ALDEMIRO REZENDE DANTAS JÚNIOR
A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS
Elementos de identificação e cotejo com institutos
assemelhados
DOUTORADO EM DIREITO CIVIL
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
SÃO PAULO – 2006
ALDEMIRO REZENDE DANTAS JÚNIOR
A TEORIA DOS ATOS PRÓPRIOS
Elementos de identificação e cotejo com institutos
assemelhados
Tese apresentada à Banca
Examinadora da Faculdade
de Direito da Pontifícia
Universidade Católica de
São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do
título de Doutor em Direito
Civil, sob a orientação do
Professor Doutor Sílvio
Luís Ferreira da Rocha.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
SÃO PAULO - 2006
Meus agradecimentos aos
Excelentíssimos Senhores Doutores
integrantes da Banca e a todos os
que me ajudaram nessa árdua caminhada, e que deixo de nominar para
não cometer a injustiça de esquecer
de alguém.
Minha especial homenagem, contudo, ao ilustre Professor
Doutor Sílvio Luís Ferreira da
Rocha, a quem tive a honra de ter
como Orientador e o privilégio de
ter como amigo. Meus mais
sinceros agradecimentos a tão
ilustre
jurista,
cujo
apoio
incondicional mostrou-se essencial
à conclusão do presente trabalho.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
SÃO PAULO - 2006
Banca Examinadora
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Para Vera, Simone, Bruno e
meus pais. Este trabalho é
dedicado a vocês.
Resumo
O objetivo principal do presente trabalho é realizar a abordagem sistematizada da
boa-fé considerada como norma de conduta, de modo a suprir uma lacuna existente em
nossa doutrina, e que pode ser constatada pela verificação de que embora a boa-fé objetiva
seja mencionada com grande freqüência, geralmente o é apenas como um simples reforço
lingüístico, sem qualquer precisão científica ou terminológica. Além disso, os poucos
autores que se dedicaram ao exame da boa-fé centraram seus estudos nas relações
contratuais, em inaceitável redução de assunto que se mostra extremamente amplo. Assim,
buscou-se demonstrar e exemplificar a aplicação do princípio em outras áreas do Direito,
como o Direito Administrativo e o Direito Processual. Buscou-se, ainda, a decomposição
da boa-fé em seus principais elementos constitutivos, de modo a que também fosse possível
identificar as diversas subespécies de institutos que derivam da boa- fé, cada um com suas
características próprias e sendo distinto dos demais. A partir dessa decomposição, foi dada
ênfase no estudo do venire contra factum proprium, cujos elementos constitutivos foram
individual e minuciosamente abordados, o que permitiu não apenas a elaboração de uma
definição para o instituto, mas também o cotejo mais preciso com institutos assemelhados,
tais como o tu quoque, a exceptio doli, a suppressio, etc. Para o atingimento de tais
objetivos, partiu-se do exame da fides dos romanos, passando pela sua recepção e
atualização, levada a cabo pelo trabalho dos glosadores e dos pós-glosadores, e pela sua
inclusão no Código Civil francês. Seguiu-se, ainda, o caminho trilhado pelos tribunais
franceses, no exame dessa boa-fé agora codificada, com sua nítida influência no direito
civil alemão, de onde saltou para o Código Civil grego, para o Código Civil português e,
finalmente, para o atual Código Civil brasileiro. Neste último, buscou-se a identificação de
várias disposições legais que, no fundo, nada mais são do que hipóteses de aplicação do
venire, ainda que nosso Código Civil, em nenhum momento, faça referência a tal instituto
e, a partir dessa identificação construiu-se a buscada definição da figura do venire contra
factum proprium , composta dos seus elementos caracterizadores.
Abstract
The main purpose of this paper is to realize the systematic approach regards goodfaith, considered a conduct norm in a way that supplies the existing lacuna in our doctrine,
which can be ascertained by checking that although the objective good-faith is frequently
mentioned, it is usually done as a simple linguistic reinforcement lacking any scientific or
terminologic accuracy. Moreover, the few authors who dedicated themselves to the
examine of good-faith focused primarily on contractual relations , showing this
unacceptable tendency to decrease the discussion around this topic when there is so much
to talk about it. Thus it was tried to demonstrate and to exemplify the principle application
in other fields of the Law, such as the Administrative Law and Processual Law. It was also
tried to decompose the good-faith into its principals constitutes elements, in a way that was
possible to identify the several subspecies of institutes that are originated from good-faith,
each one with its own characteristics, been really different from others. From this
decomposition the studies about venire contra factum proprium were emphasized, of which
the constitutes elements were individually and detailed described and commented, what
allowed not only the elaboration of a definition for the institute but also a preciser collation
for similars institutes, such as tu quoque, exceptio doli, suppressio, etc. To reach those
purposes the romans fides were examined, going through its reception and modernization
and its inclusio n on the french Civil Code. It can also be found in here the path chosen by
the french court in the exam of this codified good-faith, with its clear influence in the
german civil law, where it went toe the greek, portuguese and finally the brazillian civil
code. In its last one it was identified several legal dispositions that, deep inside, are nothing
more than application hypothesis of venire even tho ugh our Civil Code never mention such
institute, and from this identification was built a definition for venire contra factum
proprium with its characterizing elements.
