunham-se
severas restrições ao falido.62
A evolução legislativa conferiu à falência um caráter econômico-social,
sendo que a acepção realizada em relação aos devedores (honestos ou desonestos) possibilitou
que se aprimorassem elementos falenciais, como a moratória e a concordata.63
No Brasil, o tema se viu primeiramente codificado em 1.595, tendo sua lei
disciplinadora exercido especial influência sobre as Ordenações Filipinas, estatuto este
promulgado em 1.603.64
Por meio do Alvará de 13 de dezembro, outorgado pelo Marquês de Pombal
em 1.756, o processo de falência recebeu nova disciplina legal. Posteriormente, com a
proclamação da independência do Brasil, em 07 de setembro de 1.822, e após uma lacuna
61
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 4.
MAGALHÃES, José Hamilton de. Direito falimentar brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 5.
63
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 5.
64
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 5.
62
29
legislativa, período em que permaneceu a vigência da legislação portuguesa, o assunto foi
especificamente tratado no Código Comercial Brasileiro.65
Em 1.850, o instituto da falência foi regulado pelo estatuto supracitado em
seus artigos 797 a 913, Parte Terceira, denominada “Das Quebras”.66 Seguiram-se, a esse
regramento, alterações realizadas por Decretos posteriores, quando, em 1.945, foi promulgada
a Lei de Falências, sob a égide do Decreto-lei 7.661.
Tal legislação vigeu até o ano de 2.005, quando foi substituída pela Lei
11.101, ocorrendo a ab-rogação do estatuto anterior.
2.2 Conceito e natureza jurídica
Consoante anteriormente mencionado, na Idade Média a falência era
considerada um delito, passível, portanto, da aplicação de sanções. Destarte, por sua análise
etimológica, tem-se que a palavra falência é oriunda do verbo latino fallere, o qual,
trasladando-se para o Português, significa falsear, faltar com a palavra, enganar67.
No que se refere ao vocabulário empregado no direito falimentar, e a título
de curiosidade, observa-se que, em Portugal utilizava-se corriqueiramente a palavra quebra
como sinônimo de falência; na França, o termo bancarrota surgiu como designação para a
falência criminosa. Nesse diapasão, a expressão francesa banque en route (banco quebrado)
se justifica em face do antigo costume relativo aos credores, os quais quebravam o banco em
que o falido exibia suas mercadorias.68
Quanto ao seu conceito, deve-se considerar a falência sob duas óticas.
65
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 6.
TZIRULNIK, Luiz. Direito falimentar. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 39.
67
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 4.
68
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 12-13.
66
30
Em sua concepção econômica, revela-se a questão patrimonial. J. C.
Sampaio de Lacerda defende que o estado de falência é, se assim considerado, “a condição
daquele que, havendo recebido uma prestação a crédito, não tenha à disposição, para a
execução
da
contraprestação,
um
valor
suficiente,
realizável
no
momento
da
contraprestação”.69
Em sua acepção jurídica, tem-se que a falência é um processo de execução
coletiva contra o devedor insolvente. No magistério de Amador Paes de Almeida:
Processo de execução coletiva por congregar todos os credores, por força da
vis attractiva do juízo falimentar. Verdadeiro litisconsórcio necessário, ou
seja, elo que reúne diversos litigantes em um só processo, ligados por
comunhão de interesses [...].70
O mesmo autor define o instituto:
A falência é uma situação jurídica que decorre da insolvência do
empresário, revelada essa pela impontualidade no pagamento de obrigação
líquida, ou por atos inequívocos que demonstrem manifesto desequilíbrio
econômico, patenteando situação financeira ruinosa.71
Waldo Fazzio Júnior leciona que a “falência é o reconhecimento jurídico da
inviabilidade da empresa. Representa o estágio final de sua existência”.72
Quanto à natureza jurídica da falência, observa-se a dificuldade de defini-la
e delimitá-la a um único ramo do Direito, porquanto exsurgem do instituto regras de
subespécies jurídicas variadas.73
69
Apud ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 17.
70
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 17.
71
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 43.
72
FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova lei de falência e recuperação de empresas. São Paulo: Atlas, 2005, p. 187.
73
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 14.
31
Decorre, daí, um dissenso doutrinário acerca de seu posicionamento no
mundo jurídico. Amador Paes de Almeida, ao tratar do assunto, assevera que:
Essa diversidade de elementos tem estabelecido controvérsia doutrinária
acerca da sua natureza jurídica, situando-a alguns como um instituto de
direito objetivo (assim considerado o conjunto de regras jurídicas que regem
as relações entre os homens), outros no âmbito do direito processual,
considerando-a, respeitável parcela, um procedimento administrativo.74
Abarcando diretrizes de variados ramos de direito material, e constituindo,
ainda, um processo de execução, parece mais acertada a tese que vislumbra a falência como
um instituto ímpar, com características e princípios peculiares, configurando, pois, uma
espécie própria: o Direito Falimentar.
2.2.1 A natureza publicística do instituto falimentar
Em que pese a problemática atinente à exata colocação do instituto
falencial no universo jurídico, não há, contudo, questionamentos a serem feitos no tocante ao
seu caráter publicista.75
É sabido que a falência surgiu como remédio jurídico de legitimação estatal
para a proteção do crédito. Deve-se ressaltar, todavia, que a relação creditícia que se objetiva
tutelar não se consigna à esfera do direito privado.76
Assim, o crédito, ainda que primariamente regido pelo direito aplicável aos
interesses havidos das relações travadas entre particulares, possui conotação eminentemente
pública, em face de seus possíveis reflexos na ordem social, especialmente no âmbito
econômico.
74
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 18.
75
ÁLVARES, Walter T.. Direito Falimentar. vol. I. 2. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1968, p. 13.
76
ÁLVARES, Walter T.. Direito Falimentar. vol. I. 2. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1968, p. 7.
