Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Difusão da língua portuguesa, no 39, p. 197-208, 2009 197 AS QUATRO VERTENTES DA PESQUISA SOBRE O PORTUGUÊS DO BRASIL1 Ricardo Cavaliere RESUMO Neste artigo, apresentamos uma síntese das vertentes de análise do fato linguístico que vêm sendo abertas pelos pesquisadores e estudiosos desde os textos pioneiros do século XIX. PALAVRAS-CHAVE: Português do Brasil; vertentes; estudos lexicográficos; estudos de descrição linguística; estudos de política linguística; estudos sócio-históricos. N o corpo deste trabalho, referimo-nos aos estudos sobre o Português do Brasil numa perspectiva que leva em conta as vertentes de análise do fato linguístico que vêm sendo abertas pelos pesquisadores universitários e estudiosos em geral desde os textos pioneiros do século XIX. Assim, cremos ser adequado distribuir tais estudos em quatro vertentes primaciais, que certamente poderão merecer subdivisões em trabalho mais comprometido com o detalhismo e com a exação descritiva. São elas a vertente dos estudos lexicográficos, dedicada à elaboração de dicionários, vocabulários ou mesmo pequenos léxicos de brasileirismos; a vertente dos estudos de descrição linguística, em que se busca o estudo do Português Brasileiro segundo as áreas de interesse da investigação linguística lato sensu (gramática, léxico, fonologia, semântica); a vertente dos estudos de política linguística, cujo escopo circunda a delicada questão da língua como traço de identidade cultural e expressão da 1 Versão bastante resumida do texto publicado em Lusorama: Revista de Estudos sobre os Países de Língua Portuguesa. Frankfurt am Main: Domus Editoria Europaea, v. 71-72, p. 128-159, nov. 2007. As referências bibliográficas, muito extensas, são oferecidas nesse texto original. 198 Cavaliere, Ricardo. As quatro vertentes da pesquisa sobre o português do Brasil nacionalidade; e a vertente dos estudos sócio-históricos, cuja produtividade ganha exponencial nível a partir da segunda metade dos anos noventa do século XX. Não há, como se percebe, sucessão cronológica entre tais vertentes, já que, a rigor, todas correm em paralelo e continuam atuantes no cenário hodierno da produção acadêmica brasileira. Primeira vertente: estudos lexicográficos As primeiras linhas escritas sobre fatos típicos da língua falada no Brasil foram de caráter lexicográfico. Uma rápida consulta às bibliotecas especializadas em textos do século XIX – no Rio de Janeiro, contamos com exponenciais acervos, como os da Biblioteca Nacional, do Real Gabinete Português de Leitura, do Instituto Histórico-Geográfico Brasileiro e da Academia Brasileira de Letras – demonstra que, mesmo antes da metade dos oitocentos, começam a surgir os léxicos regionais dedicados a esclarecer o sentido que certos termos típicos tinham em áreas restritas do território nacional. Incluem-se entre esses trabalhos pioneiros, além do já aqui citado texto de Domingos Borges de Barros, o Dicionário da língua brasileira de Luís Maria Silva Pinto (Pinto 1832), o Vocabulário brasileiro para servir de complemento aos dicionários da língua portuguesa, de Brás da Costa Rubim (Rubim 1853), obra de suposto caráter geral, mas verdadeiramente comprometida com o vocabulário regional, o Glossário de vocábulos brasileiros, tanto dos derivados como daqueles cuja origem é ignorada, publicado em 1883 pelo Visconde de Beaurepaire-Rohan na Gazeta Literária e, posteriormente, em 1889, transformado no Dicionário de vocábulos brasileiros (Beaurepaire-Rohan 1956), o opúsculo A linguagem popular amazônica, em que Macedo Soares oferece um glossário com cerca de 120 palavras de origem tupi em uso na Amazônia (Soares 1884), a par do instigante Fraseologia sul-riograndense (Porto-Alegre 1975), texto com que Álvaro Porto-Alegre já confere aos léxicos uma pitada de informação fraseológica, e do não menos útil, embora pouco conhecido mesmo pelos iniciados na dialectologia, Coleção de vocábulos peculiares à Amazônia e especialmente