Resumé
L´objectif principal de ce travail est la réalisation d´un exposé systématique de la
bonne foi, autant que règle de conduite, dans le but de remplir une lacune qui existe à la
doctr ine e qui peut être verifiée par la constatation que malgré la bonne foi objective soit
prononcée très fréquemment, dans la plupart des cas l´expression n´est utilisée que comme
un simple élément linguistique, sans aucune précision cientifique ou terminolo gique. En
outre, les auteurs qui ont dédié leurs études à la bonne foi, l´ont fait spécifiquement sur les
rapports contractuels, ce qui signifie une réduction inacceptable d´un objet très vaste. Cela
étant, on a essayé de démontrer et exemplifier l´application du principe de la bonne foi à
d´autres parties du Droit, comme le Droit Administratif et le Droit Processuel. On a aussi
essayé de décomposer la bonne foi en ses éléments constitutifs, de manière à identifier
également les plusieurs subdivisions d´instituts qui s´originent de la bonne foi, chacun
ayant ses caractéristiques individuelles, qui les font différents des autres. À partir de cette
décomposition, on a relevé l´étude du venire contra factum proprium, dont les éléments
constitutifs ont été traités individuellement et en detail, ce qui a permis pas seulement la
construction d´une définition pour l´institut, mais aussi la comparaison plus précise avec
des institus similaires, comme le tu quoque, l´exceptio doli, la suppressio etc. Pour atteindre
ces objectifs, on a parti de l´étude de la fides des romains, en passant par sa récéption et son
actualisation, concretisée par le travail des glossateurs et des post-glossateurs, et par son
inclusion dans le Code Civil Français. Ensuite on a parcouri le chemin suivi par les cours
françaises, en ce qui concerne l´examen de cette bonne foi, maintenat codifiée, avec sa
nette influence sur le Droit Civil Allemand, d´où elle est partie por arriver au Code Civil
Grec, au Code Civil Portugais et, finalement, à l´actuel Code Civil Brésilien. Sur ce dernier
on a essayé d´identifier plusieurs règles qui, vraiment, signifient des hypothèses
d´aplication du venire, malgré notre Code ne mentionne pas cet institut. A partir de cette
identification, on a construit la definition visée du venire contra factum proprium , composé
de ses éléments caractéristiques.
Sumário
Introdução.
10
1. Desenvolvimento histórico da boa- fé.
24
1.1. Considerações gerais.
24
1.2. A boa-fé romana e sua recepção no direito europeu.
40
1.3. O direito europeu pré-codificações.
47
1.4. A boa-fé após o Código Civil francês.
60
1.5. A boa-fé no Direito Civil Alemão.
75
1.6. A boa-fé objetiva e seu aspecto normativo. Tendência expansionista.
99
1.7. A boa-fé objetiva no Direito Público e no campo processual.
136
1.8. A responsabilidade pré e pós-contratual e a complexidade das obrigações.
154
1.9. As conseqüências jurídicas da proteção conforme o princípio da boa- fé.
230
2. Violações típicas da boa- fé.
255
2.1. Considerações gerais.
255
2.2. O abuso do direito.
258
2.3. O venire contra factum proprium.
294
2.3.1. Considerações gerais.
294
2.3.2. Elementos característicos.
301
2.3.2.1. Os comportamentos contraditórios.
324
2.3.2.2. A contradição.
365
2.3.2.3. O dever acessório que está sendo violado.
380
2.3.3.4. Um conceito para o venire contra factum proprium.
393
2.3.3. Conseqüências jurídicas do venire contra factum proprium.
393
2.4. Tu quoque.
409
2.5. Suppressio e surrectio.
421
Conclusão.
447
Referências bibliográficas
456
10
A teoria dos atos próprios: elementos para a sua identificação e para o seu
cotejo com institutos assemelhados.
Uma lei imutável não se pode
conceber, senão numa sociedade
imóvel.
Jean Cruet
Introdução.
O Código Civil de 1916, tomando por paradigma os Códigos
francês e alemão (principalmente o primeiro), simplesmente não tratou da
boa-fé, exceto em regra localizada e pontual, específica para o contrato de
seguro (art. 1.443, do Código Civil de 1916). Apesar disso, no entanto, já era
muito comum que a doutrina e a jurisprudência pátrias se referissem com
freqüência ao tema, principalmente em virtude da grande influência por nós
recebida, direta ou indiretamente, dos tribunais alemães.
Essa influência indireta, à qual nos referimos, é porque as
decisões dos tribunais germânicos serviram de clara fonte de inspiração para
alguns Códigos alienígenas, como o grego e o português, e estes, por sua vez,
acabaram influenciando o texto do nosso Código Civil vigente, como
abordaremos em detalhes, ao longo do presente estudo. Por outro lado, em
virtude do grande lapso temporal decorrido entre a apresentação do projeto de
lei e a sua efetiva transformação em um Código Civil, a doutrina e os tribunais
não se quedaram inertes, e começaram a fazer referências e a elaborar textos
que enfocam a boa-fé e suas conseqüências.
No entanto, não se pode deixar de notar que tais referências, de
um modo geral, começaram a ser feitas de um modo pouco sistematizado, ou
mesmo sem sistematização alguma, o que pode ser atribuído, conforme
11
acreditamos, à inexistência quase que completa de obras doutrinárias que
tivessem o assunto “boa-fé” como seu principal foco de estudo, uma vez que
os textos que tratavam do assunto, de um modo geral, faziam-no apenas de
modo passageiro, ao se referirem aos princípios contratuais, incluindo dentre
eles o da boa-fé, e mesmo assim, no mais das vezes, apenas se limitando a
comentar que os contratantes deveriam se comportar de boa-fé, sem maiores
explicações sobre o que seria tal comportamento.
Essa falta de sistematização pode ser notada, inclusive, pelo fato
de que em algumas situações, os tribunais pátrios se referiam à boa-fé apenas
como um reforço lingüístico, pois na verdade a questão a ser decidida já
encontrava tratamento legal específico, e a decisão já havia sido tomada com
esteio nessa norma positivada, sem que houvesse qualquer real necessidade de
que se fizesse menção à boa-fé. Em outras palavras, muitas vezes se tratava de
uma ilegalidade pura e simples, e não de atuação do princípio da boa-fé, e essa
distinção não costumava ser feita em várias situações concretas. Ou, ainda,
pelo fato de serem usadas, para “explicar” o que seria a boa-fé, expressões
vagas e imprecisas, cujo preenchimento variava ao sabor das convicções
pessoais de cada intérprete.
Por outro lado, e principalmente pelo fato de que todo o estudo da
boa-fé, desenvolvido no direito germânico, foi inicialmente ligado às relações
contratuais, o que se podia notar era que as menções à boa-fé se limitavam
precisamente ao campo dos contratos, como se o instituto não fosse de
aplicação geral, vale dizer, como se não se tratasse de um regramento que se
aplica não apenas a todos os campos do direito privado, mas também ao
direito público, ou seja, para a regência das relações entre a administração
pública e os administrados. Aliás, é até desnecessário que se ressalte a extrema
importância que decorre do fato de que também a administração pública
12
deverá seguir uma conduta balizada pela boa-fé, sendo que, precisamente em
virtude de tal importância, dedicamos um item específico para o tratamento do
mesmo (item 1.7).