32
Em palavras mais precisas, Walter T. Álvares ensina que:
O instituto da falência visa substancialmente à proteção ao crédito público e,
por conseqüência, ao amparo ao crédito privado. Não é um instituto que vise
a equacionar basicamente os interesses das partes, isto é, credores e
devedores, mas esses interesses são protegidos, ao ser resolvido o interesse
do crédito público em não sofrer perturbação pela ocorrência de alguma
operação anormal do crédito privado. Neste particular aproxima-se do
Direito Tributário, sabido que este visa ao interesse público, e basicamente
do Estado no exercício do direito. A diferença está em que o instituto de
falência harmoniosamente sincroniza as duas ordens de interesse.
Daí decorre que o instituto falimentar é, basicamente:
a) preventivo e subsidiariamente repressivo, coibindo os resultados anômalos
de operações de crédito;
b) eminentemente publicístico.77
Ademais, informando acerca da importância devida ao tema, imposta pela
condição do publicismo, o autor complementa:
[...] Neste caso, este crédito que ampara e envolve as atividades comerciais
exerce efetivamente uma função, a função de tornar possível a existência da
própria atividade comercial. Esta função, pela sua ordem de grandeza,
certamente supera e ultrapassa os quadros dos interesses particulares, ao
adquirir a tonalidade de uma função pública. Neste ponto, tendo o crédito
esta função pública, como envoltório que torna possível a atividade do
crédito privado, já a tutela do Estado é indispensável, para que seja
disciplinada a matéria pertinente e oferecida a necessária proteção a um
instrumento de tanta importância.78
Assim entendido o objeto alvo de proteção no processo falimentar, tem-se
que, reflexamente, a falência apresenta-se com a mesma característica publicista.
José da Silva Pacheco, considerando o instituto falencial sob seus matizes
econômico ou comercial, explicou a dinâmica do fenômeno que empresta publicismo a essa
espécie jurídica a partir de uma outra perspectiva:
77
78
ÁLVARES, Walter T.. Direito Falimentar. vol. I. 2. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1968, p. 13.
ÁLVARES, Walter T.. Direito Falimentar. vol. I. 2. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1968, p. 25.
33
A progressiva publicização da atividade econômico-comercial e,
especialmente, da falência, matizando o direito que a regula do caráter
publicístico, deve-se: a) ao interesse público de que sempre se revestiu a
mercancia e as operações mercantis, bem como o direito dos comerciantes e
dos atos de comércio, praticados de modo habitual; o que, aliás, era admitido
até mesmo nos velhos tempos do mercantilismo, contratualismo,
individualismo ou liberalismo econômico; b) à conotação de direito
econômico que, por si, implica alto teor publicístico; c) à noção-econômica
de empresa e à atividade empresarial; d) ao tônus processual do direito
falencial. Por isso, como salienta Renzo Provinciali, “no direito concursal
ressalta, sempre, a natureza de direito público, tal qual ocorre no direito
processual, em que se insere e de que faz parte, devendo-se entendê-lo como
primacialmente voltado à tutela de um interesse público”.79
Aqui, cumpre salientar, o autor traz à baila o elemento “interesse público”, o
qual, conforme se demonstrou anteriormente, desponta como caracterizador da falência.
Em outra acepção, se entendida a natureza processualística do instituto em
exame, também sob essa ótica sobreleva-se sua qualidade publicística. É o que se extrai das
palavras do mesmo José da Silva Pacheco, ao elencar as características da falência, a saber: instituto de direito processual; - procedimento concursal; - procedimento executivo, tendo
finalidade satisfativa dos credores; e – procedimento contencioso. Finaliza por asseverar que a
falência se reveste, “desse modo, do caráter publicístico de todo instituto processual”.80
Impõe-se reconhecer, por fim, que a norma regulamentadora da falência
apresenta-se, a toda evidência, como sendo de ordem pública, uma vez que assim se
consideram “as normas cujos interesses do Estado e da coletividade predominam em face dos
interesses individuais”.81
79
PACHECO, José da Silva. Tratado das execuções: falência e concordata. vol. I. São Paulo: Saraiva, 1977, p.
25-26.
80
PACHECO, José da Silva. Tratado das execuções: falência e concordata. vol. I. São Paulo: Saraiva, 1977, p.
32.
81
SILVA, Otacílio Paula. Ministério Público: estudo pragmático da instituição: legislação, doutrina,
jurisprudência. São Paulo: Sugestões Literárias, 1981, p. 25.
34
2.3 Elementos característicos e pressupostos da falência
O estado de falência caracteriza-se pela configuração de determinados
elementos atinentes ao comportamento da empresa. A doutrina jurídica falimentar aponta, em
regra, como caracterizadores da falência, a impontualidade no cumprimento das obrigações
líquidas e certas, a insolvência e a prática de atos de falência.82
A rigor, observa-se que a insolvência se apresenta como a mais forte
evidência de uma situação falimentar, porquanto os demais elementos revelam-se, de certa
forma, acessórios ou subsidiários em face daquela.83
Perseguindo tal raciocínio, a impontualidade se revela como sendo o efeito
provocado pelo estado de insolvência, não se prestando como elemento caracterizador da
falência. Esse é o entendimento perfilhado por Amador Paes de Almeida, o qual se transcreve
a seguir:
Assim, a impontualidade seria a manifestação por excelência da
insolvabilidade e não causa determinante, por si só, da quebra.84
O autor expõe, ainda, o conteúdo conceitual de insolvência, e arremata:
É a condição de quem não pode saldar suas dívidas. Diz-se do devedor que
possui um passivo sensivelmente maior que o ativo. Por outras palavras,
significa que a pessoa (física ou jurídica) deve em proporção maior do que
pode pagar, isto é, tem compromissos superiores aos seus rendimentos ou ao
seu patrimônio [...].
[...] O que caracteriza a falência é, em última análise, a insolvência, revelada
essa pela impontualidade ou por outros atos que a denunciem [...].85
82
TOMAZETTE, Marlon. Direito Comercial. Brasília: Fortium, 2005, p. 140.
BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 174-175.
84
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 23.
