Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Difusão da língua portuguesa, no 39, p. 197-208, 2009
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AS QUATRO VERTENTES DA PESQUISA
SOBRE O PORTUGUÊS DO BRASIL1
Ricardo Cavaliere
RESUMO
Neste artigo, apresentamos uma síntese das vertentes de
análise do fato linguístico que vêm sendo abertas pelos
pesquisadores e estudiosos desde os textos pioneiros do
século XIX.
PALAVRAS-CHAVE: Português do Brasil; vertentes;
estudos lexicográficos; estudos de descrição linguística;
estudos de política linguística; estudos sócio-históricos.
N
o corpo deste trabalho, referimo-nos aos estudos sobre o Português
do Brasil numa perspectiva que leva em conta as vertentes de análise
do fato linguístico que vêm sendo abertas pelos pesquisadores universitários e estudiosos em geral desde os textos pioneiros do século XIX. Assim,
cremos ser adequado distribuir tais estudos em quatro vertentes primaciais,
que certamente poderão merecer subdivisões em trabalho mais comprometido
com o detalhismo e com a exação descritiva. São elas a vertente dos estudos
lexicográficos, dedicada à elaboração de dicionários, vocabulários ou mesmo
pequenos léxicos de brasileirismos; a vertente dos estudos de descrição linguística, em que se busca o estudo do Português Brasileiro segundo as áreas
de interesse da investigação linguística lato sensu (gramática, léxico, fonologia,
semântica); a vertente dos estudos de política linguística, cujo escopo circunda
a delicada questão da língua como traço de identidade cultural e expressão da
1
Versão bastante resumida do texto publicado em Lusorama: Revista de Estudos sobre os Países
de Língua Portuguesa. Frankfurt am Main: Domus Editoria Europaea, v. 71-72, p. 128-159,
nov. 2007. As referências bibliográficas, muito extensas, são oferecidas nesse texto original.
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Cavaliere, Ricardo. As quatro vertentes da pesquisa sobre o português do Brasil
nacionalidade; e a vertente dos estudos sócio-históricos, cuja produtividade
ganha exponencial nível a partir da segunda metade dos anos noventa do século
XX. Não há, como se percebe, sucessão cronológica entre tais vertentes, já que,
a rigor, todas correm em paralelo e continuam atuantes no cenário hodierno
da produção acadêmica brasileira.
Primeira vertente: estudos lexicográficos
As primeiras linhas escritas sobre fatos típicos da língua falada no Brasil
foram de caráter lexicográfico. Uma rápida consulta às bibliotecas especializadas em textos do século XIX – no Rio de Janeiro, contamos com exponenciais
acervos, como os da Biblioteca Nacional, do Real Gabinete Português de Leitura, do Instituto Histórico-Geográfico Brasileiro e da Academia Brasileira de
Letras – demonstra que, mesmo antes da metade dos oitocentos, começam a
surgir os léxicos regionais dedicados a esclarecer o sentido que certos termos
típicos tinham em áreas restritas do território nacional.
Incluem-se entre esses trabalhos pioneiros, além do já aqui citado texto
de Domingos Borges de Barros, o Dicionário da língua brasileira de Luís Maria
Silva Pinto (Pinto 1832), o Vocabulário brasileiro para servir de complemento
aos dicionários da língua portuguesa, de Brás da Costa Rubim (Rubim 1853),
obra de suposto caráter geral, mas verdadeiramente comprometida com o vocabulário regional, o Glossário de vocábulos brasileiros, tanto dos derivados como
daqueles cuja origem é ignorada, publicado em 1883 pelo Visconde de Beaurepaire-Rohan na Gazeta Literária e, posteriormente, em 1889, transformado
no Dicionário de vocábulos brasileiros (Beaurepaire-Rohan 1956), o opúsculo
A linguagem popular amazônica, em que Macedo Soares oferece um glossário
com cerca de 120 palavras de origem tupi em uso na Amazônia (Soares 1884),
a par do instigante Fraseologia sul-riograndense (Porto-Alegre 1975), texto com
que Álvaro Porto-Alegre já confere aos léxicos uma pitada de informação fraseológica, e do não menos útil, embora pouco conhecido mesmo pelos iniciados na dialectologia, Coleção de vocábulos peculiares à Amazônia e especialmente
à Ilha de Marajó, trabalho de Vicente Miranda que mereceu reedição comentada sob patrocínio da Universidade Federal do Pará (MIRANDA, 1968).