Outra questão que se mostra significativa, para o estudo dos
temas ligados à boa-fé, é a que diz respeito às dificuldades lingüísticas. Ao
contrário da língua alemã, sempre muito precisa e específica, não temos
expressões, no vernáculo, que por si só permitam identificar se se trata da boafé como uma norma de conduta (objetiva) ou da que se liga aos aspectos
psicológicos do sujeito (subjetiva), ou seja, ao conhecimento ou
desconhecimento de um fato ou à intenção subjacente à prática de um ato.
Essa adoção de uma expressão única, para a indicação de dois
aspectos da boa-fé que se mostram completamente distintos, serve como
moldura a realçar a necessidade de estudos mais detalhados, acerca da boa-fé,
pois faz com que tenham que ser redobrados os cuidados para a conceituação
e a identificação dos elementos característicos de cada uma dessas duas
hipóteses de boa-fé, sob pena de se ter dificuldade em identificar até mesmo o
verdadeiro significado de um determinado texto legal que a ela se refira. E
veja-se que não há qualquer exagero, quando nos referimos à dificuldade de
captação do real sentido da expressão, pois essa interpretação errônea do
sentido do texto legal, especificamente em relação à boa-fé, já ocorreu alhures.
Com efeito, desde o começo do século XIX que o Código Civil
francês já apontava que as convenções que tenham sido validamente formadas
devem ser executadas de boa-fé (art. 1.134). No entanto, precisamente em
decorrência da absoluta falta de domínio doutrinário sobre o tema, tal norma
foi interpretada nos mesmos moldes em que os glosadores e pós-glosadores
haviam colhido a boa-fé dos textos romanos, ou seja, como se fosse apenas
referente à ciência ou à ignorância de uma determinada circunstância ligada ao
13
contrato. Em outras palavras, como se fosse a boa-fé subjetiva. Hoje, o mesmo
texto legal é facilmente lido como sendo referente à boa-fé objetiva, ou seja,
como imposição de uma norma de conduta a ser observada pelos contratantes.
É esse tipo de equívoco, que certamente atrasou em várias décadas o
desenvolvimento adequado do estudo da boa-fé, que só poderá ser evitado
com o exame doutrinário sistemático do tema.
Nos últimos anos, felizmente, a situação começa a se alterar, e
começam a surgir algumas poucas obras cujo enfoque principal está centrado
na questão da boa-fé. Esse aumento na quantidade de trabalhos específicos
sobre o tema, em grande parte, foi ainda impulsionado pela aprovação, depois
de mais de duas décadas e meia, do Código Civil de 2002, que em seu artigo
421, dentre outros, trouxe a explicitação do princípio da boa-fé.
Contudo, não se pode deixar de observar que o estudo doutrinário
do tema ainda é muito incipiente entre nós. Além disso, a hipertrofia das
relações contratuais se manteve, ou seja, a quase totalidade dos trabalhos
recentes diz respeito ao estudo da boa-fé nas relações contratuais, embora
apanhando, também, algumas variações “internas” do assunto, como o exame
da mesma em relação aos momentos pré e pós-contratuais e a análise da boafé aplicada às relações (contratuais) de consumo, mas deixando de lado outras
áreas importantes das relações jurídicas, não apenas no direito privado, mas,
principalmente, no direito público, onde são muito escassas as obras referentes
ao tema.
Além disso – e, ainda mais, pior do que isso –, pode-se apontar
que está ocorrendo, em relação às diversas facetas que podem ser apresentadas
pela boa-fé, a repetição do mesmo problema que ocorreu quanto ao estudo da
boa-fé em si mesma. Expliquemos melhor.
14
Como mencionamos acima, durante muito tempo nossos autores
ou ignoravam a boa-fé ou apenas se referiam ao tema de modo breve, sem a
preocupação de maiores detalhes ou esclarecimentos, incluindo-a sem muitas
explicações entre os princípios contratuais. Pois bem, agora que a boa-fé
começa a ser estudada mais amiúde, pelos nossos doutrinadores, o que se
percebe é que apenas de modo passageiro são mencionadas as diversas
hipóteses de concretização da mesma, e que embora tendo todas a mesma
fonte, apresentam características que, pelo menos em tese, as diferenciam de
modo nítido (na prática, como veremos, essa diferenciação nem sempre é
assim tão clara). E foi essa falta de abordagem das “subespécies” da boa-fé, na
verdade, que motivou o presente trabalho.
Com efeito, o que desde logo se adianta é que a expressão “boafé”, na realidade, é bastante ampla, abrangendo um grande leque de situações
que, sendo embora todas originárias da mesma fonte (essa mesma boa-fé),
apresentam alguns traços peculiares, que permitem diferenciá-las umas das
outras, e aí chegamos a figuras importantíssimas e de grande aplicação prática,
como o venire contra factum proprium, o tu quoque, a suppressio e a
surrectio, o abuso do direito, etc, e que de um modo geral ou são ignoradas
pela doutrina ou apenas são mencionadas en passant, sem o cuidado de
maiores esclarecimentos. Precisamente, como dissemos, como antes ocorria
em relação à boa-fé em si mesma.
Uns poucos autores, quando muito, se referem com um pouco
mais de vagar à figura do abuso do direito, que sem sombra de dúvida é a
mais conhecida de todas essas variações da boa-fé, até mesmo pelo fato de se
tratar de tema que foi há muito desenvolvido pela jurisprudência dos tribunais
franceses, antes mesmo do surgimento do Código Civil alemão, e que por essa
razão influenciou fortemente nossos autores. No entanto, não costumam
15
nossos juristas observar que o abuso do direito, na realidade, também é figura
que se mostra bastante ampla, abrangendo as outras situações mencionadas,
como, por exemplo, o venire contra factum proprium.
Assim, se por um lado é verdade que uma situação que poderia
ser enquadrada como um caso de venire também pode ser apresentada como
hipótese de abuso do direito (pois aquela é uma hipótese deste), por outro,
também é certo que tal situação poderia ter sido qualificada de modo mais
preciso, uma vez que a figura do venire contra factum proprium apresenta
características próprias, que permitem destacá-la dentre as figuras que se
inserem no abuso do direito, para um exame mais detalhado e minucioso. O
abuso do direito, portanto, também precisa ser examinado com maior riqueza
de detalhes, para que melhor se possa compreender a figura do venire, uma
vez que esta se insere no campo mais amplo daquele.
