Curso Online A Escola no Combate ao Trabalho Infantil
Professora Mary Del Priore1
Vídeo Aula 32
A Infância como Construção Histórica – Séc. XX3
Se o século XIX colocou muito à vista das autoridades este contingente enorme de
crianças que trabalhavam, de crianças pelas ruas, de pivetes que enchiam as manchetes
de jornal, e nós temos a partir de 1902 o início da criação de Casas de Correção, que
deveriam funcionar um pouco como lugares de drenagem, para limpar as grandes urbes,
as grandes cidades afrancesadas dessa “sujeira” que estas crianças significavam, é a partir
da República Velha que os nossos políticos vão fazer da criança uma espécie de bordão
para os seus discursos.
Isso que é muito comum hoje, de político prometer escola, prometer cuidar de
crianças abandonas, ou dar um destino melhor às nossas fundações onde os menores
criminalizados estão presos, este discurso vem lá de trás. Só pra dar um exemplo, em
1917, quando da campanha presidencial, tanto Rui Barbosa, quanto Washington Luiz se
digladiaram em público, várias horas, tentando pensar uma solução para as crianças
brasileiras.
Mas, uma questão: onde é que estava a escola nesse momento? Fazendo um
esforço danado para aparecer. É fundamental a presença de anarquistas italianos e
espanhóis dentro das fábricas e na criação de jornais anarquistas e operários, que batiam
tambores, chamando a atenção para a falta de escolas, para a falta de estruturas das
escolas já existentes e, mais do que isso, os anarquistas criaram escolas. Edgar Leuenroth,
por exemplo, em São Paulo criou uma escola justamente para proteger estas crianças de
serem drenada para dentro da profissionalização precoce. Isto serve para mostrar que os
políticos estavam preocupados com o destino da criança, mas não estavam preocupados
com a escola. Graças ao trabalho de operários anarquistas e pessoas que estavam
qualificadas intelectualmente, começou-se a prestar atenção na escola pública e começou
a se multiplicar a escola pública no Brasil.
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Mary Del Priore é historiadora com doutorado em História Social e pós-doutorado em História da América
e do Brasil.
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Foram feitas apenas as adaptações necessárias à transposição do texto falado para o texto escrito.
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A presente aula foi gravada em 2009, pouco antes do Estatuto da Criança e do Adolescente completar 20
anos. As informações sobre história da infância e adolescência no Brasil continuam atuais.
Nesse momento colocava-se outro problema: se estava todo mundo na cidade,
quem é que ia cuidar da vida rural, da vida no campo? Os políticos encontraram uma
excelente solução: as crianças, os ‘novos imigrantes’. Os imigrantes estavam nas fábricas
trabalhando, são adultos, temos uma legislação que de certa maneira proíbe que as
crianças fiquem diante de grandes máquinas, “então vamos mandá-las para o campo”.
A partir de 1920 são criados os primeiros estabelecimentos agrícolas para onde são
encaminhadas estas crianças que são tiradas das ruas das grandes cidades, na tentativa
de transformá-las em grandes lavradores, em pessoas que tivessem conhecimentos
botânicos e de agricultura. É interessante que estas escolas, quando nascem, possuem
uma agenda bem interessante, na tentativa realmente de aproximar as crianças de uma
qualificação profissional adequada, da mesma maneira que os institutos penais
procuravam, na época, qualificar as crianças para um trabalho posterior. Para a criança
pobre, para a criança desfavorecida, sempre o trabalho profissionalizante, para a criança
rica, uma educação que a permitisse se desenvolver.
No caso destas instituições de guarda de menores infratores, o currículo era
riquíssimo, ia desde língua portuguesa, literatura, gramática, matemática, biologia, química,
física, até uma coisa que para nós hoje seria praticamente impensável, que era o preparo
para a criança fazer funcionar armas de fogo. Porque como nosso exército nesse momento
estava procurando uma qualificação, estava dando os primeiros passos para a sua
modernização, inclusive com, a presença de militares estrangeiros, caso, por exemplo dos
franceses, que vieram para o Brasil tentando qualificar melhor o nosso exército, a idéia dos
políticos era que estas crianças depois pudessem integrar as armas e servir a nação. Quer
dizer, se eles não tinham mãe, não tinham pai, não tinham casa, a casa seria a nação, a
mãe seria a pátria, e nós estaríamos formando bons soldados.
