Introdução
FERNANDO CATROGA
PEDRO TAVARES DE ALMEIDA
Recorde-se que o termo res publica – coisa do povo – foi criado pelos romanos
para traduzir a palavra grega politeia e conotar uma comunidade política correctamente
organizada: aquela em que prevaleceria a vida boa sobre os interesses exclusivamente
particulares. Ideal a que também se chamará virtude política. Para isso, ter-se-ia de
saber combinar o melhor de cada tipo “constitucional” conhecido e evitar os seus
contrários (tirania, oligarquia, oclocracia). De onde a sua caracterização – herança grega
– como sistema “misto”, “ponderado”, “equilibrado”, pois, por ele, todos os que
gozassem de capacidade cívica teriam participação no governo da coisa pública. O que
implicava a institucionalização do confronto deliberativo dos interesses, em ordem a
alcançarem-se os consensos necessários para a superação, pelo uso da palavra e da
razão, do homem natural pelo homem animal político.
Estas premissas são o núcleo forte do ponto de partida do projecto que, agora, se
dá a ler – e a ver – sob o título de Res publica: Cidadania e Representação Política em
Portugal, 1820-1926. E a sua integração no contexto das comemorações do centenário
da implantação da República em Portugal é pertinente. Com efeito, a ideia de revolução
que a impulsionou, se prometia rupturas, também desejava aprofundar o que, na história
do povo português, podia ser eleito como momento precursor da democratização do
país, com destaque para as revoluções Vintista, Setembrista e Patuleia.
É verdade que o regime republicano se opunha ao monárquico. Todavia, se,
durante séculos, fez doutrina a tese segundo a qual a monarquia geraria,
inevitavelmente, a tirania, há muito tempo se achava que aquela, desde que não
concentrasse o poder nas mãos de um só, poderia ser, tal como a república na sua
acepção estrita, politicamente virtuosa. Além do mais, várias experiências históricas
mostravam que as repúblicas também podiam degenerar em cesarismos e despotismos
diversos. Daí que, quando, em nome dos direitos naturais do homem e das novas teorias
sobre o pacto social, na Europa continental, o absolutismo começou a ser derrubado e se
iniciou a difícil constitucionalização (escrita) do princípio monárquico, este aparecesse
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qualificado como uma “monarquia cercada por instituições republicanas”, lugar onde o
próprio rei não podia furtar-se ao império da isonomia.
Este contexto justifica o horizonte cronológico escolhido, tendo em vista captar
as mudanças e as continuidades que o atravessaram. Rejeitado o mandato imperativo e a
reposição do modelo da representação corporativa – o que não significou que, em novos
contextos, a sua proposta não venha a ser reactualizada, ou que tenha conhecido um
suplemento de vida na segunda câmara prevista pela Carta Constitucional (1826) –, um
novo fundamento para o poder é convocado: a soberania nacional, preceito que será
compartilhado pelas Constituições monárquicas de 1822 e 1838, e pela republicana de
1911. Seguia-se, assim, a lição francesa (materializada na Constituição monárquica de
1791 e na espanhola de 1812), já que nem sequer os republicanos acolheram a tradição
do republicanismo baseado na soberania popular. O que ajuda a perceber melhor, tanto
a recusa da democracia directa e do sufrágio universal, como a longa incapacitação
(como eleitor e como elegível) do vasto campo dos chamados cidadãos passivos,
justificada por critérios patrimoniais, de cariz “iluminista” e de género. E os
republicanos, apesar de, na fase da propaganda, terem prometido alterar as coisas, não
romperam com tais restrições. Seja como for, em todo o período em análise, verifica-se
que a passagem da soberania nacional, de potência a acto, teve no indivíduo-cidadão o
mediador por excelência da escolha dos seus representantes. Tratava-se, porém, de uma
representação indirecta e nacional, onde aqueles deviam agir de acordo, não com
interesses particulares e localistas, mas à luz do que a razão ditava como o mais
adequado ao bem comum. Só assim a lei seria virtuosa, requisito que tinha na separação
e equilíbrio dos poderes a outra face da sua concretização.
Postulada a soberania como una e indivisível, também una e indivisível teria de
ser a nação que lhe dava alma e o Estado que a corporizava. Se estas características são
comuns aos paradigmas externos de referência, não se olvida, contudo, que, em
Portugal, o processo de constitucionalização também quis nacionalizar a ideia de
Império. Esse já foi o grande desígnio da Constituição de 1822 e, perdido o Brasil,
continuará a sê-lo até à descolonização. Aqui se finou o sonho de uma só nação, do
Minho a Timor.