Da mesma forma, existem situações em que nossos tribunais
abordam hipóteses que claramente poderiam ser enquadradas como casos de
venire contra factum proprium, ou de suppressio, ou de tu quoque, etc, mas
em geral o fazem sem qualquer preocupação com tais figuras decorrentes da
boa-fé, apenas cuidando de realçar quais são as características do caso
concreto, mas sem a preocupação de fazer o mais adequado enquadramento
jurídico. Em outros casos, ainda, o enquadramento vem a ser feito, de modo
incorreto, denominando-se de venire contra factum proprium, por exemplo,
situação que na realidade seria mais bem enquadrada como sendo de tu
quoque.
Todas
essas
situações,
naturalmente,
serão
abordadas
no
desenvolvimento do presente estudo, na busca de serem fornecidos elementos
mais precisos para as distinções.
Nosso objetivo, na presente tese, está voltado precisamente para
essas subespécies da boa-fé, em especial o venire contra factum proprium,
16
possivelmente o que encontra maior aplicação concreta no quotidiano. Mas é
evidente que não se buscou, tão-somente, a abordagem da figura do venire,
isolada, fora de contexto, e considerada de modo integral, pois é certo que
uma análise feita dessa forma teria o pecado mortal de tornar praticamente
ininteligível o venire.
A estratégia adotada, portanto, foi a de fazer uma abordagem
inicial macro, de modo a situar a figura do venire no plano mais amplo e
genérico da boa-fé, para depois partir para um exame atomizado, buscando a
decomposição do venire em seus menores elementos, os quais são em seguida
examinados com uma lupa, de modo minucioso e detalhado, de modo a
facilitar a identificação da figura e, mais do que isso, possibilitar o adequado
cotejo entre as diversas hipóteses de concretização da boa-fé. Buscou-se,
portanto, suprir uma lacuna existente em nossa doutrina, acerca do tema, tendo
em vista que as poucas obras que o abordam, como dissemos linhas atrás, em
geral o fazem de modo passageiro e superficial, sem se preocupar com o
exame minucioso dos seus componentes.
Vejamos, em seguida, qual foi a estrutura que se deu ao presente
estudo e os motivos de tê-la adotado.
Como as figuras a serem abordadas decorrem da boa-fé, logo de
início buscou-se o resgate histórico da mesma, vale dizer, fizemos o estudo do
desenvolvimento da mesma, a partir da fides dos romanos, passando pela sua
qualificação como bona fides, abordando inclusive a sua transposição, ainda
no direito romano, do campo dos direitos reais para o direito obrigacional,
onde iria fincar suas mais sólidas raízes, e também pelo campo processual.
Mas a visão que os romanos tinham sobre a boa-fé de nada nos serviria, se
tivéssemos deixado de lado a aferição do modo pelo qual essa boa-fé foi
absorvida pelo direito posterior e acabou chegando até nós. Passamos, então,
17
por sobre a Idade das Trevas (Idade Média), e chegamos aos séculos XVII e
XVIII, com o chamado fenômeno da recepção.
Uma parte significativa do direito romano, notadamente em
relação ao direito das obrigações, foi primeiramente compilada pelo trabalho
dos glosadores e, posteriormente, atualizada (para a época) pelo trabalho dos
pós-glosadores, tudo isso na fase que antecedeu às grandes codificações
européias, que tiveram início no começo do século XIX, com o Código Civil
francês, mais precisamente em 1806. Ora, se o direito romano foi recebido
pelos juristas europeus, é muito fácil de se concluir que o mesmo teve
marcante influência nos Códigos Civis da Europa, e, por conseqüência, nos
Códigos do mundo inteiro, pois é sabido que tais Códigos, notadamente o
francês e, quase um século depois, o alemão, foram refletidos pelas legislações
de todo o mundo civilizado, inclusive o Código Civil brasileiro de 1916.
Foi por essa razão, vale dizer, por ter sido tão ampla e tão
importante a influência do direito romano nas legislações mais recentes do
mundo inteiro, inclusive a nossa, que nos pareceu essencial, para uma melhor
compreensão da visão atual que se tem sobre a boa-fé (e que, na realidade,
segundo nos parece, ainda está em formação), que fizéssemos esse resgate
histórico, esse exame da boa-fé desde a sua origem primeira, entre os
romanos, e passando em seguida pelas principais etapas de sua evolução,
dentre as quais se mostra de fundamental importância esse mencionado
fenômeno da recepção, porta de entrada da fides romana no direito moderno.
Feito o exame sobre como se deu essa recepção do direito romano
na Europa, em seguida passamos a analisar as principais características do
direito europeu no período anterior ao começo das grandes codificações, com
rápidas pinceladas sobre o racionalismo e o direito natural, que se mostraram
de grande importância, por exemplo, para a visão do direito como um sistema,
18
e não como um simples agrupamento de regras. Na fase das codificações,
nosso exame mais detido, como não poderia deixar de ter sido, ocorreu em
relação ao direito civil francês e ao alemão, esses que foram os grandes
influenciadores do nosso próprio direito civil, mas não deixando de realçar as
diferenças entre as visões francesa e alemã acerca do princípio da boa-fé.
Em relação ao direito civil germânico, inclusive, percorremos o
interessante caminho da boa-fé, a partir dos tribunais tedescos, passando pelo
Código Civil grego e, daí para o segundo Código Civil português, de 1966, de
onde acabou migrando para o atual Código Civil brasileiro, em uma trilha que
durou mais de um século. E com essa “viagem” foi concluída a abordagem da
parte histórica da boa-fé, à qual dedicamos cerca de um sexto do
desenvolvimento do trabalho.
Na seqüência, passamos a examinar algumas questões relevantes
acerca da visão atual que se tem da boa-fé, com destaque para o seu caráter
normativo (ou seja, a boa-fé enquanto norma de conduta) e a sua tendência
expansionista, de modo que sua aplicação passa a se dar em todos os ramos do
direito. É que essa boa-fé agora se apresenta como um princípio geral e
fundamental, cujo assento pode ser encontrado diretamente no tecido
constitucional, mais precisamente na solidariedade social, que se apresenta
como um dos objetivos fundamentais da nossa República Federativa,
conforme se encontra expresso no art. 3º, I, da Constituição Federal.
