“Nós vamos estar fazendo...” Monica Baumgarten de Bolle Economista, Professora da PUC-Rio e Diretora do IEPE/Casa das Garças (Artigo publicado em O Globo a Mais de 25/02/2014) “Caetés”, o primeiro romance de Graciliano Ramos, narra as desventuras de João Valério, rapaz de ideias grandiosas que tenciona escrever um romance sobre os índios canibais, mas que é rapidamente enredado pelas pequenezas de uma cidadezinha interiorana de Alagoas. Quando tenta escrever, fá-lo com displicência, má vontade e não sem algum cinismo: “corrigi os erros, pus um enfeite a mais na barriga de um caboclo, cortei dois advérbios, e passei meia hora com a pena suspensa”. Falta-lhe imaginação para escrever, embora conheça bem o ofício. Entra o viúvo Nicolau Varejão, homem simplório e supersticioso, mas cheio de imaginação. Diz ele: “Ideias não me faltam, mas de gerúndio não entendo”. Ao governo brasileiro, em contrapartida, faltam ideias e sobram gerúndios. O gerúndio, afinal, é uma ação que está, esteve ou estará em andamento, um processo verbal não finalizado. “Nós vamos estar reclamando, vamos estar enfatizando a injustiça de ver o Brasil classificado como um dos cinco países mais vulneráveis do planeta”, dizem as autoridades brasileiras, não exatamente com essas palavras. As autoridades brasileiras ficaram ofendidas e empertigadas com a classificação do Brasil no topo da lista dos países vulneráveis, de acordo com um relatório recente do Fed americano. A controvérsia gerou um debate infindável entre especialistas brasileiros sobre a metodologia usada pelo Banco Central dos EUA para elencar os países. No meio do caminho, todos deixaram de enxergar um fato incontestável: a vultosa exposição de grandes fundos americanos aos países emergentes em setores específicos, como óleo e gás no Brasil. O destaque que o Fed deu aos países vulneráveis não deixa de ser um alerta para que esses fundos evitem a materialização de perdas associadas a riscos não regulados. Ou seja, há uma nítida preocupação de que os reguladores estejam deixando de lado um tema crítico para a estabilidade financeira global – os danos à solidez dos grandes fundos expostos em excesso a países que gostam de gerúndios. “Nós vamos estar fazendo, nós vamos estar construindo, nós vamos estar mudando, nós vamos estar consolidando”, e por aí vai, enquanto nada é finalizado. Para sublinhar a importância disso, o Tesouro americano divulgou um relatório de seu novo braço analítico, o Office of Financial Research, em que se constata a mudança do perfil de financiamento de grandes empresas de países emergentes antes e depois do QE, o afrouxamento quantitativo. Se antes essas empresas se financiavam do modo tradicional, recorrendo aos empréstimos bancários, hoje elas tomam recursos por meio da emissão de títulos. Os números chamam a atenção: antes do QE, cerca de 28% da dívida externa privada dos emergentes provinha de títulos; agora, os títulos representam 55% dessa dívida. Nada mais natural, portanto, que o Fed faça as suas advertências da maneira que melhor lhe convier. Ainda que se possa questionar a metodologia usada para tanto. A indignação brasileira com o Fed é uma face da falta de ideias. Já os planos fiscais demonstram a abundância de gerúndios. Nos próximos meses, o governo “estará fazendo” um contingenciamento de gastos da ordem de R$ 44 bilhões. O governo também “estará se deparando” com a necessidade de explicar como fará para alcançar a meta de 1,9% de superávit primário, uma vez que os gastos adicionais do Tesouro com os inevitáveis repasses para a CDE não estão contabilizados no plano anunciado na última semana – a CDE, ou Conta de Desenvolvimento Energético, fundo criado para ressarcir as empresas do setor elétrico após a redução “na marra” das tarifas de energia. A inflação, essa que se conjuga como um verbo não finalizado, pode não comportar um repasse dos custos para as tarifas de energia. Mas o desemprego continua em queda. E os riscos de rebaixamento da classificação de risco do Brasil esse ano parecem ter sido afastados pelo gerundismo. O Brasil, a julgar por todas as declarações do governo brasileiro, continua sendo o país do futuro. Do futuro do gerúndio, que fique claro. Afinal, nós vamos estar fazendo um superávit altinho o bastante para estar evitando que as agências de risco estejam nos rebaixando à ignomínia. Ao estarmos fazendo isso, estamos também dizendo ao Fed e àquela senhorinha que o fato de o Brasil ter estado estando a estar vulnerável, não significa que vai estar continuando a estar ficando desse jeito, não senhor(a).