à Ilha de Marajó, trabalho de Vicente Miranda que mereceu reedição comentada sob patrocínio da Universidade Federal do Pará (MIRANDA, 1968). A vertente lexicográfica não perdeu fôlego no século XX, apenas passou a dividir o interesse dos pesquisadores com outras áreas de investigação, Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Difusão da língua portuguesa, no 39, p. 197-208, 2009 199 conforme veremos adiante. A produção de léxicos, a rigor, manteve o escopo primacial de informar o leitor sobre termos e expressões idiomáticas típicas de um dado rincão linguístico, a par de oferecer subsídios para estudos de caráter contrastivo. Como exemplos desse manancial de novas informações postas à disposição dos estudiosos no século XX, citem-se (TESCHAUER, 1928; CALAGE, 1926; MENDES 1942; SERAINE, 1958; UCHOA, 1967; LAMEIRA, 1979), entre inúmeros outros que a consulta aos acervos revela. Por curiosidade, cite-se necessariamente o compêndio Novo dicionário da gíria brasileira, de Manuel Nogueira Viotti (1957), que nos fornece interessante informação sobre a gíria e o estrangeirismo na linguagem do rádio e da televisão nos anos 50 do século passado. Segunda vertente – estudos de descrição linguística No tocante à vertente que trata da descrição gramatical, cuide-se da distinção entre os volumes que se atêm a uma dada área de pesquisa, como, por exemplo, o segmento a que denominamos estudos dialetais, e os volumes que procuram tratar do Português Brasileiro lato sensu.. No primeiro grupo, distinguem-se, por seu turno, os estudos dialetais amplos, assim denominados aqueles que tratam o português regional em todas as suas áreas de interesse – fonologia, morfologia, sintaxe, léxico, semântica etc. –, dos estudos dialetais específicos, isto é, os que se atêm a um dado aspecto em particular, como o léxico e a fonologia. Uma menção especial deve referir à retomada do estudo do fato linguístico no âmbito do Português Brasileiro numa perspectiva diacrônica, de que é exemplo expressivo a coletânea de textos Português Brasileiro: uma viagem diacrônica (IAN; KATO, 1993), publicada no início dos anos 90 do século passado. Nesse volume, sucedem-se os estudos em que se aplica com ênfase o modelo gerativista para se descreverem temas como a incidência do pronome nulo na função de sujeito, o emprego de clíticos e a construção de orações relativas no cenário do português americano. Cuide-se, entretanto, mais atentamente do texto inaugural da coletânea, intitulado Sobre a alegada origem crioula do Português Brasileiro: mudanças sintáticas aleatórias, em que o autor, Fernando Tarallo, cuja morte em 1992 interrompeu prematuramente uma das mais profícuas carreiras da linguística brasileira, circula com competência 200 Cavaliere, Ricardo. As quatro vertentes da pesquisa sobre o português do Brasil sobre as supostas evidências sintáticas de que a língua falada no Brasil resulta de um crioulo ou de um processo de descrioulização. Considerando o intuito meramente informativo desse trabalho, julgamos mais adequado tratar os estudos descritivos em nota conjunta. Não resta dúvida de que, na seara dos estudos dialetais, ocupa posição de destaque historiográfico O dialeto caipira, obra pioneira de Amadeu Amaral, publicada em 1920. Tratase de um compêndio que detém o mérito de haver levado pela primeira vez ao interesse científico uma modalidade de uso linguístico estigmatizado pelo preconceito social2. Curiosamente, Amaral não detinha formação filológica, mas era dotado de agudíssima percepção linguística, que lhe valeu o mérito de ter conseguido tratar os fatos gramaticais com boa organização temática. Na época, afirmava Amaral que o dito dialeto caipira achava-se “acantoado em pequenas localidades que não acompanharam de perto o movimento geral do progresso e subsiste, fora daí, na boca de pessoas idosas, indelevelmente influenciadas pela antiga educação” (AMARAL, 1982, p. 2). Na verdade, a pesquisa hodierna revela que os característicos da língua