83
35
Consoante se depreende da assertiva acima posta, há, a par da
impontualidade, elementos outros que denotam o estado de insolvência. Inserem-se nessa
acepção os denominados atos de falência.
Tais atos se consubstanciam a partir de determinadas práticas levadas a
efeito pelo empresário devedor, práticas estas que se acham definidas no artigo 94, incisos II e
III, da Lei nº. 11.101/2005 (Lei de Falências).86 O primeiro comportamento indicador da
insolvência citado pela Lei é a execução frustrada, que ocorre quando, sendo o devedor citado
em um processo executivo, não efetua o pagamento ou, se instado a indicar bens passíveis de
penhora, assim não procede.87
Outros atos de falência se materializam por meio da liquidação precipitada
(alienação do patrimônio empresarial de forma precipitada) e do uso de meios ruinosos ou
fraudulentos para pagar.88
Tem-se, afinal, o abandono de estabelecimento e a ocultação ou fuga do
devedor, atos estes que autorizam o processo de falência.89
Ao lado da insolvência, apresentam-se por pressupostos do estado de
falência a condição de empresário (artigo 1º) e a decretação judicial.
85
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 23.
86
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 34.
87
Artigo 94, II, da Lei nº. 11.101/2005, cuja incidência foi derrogada pela Lei nº. 11.382/2006 que alterou a
redação do artigo 652, do Código de Processo Civil.
88
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 37-38.
89
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 42.
36
Nesse sentido, determina a legislação em voga que somente se sujeitam ao
processo falimentar os devedores empresários, podendo ser os mesmos pessoas físicas ou
jurídicas, regulares ou irregulares, excluindo-se aqueles que tenham cessado a atividade
comercial há mais de 2 (dois) anos (artigo 96, inciso VIII).90
Por fim, e também como pressuposto da falência, sua decretação judicial
afigura-se como imprescindível para a configuração do instituto.
2.4 Noções gerais acerca do processo falimentar
2.4.1 Fase pré-falimentar
Ao período compreendido entre o pedido de decretação da falência,
deduzido em juízo, e a prolação de sentença nesse sentido, usa-se denominar, para efeitos
doutrinários, fase pré-falimentar.91
Assim, inicia-se o processo falimentar, de fato, a partir do ajuizamento do
pedido de decretação de falência. Têm-se, por legitimados a demandar tal procedimento
judicial e ajuizar o pedido supramencionado, os credores em geral, empresários ou não.
Também ao devedor é facultado requerer sua falência, assim como o é aos sócios e acionistas
em relação à sociedade de que participam. A lei confere, ainda, legitimidade ativa, no caso de
espólio, ao cônjuge sobrevivente, aos herdeiros e ao inventariante.92
90
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 48.
91
BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 187.
92
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências: comentada. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, p. 245.
37
No que respeita à competência do juízo falimentar, a disciplina legal confere
à circunscrição em que se situe o principal estabelecimento do devedor essa prerrogativa.93
Quanto a esse aspecto, relevante mencionar que o juízo da falência atrai os processos
eventualmente existentes contra o devedor. Essa regra, prevista na legislação em voga,
prevalece às demais regras de competência, salvo algumas exceções, a saber, as relativas a
ações não falimentares, reclamações trabalhistas, cobrança de créditos tributários, ações em
que forem parte a União, suas autarquias ou empresas públicas, ações anteriores à decretação
da falência que demandem quantia ilíquida e ações de despejo relativas a imóveis.94
Após o recebimento da inicial, o juiz ordenará a citação do devedor para que
apresente a contestação, cabendo a este último, ao tomar conhecimento da ação, as
providências a seguir destacadas.95
A primeira hipótese refere-se à faculdade conferida ao devedor de efetuar o
depósito elisivo – exceto quando se tratar de ato de falência – considerando o valor do débito
corrigido com juros e honorários advocatícios.96 Há a possibilidade de apresentar contestação,
efetuado ou não o depósito, alegando nesta peça o que lhe aprouver.97 É-lhe facultado, ainda,
pleitear a recuperação judicial.
Decorrido o prazo para apresentação da defesa, compete ao juiz resolver,
fazendo-o por meio de sentença, acerca da decretação da falência. Consubstanciado tal
93
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências: comentada. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, p. 53.
94
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências: comentada. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, p. 192-193.
95
OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Comentários à nova lei de falências. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 408.
96
Súmula n° 29, STJ: “No pagamento em juízo para elidir falência, são devidos correção monetária, juros e
honorários
de
advogado.”
Disponível
em:
<http://www.stj.gov.br/webstj/Processo/Jurisp/Download/verbetes_asc.txt>. Acesso em: 16 ago. 2007.
97
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 95.
38
expediente, põe-se termo à fase pré-falimentar e se traz à lume o processo falimentar
propriamente dito.98
2.4.2 Procedimento concursal
A prolação da sentença de decretação da falência dá ensejo ao procedimento
concursal. Destarte, os bens e credores envolvidos sujeitam-se, a partir deste decreto, ao juízo
falimentar.99
Impõe considerar, quanto ao expediente da decisão que decreta a falência,
que dela decorrem três efeitos.
Tem-se, por primeiro efeito advindo da decretação da falência, o
vencimento antecipado das dívidas do falido. Outro efeito é a suspensão das eventuais ações e
execuções em curso, visto que o saneamento das dívidas do falido deverá se realizar no juízo
falimentar. Excetuam-se a essa regra as reclamações trabalhistas e as ações que demandem
quantia ilíquida. Por último efeito, observa-se a suspensão da prescrição relativa às obrigações
do falido até que se encerre o processo falimentar.100
No que diz respeito aos efeitos incidentes sobre a pessoa do falido, o decreto
de falência impõe-lhe a privação da administração de seus bens101, a proibição do exercício de
atividade empresarial e a perda da capacidade processual.102
98
OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Comentários à nova lei de falências. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 411.
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 106.
100
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 136-141.
101
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências: comentada. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2005, p. 252.
102
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências: comentada. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2005, p. 260.
