EDUARDO SPADER (I)LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO CIVIL FALIMENTAR Monografia apresentada como requisito para conclusão do curso de bacharelado em Direito do Centro Universitário de Brasília. Orientador: Prof. Vetuval Martins Vasconcelos BRASÍLIA 2007 RESUMO A intervenção do Ministério Público no processo falimentar tem sido objeto de intensa controvérsia doutrinária. O dissenso decorre da dinâmica adotada pela legislação anterior, a qual previa tal possibilidade, autorizando a atuação ministerial, inclusive, na fase pré-falência. A hodierna disciplina falimentar limita, ao que parece, o papel do Parquet a alguns atos específicos, dos quais se excetuam aqueles componentes da fase que antecede o decreto de falência. Esse é o juízo perfilhado por considerável parcela doutrinária e pelo Juízo Falimentar da Capital Federal. Todavia, há entendimento no sentido de que, ainda que não legalmente prevista, a intervenção ministerial não restaria defesa, porquanto a legislação constitucional e processual civil, estabelecendo a legitimidade do Ministério Público em causas em que exista o interesse público, por seu turno indisponível, assim o autoriza. Nesse sentido, despontam questionamentos acerca da efetiva conduta que deve ser assumida pelo órgão ministerial nos pedidos de decretação de falência, demandas estas submetidas ao Judiciário. Esse dissenso configura o objeto de estudo do presente trabalho. Palavras-Chave: Ministério Público. Processo de Falência. Intervenção. Fase pré-falimentar. (I)legitimidade. 3 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ....................................................................... Erro! Indicador não definido. 1 O MINISTÉRIO PÚBLICO.................................................................................................8 1.1 Natureza jurídica e conceituação legal .........................................................................8 1.2 Princípios do Ministério Público .................................................................................14 1.3 Causas de legitimação do Ministério Público no processo civil brasileiro ..............16 1.4 O Ministério Público e a defesa dos interesses indisponíveis e do “interesse público” ...............................................................................................................................19 1.4.1 Indisponibilidade no direito privado.......................................................................23 1.4.2 Indisponibilidade no direito público .......................................................................24 2 A FALÊNCIA ......................................................................................................................26 2.1 Escorço histórico...........................................................................................................26 2.2 Conceito e natureza jurídica........................................................................................29 2.2.1 A natureza publicística do instituto falimentar .......................................................31 2.3 Elementos característicos e pressupostos da falência................................................34 2.4 Noções gerais acerca do processo falimentar .............................................................36 2.4.1 Fase pré-falimentar .................................................................................................36 2.4.2 Procedimento concursal ..........................................................................................38 2.4.3 Encerramento da falência .......................................................................................40 3 A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO FALIMENTAR .........41 3.1 Disciplina antiga ...........................................................................................................41 3.2 A atuação do Ministério Público à luz da nova lei ....................................................43 3.3 Intervenção do Ministério Público na fase pré-falimentar.......................................48 CONCLUSÃO.........................................................................................................................53 REFERÊNCIAS .....................................................................................................................58 INTRODUÇÃO Sob a égide do Decreto-Lei 7.661/45, antiga Lei de Falências, os processos de natureza falimentar que tramitavam no Judiciário brasileiro, todos, tinham a determinação de conter manifestações do Ministério Público em todas as fases do procedimento, desde o seu nascedouro até o findar da prestação jurisdicional. Esse estatuto legal, com o passar dos anos, ficou defasado ante as modernas atuações empresariais – bem como pela alteração do foco de comerciante (teoria dos atos de comércio) para empresário (teoria da empresa) – o que mostrou por necessária sua substituição por uma lei mais moderna e condizente com o cenário comercial pátrio. Essa nova legislação falimentar, Lei nº. 11.101, de 09 de janeiro de 2005, que revogou a lei anterior, manteve muitas das idéias contidas no ultrapassado Decreto-Lei, mas também instituiu algumas alterações de relevo. No que tange às concepções mantidas pelo legislador, uma que merece destaque e será alvo dessa pesquisa é exatamente o papel que o Ministério Público deve assumir perante o processo civil de falência, pois essa questão tem causado uma série de embaraços, os quais têm colocado em risco, inclusive, a efetividade da tutela jurisdicional pretendida como escopo legal. O espírito da lei, traduzido pelo elemento anímico do legislador, quanto a este aspecto posto em debate, era, ao que tudo indica, a mantença da atuação ministerial tal qual na lei anterior. Ou seja, deveria o Ministério Público atuar no processo falencial desde o seu termo inicial, tendo palavra logo após a contestação do réu, até o encerrar da atuação estatal, tomando parte antes e após (para tomar ciência) a sentença de encerramento da 5 falência. Essa vontade do legislador foi consubstanciada nos dizeres do artigo 4º do Projeto de Lei que foi aprovado e enviado para sanção do Presidente da República, e que assim se apresentava: Art. 4º - O representante do Ministério Público intervirá nos processos de recuperação judicial e de falência. Parágrafo único. Além das disposições previstas nesta Lei, o representante do Ministério Público intervirá em toda ação proposta pela massa falida ou contra esta. 1 Ocorre que, enviado o texto para apreciação da Presidência da República, a esta aprouve vetar o referido artigo 4º, justamente o dispositivo da Lei que mencionava os limites de atuação do Parquet. Após a promulgação da Lei – com a manutenção do veto ao artigo mencionado – a Lei começava a ser aplicada, a gerar seus primeiros efeitos. Um desses efeitos foi o embate acerca da (i)legitimidade da atuação do Ministério Público na fase préfalencial, a saber, a que antecede a fase do concurso de credores (execução coletiva), tendo em vista não haver pronunciamento legal a respeito da intervenção naquela fase. Compondo esse embate, de um lado, alguns sustentam o posicionamento hermenêutico de que a intervenção do órgão ministerial é despicienda, e, em sentido contrário, outros defendem que a intervenção é obrigatória e que, nesse tocante, não era vontade do legislador alterar. A ilustrar tal dissenso, a Vara de Falências e Concordatas do Distrito Federal, ao tratar os processos de falência sob os auspícios do antigo Decreto-Lei, encaminhava-os para promoção ministerial toda vez que houvesse um pedido de falência, promoção esta ofertada antes da prolação da sentença acerca da bancarrota, sob pena de 1 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Msg/Vep/VEP-0059-05.htm>. Acesso em: 03 ago. 2007. 6 nulidade processual. O que se vislumbra, atualmente, é a prolação desses decretos sem que haja intervenção do Ministério Público, sob o argumento de que não mais seria obrigatória tal atuação. Intenta-se, então, concluir se a intervenção do Ministério Público no processo de falência, sobejamente na fase pré-falimentar, apresenta-se, ou não, como cabível, e verificar quais fundamentos emprestarão suporte a essa conclusão. Para tal propósito, buscar-se-á minudenciar a instituição Ministério Público, aferindo sua essência jurídica, bem como as razões que autorizam, ou impõem, sua atuação nas demandas submetidas ao Judiciário. Por conseguinte, perseguir-se-á o objetivo de estabelecer uma correlação entre o Parquet e o procedimento atinente à falência, de sorte a comensurar os moldes que delineiam a necessidade da atuação ministerial face ao processo falimentar. Resta esclarecer que o propósito almejado neste breve compêndio pautar-seá pelo estudo da doutrina específica, bem como pela análise da legislação correlata. Nesse sentido, far-se-á uma incursão histórica acerca dos institutos, objetos do presente trabalho, trazendo seus conteúdos conceituais doutrinariamente estabelecidos, verificando suas naturezas jurídicas e elementos característicos e descortinando, em última análise, o pensamento legislativo. Feitas essas considerações iniciais, necessário informar que, sem a pretensão de emitir uma resposta absoluta e definitiva, a pesquisa a ser realizada no âmbito doutrinário e jurisprudencial referente a esse assunto buscará coletar dados e informações sobre a relação 7 estabelecida entre o Ministério Público e o processo falimentar, e a possibilidade da intervenção ministerial nessa espécie processual. 1 O MINISTÉRIO PÚBLICO 1.1 Natureza jurídica e conceituação legal Não há um consenso doutrinário acerca das origens do Ministério Público. Assim, sugere-se que seus primórdios datam do Antigo Egito, da Antigüidade Clássica Esparta -, ou, ainda, da Idade Média.2 Todavia, apesar da existência de tais estudos especulativos, o dissenso vem a termo e parece superado pela tese de uma corrente majoritária, defensora da origem francesa da instituição em comento. Nesse sentido, argumenta-se que o órgão ministerial nasceu e se formou na França.3 Com efeito, no século XIV, a Ordenança de Felipe IV, o Belo, é invocada como o primeiro regramento jurídico a disciplinar acerca dos procuradores do rei (les gens ou procureurs du roi). Consoante informa a literatura, o rei impunha, por esse estatuto, que seus procuradores prestassem juramento idêntico àquele celebrado pelos juízes.4 Ainda segundo a doutrina, a instituição ganhou estrutura adequada com a Revolução Francesa, no século XVIII, momento em que se conferiram garantias aos membros do Ministério Público.5 2 SOUZA, Victor Roberto Corrêa de. Ministério Público: aspectos históricos. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4867>. Acesso em: 26 ago. 2007. 3 Disponível em: <http://www.prms.mpf.gov.br/acessibilidade/inst/Institucional.htm>. Acesso em: 26 ago. 2007. 4 SOUZA, Victor Roberto Corrêa de. Ministério Público: aspectos históricos. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4867>. Acesso em: 26 ago. 2007. 5 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 13. 9 Nesse diapasão, conveniente lembrar que o termo Parquet, adotado no Brasil e amplamente utilizado como sinônimo para o órgão ministerial, é uma expressão originária da língua francesa. Afirma-se que, inicialmente, os procuradores do rei assentavamse no assoalho (parquet) da sala de audiências, e, apenas posteriormente, passaram a ter assento junto dos magistrados, sobre o estrado6. Também em relação à expressão “Ministério Público”, utilizada especificamente para denominar o órgão ministerial, não é possível precisar sua origem. Contudo, há relatos de sua utilização em cartas francesas datadas do século XVIII. Etimologicamente, tem-se que a palavra Ministério provém do latim manus (mão), remetendo, possivelmente, aos franceses, procuradores do rei, ou “a mão do rei”. Resta inconteste, destarte, a influência francesa na história do Ministério Público.7 Quanto ao Brasil, verifica-se um esboço da figura “promotor de justiça” em 1.609, com a criação do Tribunal da Relação da Bahia. Todavia, somente em 1.828, a Lei de 18 de setembro cuidou da designação de promotores para os Tribunais de Relação8. Posteriormente, em 1832, o Código Penal do Império trouxe dispositivos definidores da atuação ministerial.9 Seguiram-se a esse estatuto outros diplomas legais a disciplinar o tema, a saber, códigos e constituições10. O assunto possui, atualmente, tratamento legislativo específico pertinente ao Parquet, sendo a legislação em voga a seguir minudenciada. 