descrita por Amaral em 1920 ainda habitam largas áreas do Brasil, em vivaz presença na boca do brasileiro interiorano. Pouco depois de vir a lume a obra de Amadeu Amaral, coube a Antenor Nascentes oferecer ao público especializado o precioso O linguajar carioca (NASCENTES, 1922), com que busca descrever os traços idiossincráticos da língua falada na região dialetal do Rio de Janeiro. A rigor, o grande desafio inicial enfrentado por Nascentes foi o de estabelecer uma divisão do Brasil em regiões linguísticas, tarefa que lhe parecia dificílima em face da quase total ausência de estudos voltados para a descrição de isoglossas em nosso território. A preocupação com o tema acompanharia o velho filólogo fluminense por largo tempo, conforme comprovam estas suas palavras proferidas em um texto publicado trinta e três anos depois: “A geografia linguística revela que, enquanto não existir o Atlas Linguístico do Brasil, não se pode fazer uma divisão territorial em matéria de dialectologia com bases absolutamente seguras” (NASCENTES, 1955)3. Pouco depois, Nascentes já publicava suas Bases para a elaboracão do atlas linguístico do Brasil, com que punha em ordem os procedimentos para que o projeto viesse a prosperar em âmbito nacional (NASCENTES, 1958-1961). 2 3 Sobre O dialeto caipira, leia-se especialmente Silva (2006). Esse texto de Nascentes compõe a coletânea Estudos filológicos, reeditada pela Academia Brasileira de Letras em 2003 (NASCENTES, 2003). Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Difusão da língua portuguesa, no 39, p. 197-208, 2009 201 No âmbito das obras descritivas, os textos precursores de Amaral e Nascentes foram secundados por inúmeras outras obras de grande mérito e decisiva contribuição para melhor entendimento de nossas variantes regionais. Citem-se necessariamente A língua do Nordeste, (Alagoas e Pernambuco), de Mário Maroquim (1934), A linguagem dos cantadores, de Clóvis Monteiro (1933), Vento nordeste, ensaio dialetológico, de Valter Medeiros (1970), Dinâmica de uma linguagem: o falar de Alagoas, trabalho de boa fundamentação filológica elaborado por Paulino Santiago (1976), A gíria baiana, de Alexandre Passos (1973), além da exaustiva tese Características da linguagem falada e escrita de Goiânia, defendida por Eli de Oliveira Chaves Falanque na Universidade Federal de Goiás (1973), A linguagem popular do Maranhão, conhecido texto descritivo de Domingos Vieira Filho (1979), Aspectos da linguagem do espraiado (CHEDIAK, 1958), obra de Antonio José Chediak que impressiona pelo rigor técnico na transcrição fonética do falar típico dessa zona linguística mineira, Tentativa de descrição do sistema vocálico do português culto na área dita carioca (HOUAISS, 1959), contribuição de Antônio Houaiss ao Primeiro Congresso Brasileiro da Língua Falada no Teatro, A linguagem de Goiás, de José Aparecido Teixeira (1944), A linguagem popular da Bahia, de Edison Carneiro (1951) e Aspectos do falar paraense: fonética, fonologia e semântica, meritório estudo dialetal da Prof.ª Maria de Nazaré da Cruz Vieira (1980). Alguns estudos buscam pela investigação sincrônica especular sobre a origem do português popular brasileiro como consequência de falares crioulos. A tese Um estudo sociolinguístico das comunidades negras do Cafundó, do antigo Caxambu e de seus arredores, de Sílvio Vieira Andrade Filho (2000), a par dos instigantes Cafundó, a África no Brasil: linguagem e sociedade, de Peter Fry e Carlos Vogt (1996) e Remanescentes de um falar crioulo brasileiro, escrito por Carlota da Silveira Ferreira (1994), fornecem-nos sólidas evidências de grupos étnico-linguísticos brasileiros que falam línguas decorrentes de crioulos surgidos em áreas reclusas do território brasileiro4. Outros tantos poderiam aqui ser citados, caso nos permitisse a memória ou nos impusesse o intuito de ser exaustivo5. 4 5 Sobre o falar de Helvécia, leia-se também (BAXTER; LUCCHESI, 1999). Confrontem-se opiniões antagônicas sobre a hipótese da origem crioula do português popular brasileiro em (HOLM, 1987), (GUY, 1989) e (TARALLO,1993). 