A vertente lexicográfica não perdeu fôlego no século XX, apenas passou a dividir o interesse dos pesquisadores com outras áreas de investigação,
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conforme veremos adiante. A produção de léxicos, a rigor, manteve o escopo
primacial de informar o leitor sobre termos e expressões idiomáticas típicas
de um dado rincão linguístico, a par de oferecer subsídios para estudos de
caráter contrastivo. Como exemplos desse manancial de novas informações
postas à disposição dos estudiosos no século XX, citem-se (TESCHAUER,
1928; CALAGE, 1926; MENDES 1942; SERAINE, 1958; UCHOA, 1967;
LAMEIRA, 1979), entre inúmeros outros que a consulta aos acervos revela.
Por curiosidade, cite-se necessariamente o compêndio Novo dicionário da gíria
brasileira, de Manuel Nogueira Viotti (1957), que nos fornece interessante informação sobre a gíria e o estrangeirismo na linguagem do rádio e da televisão
nos anos 50 do século passado.
Segunda vertente – estudos de descrição linguística
No tocante à vertente que trata da descrição gramatical, cuide-se da distinção entre os volumes que se atêm a uma dada área de pesquisa, como,
por exemplo, o segmento a que denominamos estudos dialetais, e os volumes
que procuram tratar do Português Brasileiro lato sensu.. No primeiro grupo,
distinguem-se, por seu turno, os estudos dialetais amplos, assim denominados
aqueles que tratam o português regional em todas as suas áreas de interesse –
fonologia, morfologia, sintaxe, léxico, semântica etc. –, dos estudos dialetais
específicos, isto é, os que se atêm a um dado aspecto em particular, como o
léxico e a fonologia.
Uma menção especial deve referir à retomada do estudo do fato linguístico no âmbito do Português Brasileiro numa perspectiva diacrônica, de que
é exemplo expressivo a coletânea de textos Português Brasileiro: uma viagem
diacrônica (IAN; KATO, 1993), publicada no início dos anos 90 do século
passado. Nesse volume, sucedem-se os estudos em que se aplica com ênfase o
modelo gerativista para se descreverem temas como a incidência do pronome
nulo na função de sujeito, o emprego de clíticos e a construção de orações
relativas no cenário do português americano. Cuide-se, entretanto, mais atentamente do texto inaugural da coletânea, intitulado Sobre a alegada origem
crioula do Português Brasileiro: mudanças sintáticas aleatórias, em que o autor,
Fernando Tarallo, cuja morte em 1992 interrompeu prematuramente uma
das mais profícuas carreiras da linguística brasileira, circula com competência
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Cavaliere, Ricardo. As quatro vertentes da pesquisa sobre o português do Brasil
sobre as supostas evidências sintáticas de que a língua falada no Brasil resulta
de um crioulo ou de um processo de descrioulização.
Considerando o intuito meramente informativo desse trabalho, julgamos
mais adequado tratar os estudos descritivos em nota conjunta. Não resta dúvida
de que, na seara dos estudos dialetais, ocupa posição de destaque historiográfico
O dialeto caipira, obra pioneira de Amadeu Amaral, publicada em 1920. Tratase de um compêndio que detém o mérito de haver levado pela primeira vez
ao interesse científico uma modalidade de uso linguístico estigmatizado pelo
preconceito social2. Curiosamente, Amaral não detinha formação filológica, mas
era dotado de agudíssima percepção linguística, que lhe valeu o mérito de ter
conseguido tratar os fatos gramaticais com boa organização temática. Na época,
afirmava Amaral que o dito dialeto caipira achava-se “acantoado em pequenas
localidades que não acompanharam de perto o movimento geral do progresso e
subsiste, fora daí, na boca de pessoas idosas, indelevelmente influenciadas pela
antiga educação” (AMARAL, 1982, p. 2). Na verdade, a pesquisa hodierna revela que os característicos da língua descrita por Amaral em 1920 ainda habitam
largas áreas do Brasil, em vivaz presença na boca do brasileiro interiorano.