A Família ao Longo da História Brasileira
É bom lembrar também que durante o governo do Getúlio Vargas, sobretudo na fase
da ditadura houve uma preocupação grande não só com as crianças desfavorecidas, mas,
sobretudo, com a família. Eu gostaria de encaminhar também a nossa conversa, um pouco
para esta questão da família e do papel das relações entre pai, mãe e filhos.
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Getúlio Vargas tinha uma preocupação enorme em, de alguma maneira, consolidar a
família burguesa, a família casada perante a Igreja. Ele vai fazer uma excepcional aliança
com os bispos brasileiros nesse momento, inclusive promovendo uma campanha enorme
contra concubinatos, contra amasiamentos, sobretudo entre operários e trabalhadores. A
idéia é que o Brasil começasse a se destacar como um país educado, de famílias
organizadas, uma sociedade organizada. O bordão desse movimento era “Casar ou
Largar”, que era um bordão até bastante “sui generis”.
Na preocupação de Getúlio com as crianças desgarradas, as crianças que não
tinham família, ele resolve chamar para o Estado a responsabilização por estas crianças.
Nasce o Serviço de Atendimento ao Menor - SAM, em 1946, que depois vai se transformar
em FEBEM, em FUNABEM. Isso é assunto para especialistas dessa questão.
Mas eu gostaria de voltar à questão da família no passado. Como é que uma criança
podia ser abandonada, como é que uma criança podia ficar exposta, como é que uma
criança podia ficar sem educação, e qual a sua relação com a família. Nós podemos
imaginar que no passado não houvesse amor materno? Não. Nós temos testemunhos
eloquentes desse amor paterno, em vários processos que nós podemos encontrar, do
século XVII e XVIII, e mesmo em testamentos deixados por mães que, no momento da
morte, manifestam aos seus parentes, aos seus compadres e comadres, a maior
preocupação com o destino dos seus ‘filhinhos do coração’. Eu posso dizer para vocês que
para um historiador é comovente encontrar estas expressões de amor e afeto.
Nós vemos também a luta de mães para resguardar os seus filhos em determinadas
circunstâncias terríveis, como é o caso da Guerra do Paraguai, momento em que as
crianças encontradas nas ruas eram drenadas pela marinha brasileira, para dentro dos
seus quadros, para servir na Guerra do Paraguai, muitas vezes para ficar carregando
munição de um lado para o outro, sendo ‘bucha de canhão’, e atuando como grumetes 4
nas nossas embarcações durante a guerra. Pois nesse momento nós sabemos que
existem cartas belíssimas de mães escravas, pedindo ao Imperador D. Pedro II que não
deixasse seus filhos irem para a Guerra do Paraguai, porque aqueles filhos eram a última
coisa que elas tinham, senão a única coisa que elas tinham.
São muito comoventes também os bilhetes que foram encontrados na
documentação das Santas Casas de Misericórdia, mostrando que muitas mães que
abandonavam os seus filhos o faziam por absoluta indigência, pobreza, nenhuma condição
de criá-los. São bilhetinhos amorosos, pedindo que aqueles funcionários cuidassem bem
dos seus filhos. Muitas deixavam roupinhas tricotadas ou confeccionadas por elas, para
abrigar aqueles filhinhos. Algumas, inclusive, davam nomes estranhos aos seus filhos,
como por exemplo, Napoleão ou Marco Polo, nomes diversos daqueles que nós tínhamos
comumente no Brasil (João, Jose), na tentativa de que um dia, voltando a Santa Casa de
Misericórdia, elas pudessem identificar no meio de dezenas de ‘Joãos’ ou de ‘Josés’, o seu
Napoleão. Estas manifestações do amor materno são muito eloquentes e nós temos
inúmeros testemunhos desse tipo.
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Categoria inferior de marinheiro. Aprendiz que faz trabalhos pesados nos navios.
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Podemos imaginar que as coisas mudaram nos dias de hoje e que estes laços
familiares que foram uma grande preocupação dos políticos, dos religiosos, dos moralistas
durante quinhentos anos, hoje estejam mais fluídos, inclusive fazendo com que nós ainda
não olhemos as nossas crianças com o devido respeito. Há alguns dados que são
importantes historicamente.