202 Cavaliere, Ricardo. As quatro vertentes da pesquisa sobre o português do Brasil Ainda no tocante aos estudos dialetais, dê-se a devida relevância aos projetos institucionais de pesquisa com que felizmente hoje podemos contar e cujo contributo vai aos poucos trazendo mais luz à análise dos fatos linguísticos que se manifestam em comunidades regionais. Nessa linhagem, constituem exemplos meritórios o produtivo projeto Aspectos léxico-semânticos do falar dos pescadores do norte fluminense, coordenado por Maria Emília Barcellos da Silva, o projeto Filologia bandeirante, coordenado por Heitor Megale, cujo intuito é investigar a língua falada nas trilhas das bandeiras numa perspectiva histórica (XVII e XVIII). Igual relevância há de conferir-se a vários outros projetos pautados no método do variacionismo laboviano, muito profícuo na investigação de variáveis de uso regional, dentre eles o Projeto Variação Linguística Urbana do Sul do País (VARSUL), atualmente coordenado pela Prof.ª Maria Tasca, cujo resultado já nos legou dezenas de trabalhos sobre aspectos pontuais do português sulista. Por sua vez, o Projeto Vertentes do Português Rural do Estado da Bahia, comandado pela mão competente do linguista Dante Lucchesi, vale-se da análise sociolinguística em comunidades do interior do Estado da Bahia para estabelecer um panorama atual de sua realidade linguística. Esse projeto, entretanto, igualmente avança por sendas diacrônicas, já que em seu escopo há claro interesse em ampliar o conhecimento sobre a formação sócio-histórica do Português Brasileiro, fato que também o vincula à quarta vertente dos estudos sobre o Português do Brasil, de que nos ocuparemos adiante. Tratemos agora dos estudos sobre a modalidade do Português Brasileiro em âmbito mais abrangente. Aqui, a tradição revela uma avaliação da língua falada no Brasil segundo parâmetros genéricos, via de regra em perspectiva contrastiva com o Português Europeu. Esses trabalhos seguem um modelo de descrição que visa, de um lado, a cobrir as áreas básicas do estudo linguístico (léxico, fonologia, morfologia, sintaxe, semântica), e, de outro, a verificar em que medida os fatos idiossincráticos do Português Brasileiro constituem genuína criação do Novo Mundo ou mera permanência de fatos adormecidos do português medieval. Como estratégia de organização do texto, os estudos gerais assentam-se naturalmente na tríade genética da língua no Brasil: o português, o tupi e as línguas africanas. Nesse ponto, surgem controvérsias acaloradas sobre a exata medida dos tupinismos e africanismos não só no léxico como também nas construções sintáticas do português falado em terras americanas. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Difusão da língua portuguesa, no 39, p. 197-208, 2009 203 Obra de referência nessa linhagem é A língua do Brasil (MELO, 1946) volume que conferiu a Gladstone Chaves de Melo justo reconhecimento como um dos mais consagrados filólogos brasileiros do século XX. Devemos a Melo extensa e qualificada obra linguística e filológica, a par de uma gramática em que expressa meritória visão sobre fatos complexos do português, tais como o indigesto tema da classificação de palavras. Não resta dúvida, entretanto, que A língua do Brasil constitui o trabalho que melhor projetou seu nome nas salas de aula e nos meios universitários, dada a competente organização didática que o caracteriza. Tirante algumas assertivas a que um maior rigor da crítica exigiria reparo – cite-se, por exemplo, a tese de que o português caipira teria migrado para o Nordeste pelas águas do Rio São Francisco –, os conceitos de Gladstone Chaves de Melo desfrutam de excelente fundamentação teórica. Bastaria aqui citar sua proposta de classificação dos brasileirismos que inclui a interessante figura do brasileirismo per accidens, isto é, formações e derivações surgidas no Brasil, mas que bem poderiam ter-se originado