Pouco depois de vir a lume a obra de Amadeu Amaral, coube a Antenor Nascentes oferecer ao público especializado o precioso O linguajar carioca
(NASCENTES, 1922), com que busca descrever os traços idiossincráticos da
língua falada na região dialetal do Rio de Janeiro. A rigor, o grande desafio
inicial enfrentado por Nascentes foi o de estabelecer uma divisão do Brasil em
regiões linguísticas, tarefa que lhe parecia dificílima em face da quase total ausência de estudos voltados para a descrição de isoglossas em nosso território. A
preocupação com o tema acompanharia o velho filólogo fluminense por largo
tempo, conforme comprovam estas suas palavras proferidas em um texto publicado trinta e três anos depois: “A geografia linguística revela que, enquanto
não existir o Atlas Linguístico do Brasil, não se pode fazer uma divisão territorial
em matéria de dialectologia com bases absolutamente seguras” (NASCENTES,
1955)3. Pouco depois, Nascentes já publicava suas Bases para a elaboracão do
atlas linguístico do Brasil, com que punha em ordem os procedimentos para que
o projeto viesse a prosperar em âmbito nacional (NASCENTES, 1958-1961).
2
3
Sobre O dialeto caipira, leia-se especialmente Silva (2006).
Esse texto de Nascentes compõe a coletânea Estudos filológicos, reeditada pela Academia
Brasileira de Letras em 2003 (NASCENTES, 2003).
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No âmbito das obras descritivas, os textos precursores de Amaral e Nascentes foram secundados por inúmeras outras obras de grande mérito e decisiva contribuição para melhor entendimento de nossas variantes regionais.
Citem-se necessariamente A língua do Nordeste, (Alagoas e Pernambuco), de
Mário Maroquim (1934), A linguagem dos cantadores, de Clóvis Monteiro
(1933), Vento nordeste, ensaio dialetológico, de Valter Medeiros (1970), Dinâmica de uma linguagem: o falar de Alagoas, trabalho de boa fundamentação filológica elaborado por Paulino Santiago (1976), A gíria baiana, de
Alexandre Passos (1973), além da exaustiva tese Características da linguagem
falada e escrita de Goiânia, defendida por Eli de Oliveira Chaves Falanque na
Universidade Federal de Goiás (1973), A linguagem popular do Maranhão,
conhecido texto descritivo de Domingos Vieira Filho (1979), Aspectos da linguagem do espraiado (CHEDIAK, 1958), obra de Antonio José Chediak que
impressiona pelo rigor técnico na transcrição fonética do falar típico dessa
zona linguística mineira, Tentativa de descrição do sistema vocálico do português culto na área dita carioca (HOUAISS, 1959), contribuição de Antônio
Houaiss ao Primeiro Congresso Brasileiro da Língua Falada no Teatro, A
linguagem de Goiás, de José Aparecido Teixeira (1944), A linguagem popular
da Bahia, de Edison Carneiro (1951) e Aspectos do falar paraense: fonética,
fonologia e semântica, meritório estudo dialetal da Prof.ª Maria de Nazaré da
Cruz Vieira (1980).
Alguns estudos buscam pela investigação sincrônica especular sobre a
origem do português popular brasileiro como consequência de falares crioulos. A tese Um estudo sociolinguístico das comunidades negras do Cafundó, do
antigo Caxambu e de seus arredores, de Sílvio Vieira Andrade Filho (2000), a
par dos instigantes Cafundó, a África no Brasil: linguagem e sociedade, de Peter
Fry e Carlos Vogt (1996) e Remanescentes de um falar crioulo brasileiro, escrito
por Carlota da Silveira Ferreira (1994), fornecem-nos sólidas evidências de
grupos étnico-linguísticos brasileiros que falam línguas decorrentes de crioulos surgidos em áreas reclusas do território brasileiro4. Outros tantos poderiam
aqui ser citados, caso nos permitisse a memória ou nos impusesse o intuito de
ser exaustivo5.