6 SOUZA, Victor Roberto Corrêa de. Ministério Público: aspectos históricos. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4867>. Acesso em: 26 ago. 2007. 7 Disponível em: <http://www.prms.mpf.gov.br/acessibilidade/inst/Institucional.htm>. Acesso em: 26 ago. 2007. 8 Disponível em: <http://www.prms.mpf.gov.br/acessibilidade/inst/Institucional.htm>. Acesso em: 26 ago. 2007. 9 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 474. 10 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 17. 10 A Constituição Federal de 1988 enuncia, em seu artigo 127, o conceito legal de Ministério Público para o Direito brasileiro, e o faz nas seguintes palavras: Art. 127 - O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. 11 Evidencia-se, pela análise do texto constitucional, a característica ínsita ao órgão ministerial, que o justifica e legitima. Desta feita, a consecução da efetividade da justiça, bem assim a salvaguarda de preceitos constitucionais, apresentam-se como objetivos buscados pelo Parquet. O entendimento supramencionado resta corroborado pela doutrina correlata. Quanto ao tema, assevera Antônio Cláudio da Costa Machado, ao conceituar a instituição: O Ministério Público não é, nada mais, nada menos do que tudo isso, um ente eminentemente social, a princípio pré-jurídico, mas que sempre transcendeu os limites do direito positivo, e por isso se desenvolveu tanto, sendo hoje parte do próprio Estado para a concretização de uma das suas grandes aspirações: a realização da justiça. É algo que nasceu espontaneamente, como fruto de uma determinada necessidade social num determinado momento histórico, e que se desenvolveu por meio de novas necessidades em outros momentos, adquirindo o caráter de permanência durante esse processo de evolução. Na medida em que crescia, mais concreto e definido se tornou o seu escopo, mais claro se tornou o seu papel social. O Ministério Público é, portanto, este ser jurídico permanente, posto que extrapola o indivíduo no tempo e no espaço, e que possui vida e disciplina próprias, forças e qualidades particulares e uma vocação especial de bem servir a própria sociedade que o criou.12 11 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em 07 jul. 2007. 12 MACHADO. Antônio Cláudio da Costa . A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 24-25. 11 No que toca ao desempenho de suas funções, é de se evidenciar que o Ministério Público não está subordinado a nenhum dos poderes do Estado. Antes, afigura-se como instituição autônoma.13 Nesse diapasão, tem-se o juízo perfilhado por Guilherme Peña de Moraes, lecionando que: Sem embargo da posição do Supremo Tribunal Federal, que firmou jurisprudência no sentido da ‘integração do Ministério Público na estrutura do Poder Executivo’, cremos que o Parquet é revestido da natureza jurídica de órgão independente, que se posta ao lado dos Poderes do Estado, com elevado status constitucional, a exemplo do Tribunal de Contas.14 Essa conclusão pode ser extraída da própria Carta Constitucional, que dispensou tratamento legislativo exclusivamente para o Ministério Público, dissociando-o dos demais Poderes, e o fez mui acertadamente, pois “o Parquet não deve estar atrelado ao Executivo, cujas ingerências podem comprometer o bom desenvolvimento de suas funções. Também não é nada lógico que se vincule ao Judiciário, vez que a defesa eficiente dos interesses indisponíveis da sociedade perante este é exercida e tal vinculação atentaria contra a preservação de sua independência no que tange à propositura de ações e intervenções em processos já instaurados.”15 Em análise do conceito posto no artigo mencionado acima, tem-se que o Ministério Público é uma “instituição permanente”. Isso quer dizer que é um órgão por meio do qual o Estado manifesta sua soberania, de modo que não há como existir manobras 13 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil interpretada. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 1.675. MORAES, Guilherme Peña de. Direito Constitucional: Teoria do Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 193. 15 MACHADO. Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 37. 14 12 legislativas no sentido de se reformar a Constituição Federal para extirpá-lo do mundo jurídico.16 Já por “essencial à função jurisdicional do Estado”, deve-se entender que, naquelas situações processuais em que o Ministério Público deva atuar, em não o fazendo, a justiça não se perfaz em sua plenitude, ou ainda, se perfaz de forma viciada, da qual decorre necessária nulidade processual.17 A obrigatoriedade dessa intervenção estatal, que se materializa por meio da função jurisdicional, encontrava supedâneo já nas lições de Léon Duguit, restando motivada, segundo esse autor, pela necessária transformação econômico-social, conforme se infere de suas palavras: [...] mas eu devo constatar que a tendência geral é, dentre todos os países modernos, o aumento considerável da atividade estatal. [...] Existe, nela, um fato inevitável e indubitável. Este é a conseqüência inelutável da transformação econômica dos povos e do progresso do qual é conveniente chamar de civilização.18 [tradução nossa] Adiante, ressalta a importância dessa função estatal: Enfim, pela função jurisdicional o Estado resolve uma questão de direito que lhe é apresentada. Para tanto, ele declara se existe ou não violação de uma regra de direito, originada ou não de uma situação jurídica objetiva ou subjetiva, que alcança ou não uma situação de direito objetivo ou de direito subjetivo [...].19 [tradução nossa] 16 PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre o Ministério Público no processo não-criminal. Rio de Janeiro: Aide, 1998, p. 15. 17 PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre o Ministério Público no processo não-criminal. Rio de Janeiro: Aide, 1998, p. 17. 18 “[...] mais je dois constater que la tendance générale est, dans tous les pays modernes, l’augmentation considérable de l’activité étatique. [...]il y a là um fait inévitable et indéniable. Il est la consequence ineluctable de la transformation économique des peoples et des progrés de ce qu’on est convenu d’appeler la civilisation[...].” DUGUIT, Léon. Traité de Droit Constitutionnel: La Théorie Genérale de L’État. Paris: Ancienne Librarie Fontenoing & Cie, 1923, p. 133. 19 “Enfin, par la fonction juridictionnelle, l’État résout une question de droit qui lui est posée. Pour cela, il déclare s’il y a eu ou non violation d’une règle de droit, naissance ou non d’une situation juridique objective ou 13 Dizer que o Ministério Público atua em defesa da ordem jurídica significa que tal instituição atua em prol da manutenção da ordem constitucional, entendida esta como ordenamento jurídico fundamental da qual derivam todas as demais normas. Isso implica que, quando essa ordem se encontrar, sob qualquer situação, violada, caberá ao Parquet tomar as medidas cabíveis para que seja restabelecida, sejam estas medidas de caráter processual ou extraprocessual. Além de velar pela ordem jurídica fundamental, cabe ao Ministério Público, também, a defesa da correta aplicação da legislação infraconstitucional, seja qual for sua hierarquia, para que se ultime a defesa da ordem jurídica.20 Sob essa ótica, fácil verificar o papel atribuído ao Ministério Público de garante do Estado de Direito, porquanto este último, também denominado Estado Constitucional21, vincula-se à existência de uma Norma Maior, segundo o magistério de Carlos Ari Sundfeld, já esposado no Capítulo 1 desta obra. Atuar em defesa do regime democrático significa, em outras palavras, que o Ministério Público deve atuar em defesa da democracia, enquanto regime de governo, e seus princípios, dentre os quais a soberania popular, pedra angular que lhe serve de sustentáculo.22 Destarte, sobreleva-se, por atribuição precípua atinente às funções ministeriais, a garantia de efetivação do Estado Democrático de Direito, corolário constitucional cujos reflexos buscam alcançar todo o ordenamento jurídico pátrio. subjective, atteinte ou non à une situation de droit objectif ou de droit subjectife[...].” DUGUIT, Léon. Traité de Droit Constitutionnel: La Théorie Genérale de L’Etat. Paris: Ancienne Librarie Fontenoing & Cie, 1923, p. 137. 20 PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre o Ministério Público no processo não-criminal. Rio de Janeiro: Aide, 1998, p. 18-19. 21 SANTOS, Marcelo Fausto Figueiredo. Teoria Geral do Estado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 91. 22 PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre o Ministério Público no processo não-criminal. Rio de Janeiro: Aide, 1998, p. 21. 14 Por fim, ao Ministério Público incumbe a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis. É sabido que, dentro das relações jurídicas que se estabelecem pelo convívio em sociedade, existirão aquelas que envolverão direitos disponíveis e aquelas que envolverão direitos dos quais não cabe às partes abrirem mão sob qualquer pretexto. Quanto aos primeiros, sabe-se que sua defesa é feita pelos próprios interessados, enquanto que os segundos ficam, por vezes, órfãos de iniciativa, sem ter quem os persiga. É daí que surge a necessidade de tutela desses direitos por parte do Estado.23 Para que não seja comprometida a imparcialidade do juiz no trato com as partes e nem se deixem desabrigados os direitos dessa natureza, foi conferida ao Parquet a legitimidade para a tutela de tais interesses. 1.2 Princípios do Ministério Público A redação constitucional colaciona, em seu artigo 127, § 1°, os princípios regentes da instituição em exame, quais sejam, unidade, indivisibilidade e independência funcional. Tais garantias conferidas ao Parquet mostram-se imperativas, porquanto permitem ao (re)presentante ministerial a tranqüilidade e a isenção necessárias ao escorreito exercício de suas atribuições.24 Por ser importante ao estudo da instituição, discorrer-se-á, nas linhas seguintes, acerca desses postulados, caracterizando-os um a um. O princípio da unidade informa que os membros do Ministério Público, reunidos e considerados como um todo, integram um único órgão, gerido por um Procurador- 23 PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre o Ministério Público no processo não-criminal. Rio de Janeiro: AIDE Editora, 1998, p. 23. 24 MAZZILLI, Hugo Nigro. O acesso à justiça e o Ministério Público. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 165167. 15 Geral. Essa unidade, todavia, ocorre na esfera de cada Ministério Público, não subsistindo nas relações que se travam entre os seus diversos ramos.25 Por indivisibilidade, entende-se que os membros do Ministério Público não se vinculam aos processos em que atuam, sendo facultado substituírem-se uns pelos outros.26 Melhor definição desses princípios apresenta Cintra Grinover Dinamarco, proferindo que: [...] ser una e indivisível a Instituição significa que todos os seus membros fazem parte de uma só corporação e podem ser indiferentemente substituídos um por outro em suas funções, sem que com isso haja alguma alteração subjetiva nos processos em que oficiam (quem está na relação processual é o Ministério Público, não a pessoa física de um promotor ou curador).27 A independência (ou autonomia) funcional importa que o Parquet não se sujeita a ordens estranhas à Instituição, atendo-se, obrigatoriamente, no cumprimento de suas atribuições, apenas aos preceitos legais.28 Assim, o “órgão do Ministério Público é independente no exercício de suas funções, não ficando sujeito às ordens de quem quer que seja, somente devendo prestar contas de seus atos à Constituição, às leis e à sua consciência”.29 Outro princípio concernente ao Parquet consagrou-se pelo paralelo traçado entre este e a magistratura pátria. 25 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 587. 26 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 480. 27 Apud MACHADO. Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 40. 28 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 481. 