Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura
Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128
06 e 07 de agosto de 2009
UFS – São Cristóvão, Brasil
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O CONVENTO E SUA REPRESENTAÇÃO MÍTICO-HISTÓRICA EM
“ESTRADA DA LIBERDADE”, DE ALINA PAIM.
Fabiana dos Santos (UFS)
Alina Leite Paim, escritora sergipana nascida em Estância, em 1919, rompe com o
retrato da mulher como gênero menor refletindo sobre as relações históricas, sociais e de
gênero. Tendo como objeto de estudo o romance “Estrada da Liberdade” (1944), buscou-se
traçar um breve histórico da importância da imagem dos conventos e suas marcas na
formação e educação feminina a partir das memórias da protagonista Marina, uma jovem
professora em contato com a realidade de sua comunidade pobre em Salvador e que passa a
infância interna em uma destas instituições de ensino. Este estudo pretende identificar,
levando em consideração os aspectos históricos e míticos, algumas características recorrentes
dos conventos ao longo do tempo, o que nos leva, também, a uma observação do retorno do
mito da Grande Mãe. Este mito se refere a uma imagem interior que opera na psique humana
e sua recorrência em obras ficcionais nos permite variadas leituras. Este retorno se dá através
de imagens simbólicas particulares de cada arquétipo. Tudo isso influencia diretamente a
formação e amadurecimento da protagonista como mulher, educadora e cidadã. A autora,
atualmente estudada pelo GELIC, Grupo de Estudos de Literatura e Cultura da UFS, vem
sendo redescoberta como um dos grandes expoentes da literatura de autoria feminina e
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engajada na representação da voz da mulher em espaços de formação e, ao mesmo tempo,
opressão.
Alina Paim começou a escrever aos doze anos, mas publica seu primeiro romance aos
vinte e três, “Estrada da Liberdade” (1944), tendo grande sucesso e com a primeira edição
esgotada em apenas quatro meses. Segue-se uma produção de mais dez romances e quatro
obras infantis, sempre com críticas de uma autora de esquerda lutando pelas causas feministas
contra a opressão e o poder social.
Em “Estrada da Liberdade” somos apresentados a Marina, uma professora primárias
que passou a infância interna em um convento para estudar. Vinda de Sergipe para a Bahia,
após a morte da mãe, tem uma figura paterna distante e que é, naquele momento, sua ligação
com a terra natal. Vive com sua madrinha Edite, o padrinho Augusto e Roberto, o filho do
casal, por quem sente um carinho quase materno. Marina ministra aulas no mesmo convento
em que estudou, onde passa por várias experiências que refletem em sua vida adulta e também
trabalha em uma escola pública periférica que contrasta com as alunas do convento. São dois
locais opostos, o convento, onde a posição ‘castradora’ e elitista das freiras a incomoda, e a
escola pública, onde há liberdade, porém não há estrutura mínima para a educação.
Salvador crescia como cidade importante no contexto sócio-cultural. Centro religioso
de destaque, a cidade se destacou como o primeiro bispado da colônia portuguesa na América.
Desde sempre, a forte presença da Igreja se materializava nos edifícios e nas ordens religiosas
envolvidas com a missão de catequizar, educar, doutrinar e porpagar a fé cristã, a qualquer
preço. Já no século XVII, a cidade já possuía um número considerável de casas religiosas,
como jesuítas, beneditinos, franciscanos e carmelitas que tinham grande influência com
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população e funcionava como um elo entre a Europa e a América. Porém, nesta época, ainda
não contava com uma instituição exclusiva para a educação feminina, já que enclausurar
mulheres em colégios internos religiosos impedia o processo colonizador, isto é, impedia os
casamentos e, consequentemente, os nascimentos necessários para a povoação. Todavia, a
classe burguesa e proprietária baiana pedia a criação de locais para a reclusão e educação de
suas moças, já que muitas famílias enviavam suas filhas para conventos na Europa.
(FERREIRA,2006.p.62-63)
No fim do século XVII e início do século XVIII, essa necessidade de locais para a
educação feminina tona-se mais incisiva, já que a crise econômica do açúcar atinge a classe dos
senhores de engenho dificultando o envio de suas filhas à conventos europeus devido aos
altos custos. Enviar as filhas a estas instituições evitava que elas se casassem com homens de
situação financeira inferior ou gastassem com altos dotes em um casamento conveniente. O
enclausuramento também evitava o que era chamado de ‘impulsos da carne’, ou seja, as
paixões pelos jovens, locais ou européus, que colonizavam a cidade. Inicialmente, os
conventos baianos eram apenas casas de reculsão para a educação, sem necessariamente serem
feitos os votos religiosos, daí a posterior criação dos colégios dentro dos conventos sob a
responsabilidade das freiras. A primeira instituição a esses moldes ergue-se em Salvador em
1677, o convento de Santa Clara do Desterro e em 1739 é fundado o Convento da Soledade, o
terceiro maior convento em número de professores e para onde eram mandadas muitas
sergipanas (MOTT,2008.p.33-34). Estes iniciam a cultura do processo educacional feminino
realizado por religiosas e, depois deste, vários outros surgiram ao longo dos séculos, fazendo
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com que, já no século XVIII, Salvador fosse o grande centro de educação feminina religiosa e
recebendo moças de várias outros estados brasileiras, principalmente de Sergipe.