4
5
Sobre o falar de Helvécia, leia-se também (BAXTER; LUCCHESI, 1999).
Confrontem-se opiniões antagônicas sobre a hipótese da origem crioula do português popular brasileiro em (HOLM, 1987), (GUY, 1989) e (TARALLO,1993).
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Cavaliere, Ricardo. As quatro vertentes da pesquisa sobre o português do Brasil
Ainda no tocante aos estudos dialetais, dê-se a devida relevância aos projetos institucionais de pesquisa com que felizmente hoje podemos contar e cujo
contributo vai aos poucos trazendo mais luz à análise dos fatos linguísticos que se
manifestam em comunidades regionais. Nessa linhagem, constituem exemplos
meritórios o produtivo projeto Aspectos léxico-semânticos do falar dos pescadores
do norte fluminense, coordenado por Maria Emília Barcellos da Silva, o projeto
Filologia bandeirante, coordenado por Heitor Megale, cujo intuito é investigar
a língua falada nas trilhas das bandeiras numa perspectiva histórica (XVII e
XVIII). Igual relevância há de conferir-se a vários outros projetos pautados no
método do variacionismo laboviano, muito profícuo na investigação de variáveis de uso regional, dentre eles o Projeto Variação Linguística Urbana do Sul do
País (VARSUL), atualmente coordenado pela Prof.ª Maria Tasca, cujo resultado
já nos legou dezenas de trabalhos sobre aspectos pontuais do português sulista.
Por sua vez, o Projeto Vertentes do Português Rural do Estado da Bahia,
comandado pela mão competente do linguista Dante Lucchesi, vale-se da
análise sociolinguística em comunidades do interior do Estado da Bahia para
estabelecer um panorama atual de sua realidade linguística. Esse projeto, entretanto, igualmente avança por sendas diacrônicas, já que em seu escopo há
claro interesse em ampliar o conhecimento sobre a formação sócio-histórica
do Português Brasileiro, fato que também o vincula à quarta vertente dos estudos sobre o Português do Brasil, de que nos ocuparemos adiante.
Tratemos agora dos estudos sobre a modalidade do Português Brasileiro
em âmbito mais abrangente. Aqui, a tradição revela uma avaliação da língua
falada no Brasil segundo parâmetros genéricos, via de regra em perspectiva
contrastiva com o Português Europeu. Esses trabalhos seguem um modelo de
descrição que visa, de um lado, a cobrir as áreas básicas do estudo linguístico
(léxico, fonologia, morfologia, sintaxe, semântica), e, de outro, a verificar em
que medida os fatos idiossincráticos do Português Brasileiro constituem genuína criação do Novo Mundo ou mera permanência de fatos adormecidos do
português medieval.
Como estratégia de organização do texto, os estudos gerais assentam-se
naturalmente na tríade genética da língua no Brasil: o português, o tupi e as
línguas africanas. Nesse ponto, surgem controvérsias acaloradas sobre a exata
medida dos tupinismos e africanismos não só no léxico como também nas
construções sintáticas do português falado em terras americanas.
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Obra de referência nessa linhagem é A língua do Brasil (MELO, 1946)
volume que conferiu a Gladstone Chaves de Melo justo reconhecimento como
um dos mais consagrados filólogos brasileiros do século XX. Devemos a Melo
extensa e qualificada obra linguística e filológica, a par de uma gramática em que
expressa meritória visão sobre fatos complexos do português, tais como o indigesto tema da classificação de palavras. Não resta dúvida, entretanto, que A língua do
Brasil constitui o trabalho que melhor projetou seu nome nas salas de aula e nos
meios universitários, dada a competente organização didática que o caracteriza.
