livre opinião
A doença brasileira
A
incrível mudança que ocorreu em
nossas contas externas nos últimos
anos continua a provocar reflexos
importantes no funcionamento da
economia brasileira. Podemos considerar
coisa do passado as sucessivas crises das últimas décadas, sempre provocadas pela fragilidade de nossa balança de pagamentos. O
Brasil tem hoje uma moeda forte, sustentada por um excedente comercial que pode ser
visto como de longo prazo.
Este primeiro choque externo positivo
– vivemos no momento um segundo em
função da arbitragem de juros no mercado interno realizada pelos grandes investidores internacionais – trouxe como grande benefício a integração de nosso sistema
produtivo no mundo globalizado de hoje.
Pela primeira vez seguimos a dinâmica das
economias modernas, com uma ampla articulação comercial e financeira com outros países. Este processo está apenas em
seu início, mas já nos mostra as principais
modificações por que devemos passar nos
próximos anos. E um debate amplo sobre
o que fazer neste cenário de uma economia globalizada está começando no Brasil. Gostaria de trazer minha contribuição
para estas reflexões.
Faço parte de um grupo de analistas que
há algum tempo tem associado nossa situação à chamada doença holandesa, como é
conhecida na literatura econômica a pressão sobre a indústria de um país criada por
um câmbio ultra valorizado. Posteriormente, em minha coluna semanal no jornal Fo-
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Revista Abinee
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lha de S. Paulo, ponderei que deveríamos
falar de uma doença brasileira, uma variação mais complexa do que a citada na literatura econômica. No caso da Holanda foi o
crescimento das exportações de um produto
– o gás natural - que provocou um intenso
processo de desindustrialização em função
da valorização expressiva do florin, então
sua moeda nacional. No caso brasileiro o
processo de valorização do real a partir do
grande crescimento das exportações abrange
uma gama muito grande de produtos, distribuidos por vários setores. Para dar a eles
uma unicidade precisamos falar de produtos primários e produtos industriais de origem mineral ou vegetal e com baixo valor
adicionado.
Mas no mundo no qual viveremos as
próximas décadas, são estes produtos os
que apresentam um potencial elevado de
crescimento, tanto de volumes demandados como de preços fixados pelos mercados. Esta nova dinâmica, que contradiz de
forma radical a teoria desenvolvida pela
CEPAL na década de cinqüenta do século
passado, está apoiada em dois movimentos
autônomos, mas que convergem no caso
do Brasil. O primeiro está sendo criado na
China pela absorção, em uma economia
de mercado, de mais de um bilhão de consumidores. Este movimento está sendo reforçado pelas mudanças que ocorrem ainda na Índia e em países asiáticos menores
como Vietnã e outros.
O segundo movimento nasce da conscientização crescente dos problemas associa-
Luiz Carlos Mendonça de Barros
dos ao chamado aquecimento global e riscos ao meio ambiente. No caso do primeiro
movimento – decorrente da China - já sentimos seus efeitos diretos nas nossas contas
externas. No caso do segundo movimento
– a preservação do meio ambiente – estamos vendo apenas seus primeiros sinais em
nossas exportações. O Brasil é considerado
hoje um dos países com maior potencial de
exportação dos chamados biocombustíveis
e o crescimento das exportações destes produtos pode chegar a várias dezenas de bilhões de dólares em um futuro não muito
distante.
Se hoje já vivemos um processo de valorização de nossa moeda via o canal das exportações mais tradicionais, olhando para
o futuro podemos inferir que ele não só
vai continuar, como deve se acelerar caso
ocorra o cenário dos biocombustíveis. Se
considerarmos ainda que os investidores internacionais terão participação significativa
neste novo mercado, haverá uma força muito grande de valorização do real também
pelo canal financeiro.
Nestas condições não existe outra saída
senão uma mudança radical em nossa estrutura produtiva, quase toda ela baseada em
uma economia do passado, em que o dólar
era escasso e a única forma segura de produção era a baseada em cadeias inteiras aqui
estabelecidas. O movimento de aumento do
coeficiente de abertura de nossa indústria,
que já ocorre hoje, deve se intensificar ao
longo do tempo, com o redesenho de nossas cadeias produtivas mais importantes.
Este processo ocorrerá em ondas, sendo
que a primeira já está em curso, com forte
crescimento dos laços de comércio, do investimento brasileiro no exterior e da transferência de produção para outros países. A
próxima onda poderá ocorrer com o desen-
volvimento do mercado de biocombustíveis,
que ainda está em seus primeiros momentos. Alguns setores industriais serão beneficiados e outros deverão sofrer mudanças
drásticas ou desaparecerão.
Na discussão que temos hoje no Brasil
ainda não estão incorporadas plenamente
estas mudanças, pois, sendo elas de longo
prazo, não se pode ainda identificá-las claramente nas estatísticas de nosso comércio
exterior. Olhar para os dados recentes de
nossas exportações e desqualificar estes movimentos, simplesmente pelo fato de estarmos ainda aumentando nossas vendas externas de produtos manufaturados, é um erro
primário de análise econômica e que tem
prejudicado a qualidade das discussões, que
deveriam ter mais visão estratégica.
Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações no governo FHC.
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