29 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 548. 16 Deste modo, o princípio do promotor natural veda a figura do promotor de exceção, proibindo eventuais designações arbitrárias por parte do (re)presentante máximo do Ministério Público. Segundo Alexandre de Moraes, [...] o plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência do princípio por maioria de votos, no sentido de proibirem-se designações casuísticas efetuadas pela chefia da Instituição, que criariam a figura do promotor de exceção, em incompatibilidade com a Constituição Federal, que determina que somente o promotor natural é que deve atuar no processo, pois ele intervém de acordo com seu entendimento pelo zelo do interesse público, garantia esta destinada a proteger, principalmente, a imparcialidade da atuação do órgão do Ministério Público, tanto em sua defesa quanto essencialmente em defesa da sociedade, que verá a Instituição atuando técnica e juridicamente30. 1.3 Causas de legitimação do Ministério Público no processo civil brasileiro Superada a explanação da conceituação constitucional concernente ao órgão estatal “Ministério Público”, tem-se que este desempenha na sociedade brasileira algumas funções, as quais serão destacadas aqui, sobejamente no tocante à sua atuação no Processo Civil brasileiro. Enuncia o art. 129 da Constituição Federal o seguinte: Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia; III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos; IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos Estados, nos casos previstos nesta Constituição; V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas; 30 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 549. 17 VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva; VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior; VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais; IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas. É importante ressaltar, contudo, que este rol descrito na Carta Constitucional não esgota as possibilidades de atuação do órgão ministerial. Em se tratando de matéria processual, situações outras há que ensejam a manifestação do Parquet. Em consonância com a legislação processual brasileira, verifica-se que o (re)presentante ministerial possui atribuições para atuar, primordialmente, nas áreas cível e penal. Nessas duas searas, todavia, a intervenção ministerial se dá de forma distinta, apresentando sua atuação, em cada caso, nuances e características próprias.31 No que diz respeito à esfera criminal, atua o Ministério Público em observância do interesse da sociedade. Nas demandas de natureza cível, são duas as possibilidades de atuação do Parquet, podendo o mesmo ingerir-se judicial ou extrajudicialmente. Nesse sentido, Guilherme Peña de Moraes empresta valiosa lição à doutrina, cujo conteúdo se transcreve a seguir: A atuação no interesse da sociedade é delineada pela promoção exclusiva da ação penal de iniciativa pública, requisição para instauração de inquérito policial, realização de investigações criminais e controle da atividade policial.32 E prossegue: 31 MAZZILLI, Hugo Nigro. O acesso à justiça e o Ministério Público. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 3334. 32 MORAES, Guilherme Peña de. Direito Constitucional: Teoria do Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 199. 18 A atuação extrajudicial é denotada pela promoção da administração pública dos interesses privados, participação nos Tribunais e Conselhos de Contas e atendimento ao público. A atuação judicial é desmembrada em iniciativa e intervenção em juízo. Com efeito, na atuação judicial com a condição de órgão agente, o Ministério Público tem a iniciativa em juízo, figurando como demandante (autor, exeqüente ou requerente). Demais disso, na atuação judicial com a condição de órgão interveniente, o Ministério Público tem a intervenção em juízo, por motivo da natureza da lide ou qualidade da parte, funcionando como fiscal da correta aplicação da regra jurídica ao caso concreto [...].33 Em todo caso, essa atuação processual estará marcada basicamente pelo interesse público ou se efetivará em razão da qualidade da parte ou, ainda, por determinação legal.34 A assertiva acima se afigura possível a partir da leitura do Código de Processo Civil brasileiro, o qual, estabelecendo competências do Ministério Público, não o autoriza, mas determina sua intervenção em demandas específicas. É o que se infere do excerto a seguir transcrito: Art. 82. Compete ao Ministério Público intervir: I – nas causas em que há interesses de incapazes; II – nas causas concernentes ao estado da pessoa, pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposições de última vontade; III – nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte. Destarte, mister reconhecer, à luz da disciplina legal vigente, a obrigatoriedade de intervenção do (re)presentante ministerial nas causas em que o interesse público restar caracterizado. 33 MORAES, Guilherme Peña de. Direito Constitucional: Teoria do Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 199. 34 PORTO, Sérgio Gilberto. Sobre o Ministério Público no processo não-criminal. Rio de Janeiro: Aide, 1998, p. 32-33. 19 Cumpre registrar, nesse tocante, que, se a atuação do Ministério Público em causas que a prescindem não acarreta nulidade do processo35, o entendimento contrário - a saber, sua ausência quando obrigatória a intervenção ministerial - não se faz possível. Assim, prevê o estatuto processual civil, em seu artigo 85, que, “quando a lei considerar obrigatória a intervenção do Ministério Público, a parte promover-lhe-á a intimação sob pena de nulidade do processo”.36 Vista disso, importante magistério de Alexandre de Moraes dirime quaisquer dúvidas acerca da importância e legitimidade da atuação ministerial: Ao erigir o Ministério Público como garantidor e fiscalizador da separação de poderes e, conseqüentemente, dos mecanismos de controle estatais (CF, art. 129, II), o legislador constituinte conferiu à Instituição função de resguardo ao status constitucional do cidadão, armando-o de funções, garantias e prerrogativas que possibilitassem o exercício daquelas e a defesa destes. Incorporou-se em nosso ordenamento jurídico, portanto, a pacífica doutrina constitucional norte-americana sobre a teoria dos poderes implícitos – inherent powers -, pela qual no exercício de sua missão constitucional enumerada, o órgão executivo deveria dispor de todas as funções necessárias, ainda que implícitas, desde que não limitadas (Myers v. Estados Unidos – US 272 – 52, 118), consagrando-se, dessa forma, e entre nós aplicável ao Ministério Público, o reconhecimento de competências genéricas implícitas que possibilitem o exercício de sua missão constitucional, apenas sujeitas às proibições e limites estruturais da Constituição Federal.37 1.4 O Ministério Público e a defesa dos interesses indisponíveis e do “interesse público” Conforme ensina a literatura dedicada ao assunto, é conferida ao Estado a competência para joeirar os interesses coletivos e individuais eleitos como prevalecentes na 35 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 3ª Turma. AgRg no Ag 335.137-MG. Ementa: “Não gera nulidade a intervenção do MP na qualidade de fiscal da lei em processo no qual isto não é obrigatório.” Relator: Ari Pargendler. Brasília, DF, 18 dez. 2001. DJ de 25.3.02. 36 BRASIL. LEI Nº. 5.869, de 11.1.73. Institui o Código de Processo Civil. DOU de 17.1.73. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5869.htm>. Acesso em: 03 ago. 2007. 37 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 553-554. 20 sociedade. Essa atribuição é levada a efeito, precipuamente, por meio da atividade legislativa, de sorte a emprestar juridicidade a tais interesses.38 Exsurgindo, pois, os direitos positivados a partir da providência legiferante, cabe ao agente do Poder Legislativo ponderá-los e valorá-los. A acepção deverá ser realizada observando-se o critério da necessidade, ou importância, do direito individualmente considerado, no seio da sociedade. Quanto ao tema, Antônio Cláudio da Costa Machado informa que: De acordo com o critério que poderíamos chamar de ‘essencialidade social’, concebido como o conjunto de valores essenciais do Estado, aos quais todos os interesses sociais devem estar subordinados, o legislador distingue duas categorias de interesses juridicizados ou direitos subjetivos. De um lado, os direitos que devem servir, atender diretamente àqueles valores; direitos que correspondem imediatamente a esses interesses maiores e que se identificam com o escopo último da ordem pública, a preservação do próprio Estado. De outro lado, aqueles direitos periféricos aos valores fundamentais que só indireta e mediatamente servem à ordem pública, embora também nela encontrem balizamento.39 Nesse contexto, configuram-se os chamados direitos indisponíveis, “interesses máximos da sociedade”40, cuja tutela se apresenta como atribuição primeira do Ministério Público, porquanto imposta pela Constituição da República. Relevante considerar que a salvaguarda dos direitos em comento vincula-se intrinsecamente à “defesa da ordem jurídica”, uma vez que é esta última quem os estabelece. Mister reconhecer, à luz da característica da “indisponibilidade” atribuída a tais sortes de direitos, que, com a configuração dessa prerrogativa, possibilita-se lhes 38 MACHADO. Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 45. 39 MACHADO. Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 45. 40 MACHADO. Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 46. 21 outorgar, simultaneamente, o interesse público, instituto de natureza eminentemente social e de difícil conceituação. Cuida-se, porém, de tarefa por demais controvertida entre os jurisconsultos a definição do que se apresenta como “interesse público”.41 Assim, face à omissão legislativa em apontar um conceito norteador da aplicabilidade do instituto em comento, coube à doutrina devotada ao tema o suprimento de tal ausência. Apresentam-se, a seguir, algumas expressões literárias nesse sentido: O interesse público é muitas vezes aqueles mesmos interesses sociais, mas que o Estado, como organização política e administrativa, transforma em seus próprios interesses, pois em determinada fase da evolução da sociedade esses interesses dizem respeito à própria sobrevivência do Estado. Entretanto, outros valores de caráter ideológico ou político confundem-se com os próprios interesses do Estado, daí a coloração de públicos a esses interesses. Outras vezes, são interesses de ordem privada e familiar que se tornam públicos, tais como a formação, organização e dissolução dos grupos familiares.42 Noutra acepção, vinculando interesse público e ordem pública, tem-se a importante preleção de Harold Laswell: Quando nos referimos ao interesse público temos em mente o sistema fundamental de participação de valor e as instituições estabelecidas que são protegidas e completadas pela ordem legal. Uma vez que a ordem legal protege a si mesma, ela é, naturalmente, parte total da ordem pública.43 Por fim, impõe-se verificar a definição que importa, de fato, ao estudo ora realizado, a saber, a delimitação das características atinentes ao interesse público que autorizam a intervenção do Ministério Público nas lides processuais. Sob esse aspecto: 41 CAMPOS, Benedicto de. O Ministério Público e o novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 96. 42 CAMPOS, Benedicto de. O Ministério Público e o novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 97-98. 43 Apud FRIEDRICH, Carl J.. O Interesse Público. Tradução de: Edilson Alkmin Cunha. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, sem data. Edição original: The Public Interest. Atherton Press, 1962, p. 77. 