Tirante algumas assertivas a que um maior rigor da crítica exigiria reparo
– cite-se, por exemplo, a tese de que o português caipira teria migrado para o
Nordeste pelas águas do Rio São Francisco –, os conceitos de Gladstone Chaves de Melo desfrutam de excelente fundamentação teórica. Bastaria aqui citar
sua proposta de classificação dos brasileirismos que inclui a interessante figura
do brasileirismo per accidens, isto é, formações e derivações surgidas no Brasil,
mas que bem poderiam ter-se originado em outro país de língua portuguesa.
No âmbito dos estudos gerais, uma palavra especial merecem os textos
que se dedicam especificamente a dada influência decorrente do contato linguístico que caracteriza a trajetória da língua portuguesa em terra americana.
Aqui, renovam-se com significativa pujança os estudos acerca da contribuição
africana e tupi na formação da língua como um traço de identidade brasileiro.
No tocante à contribuição indígena, nossa produção acadêmica vai de Teodoro Sampaio (1987), cujo O tupi na geografia nacional vem a lume em 1901, a
Aryon Rodrigues (1994).
Já no que respeita aos estudos sobre influência africana, convém citar
aqui um lamento de Antenor Nascentes, do qual tomamos ciência em texto
recentemente trazido a público na renovada edição de seus estudos filológicos:
“É preciso notar que não há africanólogos no Brasil” (NASCENTES, 2003, p.
355). A observação resulta de uma crítica, a um tempo elogiosa e reparadora,
que o velho mestre traça sobre o trabalho de Renato Mendonça, um de seus
discípulos mais qualificados. O texto de Mendonça (1935) é hoje uma das
mais conhecidas peças de nossa bibliografia linguística e efetivamente tem
servido de base para muitos outros trabalhos sobre africanismos no Português
Brasileiro. Antes de Mendonça, já alguns estudiosos haviam mergulhado nestas águas revoltas dos africanismos, que nem sempre asseguram plena abonação de origens etimológicas convincentes.
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Mas o lamento de Nascentes, por assim dizer, seria mitigado, ou mesmo transformado em júbilo a partir dos anos 70 do século passado, quando
surge o qualificado trabalho de Yeda Pessoa de Castro no âmbito das línguas
africanas que vieram para solo americano. Pode-se afirmar, em resposta a Nascentes, que, afinal, o Brasil contava com uma “africanóloga”, ou, como mais
comumente hoje designamos, uma africanista. A pesquisa da professora da
Universidade Federal da Bahia traz o mérito de ir buscar a fundamentação dos
africanismos no português em análise acurada dos fatores históricos que nos
conferem mais segurança acerca da natureza do contato linguístico afro-lusitano – leiam-se necessariamente, a respeito, (CASTRO, 1980; 2001). Dentre
tais fatores, ressalte-se que línguas distintas como o quicongo, o umbundo e o
quimbundo já habitavam o Brasil no século XVII, ao passo que o iorubá, língua constituída de vários falares regionais e várias línguas da família kwa, teria
provindo da Nigéria apenas no século XIX. A hipótese igualmente levantada
por Pessoa de Castro sobre uma língua franca africana das senzalas, que teria
surgido ao longo do período colonial, conduz a instigante discussão acerca das
origens do português interiorano atual.
Terceira vertente – estudos de política linguística
Nessa área de investigação, os textos sobre o Português Brasileiro costumam tocar alguns temas de grande relevância não só para a exata compreensão
do percurso que a língua vem trilhando em solo americano, como também para
o melhor entendimento do papel exercido pelo idioma pátrio como expressão
da nacionalidade e caracterização do indivíduo nos vários estereótipos sociais.
Alguns dos melhores filólogos brasileiros dedicaram atenção à política da
língua já nos verdores do século XX. Cite-se aqui o trabalho de João Ribeiro
A língua nacional, um ensaio vigoroso em que o autor pugna pela dignidade
do “estilo brasileiro” como expressão de uma nova civilização, a americana em
contraste com a antiga civilização européia: “A nossa gramática não pode ser
inteiramente a mesma dos portugueses. As diferenciações regionais reclamam
estilo e método diversos. A verdade é que, corrigindo-nos, estamos de fato a
mutilar idéias e sentimentos que nos são pessoais” (RIBEIRO, 1979, p. 51).