99
39
Na fase concursal, o juiz ordena ao falido que apresente a relação nominal
dos credores, sendo que, depois de publicada a referida listagem, poderão os credores que dela
não constarem habilitar seus créditos. Cabe ao administrador judicial a apreciação de tais
habilitações, bem como a elaboração de nova relação de credores, e, a partir desta lista, a
confecção do quadro geral de credores.103
É realizada, pois, a arrecadação dos bens que irão compor a massa falida,
por parte do administrador judicial, o qual se imite na posse dos referidos bens e elabora o
inventário (relação de bens arrecadados).104
Para a satisfação dos credores, deve o administrador judicial proceder à
liquidação dos bens. Para tanto, é feita a realização do ativo, alienando-se os bens
compreendidos na massa falida. Em seguida, procede-se ao pagamento do passivo, conforme
a ordem legalmente estabelecida.105
Do quadro geral de credores constará a classificação dos créditos. Nesse
sentido, impende ressaltar que alguns créditos, ainda que não figurando do quadro
retromencionado, precedem aos demais. As exceções comportam os pedidos de restituição e
os créditos trabalhistas, estes relativos a serviços prestados após a decretação da falência.106
103
OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Comentários à nova lei de falências. São Paulo: IOB
150.
104
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências: comentada.
dos Tribunais, 2005, p. 270-273.
105
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 276.
106
OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Comentários à nova lei de falências. São Paulo: IOB
545.
Thomson, 2005, p.
São Paulo: Revista
acordo com a lei
Thomson, 2005, p.
40
Devem-se honrar, a seguir, os créditos extraconcursais e, após, os
concursais, respeitando-se a ordem estabelecida pela legislação falimentar.107
Caso, após o pagamento das dívidas na massa falida, ainda restem bens,
estes retornarão ao patrimônio dos sócios, na exata proporção das participações sociais.108
2.4.3 Encerramento da falência
Realizado o último pagamento, cabe ao administrador judicial a
apresentação da prestação de contas ao juiz, e, uma vez aprovadas tais contas, apresentar um
relatório final, o qual emprestará suporte e subsidiará a sentença de encerramento da falência,
que põe termo final ao processo.109
107
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 276-278.
108
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências: comentada. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2005, p. 333-334.
109
ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei
11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 282-283.
3 A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO
FALIMENTAR
3.1 Disciplina antiga
De muito, a legislação pátria que esquadrinhava os procedimentos de quebra
dos antigos comerciantes fez previsão da atuação de um curador de massas falidas.
Essa intervenção do (re)presentante do Ministério Público se viu pela
primeira vez nas letras do ultrapassado Decreto nº. 1.597, de 1º. de maio de 1.855, ainda da
época do Império. Em seu artigo 68, o Decreto sob comento trazia a disposição de que era
permitido ao promotor público, quando entendesse ser o caso, intervir, requerer e promover
perante o juiz comercial todos os atos do processo de falência, depois da abertura até a
decretação da quebra, ainda que o processo fosse abandonado por transação ou pobreza da
massa falida.110
Passando-se à fase da República, ainda sob a égide da legislação falimentar
contida no Código Comercial, o governo provisório publicou, em 1.890, o Decreto nº. 139, o
qual trazia em seu corpo a seguinte redação:
Fica criado na Capital Federal o lugar privativo de curador fiscal de massas
falidas, o qual intervirá em todos os termos e atos do processo de falência até
a liquidação final, sem prejuízo das atuais atribuições dos administradores,
que continuam em vigor, e perceberá, além da comissão do artigo 859 do
Código do Comércio, os mesmos emolumentos tacados para os curadores de
órfãos, nos artigos 79 e 81 do Decreto nº. 5.737, de 2 de setembro de 1.874,
que forem aplicáveis.111
110
VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de Falências. 4 ed. vol. 1. Rio de Janeiro: Revista
Forense, 1999, p. 435.
111
VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de Falências. 4 ed. vol. 1. Rio de Janeiro: Revista
Forense, 1999, p. 436.
42
Em meados do século XX, foi publicado o Decreto-Lei nº. 7.661, de 21 de
junho de 1.945, o qual trazia em seu artigo 210 a idéia de que caberia ao membro do Parquet
intervir em qualquer fase do processo, nos seguintes termos:
O representante do Ministério Público, além das atribuições expressas na
presente Lei, será ouvido em toda ação proposta pela massa ou contra esta.
Caber-lhe-á o dever, em qualquer fase do processo, de requerer o que for
necessário aos interesses da justiça, tendo o direito, em qualquer tempo, de
examinar todos os livros, papéis e atos relativos à falência ou à
concordata.112
A experiência com este Decreto-Lei mostrou que o entendimento firmado
no dia-a-dia dos processos de falência em curso nos Tribunais foi o de que o (re)presentante
ministerial deveria obrigatoriamente intervir, desde a dedução do pedido do credor em juízo
até o encerramento da falência, sob pena de nulidade.113
Esse estatuto, alicerçado no dispositivo mencionado acima, atribuía ao
Parquet a possibilidade de exercer ampla atividade fiscalizadora no processo falimentar.
Desta feita, atuava o Ministério Público ora como órgão interveniente, ora como órgão agente
– ao promover a ação penal falimentar.
A atividade de custos legis permitia à instituição intervir em todas as fases
do processo de falência, obrigando-se-lhe a oitiva antes de qualquer incidente de considerável
importância. Ademais disso, fazia-se imperiosa essa intervenção também nas causas em que a
massa falida fosse autora ou ré, porquanto o contrário implicaria necessária nulidade do
processo.114
112
BRASIL. DECRETO-LEI Nº. 7.661, de 21.6.45. Lei de Falências. DOU de 31.7.45. Diponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del7661.htm>. Acesso em: 03 ago. 2007
113
BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 211.
114
TZIRULNIK, Luiz. Direito falimentar. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 283.
43
3.2 A atuação do Ministério Público à luz da nova lei
Quando da votação do Projeto de Lei do Senado nº. 4.376/93 no Congresso
Nacional, inclusive sob a apreciação da Comissão de Constituição e Justiça de ambas as
casas, nada fora extirpado do texto do projeto naquilo que se referia ao Ministério Público.