22 O interesse público que motiva a intervenção do Ministério Público deve ser entendido como aquele primário, ou seja, aquele que diz respeito ao conjunto da sociedade, não identificado com o interesse do Estado enquanto entidade autônoma, que não diversos dos interesses gerais.44 Resta indene de dúvidas, portanto, que o conteúdo definidor do que seja interesse público encontra-se inexoravelmente atrelado à concepção havida por indisponibilidade de direitos, e, por conseguinte, à idéia de interesse da sociedade. Assim o é que os direitos de natureza pública ou privada, representando os valores que o corpo social entende necessários e desde que regulados por normas de ordem pública, não são passíveis de disposição por parte de seus eventuais titulares, e reclamam, por esse fato, a proteção estatal, evidenciando o interesse público de que se revestem. Retomando, pois, as considerações acerca da atividade legislativa, é necessário considerar que, quando da efetivação desta, o agente (legislador) confere a determinadas leis o atributo da cogência, da imperatividade genérica, ao revés das demais, aplicáveis somente na ausência de declaração de vontade dos seus subordinados.45 As normas de caráter imperativo e geral, que disciplinam as regras imprescindíveis à adequada estruturação da sociedade, são denominadas “leis de ordem pública”. Nesse sentido, Clóvis Beviláqua assim define tal espécie normativa: As [leis] de ordem pública, umas vezes, referem-se às bases econômicas ou políticas da vida social, como as de organização da propriedade, e as constitucionais; outras vezes, são protetoras do indivíduo no grêmio social, como as de capacidade [...]. [...] são as que, em um Estado, estabelecem os princípios cuja manutenção se considera indispensável à organização da vida social, segundo os preceitos do direito.46 [grifo nosso] 44 FERRAZ, Antônio Augusto Mello de Camargo (Coord.). Ministério Público: Instituição e Processo. São Paulo: Atlas, 1999, p. 245. 45 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 45-46. 46 Apud MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 48. 23 Forçoso concluir, então, que a caracterização do interesse público é realizada a partir da identificação da regência do direito tutelado por uma lei de ordem pública. 1.4.1 Indisponibilidade no direito privado No tocante ao direito privado, assim considerado aquele que prescinde da participação estatal (mas não a rejeita) nas relações jurídicas que o tem por objeto, verifica-se a possibilidade de se revesti-lo de interesse público.47 Têm-se, nesse caso, os princípios que, embora de direito privado, atuam na tutela do bem coletivo e se regem também pelas diretrizes indispensáveis à organização da sociedade, as quais sói denominarem-se leis de ordem pública. E, por essa razão, apresentamse esses interesses privados como sendo de caráter indisponível.48 Quanto ao alcance das premissas em análise, Clóvis Beviláqua assevera que: [...] seu campo de ação é o direito privado, porque instituem a normação das relações entre pessoas singulares; mas sua repercussão na vida coletiva e a imperatividade do comando estatal que os acompanha imprime-lhes funda analogia com o direito público.49 Tais espécies jurídicas, constituindo, como observado, interesses individuais indisponíveis, sujeitam-se à tutela estatal, a qual, consoante ordenado pela legislação processual pátria, compete ao Parquet velar. 47 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 47. 48 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 48. 49 Apud MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 48. 24 1.4.2 Indisponibilidade no direito público Tem-se por inquestionável a assertiva de que se reveste de indisponibilidade o direito público regulado pelas leis de ordem pública. Por conseqüência, evidencia-se a legitimidade do Estado para garantir a consecução destes.50 Admitida, pois, a titularidade ministerial para velar pelo efetivo cumprimento das disposições legais atinentes à seara do direito público, é de se elencar os ramos jurídicos que reclamam tal intervenção. A Constituição Federal traz em seu bojo dispositivos vários que evidenciam o atributo da publicidade. Assim, a “proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente” (artigo 129, III, CF) ou a defesa dos “direitos e interesses das populações indígenas” (artigo 129, V, CF) afiguram-se como mandamentos que versam, de forma patente, sobre direito público.51 Também no âmbito penal, revela-se indene de dúvidas a legitimidade ministerial para resguardar o interesse social. Inegável, aqui, a indisponibilidade característica do direito punitivo estatal. Tendo isso em vista, “mesmo na qualidade de órgão acusador, não perde o Ministério Público a sua condição de custos legis, ou seja, a condição de interessado na realização da justiça, o que muitas vezes significa admitir que a punição não é devida”.52 Outros ramos jurídicos revestem-se de caráter indisponível, bem assim o Direito Eleitoral. Nessa seara, o órgão ministerial exerce, conforme lição de Octacílio Paula 50 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 45. 51 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 53. 52 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 57. 25 Silva, “papel fiscalizador no processo eleitoral (sentido lato e não jurídico), além de deter o direito de ação criminal”.53 Ademais disso, o Direito Processual Civil comporta dispositivos que encerram os direitos indisponíveis autorizadores da intervenção do Parquet. Nesse sentido, os conflitos de competência (artigo 116, parágrafo único) e a declaração incidente de inconstitucionalidade (artigo 480) exemplificam a assertiva supra e demonstram que a presença ministerial se justifica pela necessidade de garantia da eficácia social dos decretos emitidos pelo Poder Judiciário.54 53 Apud MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 59. 54 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 61. 2 A FALÊNCIA 2.1 Escorço histórico O instituto da falência possui intrínseca correlação com a dinâmica conceitual de obrigação, considerada esta na seara do direito.55 Assim, entre os primeiros grupos humanos socialmente organizados, a aquisição de dívidas era sancionada com a privação de direitos basilares, tais quais a liberdade e a vida.56 Nesses moldes, o direito romano mais primitivo possibilitava ao credor transformar o autor da dívida cujo pagamento lhe era devido em seu serviçal por determinado período. Findo esse lapso temporal e não solvido o débito, era permitido ao credor vender o devedor no estrangeiro, ou mesmo matá-lo.57 No ano de 428 a.C, houve uma alteração desse quadro, ocasião em que, promulgada a Lex Poetelia Papiria, a execução patrimonial foi inserida no ordenamento jurídico romano. Dessa forma, o devedor era desapossado de seus bens por meio de determinação exarada pelo pretor.58 A Lex Julia Bonorum (737 a.C.), inovando com a criação da cessio bonorum, facultava ao devedor a cessão de seus bens ao credor. Esse estatuto é tido, por parte 55 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 3. ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 3. 57 MAGALHÃES, José Hamilton de. Direito falimentar brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 1-3. 58 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 3. 56 27 da literatura, como o marco original da falência. Corroborando tal assertiva, tem-se o magistério de Waldemar Ferreira: Não poucos romanistas divisam na Lex Julia o assento do moderno Direito Falimentar, por ter editado os dois princípios fundamentais – o direito dos credores de disporem de todos os bens do devedor e o da par condictio creditorum.59 Na seqüência histórico-cronológica, percebe-se, na Idade Média, a assunção da prestação jurisdicional por parte do Estado. Assim o é que se verifica datarem da Idade Média os primeiros esboços do Direito Falimentar, quando o Estado assume a posição de responsável pela tutela jurisdicional, e, especificamente, das ações de execução. É o que se depreende da lição de Manoel Justino Bezerra Filho: A par da evolução no sentido de a execução passar a incidir exclusivamente sobre o patrimônio do devedor, ocorre também o deslocamento da iniciativa da execução, que, em um momento histórico regresso, era do próprio credor, para, na seqüência, passar às mãos do Estado, de tal forma que só pode ser efetuada sob a tutela estatal, proibida qualquer execução de mão própria. Aquele anterior concursum creditorum, dirigido pelos próprios credores, passa a ser feito sob a rígida disciplina judiciária do Estado; já na Idade Média, a partir do século XIII, está em formação um direito comercial informal e cosmopolita, decorrente dos usos e costumes comerciais das corporações de ofício. Estabelecem-se aí os primeiros delineamentos do direito falimentar, estendendo-se a falência tanto ao devedor comercial quanto ao devedor civil, sendo o falido coberto de infâmia, tido como fraudador, réprobo social, sujeito a severas medidas penais, além da perda total de seu patrimônio.60 Sob essa perspectiva, resta patente que o processo de falência tem por precursor o processo civil coletivo de execução. Ainda, evidencia-se aqui uma disciplina atinente ao processo de execução, com o estabelecimento de regras acerca do concurso creditório. Importante destacar, nessa conjuntura, a obrigatoriedade de os credores se habilitarem em juízo a fim de participarem do processo em comento. 59 Apud ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 5-6. 60 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências: comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 32-33. 28 Nesse contexto, surge, em face da expansão do comércio nas cidades italianas (em especial, o marítimo), a Falência, originária do sistema de concurso de credores. O falido é tido, nessa época, como um criminoso, e a ele eram impostas sanções diversas, dentre as quais, a prisão ou, até mesmo, a mutilação.61 Afigura-se esclarecida, por essa ótica, a razão da utilização do termo falência, que, em sua concepção etimológica, provém do latim fallere (enganar, falsear). Difundindo-se por outros países, a legislação italiana teve grande aceitação também na França, nas Ordenações de 1.673, bem como no Código Napoleônico (Código Comercial francês), de 1.807. Cumpre ressaltar que, nesse último regramento, impunham-se severas restrições ao falido.62 A evolução legislativa conferiu à falência um caráter econômico-social, sendo que a acepção realizada em relação aos devedores (honestos ou desonestos) possibilitou que se aprimorassem elementos falenciais, como a moratória e a concordata.63 No Brasil, o tema se viu primeiramente codificado em 1.595, tendo sua lei disciplinadora exercido especial influência sobre as Ordenações Filipinas, estatuto este promulgado em 1.603.64 Por meio do Alvará de 13 de dezembro, outorgado pelo Marquês de Pombal em 1.756, o processo de falência recebeu nova disciplina legal. Posteriormente, com a proclamação da independência do Brasil, em 07 de setembro de 1.822, e após uma lacuna 61 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 4. MAGALHÃES, José Hamilton de. Direito falimentar brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 5. 63 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 5. 64 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 5. 62 29 legislativa, período em que permaneceu a vigência da legislação portuguesa, o assunto foi especificamente tratado no Código Comercial Brasileiro.65 Em 1.850, o instituto da falência foi regulado pelo estatuto supracitado em seus artigos 797 a 913, Parte Terceira, denominada “Das Quebras”.66 Seguiram-se, a esse regramento, alterações realizadas por Decretos posteriores, quando, em 1.945, foi promulgada a Lei de Falências, sob a égide do Decreto-lei 7.661. Tal legislação vigeu até o ano de 2.005, quando foi substituída pela Lei 11.101, ocorrendo a ab-rogação do estatuto anterior. 2.2 Conceito e natureza jurídica Consoante anteriormente mencionado, na Idade Média a falência era considerada um delito, passível, portanto, da aplicação de sanções. Destarte, por sua análise etimológica, tem-se que a palavra falência é oriunda do verbo latino fallere, o qual, trasladando-se para o Português, significa falsear, faltar com a palavra, enganar67. No que se refere ao vocabulário empregado no direito falimentar, e a título de curiosidade, observa-se que, em Portugal utilizava-se corriqueiramente a palavra quebra como sinônimo de falência; na França, o termo bancarrota surgiu como designação para a falência criminosa. Nesse diapasão, a expressão francesa banque en route (banco quebrado) se justifica em face do antigo costume relativo aos credores, os quais quebravam o banco em que o falido exibia suas mercadorias.68 Quanto ao seu conceito, deve-se considerar a falência sob duas óticas. 