O binômio língua–nacionalismo também se espraia em A questão da língua
brasileira (Fortes 1968), texto póstumo com que Herbert Parentes Fortes bus-
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ca fundamentar a mudança linguística do Português Brasileiro com as teses
durkheimianas da irreversibilidade das mudanças sociais.
A “onda brasilianista”, valendo-nos aqui de uma expressão cunhada por
Sílvio Elia, encontraria amparo e resistência igualmente enfáticos, como se
abstrai da leitura confrontada de Língua brasileira, um parecer de Edgard Sanches (1940) francamente favorável à denominação “língua brasileira”, e de
A língua do Brasil (VIANNA FILHO, 1954), em que Luís Vianna Filho
adverte não haver qualquer fundamento linguístico que autorize semelhante
denominação. Por sinal, no tocante à língua como expressão da nacionalidade,
muito já se escreveu sobre um certo “sentimento de posse” que invadiu a alma
do brasileiro a partir da segunda metade do século XIX. Naquele momento,
estudar o português e, sobretudo, escrever em português trazia uma subliminar intenção de assenhoreamento da língua do colonizador pelo colonizado,
sentimento esse que germinava lentamente a partir da Independência e se
revelava às evidências com o grande número de gramáticas portuguesa escritas por brasileiros a partir da primeira década do Primeiro Reinado. Crescia,
indubitavelmente, uma reação ao lusismo linguístico, conforme assinalam Bethania Mariani e Tânia Conceição de Souza (1994), movimento que, a rigor,
se manifestava mais nas rodas literárias do que nas sendas gramaticais.
Trata-se de uma complexa relação entre o natural de um país infante e a
língua que, modificada pelo contato linguístico multifacetado em terras americanas, ainda guardava a identidade da cultura lusitana. Surge, numa perspectiva dual, uma espécie de sentimento de posse na alma do intelectual brasileiro
em confronto com um direito de propriedade ainda invocado pelo intelectual
lusitano, a que se podia adicionar uma evidente insatisfação desse último pela
“corrupção” que a língua de Camões sofria no âmbito do “dialeto brasileiro”,
para aqui usarmos a expressão tão presente nos estudos de Adolfo Coelho.
Quarta vertente- os estudos sócio-históricos
Considerando o impulso recente que a vertente sócio-histórica vem tomando nos grupos de pesquisa e em trabalhos individuais, não resta dúvida de
que nesse campo se abrem os novos e profícuos rumos para o estudo da língua
portuguesa em solo americano. Decerto que a descrição linguística auxilia
bastante para o esclarecimento dos fatos inclusos na denominada “história
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Cavaliere, Ricardo. As quatro vertentes da pesquisa sobre o português do Brasil
interna” da língua. Não obstante, é justamente na investigação da “história
externa” que conseguiremos encontrar a chave de nossas origens linguísticas e
pôr termo a uma série de dúvidas quanto ao processo de estabelecimento do
português como língua dominante de cultura a partir dos últimos decênios do
século XVIII.
Dentre os trabalhos recentes que merecem menção, cite-se o volume
póstumo de Silvio Elia Fundamentos histórico-linguísticos do português do Brasil
(2003), que propõe oferecer um painel sobre a presença da língua em solo brasileiro ao longo de quatro séculos (XVI ao XIX), cada qual merecedor de um
capítulo específico subdividido em três áreas de interesse: quadro histórico,
literatura e língua. Nesse estudo, Elia segue um plano ortodoxo, de segmentação cronológica e acurada organização temática, com a preocupação – pouco
presente em obras congêneres, ressalte-se – de acompanhar a formação de uma
língua literária brasileira, sobretudo a partir do século XIX, em que se estabelecem as bases do português escrito culto nos textos românticos.