Porém, para a surpresa de todos quantos esperavam pela promulgação da
novel Lei de Falências, houve veto presidencial ao artigo 4º, que descrevia a atuação do
Parquet, além de alguns outros artigos. A recusa se apresentou nos seguintes moldes:
O dispositivo reproduz a atual Lei de Falências – Decreto-Lei no 7.661, de
21 de junho de 1945, que obriga a intervenção do parquet não apenas no
processo falimentar, mas também em todas as ações que envolvam a massa
falida, ainda que irrelevantes, e.g. execuções fiscais, ações de cobrança,
mesmo as de pequeno valor, reclamatórias trabalhistas etc., sobrecarregando
a instituição e reduzindo sua importância institucional.
Importante ressaltar que no autógrafo da nova Lei de Falências enviado ao
Presidente da República são previstas hipóteses, absolutamente razoáveis, de
intervenção obrigatória do Ministério Público, além daquelas de natureza
penal.115
Motivo de grande indignação para a comunidade jurídica naquele momento
foram os alicerces lançados pela Presidência da República para justificar tal veto,
considerados, então, frágeis e inconsistentes.
Apesar das severas críticas que retumbavam nas discussões despontadas por
essa Lei, o Congresso manteve o veto que extirpou do corpo do texto a previsão da atuação
ministerial.
Como as atribuições do Ministério Público são resguardadas pela
Constituição Federal, era de se esperar que nada fosse alterado no tocante à sua atuação no
115
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Msg/Vep/VEP-0059-05.htm>. Acesso em: 03 ago. 2007.
44
processo falimentar. A prática revelou exatamente o contrário. Os magistrados
superintendentes desses processos determinavam a citação do demandado, como de praxe, e,
após o escoamento do prazo para manifestação, prolatavam suas decisões a respeito do tema
sem antes abrir vista desses autos para as promotorias de falências, ultimando esta
providência somente após a prolação da sentença, a exemplo dos processos em curso do
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.
Tem-se, então, a partir da interpretação literal e restritiva da legislação em
voga, que o Ministério Público restou alijado do processo de falência no que tange à fase préfalencial, aquela em que o credor deduz em juízo sua pretensão, argüindo a quebra do
devedor, e que este é chamado a se defender (elidir ou simplesmente contestar a falência).
À luz desse raciocínio, e atendo-se tão-somente ao mandamento legal,
importante indicar as oportunidades em que o Parquet é chamado a manifestar-se. Assim,
considerando-se a ordem estabelecida na lei, a intimação ministerial deverá se dar:
- artigo 12, caput e parágrafo único - nas impugnações de crédito,
manifestando-se após o devedor, o Comitê e o administrador judicial;116
- artigo 14 – antes da homologação da relação dos credores.117
No que se refere à confecção e à publicação da relação de credores, verificase a possibilidade de o Ministério Público proceder à impugnação daquela, bem como recorrer
de decisão judicial exarada na impugnação de crédito, faculdades estas previstas no artigo 19.
116
BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário
e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007.
117
BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário
e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007.
45
- artigo 22, § 2° - para comparecer à audiência especial designada pelo juízo
falimentar, quando qualquer credor, devedor ou seus administradores forem intimados a
prestar declarações;118
- artigo 22, § 3° - quando o administrador judicial pleitear autorização
judicial para transigir sobre obrigações e direitos da massa falida e conceder abatimento de
dívidas;119
Ainda, consoante se infere do comando contido no § 2° do artigo 30, é-lhe
imposto o dever de requerer, quando cabível, a substituição do administrador judicial ou de
membro do Comitê.120
- artigo 36 e seguintes – quando convocada a assembléia-geral de credores,
para avaliação da necessidade de sua presença;121
- artigo 64, parágrafo único – antes da decisão quanto à destituição do
administrador, em face da possibilidade de cometimento de ilícito falimentar;122
- artigo 66 – antes de autorizada a alienação de bens ou direitos integrantes
do ativo do devedor;123
118
BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário
e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007.
119
BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário
e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007.
120
BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário
e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007.
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BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário
e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007.
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e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007.
46
- artigo 87, § 1° - antes da decisão acerca do pedido de restituição;124
- artigo 99, XIII – antes da sentença que decretar a falência requerida pelo
próprio devedor;125
- artigo 110, caput – para acompanhar, se julgar necessário, a arrecadação
dos bens da sociedade falida, a cargo do administrador judicial;126
- artigo 142, caput, artigos 144 e 145, § 3° - para manifestar-se sobre a
modalidade de realização do ativo da massa falida;127
Na seqüência da leitura legislativa, o artigo 154 determina a presença
ministerial e, por conseguinte, sua manifestação na ocasião da prestação de contas
apresentada pelo administrador judicial.128
- e, artigos 156 e 159 – após a apresentação do relatório final da falência
pelo administrador judicial e antes do seu encerramento por sentença, e no caso de ser
requerida a declaração de extinção das obrigações pelo falido.129
123
BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário
e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007.
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e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007.
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e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007.
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BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário
e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007.
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e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007.
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BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário
e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007.
47
No aspecto da intervenção ministerial sob o enfoque da atual legislação,
Alberto Camiña Moreira empresta à doutrina valiosa lição, conforme excerto a seguir
transcrito:
[...] impende dizer que a sua atuação deve pautar-se pela fiscalização da
legalidade e, ainda, pela eficiência do processo [...].130
Fácil observar, destarte, que a vontade legislativa chama o Parquet a se
pronunciar no processo, intervindo em ocasiões algumas, e torna imperiosa a atuação daquele
órgão, (re)presentante que é também do interesse estatal em otimizar e bem cumprir seu papel
jurisdicional.