É visível a proposta educacional de afastamento do mundo profano onde, muitas
vezes, as reclusas não estavam ali por sua vontade, estavam ou por imposição familiar ou pela
falta de um responsável para sua educação, como as órfãos, fazendo parte de um projeto
moralizador da Igreja e da sociedade da época. As mulheres foram objeto do controle social, já
que eram consideradas facilmente influenciadas e pergiosas. Percebe-se que, na obra de Paim,
a internação em escolas de conventos se dá pelo cuidado da família com a formação espiritual
e moral da filha sem mãe, tranferindo o papel maternos para as madres, figuras de mãe. Ali,
Marina teria a formação para o papel de boa mãe, com formação religiosa, caráter moralmente
fortalecido, graças a experiência de reclusa, da obediência e submissão, além do domínio dos
conhecimentos escolares considerados necessários, como ler, escrever,contar, tomando
sempre o cuidado de averiguar que tipo de livros e informações teria contato para que o
trabalho educacional não fosse maculado.
Apesar do afastamento do mundo exterior, as internas sempre tentavam manter
contato com a vida externa. Comunicavam-se entre si trocando experiências com as recém
chegadas, com servas além dos limites permitidos, cartas e, principalmente, livros
considerados proibidos, o que não era bem visto pelas religiosas.
No texto de Alina Paim, um texto de resgate, todas essas características históricas
sobre os conventos baianos são observadas nas memórias e reflexões de Marina de sua estada
e seu trabalho no convento. Como já foi dito, Marina não tinha mãe e seria necessário outra
figura para este papel: as freiras do convento. O que nos remete ao arquétipo da mãe.
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Operando na psique humana, o arquétipo é composto por um conjunto de símbolos que
demonstram seus efeitos na composição da identidade humana. São estes símbolos que dão
visibilidade ao arquétipo. Nos estudos de Erich Neumann (1999) são distinguidos dois tipos
de caráter do feminino, o elementar e o de transformação. O caráter elementar é a tendência a
conservar a si mesmo gerando um eterno pertencer e mantê-lo assim próprio, o que é a
característica do maternal, podendo ser de modo positivo (provedor e protetor) ou negativo (
privação e repúdio). Já o caráter transformador enfatiza o elemento dinâmico da psique,
colocando em movimento algo já existente levando a uma mudança. Este caráter também
presente no feminino maternal, porém se diferencia. Percebe-se que Marina está para o caráter
transformador, assim como as freiras estão para o caráter elementar, por muitas vezes,
negativo.
O convento e as freiras se tornam uma das imagens do mito da grande mãe. O
convento funciona como um ‘útero’ que gesta estas meninas e as prepara, as forma, mental e
espiritualmente, para a vida. Afinal, é exatamente esta a função do útero feminino para com o
feto, prepará-lo para a vida exterior da melhor forma possível. Porém, existem várias formas
de preparação. Como a educação dos conventos esteve sempre aliada aos desejos de uma
sociedade patriarcal e aristocrática, essa ‘gestação’ está marcada por uma ‘castração’ no
crescimento destas internas. O convento também é frio, aprisionador, negativo, isto é, aquele
que tranca, aprisona para que o crescimento seja controlado. O controle físico e psicológico
poda o desenvolvimento de Marina e das outras meninas e, ao mesmo tempo, cuida e nutre.
As freiras haviam ensinado que o casamento civil devia ser olhado apenas como a
regularização de bens materiais, afinal não passava de um contrato; o verdadeiro
matrimônio era o católico – o sacramento intituído por Deus, o único que dava
realmente à mulher o direito de conviver com um homem sem estar cedendo
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apenas à voz dos instintos, sem tornar-se presa de paixões inferiores. Fora disso
existia o adultério, uma vida inconfesável.(PAIM,1944.p.43)
Nota-se, no texto de Paim, uma retomada de alguns aspectos da Mãe Terrível, ou seja,
aquela que cuida porém sufoca, priva e repudia, o que ,por muitos anos, foi a ‘função’ da
educação imposta nos conventos. Esta característica está na atitude das freiras, como por
exemplo, controlar a leitura das meninas do convento, privando-as da descoberta e da cultura
exterior.
