Batalhando a crise passada Dizem que medidas econômicas servem para evitar a crise passada, não necessariamente a futura. A crise passada é revista, analisada e discutida. Novas medidas são propostas para evitar que a crise aconteça novamente. Evita-se repetir os erros anteriores. Mas desconhecem-se os problemas futuros. Há aqueles que consideram crises inevitáveis, pois ocorrem em áreas não afetadas anteriormente, nas quais os anticorpos dos agentes econômicos não foram criados. A crise financeira internacional está passando - pelo menos esta é a sensação atual - com o aparente fim da recessão global (na Ásia e no Brasil, estima-se que o fim da recessão tenha ocorrido no segundo trimestre; nos EUA e Europa, neste trimestre). Mas há muito a corrigir. Não se pode repetir os erros do passado. Houve excesso de alavancagem (muito risco incorrido), falhas regulatórias (pouco controle/fiscalização) e excesso de confiança macroeconômica (os bancos centrais no mundo acreditaram demais no seu próprio sucesso de baixa inflação com crescimento elevado). Há um longo e tortuoso caminho a percorrer para sanear o sistema financeiro internacional. Tão longo que provavelmente deve afetar a capacidade de crescimento das economias centrais nos próximos anos. Uma pergunta relevante para avaliar o avanço recente é se as medidas propostas até agora, se adotadas de forma diligente, seriam suficientes para evitar a crise que ocorreu*. Não me refiro à crise futura, com o seu componente natural de imprevisibilidade, mas à crise que acabamos de sofrer. Em particular, a proposta de reforma do sistema financeiro pelo governo americano resolveria os problemas que levaram à crise recente? Nos EUA, houve uma alavancagem excessiva e a criação do chamado sistema bancário “sombra”. Medidas regulatórias atuais não impediriam alavancagem excessiva do sistema financeiro. Houve a utilização de balanços de terceiros e de contabilidade criativa. A utilização de balanços de terceiros ocorreu com a securitização das hipotecas, que permitiu a distribuição desses ativos para os balanços de terceiros - como fundos de investimento e outros -, cuja restrição de capital é menor ou até inexistente. Para isso, houve a criação de veículos especias para carregar ativos, os “structured investment vehicles (SIV)”. Desta forma, criou-se o sistema bancário “sombra.” A proposta de reforma financeira nos EUA adota uma série de medidas com o objetivo de ampliar a restrição de capital e flexibilizar a adaptação da legislação às inovações do sistema financeiro. As principais medidas propostas são: (a) aumento à restrição de capital (em particular de instituições sistemicamente relevantes); (b) registro de todos os fundos junto à Securities and Exchange Commission (SEC); (c) mudança nas regras contábeis de consolidação das instituições financeiras relevantes; (d) regulação do mercado balcão de derivativos; e (e) consolidação da regulamentação das instituições financeiras sistêmicas (aquelas que representam risco sistêmico, se falirem) sob a égide do Fed. Essas medidas têm a intenção de restringir a alavancagem excessiva no sistema financeiro. A mudança na consolidação contábil das instituições financeiras relevantes, por exemplo, reduziria a capacidade de as mesmas se alavancarem via ativos fora do balanço. O aumento do capital legal dos bancos implicaria que apenas uma perda maior do que a ocorrida gerasse uma crise. A consolidação da regulamentação das instituições sistêmicas sob a direção do Fed vai na direção de evitar espaços não cobertos e diminuir conflitos entre as diferentes agência regulatórias, além de permitir uma atuação tempestiva das autoridades. Em suma, a reforma financeira nos EUA cobre alguns vácuos regulatórios, reduz alguns conflitos de interesse e, principalmente, coloca a responsabilidade de controle e regulação financeira das instituições relevantes sob a guarda do Fed. Mas se essas mudanças tivessem ocorrido no passado, a bolha nos preços de ativos teria sido evitada? Infelizmente, a resposta é negativa. Parece pouco provável que a consolidação da regulação no Fed, por exemplo, gerasse uma atitude diferente da ocorrida, haja vista a confiança na autorregulação dos mercados financeiros. É difícil imaginar que, antes da crise, no apogeu da visão do sucesso macroeconômico (o “Great Moderation”: baixa inflação e alto crescimento) e financeiro (autorregulação e inovações), o regulador (mesmo o Fed com maiores poderes) tomasse uma postura que restringisse a alavancagem. Inovações financeiras eram consideradas puramente avanços tecnológicos (e o são, mas sua difusão sem regulamentação adequada traz riscos ao sistema). Há diversos exemplos de medidas de desregulamentação financeira (e/ou de resistência à mais regulamentação financeira), que ocorreram nos anos anteriores à crise, com a anuência implícita do Fed. Um exemplo foi a resistência do Fed (sob a liderança de Alan Greenspan) à proposta de regular minimamente o mercado de “credit default swap (CDS)”. Enfim, o sistema financeiro provavelmente continuaria sujeito a riscos parecidos aos que desembocaram na crise passada. Isso significa que a crise poderá se repetir da forma como ocorreu recentemente? Pouco provável, dada a mudança aparente no conjunto de crenças existentes. A grande moderação macroeconômica do passado é hoje questionada, assim como o excesso de risco incorrido nos investimentos. Mas se o fim da recessão der lugar à complacência com os erros do passado, o excesso de otimismo pode voltar, e as mudanças nas regras não serão suficientes para evitar crises futuras, nem mesmo aquelas aparentadas com a crise anterior. * Para uma análise mais completa, vejam texto co-autorado com Roberto De Faria Almeida Prado para o e-book “A Reforma do Sistema Financeiro Americano”, do IEPE, Casa das Garças. Ilan Goldfajn é economista-chefe do Itaú Unibanco