65 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 6. TZIRULNIK, Luiz. Direito falimentar. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 39. 67 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 4. 68 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 12-13. 66 30 Em sua concepção econômica, revela-se a questão patrimonial. J. C. Sampaio de Lacerda defende que o estado de falência é, se assim considerado, “a condição daquele que, havendo recebido uma prestação a crédito, não tenha à disposição, para a execução da contraprestação, um valor suficiente, realizável no momento da contraprestação”.69 Em sua acepção jurídica, tem-se que a falência é um processo de execução coletiva contra o devedor insolvente. No magistério de Amador Paes de Almeida: Processo de execução coletiva por congregar todos os credores, por força da vis attractiva do juízo falimentar. Verdadeiro litisconsórcio necessário, ou seja, elo que reúne diversos litigantes em um só processo, ligados por comunhão de interesses [...].70 O mesmo autor define o instituto: A falência é uma situação jurídica que decorre da insolvência do empresário, revelada essa pela impontualidade no pagamento de obrigação líquida, ou por atos inequívocos que demonstrem manifesto desequilíbrio econômico, patenteando situação financeira ruinosa.71 Waldo Fazzio Júnior leciona que a “falência é o reconhecimento jurídico da inviabilidade da empresa. Representa o estágio final de sua existência”.72 Quanto à natureza jurídica da falência, observa-se a dificuldade de defini-la e delimitá-la a um único ramo do Direito, porquanto exsurgem do instituto regras de subespécies jurídicas variadas.73 69 Apud ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 17. 70 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 17. 71 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 43. 72 FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Nova lei de falência e recuperação de empresas. São Paulo: Atlas, 2005, p. 187. 73 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 14. 31 Decorre, daí, um dissenso doutrinário acerca de seu posicionamento no mundo jurídico. Amador Paes de Almeida, ao tratar do assunto, assevera que: Essa diversidade de elementos tem estabelecido controvérsia doutrinária acerca da sua natureza jurídica, situando-a alguns como um instituto de direito objetivo (assim considerado o conjunto de regras jurídicas que regem as relações entre os homens), outros no âmbito do direito processual, considerando-a, respeitável parcela, um procedimento administrativo.74 Abarcando diretrizes de variados ramos de direito material, e constituindo, ainda, um processo de execução, parece mais acertada a tese que vislumbra a falência como um instituto ímpar, com características e princípios peculiares, configurando, pois, uma espécie própria: o Direito Falimentar. 2.2.1 A natureza publicística do instituto falimentar Em que pese a problemática atinente à exata colocação do instituto falencial no universo jurídico, não há, contudo, questionamentos a serem feitos no tocante ao seu caráter publicista.75 É sabido que a falência surgiu como remédio jurídico de legitimação estatal para a proteção do crédito. Deve-se ressaltar, todavia, que a relação creditícia que se objetiva tutelar não se consigna à esfera do direito privado.76 Assim, o crédito, ainda que primariamente regido pelo direito aplicável aos interesses havidos das relações travadas entre particulares, possui conotação eminentemente pública, em face de seus possíveis reflexos na ordem social, especialmente no âmbito econômico. 74 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 18. 75 ÁLVARES, Walter T.. Direito Falimentar. vol. I. 2. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1968, p. 13. 76 ÁLVARES, Walter T.. Direito Falimentar. vol. I. 2. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1968, p. 7. 32 Em palavras mais precisas, Walter T. Álvares ensina que: O instituto da falência visa substancialmente à proteção ao crédito público e, por conseqüência, ao amparo ao crédito privado. Não é um instituto que vise a equacionar basicamente os interesses das partes, isto é, credores e devedores, mas esses interesses são protegidos, ao ser resolvido o interesse do crédito público em não sofrer perturbação pela ocorrência de alguma operação anormal do crédito privado. Neste particular aproxima-se do Direito Tributário, sabido que este visa ao interesse público, e basicamente do Estado no exercício do direito. A diferença está em que o instituto de falência harmoniosamente sincroniza as duas ordens de interesse. Daí decorre que o instituto falimentar é, basicamente: a) preventivo e subsidiariamente repressivo, coibindo os resultados anômalos de operações de crédito; b) eminentemente publicístico.77 Ademais, informando acerca da importância devida ao tema, imposta pela condição do publicismo, o autor complementa: [...] Neste caso, este crédito que ampara e envolve as atividades comerciais exerce efetivamente uma função, a função de tornar possível a existência da própria atividade comercial. Esta função, pela sua ordem de grandeza, certamente supera e ultrapassa os quadros dos interesses particulares, ao adquirir a tonalidade de uma função pública. Neste ponto, tendo o crédito esta função pública, como envoltório que torna possível a atividade do crédito privado, já a tutela do Estado é indispensável, para que seja disciplinada a matéria pertinente e oferecida a necessária proteção a um instrumento de tanta importância.78 Assim entendido o objeto alvo de proteção no processo falimentar, tem-se que, reflexamente, a falência apresenta-se com a mesma característica publicista. José da Silva Pacheco, considerando o instituto falencial sob seus matizes econômico ou comercial, explicou a dinâmica do fenômeno que empresta publicismo a essa espécie jurídica a partir de uma outra perspectiva: 77 78 ÁLVARES, Walter T.. Direito Falimentar. vol. I. 2. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1968, p. 13. ÁLVARES, Walter T.. Direito Falimentar. vol. I. 2. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1968, p. 25. 33 A progressiva publicização da atividade econômico-comercial e, especialmente, da falência, matizando o direito que a regula do caráter publicístico, deve-se: a) ao interesse público de que sempre se revestiu a mercancia e as operações mercantis, bem como o direito dos comerciantes e dos atos de comércio, praticados de modo habitual; o que, aliás, era admitido até mesmo nos velhos tempos do mercantilismo, contratualismo, individualismo ou liberalismo econômico; b) à conotação de direito econômico que, por si, implica alto teor publicístico; c) à noção-econômica de empresa e à atividade empresarial; d) ao tônus processual do direito falencial. Por isso, como salienta Renzo Provinciali, “no direito concursal ressalta, sempre, a natureza de direito público, tal qual ocorre no direito processual, em que se insere e de que faz parte, devendo-se entendê-lo como primacialmente voltado à tutela de um interesse público”.79 Aqui, cumpre salientar, o autor traz à baila o elemento “interesse público”, o qual, conforme se demonstrou anteriormente, desponta como caracterizador da falência. Em outra acepção, se entendida a natureza processualística do instituto em exame, também sob essa ótica sobreleva-se sua qualidade publicística. É o que se extrai das palavras do mesmo José da Silva Pacheco, ao elencar as características da falência, a saber: instituto de direito processual; - procedimento concursal; - procedimento executivo, tendo finalidade satisfativa dos credores; e – procedimento contencioso. Finaliza por asseverar que a falência se reveste, “desse modo, do caráter publicístico de todo instituto processual”.80 Impõe-se reconhecer, por fim, que a norma regulamentadora da falência apresenta-se, a toda evidência, como sendo de ordem pública, uma vez que assim se consideram “as normas cujos interesses do Estado e da coletividade predominam em face dos interesses individuais”.81 79 PACHECO, José da Silva. Tratado das execuções: falência e concordata. vol. I. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 25-26. 80 PACHECO, José da Silva. Tratado das execuções: falência e concordata. vol. I. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 32. 81 SILVA, Otacílio Paula. Ministério Público: estudo pragmático da instituição: legislação, doutrina, jurisprudência. São Paulo: Sugestões Literárias, 1981, p. 25. 34 2.3 Elementos característicos e pressupostos da falência O estado de falência caracteriza-se pela configuração de determinados elementos atinentes ao comportamento da empresa. A doutrina jurídica falimentar aponta, em regra, como caracterizadores da falência, a impontualidade no cumprimento das obrigações líquidas e certas, a insolvência e a prática de atos de falência.82 A rigor, observa-se que a insolvência se apresenta como a mais forte evidência de uma situação falimentar, porquanto os demais elementos revelam-se, de certa forma, acessórios ou subsidiários em face daquela.83 Perseguindo tal raciocínio, a impontualidade se revela como sendo o efeito provocado pelo estado de insolvência, não se prestando como elemento caracterizador da falência. Esse é o entendimento perfilhado por Amador Paes de Almeida, o qual se transcreve a seguir: Assim, a impontualidade seria a manifestação por excelência da insolvabilidade e não causa determinante, por si só, da quebra.84 O autor expõe, ainda, o conteúdo conceitual de insolvência, e arremata: É a condição de quem não pode saldar suas dívidas. Diz-se do devedor que possui um passivo sensivelmente maior que o ativo. Por outras palavras, significa que a pessoa (física ou jurídica) deve em proporção maior do que pode pagar, isto é, tem compromissos superiores aos seus rendimentos ou ao seu patrimônio [...]. [...] O que caracteriza a falência é, em última análise, a insolvência, revelada essa pela impontualidade ou por outros atos que a denunciem [...].85 82 TOMAZETTE, Marlon. Direito Comercial. Brasília: Fortium, 2005, p. 140. BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 174-175. 84 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 23. 83 35 Consoante se depreende da assertiva acima posta, há, a par da impontualidade, elementos outros que denotam o estado de insolvência. Inserem-se nessa acepção os denominados atos de falência. Tais atos se consubstanciam a partir de determinadas práticas levadas a efeito pelo empresário devedor, práticas estas que se acham definidas no artigo 94, incisos II e III, da Lei nº. 11.101/2005 (Lei de Falências).86 O primeiro comportamento indicador da insolvência citado pela Lei é a execução frustrada, que ocorre quando, sendo o devedor citado em um processo executivo, não efetua o pagamento ou, se instado a indicar bens passíveis de penhora, assim não procede.87 Outros atos de falência se materializam por meio da liquidação precipitada (alienação do patrimônio empresarial de forma precipitada) e do uso de meios ruinosos ou fraudulentos para pagar.88 Tem-se, afinal, o abandono de estabelecimento e a ocultação ou fuga do devedor, atos estes que autorizam o processo de falência.89 Ao lado da insolvência, apresentam-se por pressupostos do estado de falência a condição de empresário (artigo 1º) e a decretação judicial. 85 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 23. 86 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 34. 87 Artigo 94, II, da Lei nº. 11.101/2005, cuja incidência foi derrogada pela Lei nº. 11.382/2006 que alterou a redação do artigo 652, do Código de Processo Civil. 88 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 37-38. 89 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 42. 36 Nesse sentido, determina a legislação em voga que somente se sujeitam ao processo falimentar os devedores empresários, podendo ser os mesmos pessoas físicas ou jurídicas, regulares ou irregulares, excluindo-se aqueles que tenham cessado a atividade comercial há mais de 2 (dois) anos (artigo 96, inciso VIII).90 Por fim, e também como pressuposto da falência, sua decretação judicial afigura-se como imprescindível para a configuração do instituto. 