Por força das conclusões extraídas da tese ventilada anteriormente, afigurase mais acertado conceber que, a despeito do veto ao artigo 4° do projeto de lei diretor da
nova lei falimentar, evidencia-se a obrigatoriedade da atuação do Ministério Público no
processo por ela (pela lei) disciplinado. E, ademais disso, percebe-se que tal atuação, em
casos outros não previstos no diploma legal, também não resta defesa, em face do primado do
interesse público nessa espécie processual, quando age o Parquet na qualidade de fiscal da lei.
Nesse tocante, Alberto Camiña Moreira propugna a tese de que “o interesse público é que
justifica a atuação do Ministério Público nas lides concursais, como legalmente se
conhece”.131
A partir da exaustiva demonstração realizada, quando se minudenciou a
legislação afeta ao tema, permite-se o juízo acima, que se referenda a partir da análise de
129
BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário
e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007.
130
PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de
empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 270.
131
PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de
empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 268.
48
estatutos cogentes e de supremacia no ordenamento jurídico pátrio, quais sejam, a Carta da
República e o Código de Processo Civil.
3.3 Intervenção do Ministério Público na fase pré-falimentar
Como esboçado anteriormente, a atuação do Ministério Público na fase préfalencial do processo em estudo não acontece, se considerado o posicionamento adotado pelos
magistrados em face do veto presidencial ao artigo 4º da Lei 11.101/05.
É sabido que o vetado artigo 4º reproduzia fielmente a idéia assentada nas
palavras do artigo 210 do revogado Decreto-Lei 7.661/45, o qual previa a atuação do
Ministério Público em todas as fases do processo de falência, além de lhe garantir outras
atuações, de um modo generalista. A rigor, o dispositivo revogado não encerrava a idéia de
que o Ministério Público deveria atuar na fase pré-falencial, porém, na prática dos Tribunais,
o Parquet (com supedâneo no artigo 210) intervinha também nessa fase, sendo motivo de
nulidade processual a sua ausência.132
Essa questão de ordem teórica e pragmática produz indagações no tocante à
intervenção do órgão ministerial nessa fase do processo de quebra, no sentido de ser esta, de
fato, despicienda ou se seria vinculada.
Para alicerçar a idéia de que a atuação seria desnecessária, alguns se valem,
no cerne de seus argumentos, do postulado de que os interesses que circundam o processo
falimentar são de ordem exclusivamente privada (execução concursal), aos quais não cabe ao
Parquet velar. Além disso, outros se valem do argumento de que a intervenção em todas as
132
BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 211.
49
fases do processo falimentar o tornaria demasiadamente moroso, o que ocasionaria a perda de
sua efetividade e importância.
Nesse sentido, veemente opositor da participação do Ministério Público
nesta fase, Fábio Ulhoa Coelho argumenta que:
[...] de fato, não há justificativas para a participação obrigatória do promotor
de justiça nessa ação, em que a lide versa exclusivamente sobre interesses
patrimoniais e disponíveis [...].133
E arremata:
A participação do Ministério Público, como fiscal da lei e titular da ação
penal, é compreensível somente após a instauração do concurso de credores,
quando podem entrar em conflito, de um lado, os interesses de trabalhadores,
do fisco e de sujeitos de direitos vulneráveis e, de outro, os dos credores
cíveis, normalmente empresários e bancos. Mesmo assim, quando não
ocorrerem as hipóteses descritas na lei, não haverá razões para envolver o
promotor de justiça na demanda.134
No sentido contrário dessa marcha, aqueles que propugnam seja essa
atuação obrigatória o fazem por meio da idéia de que toda falência encerra um interesse
público e que, portanto, evidencia-se como necessária a fiscalização estatal, a qual se realiza
pela atribuição precípua conferida ao Parquet.
Emprestando suporte à assertiva acima, o magistério de Carvalho de
Mendonça assim se apresenta:
[...] nas falências, faz-se sentir a necessidade da defesa dos interesses gerais
e permanentes da sociedade, intervindo o órgão do Ministério Público,
advogado da lei e fiscal de sua execução; [...] exercendo vigilância na
administração provisória da massa, investigando o procedimento do falido e
de outras pessoas que com ele, porventura, se houvessem mancomunado
para lesar os credores; e mais para promover o respectivo processo criminal,
133
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. vol. 3. 7. ed. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 266.
134
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. vol. 3. 7. ed. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 266.
50
para fiscalizar a administração do concordatário, para, em suma, desvendar
as obscuridades que cercam, muitas vezes, as catástrofes comerciais.135
No mesmo sentido, Trajano de Miranda Valverde tece as seguintes
considerações a respeito do tema:
Do representante do Ministério Público. Predominante, embora, em todo o
desenvolvimento da falência o interesse privado, é manifesto que o
fenômeno da falência, refletindo-se na ordem econômico-social, cuja
harmonia rompe e provoca situações jurídicas especiais, cai sob a censura do
Poder Público, que precisa conhecer as causas do fenômeno, para impedir,
tanto quanto possível, que se renove ou passe a constituir um meio de
exploração lucrativo, com grave prejuízo para o crédito nacional. Essas
causas podem ser, por sua vez, efeitos de atos culposos ou dolosos do
devedor, crimes, cuja repressão é dever primordial do Estado. Há, pois,
conveniência de integrar na instituição falimentar o representante do Poder
Público que, na conformidade da organização judiciária, for “o órgão da lei e
fiscal da sua execução”.136
Também Alberto Camiña Moreira, perfilhando o mesmo raciocínio, leciona
acerca da fiscalização estatal em todo o processo de falência:
Fiscalização exige presença no processo. É ingênuo acreditar que possa
haver fiscalização a distância, por adivinhação, sem o efetivo conhecimento
do que se passa no processo.137
Lembrando o dispositivo legal autorizativo e impositivo da intervenção do
órgão ministerial, o mesmo autor leciona que:
Essa atividade do Ministério Público, ora bosquejada, está em rigorosa
consonância com a dicção constitucional. Com efeito, a sede constitucional
do Ministério Público é o art. 127, “caput”, da Carta Magna: “O Ministério
Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis”. O art. 129, III, contém um
exemplo de atuação da instituição como órgão agente, assim como o art.