Ora, uma vez verificado que a boa-fé normativa tem fundamento
constitucional e que se constitui em um princípio fundamental, fica fácil de ser
explicado o seu caráter expansionista, ou seja, a sua extensão a todos os ramos
do direito, ultrapassando não apenas as fronteiras do direito civil, mas, muito
mais do que isso, indo além das fronteiras do direito privado, até se espraiar
pelo direito público e pelo direito processual, campos onde um perfunctório
19
exame poderia transmitir a errônea idéia de que o instituto da boa-fé não seria
capaz de encontrar aplicação. Face à relevância do tema e por se tratar de
assunto que, até o presente momento, foi tão pouco desenvolvido pela nossa
doutrina, dedicamos um item específico (item 1.7) ao exame desse espraiar da
boa-fé em geral – e do venire contra factum proprium em particular – pelos
campos do direito processual e do direito público.
Em seguida, contudo, ou seja, especificamente no item 1.8,
retornamos para a aplicação da boa-fé que se mostra como a mais comum no
quotidiano, ou seja, em relação ao direito obrigacional, principalmente em
relação aos contratos. Nessa parte do trabalho foi feita a abordagem acerca dos
estudos de Rudolf von Jhering sobre a existência de uma responsabilidade pré
e pós-contratual, vale dizer, que se forma antes mesmo do contrato chegar a
ser celebrado e que persiste depois de sua extinção pelo cumprimento. Esses
estudos de Jhering se mostraram cruciais para que se percebesse que uma
obrigação, na realidade, não pode ser considerada como um todo unitário,
sendo composta, isso sim, por um complexo que se apresenta formado,
simultaneamente, por prestações principais e por prestações acessórias, sendo
que a decomposição da boa-fé nestas últimas foi a grande mola propulsora de
toda a evolução do exame da boa-fé enquanto norma de conduta.
Por último, no que se refere a essa abordagem dos aspectos gerais
e atuais da matéria, passamos a examinar as conseqüências concretas da
aplicação do princípio da boa-fé, ou seja, como se dá e qual o resultado da
incidência do princípio da boa-fé em uma hipótese real. Na realidade, apenas
se mostra possível que examinemos as situações mais comuns, pois a
amplitude da boa-fé é tamanha que se torna simplesmente impossível o exame
completo de todas as situações práticas (e, portanto, impossível também se
20
mostra o exame de todas as conseqüências práticas) que podem surgir no
quotidiano.
Assim, tais conseqüências podem ser de diversas espécies, tais
como a intervenção judicial sobre o próprio conteúdo do contrato, de modo a
invalidar ou a modificar, conforme o caso, uma determinada cláusula, ou a
determinação para que um dos sujeitos contratuais adote um comportamento
positivo ou negativo, ou a determinação judicial para que o contrato seja
rescindido, ou, ao contrário, para que o mesmo seja mantido por mais algum
tempo, ou, ainda, a condenação ao pagamento de uma indenização, etc. Enfim,
são variados os resultados que decorrem da incidência do princípio da boa-fé,
mudando de uma situação para a outra, mas sempre buscando, em cada caso
concreto, qual é a solução que mais adequadamente protege a boa-fé do
sujeito.
Um desses resultados que se mostra de acentuada importância
prática é a possibilidade de que, em decorrência do princípio da boa-fé, um
negócio jurídico cuja nulidade se encontra expressamente determinada pela lei
venha a produzir todos os efeitos de um negócio válido. E, ao contrário do que
geralmente se afirma, entendemos que esses efeitos poderão ser produzidos
não apenas quando se trate da hipótese de nulidade decorrente de vício formal,
mas também, em certas e especiais circunstâncias, até mesmo quando se tratar
de nulidade que tenha a sua causa na incapacidade absoluta de um dos sujeitos
envolvidos.
E com o exame dessas conseqüências da incidência concreta do
princípio da boa-fé, encerramos essa análise dos aspectos gerais do princípio
da boa-fé, na visão da moderna ciência do direito, sendo que dedicamos a essa
análise cerca de um terço de todo o trabalho. Passamos, em seguida, ao exame
das situações que se constituem em violações típicas da boa-fé, objetivo maior
21
do presente estudo e ao qual foi dedicada, aproximadamente, a metade de todo
o desenvolvimento do mesmo.
No segundo capítulo do trabalho, o estudo das violações típicas
da boa-fé (ou, mais adequadamente, dos casos típicos de proteção à boa-fé) se
inicia pela figura do abuso do direito, por se tratar de figura bastante ampla e
genérica, dentro da qual se enquadram várias outras. Além disso, foi com as
decisões judiciais sobre o abuso do direito, que tiveram origem na França e
depois foram assimiladas e desenvolvidas pelos tribunais alemães, que se
iniciou o estudo moderno dessas figuras ligadas à boa-fé. A primeira
abordagem que é feita, acerca do abuso do direito, é a que se refere à
denominação do mesmo, colocando-se em destaque a erronia dos vários textos
doutrinários e mesmo legais que se referem ao abuso de direito, quando o
correto é falar-se em abuso do direito. Mostramos, em seguida, que a idéia
central do tema é a de que todo direito, ao ser deferido pela sociedade ao seu
titular, está vinculado a uma causa, uma finalidade que o justifica, e que ao
mesmo tempo lhe serve de limite, e nos casos em que tal finalidade é
desconsiderada é que se tem a hipótese do abuso.
Como um subitem do abuso do direito, em seguida o trabalho faz
a análise da exceptio doli, figura que teve grande importância, e que inclusive
foi desenvolvida para o esteio das decisões dos tribunais alemães, ao mesmo
tempo em que os tribunais franceses apoiavam suas decisões na figura do
abuso do direito. Mostramos, inclusive, que quando os tribuais germânicos
começaram a também fazer referência à figura do abuso do direito, a exceptio
acabou por ser praticamente abandonada, face à grande afinidade entre as duas
figuras (afinidade essa que levou à inclusão da exceptio como um subitem do
abuso). Hoje a exceptio quase que desapareceu por completo da jurisprudência
e, por conseqüência, deixou de despertar o interesse da doutrina.