em outro país de língua portuguesa. No âmbito dos estudos gerais, uma palavra especial merecem os textos que se dedicam especificamente a dada influência decorrente do contato linguístico que caracteriza a trajetória da língua portuguesa em terra americana. Aqui, renovam-se com significativa pujança os estudos acerca da contribuição africana e tupi na formação da língua como um traço de identidade brasileiro. No tocante à contribuição indígena, nossa produção acadêmica vai de Teodoro Sampaio (1987), cujo O tupi na geografia nacional vem a lume em 1901, a Aryon Rodrigues (1994). Já no que respeita aos estudos sobre influência africana, convém citar aqui um lamento de Antenor Nascentes, do qual tomamos ciência em texto recentemente trazido a público na renovada edição de seus estudos filológicos: “É preciso notar que não há africanólogos no Brasil” (NASCENTES, 2003, p. 355). A observação resulta de uma crítica, a um tempo elogiosa e reparadora, que o velho mestre traça sobre o trabalho de Renato Mendonça, um de seus discípulos mais qualificados. O texto de Mendonça (1935) é hoje uma das mais conhecidas peças de nossa bibliografia linguística e efetivamente tem servido de base para muitos outros trabalhos sobre africanismos no Português Brasileiro. Antes de Mendonça, já alguns estudiosos haviam mergulhado nestas águas revoltas dos africanismos, que nem sempre asseguram plena abonação de origens etimológicas convincentes. 204 Cavaliere, Ricardo. As quatro vertentes da pesquisa sobre o português do Brasil Mas o lamento de Nascentes, por assim dizer, seria mitigado, ou mesmo transformado em júbilo a partir dos anos 70 do século passado, quando surge o qualificado trabalho de Yeda Pessoa de Castro no âmbito das línguas africanas que vieram para solo americano. Pode-se afirmar, em resposta a Nascentes, que, afinal, o Brasil contava com uma “africanóloga”, ou, como mais comumente hoje designamos, uma africanista. A pesquisa da professora da Universidade Federal da Bahia traz o mérito de ir buscar a fundamentação dos africanismos no português em análise acurada dos fatores históricos que nos conferem mais segurança acerca da natureza do contato linguístico afro-lusitano – leiam-se necessariamente, a respeito, (CASTRO, 1980; 2001). Dentre tais fatores, ressalte-se que línguas distintas como o quicongo, o umbundo e o quimbundo já habitavam o Brasil no século XVII, ao passo que o iorubá, língua constituída de vários falares regionais e várias línguas da família kwa, teria provindo da Nigéria apenas no século XIX. A hipótese igualmente levantada por Pessoa de Castro sobre uma língua franca africana das senzalas, que teria surgido ao longo do período colonial, conduz a instigante discussão acerca das origens do português interiorano atual. Terceira vertente – estudos de política linguística Nessa área de investigação, os textos sobre o Português Brasileiro costumam tocar alguns temas de grande relevância não só para a exata compreensão do percurso que a língua vem trilhando em solo americano, como também para o melhor entendimento do papel exercido pelo idioma pátrio como expressão da nacionalidade e caracterização do indivíduo nos vários estereótipos sociais. Alguns dos melhores filólogos brasileiros dedicaram atenção à política da língua já nos verdores do século XX. Cite-se aqui o trabalho de João Ribeiro A língua nacional, um ensaio vigoroso em que o autor pugna pela dignidade do “estilo brasileiro” como expressão de uma nova civilização, a americana em contraste com a antiga civilização européia: “A nossa gramática não pode ser inteiramente a mesma dos portugueses. As diferenciações regionais reclamam estilo e método diversos. A verdade é que, corrigindo-nos, estamos de fato a mutilar idéias e sentimentos que nos são pessoais” (RIBEIRO, 1979, p. 51). O binômio língua–nacionalismo também se espraia em A questão da língua brasileira (Fortes 1968), texto póstumo com que Herbert Parentes Fortes bus- Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Difusão