A partir dos anos 80, uma grande migração campo-cidade ocorreu em todas as
grandes cidades do Brasil. Esta é também a década em que a mulher brasileira vai passar
a controlar a sua sexualidade graças à chegada da pílula anticoncepcional. É um momento
em que um contingente importante de mulheres entra para o mercado de trabalho e as
crianças vão ficando sozinhas em casa, na frente da televisão, e hoje na frente do
computador.
Devemos imaginar que nas camadas pobres o problema é mais grave e que ali haja
mais desamor? Não. Nós sabemos, também a partir de trabalhos de sociólogos, que nas
comunidades pobres existe um fenômeno que é interessante que é o da circulação de
crianças entre a casa de mulheres que não vão trabalhar, e que olham os filhos de outras
para que estas possam trabalhar. Assim, não vamos colocar a questão como uma falta de
amor materno, mas talvez fosse interessante nós fecharmos este nosso bate-papo, nos
perguntando qual é a situação das mulheres brasileiras hoje, qual é o papel que elas
querem para elas.
Durante mais de 500 anos o único papel das mulheres brasileiras foi ser mãe. A
maternidade era a coisa mais importante na vida de qualquer mulher. Sobre a nossa
conhecida Princesa Isabel, por exemplo, pairaram inúmeras histórias e anedotas porque
durante mais de dez anos ela não conseguia engravidar e não conseguia dar um herdeiro
ao trono brasileiro. Não ter filhos, não poder criar seus filhos era um verdadeiro castigo
para as mulheres brasileiras.
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As coisas mudaram, e as mulheres perderam o enorme poder que tiveram de ter
famílias numerosas, de cuidar individualmente de cada um de seus filhos, de administrar
seus casamentos, fazê-los trabalhar aqui e ali. Isso ocorria em todos os níveis sociais,
porque quando pegamos as listas nominativas, que são um documento importante para os
historiadores do século XIX, percebe-se claramente que são as mães que vão definir a
trajetória que cada um dos filhos vai ter, que vai fazê-los trabalhar em tal e qual atividade. A
mulher no passado tinha, através da maternidade, um poder que era fantástico. Era ela que
cuidava dos seus filhos, pois não havia pediatra e nem médico, era ela que dava formação
oral e espiritual, pois naquela época não tinha catequese e não tinha iniciação na igreja.
Elas, de alguma maneira, administravam os bens da família e hoje, por conta do
individualismo, por conta das mudanças da vida moderna, mudanças que muitas vezes
punem terrivelmente as mulheres que ficam à frente de suas famílias, muitas vezes sem
companheiros, tendo que educar sozinhas os seus filhos, cansadas, chegando em casa
muitas vezes depois de uma dupla jornada de trabalho. Estas questões todas que dizem
respeito ao amor materno e a educação hoje merecem de todos nós, que somos
educadores, que somos professores, uma profunda reflexão.
Olhar para trás, para a história do Brasil, nos ajuda a entender por um lado que se
não somos sensíveis ainda àquela criança que nos faróis, nos sinais se aproxima de
mãozinha estendida, em busca de um auxílio, é porque nós conhecemos esta criança há
mais de 550 anos. Foi ela que veio na caravela, foi ela que veio trabalhar com o Jesuíta, foi
ela que veio como escrava, foi ela que veio como operária, ela está ai. Nós não temos
nenhuma sensibilidade frente a esta criança, porque ela não nos apresenta nada de novo.
Pensar qual é o papel que nós, como cidadãos, estamos fazendo não lutando por
um apoio cada vez maior à educação, esta educação que deve ser de todos. Esta era a
grande preocupação, por incrível que pareça, de Getúlio Vargas, lá atrás. Ele queria que
todas as crianças estivessem na escola.
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Nós como cidadãos não termos um comportamento mais engajado em relação às
crianças de rua, inclusive ouvindo estas crianças, porque elas têm uma história a nos
contar, têm o que nos dizer a respeito do que foi a sua infância, ou do que foi a sua
adolescência, enfim, estes são temas que eu acho que devem ser trabalhados em sala de
aula, devem ser trabalhados individualmente por cada um de nós, que somos educadores.
Obviamente contando com o auxílio da história para entendermos que isso é uma tradição
de longa duração, que é preciso mudar, para nós qualificarmos o nosso país, para nós
conhecermos melhor as nossas crianças e, mais do que conhecer as nossas crianças, para
que nós possamos amá-las mais e melhor.
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