2.4 Noções gerais acerca do processo falimentar 2.4.1 Fase pré-falimentar Ao período compreendido entre o pedido de decretação da falência, deduzido em juízo, e a prolação de sentença nesse sentido, usa-se denominar, para efeitos doutrinários, fase pré-falimentar.91 Assim, inicia-se o processo falimentar, de fato, a partir do ajuizamento do pedido de decretação de falência. Têm-se, por legitimados a demandar tal procedimento judicial e ajuizar o pedido supramencionado, os credores em geral, empresários ou não. Também ao devedor é facultado requerer sua falência, assim como o é aos sócios e acionistas em relação à sociedade de que participam. A lei confere, ainda, legitimidade ativa, no caso de espólio, ao cônjuge sobrevivente, aos herdeiros e ao inventariante.92 90 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 48. 91 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 187. 92 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências: comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 245. 37 No que respeita à competência do juízo falimentar, a disciplina legal confere à circunscrição em que se situe o principal estabelecimento do devedor essa prerrogativa.93 Quanto a esse aspecto, relevante mencionar que o juízo da falência atrai os processos eventualmente existentes contra o devedor. Essa regra, prevista na legislação em voga, prevalece às demais regras de competência, salvo algumas exceções, a saber, as relativas a ações não falimentares, reclamações trabalhistas, cobrança de créditos tributários, ações em que forem parte a União, suas autarquias ou empresas públicas, ações anteriores à decretação da falência que demandem quantia ilíquida e ações de despejo relativas a imóveis.94 Após o recebimento da inicial, o juiz ordenará a citação do devedor para que apresente a contestação, cabendo a este último, ao tomar conhecimento da ação, as providências a seguir destacadas.95 A primeira hipótese refere-se à faculdade conferida ao devedor de efetuar o depósito elisivo – exceto quando se tratar de ato de falência – considerando o valor do débito corrigido com juros e honorários advocatícios.96 Há a possibilidade de apresentar contestação, efetuado ou não o depósito, alegando nesta peça o que lhe aprouver.97 É-lhe facultado, ainda, pleitear a recuperação judicial. Decorrido o prazo para apresentação da defesa, compete ao juiz resolver, fazendo-o por meio de sentença, acerca da decretação da falência. Consubstanciado tal 93 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências: comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 53. 94 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências: comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 192-193. 95 OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Comentários à nova lei de falências. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 408. 96 Súmula n° 29, STJ: “No pagamento em juízo para elidir falência, são devidos correção monetária, juros e honorários de advogado.” Disponível em: <http://www.stj.gov.br/webstj/Processo/Jurisp/Download/verbetes_asc.txt>. Acesso em: 16 ago. 2007. 97 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 95. 38 expediente, põe-se termo à fase pré-falimentar e se traz à lume o processo falimentar propriamente dito.98 2.4.2 Procedimento concursal A prolação da sentença de decretação da falência dá ensejo ao procedimento concursal. Destarte, os bens e credores envolvidos sujeitam-se, a partir deste decreto, ao juízo falimentar.99 Impõe considerar, quanto ao expediente da decisão que decreta a falência, que dela decorrem três efeitos. Tem-se, por primeiro efeito advindo da decretação da falência, o vencimento antecipado das dívidas do falido. Outro efeito é a suspensão das eventuais ações e execuções em curso, visto que o saneamento das dívidas do falido deverá se realizar no juízo falimentar. Excetuam-se a essa regra as reclamações trabalhistas e as ações que demandem quantia ilíquida. Por último efeito, observa-se a suspensão da prescrição relativa às obrigações do falido até que se encerre o processo falimentar.100 No que diz respeito aos efeitos incidentes sobre a pessoa do falido, o decreto de falência impõe-lhe a privação da administração de seus bens101, a proibição do exercício de atividade empresarial e a perda da capacidade processual.102 98 OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Comentários à nova lei de falências. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 411. ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 106. 100 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 136-141. 101 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências: comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 252. 102 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências: comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 260. 99 39 Na fase concursal, o juiz ordena ao falido que apresente a relação nominal dos credores, sendo que, depois de publicada a referida listagem, poderão os credores que dela não constarem habilitar seus créditos. Cabe ao administrador judicial a apreciação de tais habilitações, bem como a elaboração de nova relação de credores, e, a partir desta lista, a confecção do quadro geral de credores.103 É realizada, pois, a arrecadação dos bens que irão compor a massa falida, por parte do administrador judicial, o qual se imite na posse dos referidos bens e elabora o inventário (relação de bens arrecadados).104 Para a satisfação dos credores, deve o administrador judicial proceder à liquidação dos bens. Para tanto, é feita a realização do ativo, alienando-se os bens compreendidos na massa falida. Em seguida, procede-se ao pagamento do passivo, conforme a ordem legalmente estabelecida.105 Do quadro geral de credores constará a classificação dos créditos. Nesse sentido, impende ressaltar que alguns créditos, ainda que não figurando do quadro retromencionado, precedem aos demais. As exceções comportam os pedidos de restituição e os créditos trabalhistas, estes relativos a serviços prestados após a decretação da falência.106 103 OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Comentários à nova lei de falências. São Paulo: IOB 150. 104 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências: comentada. dos Tribunais, 2005, p. 270-273. 105 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 276. 106 OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Comentários à nova lei de falências. São Paulo: IOB 545. Thomson, 2005, p. São Paulo: Revista acordo com a lei Thomson, 2005, p. 40 Devem-se honrar, a seguir, os créditos extraconcursais e, após, os concursais, respeitando-se a ordem estabelecida pela legislação falimentar.107 Caso, após o pagamento das dívidas na massa falida, ainda restem bens, estes retornarão ao patrimônio dos sócios, na exata proporção das participações sociais.108 2.4.3 Encerramento da falência Realizado o último pagamento, cabe ao administrador judicial a apresentação da prestação de contas ao juiz, e, uma vez aprovadas tais contas, apresentar um relatório final, o qual emprestará suporte e subsidiará a sentença de encerramento da falência, que põe termo final ao processo.109 107 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 276-278. 108 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova lei de recuperação e falências: comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 333-334. 109 ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e recuperação de empresa: de acordo com a lei 11.101/2005. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 282-283. 3 A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO FALIMENTAR 3.1 Disciplina antiga De muito, a legislação pátria que esquadrinhava os procedimentos de quebra dos antigos comerciantes fez previsão da atuação de um curador de massas falidas. Essa intervenção do (re)presentante do Ministério Público se viu pela primeira vez nas letras do ultrapassado Decreto nº. 1.597, de 1º. de maio de 1.855, ainda da época do Império. Em seu artigo 68, o Decreto sob comento trazia a disposição de que era permitido ao promotor público, quando entendesse ser o caso, intervir, requerer e promover perante o juiz comercial todos os atos do processo de falência, depois da abertura até a decretação da quebra, ainda que o processo fosse abandonado por transação ou pobreza da massa falida.110 Passando-se à fase da República, ainda sob a égide da legislação falimentar contida no Código Comercial, o governo provisório publicou, em 1.890, o Decreto nº. 139, o qual trazia em seu corpo a seguinte redação: Fica criado na Capital Federal o lugar privativo de curador fiscal de massas falidas, o qual intervirá em todos os termos e atos do processo de falência até a liquidação final, sem prejuízo das atuais atribuições dos administradores, que continuam em vigor, e perceberá, além da comissão do artigo 859 do Código do Comércio, os mesmos emolumentos tacados para os curadores de órfãos, nos artigos 79 e 81 do Decreto nº. 5.737, de 2 de setembro de 1.874, que forem aplicáveis.111 110 VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de Falências. 4 ed. vol. 1. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1999, p. 435. 111 VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de Falências. 4 ed. vol. 1. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1999, p. 436. 42 Em meados do século XX, foi publicado o Decreto-Lei nº. 7.661, de 21 de junho de 1.945, o qual trazia em seu artigo 210 a idéia de que caberia ao membro do Parquet intervir em qualquer fase do processo, nos seguintes termos: O representante do Ministério Público, além das atribuições expressas na presente Lei, será ouvido em toda ação proposta pela massa ou contra esta. Caber-lhe-á o dever, em qualquer fase do processo, de requerer o que for necessário aos interesses da justiça, tendo o direito, em qualquer tempo, de examinar todos os livros, papéis e atos relativos à falência ou à concordata.112 A experiência com este Decreto-Lei mostrou que o entendimento firmado no dia-a-dia dos processos de falência em curso nos Tribunais foi o de que o (re)presentante ministerial deveria obrigatoriamente intervir, desde a dedução do pedido do credor em juízo até o encerramento da falência, sob pena de nulidade.113 Esse estatuto, alicerçado no dispositivo mencionado acima, atribuía ao Parquet a possibilidade de exercer ampla atividade fiscalizadora no processo falimentar. Desta feita, atuava o Ministério Público ora como órgão interveniente, ora como órgão agente – ao promover a ação penal falimentar. A atividade de custos legis permitia à instituição intervir em todas as fases do processo de falência, obrigando-se-lhe a oitiva antes de qualquer incidente de considerável importância. Ademais disso, fazia-se imperiosa essa intervenção também nas causas em que a massa falida fosse autora ou ré, porquanto o contrário implicaria necessária nulidade do processo.114 112 BRASIL. DECRETO-LEI Nº. 7.661, de 21.6.45. Lei de Falências. DOU de 31.7.45. Diponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del7661.htm>. Acesso em: 03 ago. 2007 113 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 211. 114 TZIRULNIK, Luiz. Direito falimentar. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 283. 43 3.2 A atuação do Ministério Público à luz da nova lei Quando da votação do Projeto de Lei do Senado nº. 4.376/93 no Congresso Nacional, inclusive sob a apreciação da Comissão de Constituição e Justiça de ambas as casas, nada fora extirpado do texto do projeto naquilo que se referia ao Ministério Público. Porém, para a surpresa de todos quantos esperavam pela promulgação da novel Lei de Falências, houve veto presidencial ao artigo 4º, que descrevia a atuação do Parquet, além de alguns outros artigos. A recusa se apresentou nos seguintes moldes: O dispositivo reproduz a atual Lei de Falências – Decreto-Lei no 7.661, de 21 de junho de 1945, que obriga a intervenção do parquet não apenas no processo falimentar, mas também em todas as ações que envolvam a massa falida, ainda que irrelevantes, e.g. execuções fiscais, ações de cobrança, mesmo as de pequeno valor, reclamatórias trabalhistas etc., sobrecarregando a instituição e reduzindo sua importância institucional. Importante ressaltar que no autógrafo da nova Lei de Falências enviado ao Presidente da República são previstas hipóteses, absolutamente razoáveis, de intervenção obrigatória do Ministério Público, além daquelas de natureza penal.115 Motivo de grande indignação para a comunidade jurídica naquele momento foram os alicerces lançados pela Presidência da República para justificar tal veto, considerados, então, frágeis e inconsistentes. Apesar das severas críticas que retumbavam nas discussões despontadas por essa Lei, o Congresso manteve o veto que extirpou do corpo do texto a previsão da atuação ministerial. Como as atribuições do Ministério Público são resguardadas pela Constituição Federal, era de se esperar que nada fosse alterado no tocante à sua atuação no 115 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Msg/Vep/VEP-0059-05.htm>. Acesso em: 03 ago. 2007. 