da língua portuguesa, no 39, p. 197-208, 2009 205 ca fundamentar a mudança linguística do Português Brasileiro com as teses durkheimianas da irreversibilidade das mudanças sociais. A “onda brasilianista”, valendo-nos aqui de uma expressão cunhada por Sílvio Elia, encontraria amparo e resistência igualmente enfáticos, como se abstrai da leitura confrontada de Língua brasileira, um parecer de Edgard Sanches (1940) francamente favorável à denominação “língua brasileira”, e de A língua do Brasil (VIANNA FILHO, 1954), em que Luís Vianna Filho adverte não haver qualquer fundamento linguístico que autorize semelhante denominação. Por sinal, no tocante à língua como expressão da nacionalidade, muito já se escreveu sobre um certo “sentimento de posse” que invadiu a alma do brasileiro a partir da segunda metade do século XIX. Naquele momento, estudar o português e, sobretudo, escrever em português trazia uma subliminar intenção de assenhoreamento da língua do colonizador pelo colonizado, sentimento esse que germinava lentamente a partir da Independência e se revelava às evidências com o grande número de gramáticas portuguesa escritas por brasileiros a partir da primeira década do Primeiro Reinado. Crescia, indubitavelmente, uma reação ao lusismo linguístico, conforme assinalam Bethania Mariani e Tânia Conceição de Souza (1994), movimento que, a rigor, se manifestava mais nas rodas literárias do que nas sendas gramaticais. Trata-se de uma complexa relação entre o natural de um país infante e a língua que, modificada pelo contato linguístico multifacetado em terras americanas, ainda guardava a identidade da cultura lusitana. Surge, numa perspectiva dual, uma espécie de sentimento de posse na alma do intelectual brasileiro em confronto com um direito de propriedade ainda invocado pelo intelectual lusitano, a que se podia adicionar uma evidente insatisfação desse último pela “corrupção” que a língua de Camões sofria no âmbito do “dialeto brasileiro”, para aqui usarmos a expressão tão presente nos estudos de Adolfo Coelho. Quarta vertente- os estudos sócio-históricos Considerando o impulso recente que a vertente sócio-histórica vem tomando nos grupos de pesquisa e em trabalhos individuais, não resta dúvida de que nesse campo se abrem os novos e profícuos rumos para o estudo da língua portuguesa em solo americano. Decerto que a descrição linguística auxilia bastante para o esclarecimento dos fatos inclusos na denominada “história 206 Cavaliere, Ricardo. As quatro vertentes da pesquisa sobre o português do Brasil interna” da língua. Não obstante, é justamente na investigação da “história externa” que conseguiremos encontrar a chave de nossas origens linguísticas e pôr termo a uma série de dúvidas quanto ao processo de estabelecimento do português como língua dominante de cultura a partir dos últimos decênios do século XVIII. Dentre os trabalhos recentes que merecem menção, cite-se o volume póstumo de Silvio Elia Fundamentos histórico-linguísticos do português do Brasil (2003), que propõe oferecer um painel sobre a presença da língua em solo brasileiro ao longo de quatro séculos (XVI ao XIX), cada qual merecedor de um capítulo específico subdividido em três áreas de interesse: quadro histórico, literatura e língua. Nesse estudo, Elia segue um plano ortodoxo, de segmentação cronológica e acurada organização temática, com a preocupação – pouco presente em obras congêneres, ressalte-se – de acompanhar a formação de uma língua literária brasileira, sobretudo a partir do século XIX, em que se estabelecem as bases do português escrito culto nos textos românticos. Dentre as iniciativas acadêmicas que mais se destacam hodiernamente, como um sucedâneo da conjugação entre a história interna e externa da língua, destaque-se o projeto Para a História do Português Brasileiro (PHPB), que envolve vários pesquisadores brasileiros6 em parceria com colegas alemães e já trouxe a lume vários volumes coletivos7 e individuais no Brasil e na Alemanha. O projeto estrutura-se em três eixos basilares: a construção de um corpus diacrônico em língua escrita, a análise da mudança do sistema linguístico, com ênfase nos processos de gramaticalização, e a construção das origens sócio-históricas da língua a partir dos primeiros anos da colonização. Em linha simétrica, o Programa para a História da Língua Portuguesa, coordenado pela Prof.