EDITORIAL
Numa época que alguns insistem em considerar "pós-moderna", que
interesse poderá haver em ocupar-se do pensamento e obra de um
fdósofo como Descartes, considerado por muitos como o verdadeiro
iniciador da Modernidade enquanto assumida consciência de si, e por
quase todos como o mais característico representante do espírito dos
tempos modernos, da confiança no poder da razão para dominar a
natureza pela ciência e pela técnica? Que poderá dizer-nos hoje Descartes? Que virtualidades poderá ainda esconder a sua filosofia? Que lucro
poderá haver em revisitar as modulações - transformações, subversões,
inversões, desconstruções - sofridas nos últimos quatro séculos por
alguns dos temas cartesianos (a subjectividade, o estatuto do sujeito, a
ideia de mathesisj e alguns dos respectivos e qualificados intérpretes
históricos, que assim se movimentam no "círculo cartesiano"?
Em processos sumários instaurados contra a "razão geométrica" e a
"ideologia tecnocientífica", Descartes é do número dos mentores a
abater. Em três séculos e meio de hermenêuticas do cartesianismo sempre se apontaram os "erros" de Descartes. Isso era, em todo o caso,
compensado pelo reconhecimento do irrecusável significado histórico e
filosófico das principais doutrinas do filósofo do cogito. Hoje, porém, em
vez de comemorar e reler Descartes, não seria antes preciso definitivamente, abandonar ou mesmo "queimar Descartes", como o sugere o
título de obra recente?
Mas será mesmo verdade que sabemos tudo acerca de Descartes e
que podemos dispensar qualquer novo confronto com a sua filosofia?
Ou, pelo contrário, a obra do filósofo da dúvida metódica continua a ser
a máscara que esconde o sentido do verdadeiro pensamento do seu
autor? Será possível ler Descartes e descobrir no seu texto algo que
ainda não tenha sido advertido, ou pelo menos ainda não suficientemente advertido? Poderia o filósofo dizer, depois de três séculos e meio de
exegeses cartesianas, aquilo que de si escreveu numa reflexão juvenil:
"ando disfarçado" (larvatus prodeo)?
Descartes continua a desafiar e a provocar os que com ele se defrontam, não menos do que o faz aquele olhar, simultaneamente decidido e
enigmático, que Frans Hals fixou no retrato do filósofo. A sua filosofia
permanece sob o signo da ambiguidade e consente novas leituras. Pode
ser requisitada para o universo mental da Idade Média ou lida como a
própria constituição e a legitimação da Modernidade. Nos mesmos
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Editorial
interstícios da sua ordem e cadeia das razões surpreende-se o poderoso
funcionamento retórico das imagens. No certificado rigor do método que
visa a objectividade do conhecimento insinua-se a intensa vivência duma
poética do pensar.
A saída do presente número de PHILOSOPHICA coincide com a realização, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, nos dias 27¬
-29 de Novembro, do Colóquio Internacional DESCARTES, LEIBNIZ E A
MODERNIDADE, no qual cerca de quatro dezenas de especialistas e
investigadores nacionais e estrangeiros procedem à releitura da obra
daqueles dois filósofos modernos, de quem se comemoram no presente
ano, respectivamente, os 400 anos e os 350 anos do nascimento. Sabe-se
hoje que os dois filósofos desenvolvem matrizes de pensamento autónomas, mas ainda assini estão histórica e filosoficamente unidos por mais
de um motivo. A ocasião é também propícia para um balanço crítico e
reflexivo sobre a Modernidade, no decurso do qual talvez se torne
manifesto não só que a Modernidade ainda não foi exaurida e que
permanece um projecto por concluir, mas também que muito do que se
exibe como "pós-moderno" corresponde a esse ainda inconcluso projecto dos Modernos. Ou, quem sabe, talvez se venha a reconhecer que há
razão para dispensar definitivamente o sujeito, a Uberdade, a mente, a
razão, o fundamento e outras ficções do género.
PHILOSOPHICA associa-se à dupla comemoração dedicando o presente número ao estudo de alguns aspectos da obra daqueles dois filósofos e à recepção de alguns dos tópicos maiores do respectivo pensamento. Mas já no seu último número (Abril de 1996) se abrira nela o dossier
Descartes com duas intervenções no debate a propósito da recente obra
de António Damásio, O erro de Descartes (Publicações Europa-América,
1995).
Já não somos e talvez nem possamos mais ser cartesianos nem
"modernos". Mas precisamente por isso se torna proveitoso um confronto com a filosofia cartesiana e seus destinos. A uma maior distância
não só se revelarão porventura facetas dela ainda não postas em
evidência, como sobretudo se poderá compreender, nestes nossos tempos
de confusões holísücas e de místicas da complexidade e do caos, que há
algo de são na proposta de uma filosofia da clareza, das ideias simples,
da ordem e do método. Na época da "condição pós-moderna" em que se
generaliza a ideia de que o conhecimento é algo feito, distribuído em
rede e pronto a consumir, e quando se aliena nas máquinas a tarefa de
pensar e se difunde a crença no admirável mundo da inteligência artificial, há algo de libertador na cartesiana confiança no poder e autonomia da luz natural da razão, no testemunho de que o pensar é uma
experiência pessoal e gratificante de espontânea criação do espírito.
Leonel Ribeiro dos Santos
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