103, § 1°, contém exemplo de atuação como interveniente (custos legis). A
atuação no processo de recuperação de empresas passa pela defesa da ordem
135
PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de
empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 268.
136
VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de Falências. 4. ed. vol. 1. Rio de Janeiro: Revista
Forense, 1999, p. 435.
137
PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de
empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 270.
51
jurídica e pela defesa de interesses sociais, no estrito cumprimento, pois, de
sua missão constitucional.138
Quanto a esse aspecto de que o veto atacado não exclui a participação do
Parquet e refutando argumento de que sua intervenção permanente levaria à morosidade do
processo de falência, Mário Moraes Marques Júnior, assim se pronuncia:
A prática forense tem demonstrado, ao contrário, que o Ministério Público
tem sido um importante catalisador dos processos falimentares, sempre
atento ao fiel cumprimento da lei especial, pugnando por diligências úteis e
indispensáveis ao bom andamento dos feitos, que acabam por atingir bom
termo graças à atividade fiscalizadora ministerial, por si só saneadora e
impulsionadora do correto trâmite processual, coibindo manobras
fraudulentas e procrastinatórias, bem como prevenindo a ocorrência de
nulidades processuais.
[...] Assim, o veto em comento, além de apresentar insubsistentes
fundamentos, pode levar à errônea interpretação de que a intervenção do
Ministério Público poderia ser, a partir da vigência da nova lei falimentar,
dispensada nas hipóteses em que a própria Lei 11.101 não disponha
expressamente.139
No que tange ao possível questionamento acerca da existência de interesse
público nas ações falimentares, tem-se que o mesmo se sobreleva pela natureza de tais ações,
bem assim pelos reflexos dessas demandas na ordem jurídica e econômica. Inegável, sob esta
ótica, o interesse social nas lides falimentares, porquanto podem delas advir conseqüências
empresariais, econômicas e de crédito, sendo a fiscalização levada a efeito pelo Parquet
asseguradora da lisura e mantenedora da credibilidade afeta a essas instituições e à Justiça.140
Corroborando a tese de que a intervenção do Ministério Público na fase préfalencial se afigura obrigatória, faz-se transcrever, abaixo, algumas ementas dos arestos
recentes do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios a respeito do tema:
138
PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de
empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 272.
139
MARQUES JÚNIOR, Mário Moraes. O Ministério Público na nova lei de falências. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6630>. Acesso em: 09 set. 2007.
140
ÁLVARES, Walter T. Direito Falimentar. Vol. I. 2. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1968, p. 23-24.
52
Agravo de Instrumento. Falência. Ausência de Intervenção do Ministério
Público. Discussão a respeito da necessidade ou não de intervenção do órgão
do Parquet a partir da edição da Lei 11.101/2005.
01. ‘O fundamento da intervenção no processo de insolvência civil ou
comercial é o interesse público, que, nestas hipóteses, reside na necessidade
de tutela do crédito, da fé pública e na preservação do tratamento igualitário
dos credores, pilar da execução concursal falimentar.’ (APC n° 265183/2006, DJ de 25/07/2006).
02. ‘O Ministério Público deve manifestar-se, desde o momento em que é
deduzido o pedido de falência em juízo, por qualquer dos legitimados
processuais elencados no art. 97, incisos I a IV da Lei de Falências, pois a
decretação da falência tem efeitos graves na economia, sendo necessário e
imprescindível que o Ministério Público, como fiscal do fiel cumprimento da
Lei, seja chamado a opinar antes da sentença, analisando detidamente a
presença dos requisitos e dos pressupostos legais, antes de proferir sentença
de quebra, determinar o processamento da recuperação judicial ou decretar
de plano a falência’ (APC n° 26518-3/2006, /DJ de 25/07/2006).
03. Recurso provido. Unânime. 141
E:
Agravo de Instrumento. Decisão que decreta falência. Ausência de
manifestação do Ministério Público. Interesse público. Entendimento de
desnecessidade em face de omissão em nova Lei. Intervenção obrigatória.
Arts. 127 da Constituição Federal e 82, inciso III do Código de Processo
Civil. Nulidade.
1. A obrigatoriedade da intervenção do Ministério Público, em face do
inquestionável interesse público envolvido nas causas dessa natureza,
encontra suporte legal no artigo 127 da Lei Maior, bem como no inciso III
do art. 82 do CPC. Conseqüentemente, a ausência de intimação do órgão
ministerial importa nulidade do processo, nos moldes dos artigos 84 e 246 do
Código de Processo Civil.
2. Recurso provido. Unânime. 142
Consideradas, assim, as teses acima delineadas, mostra-se patente, afinal, o
entendimento no sentido de que o veto ao artigo 4° da lei em voga não limita a atuação do
Parquet às ocasiões determinadas pelo legislador e tampouco exclui ou desautoriza sua
participação em situações outras não expressamente previstas na norma.
141
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 5ª Turma Cível. AGI. Acórdão n°
269904. Ementa: [...]. Relator: Romeu Gonzaga Neiva. Brasília, DF, 11 abr. 07. DJ de 10.5.07, p. 129.
142
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 3ª Turma Cível. AGI. Acórdão n°
274257. Ementa: [...]. Relator: Mário-Zam Belmiro. Brasília, DF, 14 mar. 07. DJ de 28.6.07, p. 96.
CONCLUSÃO
Ao final dessa breve análise acerca da (i)legitimidade do órgão ministerial
para atuar na condição de interveniente (custos legis) nas ações falimentares, em especial no
que respeita à fase pré-falencial, exsurge patente e necessário o reconhecimento da salutar
importância da intervenção do Ministério Público em tais espécies processuais.
Nesse contexto, impera considerar o universo normativo em que se situa o
Parquet, concebendo-o em seus aspectos histórico e sociológico, bem como analisar o
arcabouço legislativo que lhe confere atribuições interventivas na seara do direito processual.