ª Rosa Virgínia Mattos e Silva, da Universidade da Bahia, inscreve-se como auxiliar do PHPB na constituição de corpora documentais que se encontram em arquivos públicos e particulares da Bahia (cf. SILVA, 2003, p. 35). 6 7 No Brasil, coordenam o projeto os professores Ataliba T. de Castilho (USP/UNESP/UNICAMP), Rosa Virgínia Mattos e Silva (UFBa), Marlos de Barros Pessoa (UFPe), Demerval da Hora (UFPB), Jânia Ramos (UFMG), Dinah I. Callou (UFRJ), Sonia Cyrino (UEL) e Gilvan Müller de Oliveira (UFSC). Desses volumes coletivos, supostamente seis, só tivemos acesso aos quatro primeiros (CASTILHO, 1998; SILVA, 2001; ALKMIM, 2002; DUARTE; CALLOU 2002). Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Difusão da língua portuguesa, no 39, p. 197-208, 2009 207 Evidente que traçar referência a todos os textos que se vêm publicando nesse profícuo veio de estudo afigura-se impossível. Para que o leitor interessado possa seguir com passos seguros na busca de leitura qualificada, faço aqui referência a dois volumes recentes que contam não só com trabalhos de substancioso valor, como também com farta bibliografia especializada: Português Brasileiro: contato linguístico, heterogeneidade e história, coletânea organizada por Cláudia Roncarati e Jussara Abraçado (2003) e Ensaios para uma Sócio-História do Português Brasileiro, de Rosa Virgínia Mattos e Silva (2004). O primeiro traz a marca dessa coadunação entre os estudos descritivos e os estudos históricos, fato que o caracteriza como uma coletânea que contribui para o desenvolvimento do saber sobre a língua nessas duas vertentes de investigação. Dentre os temas nele discutidos, destacamos o confronto de idéias que se estabelece entre o ensaio O conceito de transmissão linguística irregular e o processo de formação do português do Brasil, de Dante Lucchese (2003), e O conceito de transmissão linguística irregular e as origens estruturais do Português Brasileiro: um tema em debate, da lavra de Anthony Naro e Maria Marta Scherre (2003). Em perspectivas antagônicas, os textos discutem não só o conceito de transmissão linguística irregular – como processo de aquisição de uma dada língua politicamente prestigiada por falantes adultos de outras línguas politicamente menos prestigiadas –, mas também a conveniência de sua aplicação no estudo da história externa do Português Brasileiro. Recentemente, Naro/ Scherre trouxeram a lume uma coletânea de ensaios, alguns deles versões atualizadas de textos anteriores, cujo escopo maior é firmar convicção quanto às características morfossintáticas e fonológicas do Português Brasileiro como “heranças românicas e portuguesas arcaicas e clássicas, e não modificações mais recentes advindas das línguas africanas, que vieram para o Brasil com seus povos escravizados e subjugados, ou das línguas dos povos ameríndios, que aqui já se encontravam quando vieram os colonizadores europeus” (NARO; SCHERRE, 2007, p. 17). Cabe mencionar, ainda, a obra de Votre e Roncarati (2008), uma homenagem ao professor Julius Antony Naro, por sua contribuição relevante ao desenvolvimento da Sociolinguística e das Teorias da Linguagem no Brasil. 208 Cavaliere, Ricardo. As quatro vertentes da pesquisa sobre o português do Brasil ABSTRACT In this article, we present a synthesis of the analytical sources of the linguistic fact which have been initiated by the researches and scholars since the pioneering texts of XIX century. KEY-WORDS: Brazilian Portuguese; sources; lexicographical studies; description studies; language police; socio-historical studies. Recebido em 05/03/2009 Aprovado em 24/08/2009