22
A partir daí, a abordagem passa a se concentrar especificamente
na figura que se constitui no objeto central do presente estudo, o venire contra
factum proprium. Após traçar uma breve visão panorâmica geral sobre o
venire, começamos a buscar os sinais do venire no nosso Código Civil atual. É
evidente que não se encontrará, no nosso Diploma Civil, disposição expressa
que remeta ao venire. No entanto, realçamos diversas disposições legais que
claramente se apresentam como sendo casos de aplicação concreta e específica
do venire, e não apenas em relação ao direito contratual, pois tais disposições
se encontram presentes, também, em outros livros do nosso Código Civil.
Nesse realce de alguns dispositivos legais, mostramos inclusive que, em
alguns casos, a contradição entre dois comportamentos, por ser justificada, é
explicitamente admitida pela norma legal, conclusão essa que se mostra
importante para que, mais à frente, possamos fazer o exame em separado de
cada um dos elementos que compõem a figura do venire.
No exame desses elementos pontuais que compõem o venire, é
feita a separação entre os dois comportamentos do sujeito e a contradição
inaceitável que se verifica entre eles e, a partir desse ponto, cada um desses
elementos é ainda decomposto em elementos menores, para que o exame
possa ser feito do modo mais minucioso possível, dentro do nosso declarado
objetivo de permitir a identificação mais segura do venire e de permitir a sua
mais precisa comparação com outros institutos assemelhados, também
derivados da boa-fé.
Finalmente, concluído o exame do venire contra factum
proprium, passamos a examinar os principais traços de caracterização do tu
quoque e da suppressio (e surrectio), figuras que com freqüência são
confundidas com o venire. Esse exame, contudo, é feito de forma breve, pois
não se constituem no objetivo do presente trabalho, e por isso nos limitamos à
23
busca dos elementos que se mostrem suficientes para caracterizar as distinções
e as semelhanças entre tais figuras e o venire.
Por último, convém ressaltar que, ao longo de todo o
desenvolvimento do trabalho, buscamos a todo instante apresentar exemplos
concretos, ou seja, situações que possam ser apresentadas como aplicações
práticas do que estava sendo examinado em teoria. Isso foi feito não apenas
pela farta indicação de decisões dos tribunais, tanto alienígenas quanto pátrios,
mas também com o freqüente recurso à pura e simples construção de situações
hipotéticas. Entendemos que esse recurso a situações concretas (ou, pelo
menos, possíveis de concreção), ou seja, que aparecem com os contornos e
com a moldura da vida quotidiana, facilita sobremaneira o acompanhamento
do desenvolvimento puramente teórico do assunto.
Em apertadíssima síntese, eis aí todo o conteúdo deste trabalho.
24
1. Desenvolvimento histórico da boa-fé.
1.1. Considerações gerais.
A boa-fé encontra larga aplicação no Direito em geral, mas em
particular se destaca a sua vasta utilização no direito privado. Se questionado
sobre a mesma, qualquer profissional da área jurídica, com certeza, dirá que
conhece o princípio da boa-fé. Instado a transformar esse conhecimento em
um conceito, no entanto, poucos serão os que ousarão fazê-lo, e entre os que o
fizerem, certamente não haverá dois conceitos idênticos. Trata-se, como se vê,
de “algo que el jurista práctico entiende perfectamente sin llegar a
formulárselo” 1.
Na realidade, essa dificuldade conceitual tem razões históricas,
estando intrinsecamente relacionada com a noção de boa-fé que veio dos
romanos e a sua respectiva recepção no direito civil europeu, notadamente em
França, com a primeira codificação (Código Civil de 1806), e na Alemanha,
onde surgiu a segunda codificação civil (1900) que marcou fortemente o
direito civil dos demais países (inclusive o Brasil).
Ao longo desses dois últimos séculos, desde o começo da
vigência do Código Civil de Napoleão, os juristas vêm tentando completar
adequadamente as normas legais que, de modo geral e aberto, se referem à
boa-fé. E nessa busca, o que se tem visto é uma grande diversidade de
definições, que em boa parte se apresenta como resultado de uma profunda
vinculação que existe entre a boa-fé e os fatores ético e axiológico, pois como
nessas matérias existe acentuada disparidade de critérios, a relatividade das
1
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 34.
25
soluções encontradas se traduz em matizes diversos a respeito de todos os
conceitos que com elas se relacionam2.
Na verdade, como veremos em seguida, pode-se apontar que
antes mesmo da vigência do Código Civil francês já se verificava a busca de
um conceito científico para preencher a referida expressão, o que ora era feito
com o apoio em noções metajurídicas, ora era buscado dentro do próprio
direito.
Esse panorama, na realidade, não mudou muito até os dias de
hoje. No entanto, é inegável que houve um grande avanço no tema, podendose apontar, como o mais importante desses avanços, a diferenciação entre a
boa-fé como regra objetiva de conduta e a boa-fé esteada na ignorância, ou
seja, no desconhecimento de determinadas circunstâncias do caso concreto.
Essa distinção 3, que hoje se nos apresenta como extremamente
simples, nem sempre foi tão clara, sendo renitente, por várias décadas, a
2
Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 77. Mas
deve-se observar, como bem alerta a ilustre autora espanhola, que a vinculação com a ética e a axiologia não
justifica uma relativização absoluta do conceito de boa-fé, sob pena de ser privada de seriedade qualquer
intenção conceitual. Na realidade, continua a autora, se por um lado é certo que a validade das normas morais
e a estimação dos valores dependem das condições particulares de cada pessoa, por outro, é inaceitável a idéia
de que não se podem formular normas morais médias ou gerais, que possam servir para caracterizar uma
época ou uma comunidade específica (Ob. Cit., p. 78).
3
O presente trabalho está focado, primordialmente, no estudo da boa-fé normativa, ou seja, da boa-fé
como norma objetiva de conduta. No entanto, logo de início deve-se alertar que se pode falar em distinção
entre a boa-fé objetiva e a boa-fé subjetiva, mas não em independência daquela em relação a esta. Com efeito,
a boa-fé objetiva, como veremos adiante (vejam-se os itens 1.6 e 1.8), diz respeito à proteção à confiança e à
legítima expectativa do sujeito, enquanto a boa-fé subjetiva diz respeito ao desconhecimento de uma
determinada circunstância. Logo, se o sujeito não desconhece a circunstância, nem ao menos chegou a criar a
justa expectativa, não se formou em seu interior a confiança. Pode-se dizer, por isso, que a boa-fé objetiva
pressupõe a boa-fé subjetiva, englobando-a. Vejamos um exemplo, que ajudará a clarear essa afirmação.