Em princípio, cumpre ressaltar que, sob a ótica social, o texto constitucional
pátrio, ao estabelecer o primado do “Estado Democrático de Direito” a caracterizar a
República Federativa do Brasil, apresentou terreno fértil ao estabelecimento de uma
instituição defensora dos interesses da sociedade e garantidora da fiel consecução dos
propósitos jurídicos almejados por esse Estado.
Assim, os princípios norteadores de um Estado democrático de direito
prestam-se a estabelecer diretrizes a serem observadas quando da execução das funções
estatais. Ademais disso, por meio dos institutos da soberania e da legalidade, máximas
basilares do Estado Democrático de Direito, justifica-se a outorga de “poderes” ao Ministério
Público para zelar pelos interesses por eles (institutos) objetivados. Nesse sentido, legitima-se
a função jurisdicional atribuída ao Parquet.
54
Ao se considerar o componente histórico concernente ao Ministério Público,
tem-se que já em seus primórdios como instituição organizada, em terras francesas, onde se
lhe conferiu a designação hodiernamente utilizada com contumácia (Parquet), o órgão tinha
por atribuição a salvaguarda dos interesses estatais.
No Brasil, o órgão ministerial encontra disciplina legal no texto
constitucional, no qual se apresentam o conceito da instituição e suas atribuições primordiais,
e no estatuto processual civil, no qual se apontam outras situações em que a intervenção do
Ministério Público se faz necessária.
Permite-se afirmar, a partir da leitura interpretativa do texto constitucional,
que a garantia de realização da justiça é a função precípua do órgão, porquanto a ele incumbe
“a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais individuais
indisponíveis”.
O Código de Processo Civil, por sua vez, estabelece em seu artigo 82 outras
ocasiões em que competirá ao Parquet intervir. Sobrepujando às demais, em razão da
relevância ao estudo que se realizou, a obrigatória intervenção ministerial nas “causas em que
há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte”, afigura-se como
mecanismo de asseguração e materialização da função jurisdicional do Estado, outorgada ao
Ministério Público por determinação constitucional e cujo descumprimento enseja nulidade
processual.
Destarte, o confronto das normatizações constitucional e processual civil, ao
se trasladarem as duas disciplinas a um mesmo plano de análise, revela a proximidade das
vontades legislativas nelas contidas. Assim o é que os “interesses indisponíveis” previstos no
estatuto processual guardam estreita correlação com a idéia de “interesse público”.
55
Nesse sentido, os direitos indisponíveis, uma vez que regidos por lei de
ordem pública, revestem-se de inegável interesse público, encontrando a legitimação do
Parquet, por conseguinte, duplo respaldo no ordenamento jurídico brasileiro.
Insere-se, nessa conjuntura, a tutela ao crédito, eis que o mesmo se
caracteriza por patente teor publicista. O interesse público, nesse caso, é facilmente
vislumbrado pelas eventuais repercussões causadas no âmbito sócio-econômico, quando da
hipótese de abalo a essa instituição crédito.
Tem-se, pelo mesmo raciocínio, a publicização do instituto falimentar. Via
de conseqüência, mister reconhecer que a legislação afeta à falência afigura-se como norma
de ordem pública.
Reconhecendo, pois, tal circunstância, a legislação falimentar revogada, a
saber, o Decreto-lei n° 7.661/45, previu a atuação do Ministério Público em todo o processo
falimentar. Assim, o artigo 210 daquele regulamento impunha a atuação do Parquet nas
oportunidades em que entendesse necessário ao resguardo dos interesses da Justiça.
Primou, então, o legislador pela garantia da tutela estatal, legitimando o
órgão ministerial para tal escopo, visto que evidente o interesse público contido na lei de
falências.
A nova regulamentação, contudo, olvidando essa peculiaridade atinente à
norma falimentar (ordem pública), quedou-se omissa quanto à necessidade de intervenção
ministerial em todo o processo de falência, em especial, no tocante à fase pré-falimentar. Tal
omissão não se motivou, todavia, por ausência de previsão no Projeto-de-Lei que deu origem
56
à Lei n° 11.101/05, mas pelo veto presidencial ao artigo 4° daquele projeto, disciplinador da
intervenção do Ministério Público.
Essa ausência de disposição específica promoveu, a partir da vigência do
diploma legal, uma série de questionamentos e a controvérsia doutrinária acerca do tema.
A corrente doutrinária contrária à atuação do Ministério Público na fase préfalencial argumenta que os interesses que constituem objeto das ações em comento teriam
natureza privada, não cabendo, portanto, ao Parquet velar por eles (interesses). Ademais,
alega-se que a intervenção ministerial emprestaria maior morosidade à ação falitária.
Noutro giro, têm-se os jurisconsultos que, refutando a tese da ordem
eminentemente privada concernente aos interesses havidos na demanda falimentar, informam
o patente interesse público que circunda esse processo. Nesse diapasão, mostra-se conveniente
a lembrança do caráter publicista atribuído ao crédito - conforme já mencionado -, o qual se
revela como alvo primeiro da proteção desejada pela legislação de Falência.
Sobrelevando-se, pois, como lei de ordem pública, conquanto encerrando
interesse público, o estatuto falimentar exige, assim, a tutela do Estado, consubstanciada,
então, na presença processual do Ministério Público.
Ainda, a questão da morosidade processual resta afastada pelo argumento de
autores alguns que, considerando a prática forense, aponta o Parquet como catalisador desses
processos, providenciando, em suas incumbências, diligências e expedientes eficazes, os
quais, ao revés do que afirma a tese opositora supracitada, imprimem bom andamento ao
feito.
57
Dessa forma, imperiosa se faz, afinal, a constatação de que, ainda que não
explicitamente determinada pelo mandamento legal, a legitimidade do Ministério Público
desponta existente para a tutela do patente interesse público regente das ações falimentares,
eis que conferida (a legitimidade) pelos estatutos guarnecedores da necessária atuação
ministerial em defesa dos interesses público e indisponíveis, estatutos esses que são, registrese, o regulamento processual civil brasileiro e a Constituição da República Federativa do
Brasil.
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