Por sua vez, dela igualmente derivaram outras consequências institucionais, que
se irão reflectir, quer na adopção do unicameralismo (1822) e do bicameralismo (Carta
Constitucional de 1826; Constituições de 1838 e de 1911), quer nos debates sobre a
formação da Câmara Alta (nomeação régia, eleição corporativa, eleição directa). E se,
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na lógica vintista (como mais tarde na republicana), o princípio da soberania nacional
encontrava na clássica divisão tripartida dos poderes a chave para o seu equilíbrio, é um
bom motivo de reflexão a circunstância de, devido à sua inspiração ecléctica, a Carta
Constitucional (outorgada por D. Pedro em 1826) ter previsto, como acontecia no seu
modelo brasileiro (1824) um quarto poder: o poder moderador do rei, provido de dois
instrumentos fundamentais, a saber, os direitos de veto e de dissolução. Esta
capacidade, ligada ao poder legislativo de uma segunda câmara de origem aristocrática
e de nomeação régia, marcará o constitucionalismo português oitocentista e levará a que
o regresso à auto-suficiência da soberania nacional venha a ser uma das principais
reivindicações dos movimentos políticos mais progressistas.
No entanto, apesar da profissão de fé no equilíbrio dos poderes, é um facto que,
na representação parlamentar residia a manifestação mais genuína do querer da nação e
dos respectivos mecanismos de formação. Por isso, ela foi aqui escolhida para
desempenhar o principal papel de protagonista de uma história que, necessariamente,
terá de surpreender as traves mestras que a fazem funcionar. Pelo que à sua narração
não pode ser estranha nem a emergência e a manipulação da opinião pública, nem o
aparecimento de sociabilidades criadas para fomentar e sustentar concorrencialmente as
candidaturas (comités eleitorais, clubes, partidos políticos), nem os actos eleitorais em
si mesmo e as respectivas publicitações, nem as denúncias da sua frequente corrupção
clientelar. E, para melhor se aquilatar o âmbito transnacional de todas estas
características, também se procurou suscitar a comparação com outras experiências
históricas (França, Espanha, Brasil, Estados Unidos da América, Suíça).
Saber como se elege, exige conhecer quem se elege. Problema maior na
sociologia histórica da representação política, ao qual o caso português junta algumas
especificidades. De facto, se, regra geral, a edificação e consolidação de um novo tipo
de Estado e de uma nova ordem social deram primazia ao saber jurídico, em Portugal,
porém, certos sectores ganharam uma maior relevância. Foi o caso do relativo peso das
forças armadas na vida política, instituição presente não só nos momentos
(revolucionários e contra-revolucionários) de mudança, mas também no seio do
Parlamento, num claro reflexo da posse, por alguns dos seus oficiais, de um saber
técnico cada vez mais necessário para a modernização da sociedade.
Algo de parecido se detecta em relação aos médicos, tanto no período vintista,
como depois, em particular após a instauração da República. Detentores de uma ciência
prática que credibilizava o consórcio iluminista entre conhecimento e progresso, nos
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finais do século XIX e inícios do século XX, eles verão aumentada a sua notoriedade
(política mas também profissional) com a transformação da ciência em ideologia do
progresso e da emancipação.
Já alguém chamou ao Parlamento a “forja da lei”. E esta é, com efeito, a
finalidade última que lhe está atribuída pela constitucionalização da soberania. Tarefa
da palavra e da razão argumentativa, mas a que não falta algo sem o qual o contrato
social se quebraria: o halo do sagrado que dá aura à legitimidade. Revela-o, por
exemplo, a adjectivação quase religiosa com que, nas conjunturas primevas, se qualifica
a Constituição ou os constituintes, ou a natureza dos juramentos com que se afirma a
autenticidade do compromisso que se toma para com a defesa da coisa pública.
Destarte, compreende-se que o Parlamento surja, amiúde, sob o símile da “casa”, mas,
sobretudo, do “templo”, consagrado e consagrador, porque espaço pontuado por práticas
rituais, incluindo as das liturgias em que, sobre o livro sagrado ou não, se jura e
civicamente se consagram investiduras e aclamações.
Esta é a história que se quer contar. E não duvidamos que, quando, a 24 de
Janeiro de 1821, foram declaradas abertas as Cortes Gerais e Extraordinárias, os
primeiros constituintes, eleitos à moderna – mas sem deixarem de idealizar a memória
da medieva “constituição histórica” da nação –, tinham a certeza de que estavam a viver
um momento simultaneamente renascente e fundacional. E, sem se ignorar as
alterações, os choques e as próprias alternativas de regime que virão a acontecer, esta
releitura visa mostrar que ali se iniciou um longo ciclo que só terminou quando, na
sequência do golpe de Estado de 28 de Maio de 1926, ocorreu no Parlamento, três dias
depois, o que o Diário das Sessões sumariou deste modo sibilino: “Feita a chamada
verifica-se que se encontram presentes 37 Srs. Deputados. Como não haja número
regimental, o Sr. Presidente assim o declara. Encerra-se a sessão legislativa. Erguem-se
vivas à República”. O templo da palavra fechava portas para dar lugar ao tempo do
silêncio.
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