Suponha-se que em um contrato de locação não residencial de um imóvel, com prazo indeterminado, e que
por isso pode ser rescindido a qualquer tempo pelo locador, este é procurado pelo locatário, que requer a sua
concordância para que seja realizada, nesse imóvel, obra de elevado valor, que permitirá significativo
aumento de ganhos pelo locatário, em sua atividade empresarial. Concordando o locador, o locatário realiza a
obra. Alguns poucos meses depois, no entanto, o locador denuncia o contrato, pedindo a devolução do imóvel,
sendo que o tempo decorrido, claramente, não é suficiente para que o locatário tenha recuperado o seu alto
investimento. Nesse caso, quando o locador concordou com a realização da obra, criou-se no locatário uma
legítima expectativa, a confiança de que o locador não romperia o contrato antes de decorrido o tempo
suficiente para a recuperação do investimento que fizera. Logo, a atuação do princípio da boa-fé levará a que
seja protegida essa legítima expectativa criada pelo locatário, impedindo-se que a denúncia produza seus
26
confusão que entre os dois conceitos se fazia, e que em última análise
misturava em um mesmo caldeirão os conceitos de boa-fé subjetiva e boa-fé
objetiva, impedindo o adequado desenvolvimento científico deste último.
O grande entrave que sempre se apresentou à abordagem
adequada da questão, sem sombra de dúvida, foi o fato de que a boa-fé, na
realidade, é uma criação do direito, mas tratando-se de uma criação que, na
sua própria gênese, por definição, sempre terá que se mostrar inacabada, por
isso que estará sempre a requer um complemento que depende dos valores
vigentes em cada época 4.
Dito em outras palavras, a boa-fé está sempre e indissoluvelmente
ligada aos fatores sócio-culturais de um determinado lugar e momento. E
efeitos de imediato, devendo-se aguardar, antes que isso ocorra, o tempo necessário à recuperação dos gastos,
pelo locatário. No entanto, suponha-se que, nessa mesma situação narrada, o locador, ao concordar com a
obra, tivesse informado ao locatário que, em uns poucos meses, precisaria retomar o imóvel, e mesmo assim o
locatário resolveu levar a obra a cabo. Ora, nesse caso, o locatário sabia que o imóvel seria em breve
retomado pelo locador, e por isso não se pode dizer que teria surgido no locatário a legítima expectativa de
que o imóvel não seria pedido de volta tão cedo, pelo locador, pois ele sabia que esse pedido de devolução
seria feito. Logo, se não havia o desconhecimento da circunstância (ou seja, se não havia a boa-fé subjetiva),
parece evidente que não surgirá a legítima expectativa, a confiança a ser protegida, e por isso não se poderá
falar em boa-fé objetiva do locatário. Como se disse, pois, para que haja a concretização da boa-fé objetiva, é
necessária a presença da boa-fé subjetiva. Parece-nos que é nesse mesmo sentido a afirmação de Bruno
Lewicki, quando diz que os dois aspectos da boa-fé, objetivo e subjetivo, “divergem entre si na mesma
medida em que se complementam”. Cf. Bruno Lewicki, Panorama da boa-fé objetiva. In: Tepedino, Gustavo
(Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional, p. 57.
4
Afirmando exatamente o contrário, ou seja, no sentido de que a boa-fé é um dado da realidade, e não
uma criação arbitrária e técnica do Direito, veja-se a lição de Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el
principio general em el derecho civil, pp. 78-81. Curiosamente, no entanto, a oposição entre a afirmação que
fizemos acima e a feita pela ilustre autora é apenas aparente. Com efeito, ao afirmar que a boa-fé não é criada
pelo Direito, mas por ele apropriada a partir do recurso à realidade social, aponta a autora que tal recurso vem
determinado pela necessidade de se vincular o ordenamento jurídico às considerações ético-axiológicas
vigentes, e o legislador nada cria, mas apenas, partindo da realidade, atribui à boa-fé certos conteúdos e lhe
impõe determinadas limitações, sendo que estas conferem, em cada ordenamento concreto, determinados
traços que, sem afetar a essência do princípio da boa-fé, modificam sua aplicabilidade, seu alcance e seus
efeitos. “El caso de la buena fe es el segundo, la ley parte de algo que está em la natureza, pero matiza su
significado transformándolo em um concepto jurídico. Pero, reiteramos, el punto de partida es la realidad,
no hay creación arbitraria de um concepto”. Mas, como se vê, apesar das afirmações iniciais diametralmente
opostas, o que se tem, na essência, é a idéia de que a boa-fé será sempre um conceito intimamente ligado às
condições sociais, às noções éticas e aos valores vigentes em cada época. Tal idéia tanto pode ser colhida no
texto acima quando na lição da autora mencionada, ainda que acima se sustente que a boa-fé é uma criação do
Direito, que não o fez de modo arbitrário, mas levou em consideração, previamente, a realidade social,
enquanto na obra de Delia Rubio esteja a afirmação de que a boa-fé já existia nessa realidade social, apenas
tendo sido apreendida pelo Direito.
27
como tais fatores influem fortemente na própria definição dos contornos da
ordem jurídica vigente, com extrema facilidade se pode perceber que a boa-fé
sempre refletirá uma determinada cultura jurídico-social, vale dizer, sempre
estará a espelhar uma ordem jurídica e social, o que a toda evidência impede
que se possa obter um conceito definitivo e acabado para a mesma. A grande
problemática com que se depara o cientista do direito, portanto, é avaliar como
se dá esse processo e qual será o conteúdo refletido na ordem jurídica.
No dizer de Los Mozos 5, o problema é que a aplicação do
princípio da boa-fé faz penetrar no ordenamento jurídico um elemento natural,
propriamente extrajurídico, mas que em virtude desse ingresso passa a formar
a própria regra jurídica, o que provoca a necessidade de que os juristas
busquem identificar como se dá esse ingresso e qual o conteúdo extrajurídico
que passa a fazer parte da regra jurídica.
As observações acima servem para, desde logo, alertar o leitor no
sentido de que neste trabalho não será encontrada uma definição universal e
completa para a boa-fé, pelo simples fato de que tal definição não existe.