44 processo falimentar. A prática revelou exatamente o contrário. Os magistrados superintendentes desses processos determinavam a citação do demandado, como de praxe, e, após o escoamento do prazo para manifestação, prolatavam suas decisões a respeito do tema sem antes abrir vista desses autos para as promotorias de falências, ultimando esta providência somente após a prolação da sentença, a exemplo dos processos em curso do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Tem-se, então, a partir da interpretação literal e restritiva da legislação em voga, que o Ministério Público restou alijado do processo de falência no que tange à fase préfalencial, aquela em que o credor deduz em juízo sua pretensão, argüindo a quebra do devedor, e que este é chamado a se defender (elidir ou simplesmente contestar a falência). À luz desse raciocínio, e atendo-se tão-somente ao mandamento legal, importante indicar as oportunidades em que o Parquet é chamado a manifestar-se. Assim, considerando-se a ordem estabelecida na lei, a intimação ministerial deverá se dar: - artigo 12, caput e parágrafo único - nas impugnações de crédito, manifestando-se após o devedor, o Comitê e o administrador judicial;116 - artigo 14 – antes da homologação da relação dos credores.117 No que se refere à confecção e à publicação da relação de credores, verificase a possibilidade de o Ministério Público proceder à impugnação daquela, bem como recorrer de decisão judicial exarada na impugnação de crédito, faculdades estas previstas no artigo 19. 116 BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007. 117 BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007. 45 - artigo 22, § 2° - para comparecer à audiência especial designada pelo juízo falimentar, quando qualquer credor, devedor ou seus administradores forem intimados a prestar declarações;118 - artigo 22, § 3° - quando o administrador judicial pleitear autorização judicial para transigir sobre obrigações e direitos da massa falida e conceder abatimento de dívidas;119 Ainda, consoante se infere do comando contido no § 2° do artigo 30, é-lhe imposto o dever de requerer, quando cabível, a substituição do administrador judicial ou de membro do Comitê.120 - artigo 36 e seguintes – quando convocada a assembléia-geral de credores, para avaliação da necessidade de sua presença;121 - artigo 64, parágrafo único – antes da decisão quanto à destituição do administrador, em face da possibilidade de cometimento de ilícito falimentar;122 - artigo 66 – antes de autorizada a alienação de bens ou direitos integrantes do ativo do devedor;123 118 BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007. 119 BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007. 120 BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007. 121 BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007. 122 BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007. 46 - artigo 87, § 1° - antes da decisão acerca do pedido de restituição;124 - artigo 99, XIII – antes da sentença que decretar a falência requerida pelo próprio devedor;125 - artigo 110, caput – para acompanhar, se julgar necessário, a arrecadação dos bens da sociedade falida, a cargo do administrador judicial;126 - artigo 142, caput, artigos 144 e 145, § 3° - para manifestar-se sobre a modalidade de realização do ativo da massa falida;127 Na seqüência da leitura legislativa, o artigo 154 determina a presença ministerial e, por conseguinte, sua manifestação na ocasião da prestação de contas apresentada pelo administrador judicial.128 - e, artigos 156 e 159 – após a apresentação do relatório final da falência pelo administrador judicial e antes do seu encerramento por sentença, e no caso de ser requerida a declaração de extinção das obrigações pelo falido.129 123 BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007. 124 BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007. 125 BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007. 126 BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007. 127 BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007. 128 BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007. 47 No aspecto da intervenção ministerial sob o enfoque da atual legislação, Alberto Camiña Moreira empresta à doutrina valiosa lição, conforme excerto a seguir transcrito: [...] impende dizer que a sua atuação deve pautar-se pela fiscalização da legalidade e, ainda, pela eficiência do processo [...].130 Fácil observar, destarte, que a vontade legislativa chama o Parquet a se pronunciar no processo, intervindo em ocasiões algumas, e torna imperiosa a atuação daquele órgão, (re)presentante que é também do interesse estatal em otimizar e bem cumprir seu papel jurisdicional. Por força das conclusões extraídas da tese ventilada anteriormente, afigurase mais acertado conceber que, a despeito do veto ao artigo 4° do projeto de lei diretor da nova lei falimentar, evidencia-se a obrigatoriedade da atuação do Ministério Público no processo por ela (pela lei) disciplinado. E, ademais disso, percebe-se que tal atuação, em casos outros não previstos no diploma legal, também não resta defesa, em face do primado do interesse público nessa espécie processual, quando age o Parquet na qualidade de fiscal da lei. Nesse tocante, Alberto Camiña Moreira propugna a tese de que “o interesse público é que justifica a atuação do Ministério Público nas lides concursais, como legalmente se conhece”.131 A partir da exaustiva demonstração realizada, quando se minudenciou a legislação afeta ao tema, permite-se o juízo acima, que se referenda a partir da análise de 129 BRASIL. LEI Nº. 11.101, de 09.2.05. Regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. DOU de 09.2.05. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11101.htm>. Acesso em: 09 ago. 2007. 130 PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 270. 131 PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 268. 48 estatutos cogentes e de supremacia no ordenamento jurídico pátrio, quais sejam, a Carta da República e o Código de Processo Civil. 3.3 Intervenção do Ministério Público na fase pré-falimentar Como esboçado anteriormente, a atuação do Ministério Público na fase préfalencial do processo em estudo não acontece, se considerado o posicionamento adotado pelos magistrados em face do veto presidencial ao artigo 4º da Lei 11.101/05. É sabido que o vetado artigo 4º reproduzia fielmente a idéia assentada nas palavras do artigo 210 do revogado Decreto-Lei 7.661/45, o qual previa a atuação do Ministério Público em todas as fases do processo de falência, além de lhe garantir outras atuações, de um modo generalista. A rigor, o dispositivo revogado não encerrava a idéia de que o Ministério Público deveria atuar na fase pré-falencial, porém, na prática dos Tribunais, o Parquet (com supedâneo no artigo 210) intervinha também nessa fase, sendo motivo de nulidade processual a sua ausência.132 Essa questão de ordem teórica e pragmática produz indagações no tocante à intervenção do órgão ministerial nessa fase do processo de quebra, no sentido de ser esta, de fato, despicienda ou se seria vinculada. Para alicerçar a idéia de que a atuação seria desnecessária, alguns se valem, no cerne de seus argumentos, do postulado de que os interesses que circundam o processo falimentar são de ordem exclusivamente privada (execução concursal), aos quais não cabe ao Parquet velar. Além disso, outros se valem do argumento de que a intervenção em todas as 132 BERTOLDI, Marcelo M.; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 211. 49 fases do processo falimentar o tornaria demasiadamente moroso, o que ocasionaria a perda de sua efetividade e importância. Nesse sentido, veemente opositor da participação do Ministério Público nesta fase, Fábio Ulhoa Coelho argumenta que: [...] de fato, não há justificativas para a participação obrigatória do promotor de justiça nessa ação, em que a lide versa exclusivamente sobre interesses patrimoniais e disponíveis [...].133 E arremata: A participação do Ministério Público, como fiscal da lei e titular da ação penal, é compreensível somente após a instauração do concurso de credores, quando podem entrar em conflito, de um lado, os interesses de trabalhadores, do fisco e de sujeitos de direitos vulneráveis e, de outro, os dos credores cíveis, normalmente empresários e bancos. Mesmo assim, quando não ocorrerem as hipóteses descritas na lei, não haverá razões para envolver o promotor de justiça na demanda.134 No sentido contrário dessa marcha, aqueles que propugnam seja essa atuação obrigatória o fazem por meio da idéia de que toda falência encerra um interesse público e que, portanto, evidencia-se como necessária a fiscalização estatal, a qual se realiza pela atribuição precípua conferida ao Parquet. Emprestando suporte à assertiva acima, o magistério de Carvalho de Mendonça assim se apresenta: [...] nas falências, faz-se sentir a necessidade da defesa dos interesses gerais e permanentes da sociedade, intervindo o órgão do Ministério Público, advogado da lei e fiscal de sua execução; [...] exercendo vigilância na administração provisória da massa, investigando o procedimento do falido e de outras pessoas que com ele, porventura, se houvessem mancomunado para lesar os credores; e mais para promover o respectivo processo criminal, 133 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. vol. 3. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 266. 134 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. vol. 3. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 266. 50 para fiscalizar a administração do concordatário, para, em suma, desvendar as obscuridades que cercam, muitas vezes, as catástrofes comerciais.135 No mesmo sentido, Trajano de Miranda Valverde tece as seguintes considerações a respeito do tema: Do representante do Ministério Público. Predominante, embora, em todo o desenvolvimento da falência o interesse privado, é manifesto que o fenômeno da falência, refletindo-se na ordem econômico-social, cuja harmonia rompe e provoca situações jurídicas especiais, cai sob a censura do Poder Público, que precisa conhecer as causas do fenômeno, para impedir, tanto quanto possível, que se renove ou passe a constituir um meio de exploração lucrativo, com grave prejuízo para o crédito nacional. Essas causas podem ser, por sua vez, efeitos de atos culposos ou dolosos do devedor, crimes, cuja repressão é dever primordial do Estado. Há, pois, conveniência de integrar na instituição falimentar o representante do Poder Público que, na conformidade da organização judiciária, for “o órgão da lei e fiscal da sua execução”.136 Também Alberto Camiña Moreira, perfilhando o mesmo raciocínio, leciona acerca da fiscalização estatal em todo o processo de falência: Fiscalização exige presença no processo. É ingênuo acreditar que possa haver fiscalização a distância, por adivinhação, sem o efetivo conhecimento do que se passa no processo.137 Lembrando o dispositivo legal autorizativo e impositivo da intervenção do órgão ministerial, o mesmo autor leciona que: Essa atividade do Ministério Público, ora bosquejada, está em rigorosa consonância com a dicção constitucional. Com efeito, a sede constitucional do Ministério Público é o art. 127, “caput”, da Carta Magna: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. O art. 129, III, contém um exemplo de atuação da instituição como órgão agente, assim como o art. 103, § 1°, contém exemplo de atuação como interveniente (custos legis). A atuação no processo de recuperação de empresas passa pela defesa da ordem 135 PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 268. 