O bauzinho prestara bons serviços quando era interna. Nele tinha guardado os
romances de contrabando. Quanto risco! As externas traziam os livros escondidos,
em segredo e as internas os trancavam no bauzinho, em segredo.(...) Marina estava
lendo Lucíola, Carmen tinha escondido Baronesa do Amor. Livros perigosos.
(PAIM,1944.p.16)
Como já dito, era cultural a ida aos conventos sem vocação, ou para preparação para
ser esposa e mãe, ou por imposição da vida religiosa ou, como mais recorrente, a decepção ou
inconformismo com a vida. Marina e suas colegas especulavam o porquê das freiras estarem
ali, vivendo daquela forma tão castardora. Seriam estas produtos da educação das ‘mães
terríveis’.
Viviam atentas, escutando as conversas para ver se descobriam porque as freiras
tinham entrado no convento. Tinham sido por desgosto, forçosamente. Ficaram
sabendo que Madre Helena perdera o noivo na grande guerra. Era um oficial
francês. Madre S.Vicente entrara para o convento porque o noivo viajara para o
Rio, deixara de escrever e havia casado com outra...Madre Tereza se apaixonou pelo
tio casado. Quando estavam nessas investigações, as freiras souberam e fora uma
campanha terrível. Madre Superiora dissera na conferência de sábado: “Minhas
filhas, entre vocês há maus elementos ue querem manchar com pensamentos
impuros e calúnias a vida das esposas de Cristo” (PAIM,1944.p.16-17)
Estas figuras que representam a mãe terrível, em muitos momentos, desacreditam de
seus ‘filhos’, como se estes tivessem a capacidade limitada e devessem ser reduzidos ao papel
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que lhes é imposto. No caso de Marina, criada na educação do convento e preparada para
casar e ser submissa, como é historicamente comprovado, ultrapassa essa função sendo uma
profissional, uma mulher que trabalha e passa a consumir conhecimento e cultura.
Estava diferente a voz da Madre Superiora. Seria mesmo satisfação?Por que não
acreditava? Os olhos cinzentos pareciam mais brandos,a pele avermelhada ficou
alguns segundos mais elástica. As rugas diminuiram.Madre Superiora devia estra
satisfeita. Essa desconfiança era injusta,era espírito previnido.(PAIM,1944.p.23)
O cotidiano do claustro era extremamente diversificado, pois incluía atividades ligadas
a religião, mas também práticas de disciplinarização, normalização e sociabilidade. Esse dia-adia era vivenciado por cada reclusa segundo as regras conventuais, o que não excluía a
possibilidade de formas diferenciadas de assujeitamento à mesmas. A normalização das
condutas das recolhidas enfrentou as mais distintas atitudes. Como toda relação de ‘mãe’ e
‘filho’, expresso no texto simbolicamente, as freiras realizavam exatamente este papel que vai
além do de educadoras, mas também o papel de controladoras, o que aparece inúmeras vezes
o texto de Paim pela a atitude das freiras para com as internas.
Desta forma, percebemos, neste breve estudo, o quanto a obra de Alina Paim é um
texto de resgate. Revievendo um fato historicamente comprovado, que ocorreu até poucas
décadas e ocorre, com menor freqüência, até os dias atuais, ou seja, o da educação nas mãos
de religiosas, Paim retoma o mito da Grande Mãe que está presente no insconsciênte coletivo
e individual.
O romance Estrada da Liberdade comprova ser o resultado de uma experiência
amadurecida que discute as formas educacionais dada a mulher. A personagem Marina viveu
uma educação historicamente patriarcalista e demonstrou isso em suas lembranças. Seu
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discurso ficcional denuncia esse tipo de educação muitas vezes encoberto e permite repensar
essa prática tão marcante do inconsciente. Vale salientar que Marina relembra porém luta
contra essa ‘castração’ interior gerada pela experiência do convento passando por um processo
de crescimento através da leitura se confrontando com essa ‘mãe terrível’ e quebrando as
correntes que a prendiam ainda ao interior do convento.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERREIRA, Adínia Santana. A Reclusão Feminina no Convento da Soledade: as diversas
faces de uma experiência. Orientadora Profª Drª Diva Muniz.Brasília: UnB, 2006.
MOTT,Luiz. Sergipe Colonial & Imperial – Religião,Família,Escravidão e Sociedade.São
Cristóvão:Editora UFS, 2008.
NEUMANN, Erich. A Grande Mãe. São Paulo: Cultrix, 1999.
PAIM, Alina Leite. Estrada da Liberdade. Rio de Janeiro: Editora Leitura, 1944.
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DE ALINA PAIM. Fabiana dos Santos (UFS)