Dentre as iniciativas acadêmicas que mais se destacam hodiernamente, como um sucedâneo da conjugação entre a história interna e externa da
língua, destaque-se o projeto Para a História do Português Brasileiro (PHPB),
que envolve vários pesquisadores brasileiros6 em parceria com colegas alemães e já trouxe a lume vários volumes coletivos7 e individuais no Brasil e
na Alemanha. O projeto estrutura-se em três eixos basilares: a construção
de um corpus diacrônico em língua escrita, a análise da mudança do sistema
linguístico, com ênfase nos processos de gramaticalização, e a construção das
origens sócio-históricas da língua a partir dos primeiros anos da colonização.
Em linha simétrica, o Programa para a História da Língua Portuguesa, coordenado pela Prof.ª Rosa Virgínia Mattos e Silva, da Universidade da Bahia,
inscreve-se como auxiliar do PHPB na constituição de corpora documentais
que se encontram em arquivos públicos e particulares da Bahia (cf. SILVA,
2003, p. 35).
6
7
No Brasil, coordenam o projeto os professores Ataliba T. de Castilho (USP/UNESP/UNICAMP), Rosa Virgínia Mattos e Silva (UFBa), Marlos de Barros Pessoa (UFPe), Demerval
da Hora (UFPB), Jânia Ramos (UFMG), Dinah I. Callou (UFRJ), Sonia Cyrino (UEL) e
Gilvan Müller de Oliveira (UFSC).
Desses volumes coletivos, supostamente seis, só tivemos acesso aos quatro primeiros (CASTILHO, 1998; SILVA, 2001; ALKMIM, 2002; DUARTE; CALLOU 2002).
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Evidente que traçar referência a todos os textos que se vêm publicando
nesse profícuo veio de estudo afigura-se impossível. Para que o leitor interessado possa seguir com passos seguros na busca de leitura qualificada, faço
aqui referência a dois volumes recentes que contam não só com trabalhos de
substancioso valor, como também com farta bibliografia especializada: Português Brasileiro: contato linguístico, heterogeneidade e história, coletânea organizada por Cláudia Roncarati e Jussara Abraçado (2003) e Ensaios para uma
Sócio-História do Português Brasileiro, de Rosa Virgínia Mattos e Silva (2004).
O primeiro traz a marca dessa coadunação entre os estudos descritivos e os
estudos históricos, fato que o caracteriza como uma coletânea que contribui
para o desenvolvimento do saber sobre a língua nessas duas vertentes de investigação. Dentre os temas nele discutidos, destacamos o confronto de idéias
que se estabelece entre o ensaio O conceito de transmissão linguística irregular
e o processo de formação do português do Brasil, de Dante Lucchese (2003), e
O conceito de transmissão linguística irregular e as origens estruturais do Português Brasileiro: um tema em debate, da lavra de Anthony Naro e Maria Marta
Scherre (2003). Em perspectivas antagônicas, os textos discutem não só o
conceito de transmissão linguística irregular – como processo de aquisição
de uma dada língua politicamente prestigiada por falantes adultos de outras
línguas politicamente menos prestigiadas –, mas também a conveniência de
sua aplicação no estudo da história externa do Português Brasileiro. Recentemente, Naro/ Scherre trouxeram a lume uma coletânea de ensaios, alguns
deles versões atualizadas de textos anteriores, cujo escopo maior é firmar convicção quanto às características morfossintáticas e fonológicas do Português
Brasileiro como “heranças românicas e portuguesas arcaicas e clássicas, e não
modificações mais recentes advindas das línguas africanas, que vieram para
o Brasil com seus povos escravizados e subjugados, ou das línguas dos povos
ameríndios, que aqui já se encontravam quando vieram os colonizadores europeus” (NARO; SCHERRE, 2007, p. 17). Cabe mencionar, ainda, a obra de
Votre e Roncarati (2008), uma homenagem ao professor Julius Antony Naro,
por sua contribuição relevante ao desenvolvimento da Sociolinguística e das
Teorias da Linguagem no Brasil.
208
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ABSTRACT
In this article, we present a synthesis of the analytical
sources of the linguistic fact which have been initiated
by the researches and scholars since the pioneering texts
of XIX century.
KEY-WORDS: Brazilian Portuguese; sources; lexicographical studies; description studies; language police;
socio-historical studies.
Recebido em 05/03/2009
Aprovado em 24/08/2009
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