136 VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à Lei de Falências. 4. ed. vol. 1. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1999, p. 435. 137 PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 270. 51 jurídica e pela defesa de interesses sociais, no estrito cumprimento, pois, de sua missão constitucional.138 Quanto a esse aspecto de que o veto atacado não exclui a participação do Parquet e refutando argumento de que sua intervenção permanente levaria à morosidade do processo de falência, Mário Moraes Marques Júnior, assim se pronuncia: A prática forense tem demonstrado, ao contrário, que o Ministério Público tem sido um importante catalisador dos processos falimentares, sempre atento ao fiel cumprimento da lei especial, pugnando por diligências úteis e indispensáveis ao bom andamento dos feitos, que acabam por atingir bom termo graças à atividade fiscalizadora ministerial, por si só saneadora e impulsionadora do correto trâmite processual, coibindo manobras fraudulentas e procrastinatórias, bem como prevenindo a ocorrência de nulidades processuais. [...] Assim, o veto em comento, além de apresentar insubsistentes fundamentos, pode levar à errônea interpretação de que a intervenção do Ministério Público poderia ser, a partir da vigência da nova lei falimentar, dispensada nas hipóteses em que a própria Lei 11.101 não disponha expressamente.139 No que tange ao possível questionamento acerca da existência de interesse público nas ações falimentares, tem-se que o mesmo se sobreleva pela natureza de tais ações, bem assim pelos reflexos dessas demandas na ordem jurídica e econômica. Inegável, sob esta ótica, o interesse social nas lides falimentares, porquanto podem delas advir conseqüências empresariais, econômicas e de crédito, sendo a fiscalização levada a efeito pelo Parquet asseguradora da lisura e mantenedora da credibilidade afeta a essas instituições e à Justiça.140 Corroborando a tese de que a intervenção do Ministério Público na fase préfalencial se afigura obrigatória, faz-se transcrever, abaixo, algumas ementas dos arestos recentes do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios a respeito do tema: 138 PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 272. 139 MARQUES JÚNIOR, Mário Moraes. O Ministério Público na nova lei de falências. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6630>. Acesso em: 09 set. 2007. 140 ÁLVARES, Walter T. Direito Falimentar. Vol. I. 2. ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1968, p. 23-24. 52 Agravo de Instrumento. Falência. Ausência de Intervenção do Ministério Público. Discussão a respeito da necessidade ou não de intervenção do órgão do Parquet a partir da edição da Lei 11.101/2005. 01. ‘O fundamento da intervenção no processo de insolvência civil ou comercial é o interesse público, que, nestas hipóteses, reside na necessidade de tutela do crédito, da fé pública e na preservação do tratamento igualitário dos credores, pilar da execução concursal falimentar.’ (APC n° 265183/2006, DJ de 25/07/2006). 02. ‘O Ministério Público deve manifestar-se, desde o momento em que é deduzido o pedido de falência em juízo, por qualquer dos legitimados processuais elencados no art. 97, incisos I a IV da Lei de Falências, pois a decretação da falência tem efeitos graves na economia, sendo necessário e imprescindível que o Ministério Público, como fiscal do fiel cumprimento da Lei, seja chamado a opinar antes da sentença, analisando detidamente a presença dos requisitos e dos pressupostos legais, antes de proferir sentença de quebra, determinar o processamento da recuperação judicial ou decretar de plano a falência’ (APC n° 26518-3/2006, /DJ de 25/07/2006). 03. Recurso provido. Unânime. 141 E: Agravo de Instrumento. Decisão que decreta falência. Ausência de manifestação do Ministério Público. Interesse público. Entendimento de desnecessidade em face de omissão em nova Lei. Intervenção obrigatória. Arts. 127 da Constituição Federal e 82, inciso III do Código de Processo Civil. Nulidade. 1. A obrigatoriedade da intervenção do Ministério Público, em face do inquestionável interesse público envolvido nas causas dessa natureza, encontra suporte legal no artigo 127 da Lei Maior, bem como no inciso III do art. 82 do CPC. Conseqüentemente, a ausência de intimação do órgão ministerial importa nulidade do processo, nos moldes dos artigos 84 e 246 do Código de Processo Civil. 2. Recurso provido. Unânime. 142 Consideradas, assim, as teses acima delineadas, mostra-se patente, afinal, o entendimento no sentido de que o veto ao artigo 4° da lei em voga não limita a atuação do Parquet às ocasiões determinadas pelo legislador e tampouco exclui ou desautoriza sua participação em situações outras não expressamente previstas na norma. 141 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 5ª Turma Cível. AGI. Acórdão n° 269904. Ementa: [...]. Relator: Romeu Gonzaga Neiva. Brasília, DF, 11 abr. 07. DJ de 10.5.07, p. 129. 142 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 3ª Turma Cível. AGI. Acórdão n° 274257. Ementa: [...]. Relator: Mário-Zam Belmiro. Brasília, DF, 14 mar. 07. DJ de 28.6.07, p. 96. CONCLUSÃO Ao final dessa breve análise acerca da (i)legitimidade do órgão ministerial para atuar na condição de interveniente (custos legis) nas ações falimentares, em especial no que respeita à fase pré-falencial, exsurge patente e necessário o reconhecimento da salutar importância da intervenção do Ministério Público em tais espécies processuais. Nesse contexto, impera considerar o universo normativo em que se situa o Parquet, concebendo-o em seus aspectos histórico e sociológico, bem como analisar o arcabouço legislativo que lhe confere atribuições interventivas na seara do direito processual. Em princípio, cumpre ressaltar que, sob a ótica social, o texto constitucional pátrio, ao estabelecer o primado do “Estado Democrático de Direito” a caracterizar a República Federativa do Brasil, apresentou terreno fértil ao estabelecimento de uma instituição defensora dos interesses da sociedade e garantidora da fiel consecução dos propósitos jurídicos almejados por esse Estado. Assim, os princípios norteadores de um Estado democrático de direito prestam-se a estabelecer diretrizes a serem observadas quando da execução das funções estatais. Ademais disso, por meio dos institutos da soberania e da legalidade, máximas basilares do Estado Democrático de Direito, justifica-se a outorga de “poderes” ao Ministério Público para zelar pelos interesses por eles (institutos) objetivados. Nesse sentido, legitima-se a função jurisdicional atribuída ao Parquet. 54 Ao se considerar o componente histórico concernente ao Ministério Público, tem-se que já em seus primórdios como instituição organizada, em terras francesas, onde se lhe conferiu a designação hodiernamente utilizada com contumácia (Parquet), o órgão tinha por atribuição a salvaguarda dos interesses estatais. No Brasil, o órgão ministerial encontra disciplina legal no texto constitucional, no qual se apresentam o conceito da instituição e suas atribuições primordiais, e no estatuto processual civil, no qual se apontam outras situações em que a intervenção do Ministério Público se faz necessária. Permite-se afirmar, a partir da leitura interpretativa do texto constitucional, que a garantia de realização da justiça é a função precípua do órgão, porquanto a ele incumbe “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais individuais indisponíveis”. O Código de Processo Civil, por sua vez, estabelece em seu artigo 82 outras ocasiões em que competirá ao Parquet intervir. Sobrepujando às demais, em razão da relevância ao estudo que se realizou, a obrigatória intervenção ministerial nas “causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte”, afigura-se como mecanismo de asseguração e materialização da função jurisdicional do Estado, outorgada ao Ministério Público por determinação constitucional e cujo descumprimento enseja nulidade processual. Destarte, o confronto das normatizações constitucional e processual civil, ao se trasladarem as duas disciplinas a um mesmo plano de análise, revela a proximidade das vontades legislativas nelas contidas. Assim o é que os “interesses indisponíveis” previstos no estatuto processual guardam estreita correlação com a idéia de “interesse público”. 55 Nesse sentido, os direitos indisponíveis, uma vez que regidos por lei de ordem pública, revestem-se de inegável interesse público, encontrando a legitimação do Parquet, por conseguinte, duplo respaldo no ordenamento jurídico brasileiro. Insere-se, nessa conjuntura, a tutela ao crédito, eis que o mesmo se caracteriza por patente teor publicista. O interesse público, nesse caso, é facilmente vislumbrado pelas eventuais repercussões causadas no âmbito sócio-econômico, quando da hipótese de abalo a essa instituição crédito. Tem-se, pelo mesmo raciocínio, a publicização do instituto falimentar. Via de conseqüência, mister reconhecer que a legislação afeta à falência afigura-se como norma de ordem pública. Reconhecendo, pois, tal circunstância, a legislação falimentar revogada, a saber, o Decreto-lei n° 7.661/45, previu a atuação do Ministério Público em todo o processo falimentar. Assim, o artigo 210 daquele regulamento impunha a atuação do Parquet nas oportunidades em que entendesse necessário ao resguardo dos interesses da Justiça. Primou, então, o legislador pela garantia da tutela estatal, legitimando o órgão ministerial para tal escopo, visto que evidente o interesse público contido na lei de falências. A nova regulamentação, contudo, olvidando essa peculiaridade atinente à norma falimentar (ordem pública), quedou-se omissa quanto à necessidade de intervenção ministerial em todo o processo de falência, em especial, no tocante à fase pré-falimentar. Tal omissão não se motivou, todavia, por ausência de previsão no Projeto-de-Lei que deu origem 56 à Lei n° 11.101/05, mas pelo veto presidencial ao artigo 4° daquele projeto, disciplinador da intervenção do Ministério Público. Essa ausência de disposição específica promoveu, a partir da vigência do diploma legal, uma série de questionamentos e a controvérsia doutrinária acerca do tema. A corrente doutrinária contrária à atuação do Ministério Público na fase préfalencial argumenta que os interesses que constituem objeto das ações em comento teriam natureza privada, não cabendo, portanto, ao Parquet velar por eles (interesses). Ademais, alega-se que a intervenção ministerial emprestaria maior morosidade à ação falitária. Noutro giro, têm-se os jurisconsultos que, refutando a tese da ordem eminentemente privada concernente aos interesses havidos na demanda falimentar, informam o patente interesse público que circunda esse processo. Nesse diapasão, mostra-se conveniente a lembrança do caráter publicista atribuído ao crédito - conforme já mencionado -, o qual se revela como alvo primeiro da proteção desejada pela legislação de Falência. Sobrelevando-se, pois, como lei de ordem pública, conquanto encerrando interesse público, o estatuto falimentar exige, assim, a tutela do Estado, consubstanciada, então, na presença processual do Ministério Público. Ainda, a questão da morosidade processual resta afastada pelo argumento de autores alguns que, considerando a prática forense, aponta o Parquet como catalisador desses processos, providenciando, em suas incumbências, diligências e expedientes eficazes, os quais, ao revés do que afirma a tese opositora supracitada, imprimem bom andamento ao feito. 57 Dessa forma, imperiosa se faz, afinal, a constatação de que, ainda que não explicitamente determinada pelo mandamento legal, a legitimidade do Ministério Público desponta existente para a tutela do patente interesse público regente das ações falimentares, eis que conferida (a legitimidade) pelos estatutos guarnecedores da necessária atuação ministerial em defesa dos interesses público e indisponíveis, estatutos esses que são, registrese, o regulamento processual civil brasileiro e a Constituição da República Federativa do Brasil. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. ______. 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