Como diz, sem meias palavras, Béatrice Jaluzot6, “a boa-fé é uma noção que
não pode ser definida”. Aliás, o simples exame do nosso direito positivo já
permite verificar que em um mesmo ordenamento, conforme a hipótese que
esteja sendo tratada pelo legislador, são múltiplas e variadas as definições que
podem ser obtidas para a boa-fé.
Com efeito, no artigo 1.201, do Código Civil, verifica-se que o
conceito de boa-fé se refere ao possuidor que ignora o vício ou obstáculo que
impede a aquisição da coisa, o que significa que a boa-fé é sinônimo de
ignorância. No artigo 1.256, no entanto, o mesmo diploma material aponta que
5
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 15.
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 79, n° 289.
6
28
está de má-fé o proprietário que, estando presente, não impugnou o trabalho
de construção ou lavoura feito por terceiro em seu terreno, o que leva a
concluir que a boa-fé, neste caso, consistiria em um comportamento ativo do
proprietário, que deveria se opor à atuação desse terceiro.
No artigo 1.561, ainda do Código Civil, verifica-se que produzirá
os efeitos do casamento válido aquele no qual, embora anulável ou mesmo
nulo, pelo menos um dos cônjuges estava de boa-fé, sendo considerado como
tal o cônjuge que, no momento em que se realizou o casamento, não tinha
conhecimento da causa que tornava o matrimônio anulável ou mesmo nulo,
sendo, contudo, que mesmo a descoberta posterior do vício não impede que
continue a ser tratado como sendo cônjuge de boa-fé, por isso que será
favorecido com todos os efeitos benéficos do casamento, até o dia da sentença
anulatória 7. Novamente a ignorância, mas agora restrita a um único e exato
momento: o da celebração do casamento.
No artigo 1.826, por sua vez (em regra que também se mostra
aplicável aos efeitos da posse quanto aos frutos, benfeitorias e deteriorações,
previstos nos artigos 1.214 a 1.222), verifica-se que aquele que, na qualidade
de herdeiro (ou mesmo sem título), possui herança que, no todo ou em parte,
pertence a terceiro, ainda que de nada soubesse quanto ao fato de não ser o
verdadeiro herdeiro, caso venha a ser vencido na demanda, passará a ser
considerado de má-fé a partir da citação. A boa-fé, aqui, não depende do
desconhecimento em si mesmo, mas da combinação entre a citação e o
resultado da demanda.
Como se percebe, a partir dessa breve amostragem, têm-se aí
quatro conceitos nitidamente distintos. Na primeira situação (art. 1.201), com
efeito, verifica-se que o conceito de boa-fé aborda aspecto puramente
7
Sílvio Luís Ferreira da Rocha, Introdução ao Direito de Família, pp. 90-91.
29
subjetivo, ou seja, decorre da ignorância de uma determinada circunstância de
fato: se o possuidor tinha conhecimento dessa circunstância, estava de má-fé
e, se não tinha tal conhecimento, é considerado possuidor de boa-fé. Na
segunda hipótese (art. 1.256), contudo, o aspecto subjetivo já não se mostra
suficiente, pois o conceito de boa-fé já passa a ser relacionado com um dever
de agir do proprietário, que será considerado de má-fé se nada fizer para
impedir o terceiro de construir ou plantar em seu imóvel.
Na terceira e na quarta situações enfocadas (arts. 1.561 e 1.826),
no entanto, embora em ambas a questão da boa-fé volte a se relacionar com o
aspecto subjetivo do conhecimento ou desconhecimento de determinada
circunstância de fato, verifica-se significativa distinção entre as duas. De fato,
na hipótese do casamento, ainda que tenha descoberto o vício que o torna
nulo, o cônjuge continua a ser tratado de boa-fé, até o trânsito em julgado da
sentença anulatória. Dessa forma, o desconhecimento no momento da
celebração fez com que o cônjuge fosse considerado como sendo de boa-fé,
mas o conhecimento posterior não afasta essa qualificação como cônjuge de
boa-fé.
Na situação do que possui a herança, no entanto, se o mesmo não
sabia dos motivos pelos quais não era o verdadeiro herdeiro (por exemplo, no
caso do irmão do de cujus que recebeu a herança por ser desconhecida a
existência de um filho do mesmo), será considerado como possuidor de boafé. No entanto, vindo a ser citado, ainda que continue a acreditar que de fato é
o herdeiro (ou seja, ainda que continue a desconhecer a circunstância que o
impede de possuir, pois é certo que a citação não tem o condão de, por si só,
fazer surgir o conhecimento da realidade), passará a ser considerado, a partir
daí, como pessoa de má-fé, mas isso estando condicionado ao resultado da
ação contra ele ajuizada.
30
Veja-se que, nessa primeira abordagem, todas as definições de
boa-fé, apesar das diferenças, podem ser relacionadas com os aspectos
íntimos, psicológicos, da pessoa envolvida, ora referindo-se ao conhecimento
ou desconhecimento de uma circunstância fática, ora à culpa dessa mesma
pessoa (negligência por nada ter feito). E apesar desse liame entre elas, como
vimos, as diferenças ainda assim podem ser facilmente detectadas, em alguns
casos se mostrando acentuadas.
O fosso aumenta, no entanto, se observarmos que existem outras
situações em que a lei não se satisfaz com a abordagem dos aspectos internos
do sujeito, buscando ainda a influência de fatores externos. Assim, por
exemplo, nos termos do artigo 187 do Código Civil, a boa-fé se apresenta
como sendo um limite imposto ao exercício de um direito, ou seja, como um
fator externo que se impõe à atuação do titular de um direito ao exercê -lo, e
que uma vez ultrapassado faz com que seja ilícito tal exercício.
Pode-se apontar, igualmente, o artigo 113 do Código Civil, que
determina que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boafé, por isso que, em tal situação, mais uma vez, tem-se a boa-fé como
elemento externo ao sujeito 8, e tanto assim que invocada para interpretar os
negócios que esse mesmo sujeito já celebrou. Da mesma forma, na conclusão
e na execução de um contrato, determina o artigo 422 que os contratantes
observem o princípio da boa-fé.
8
Nesse sentido a lição de Moreira Alves, que ao analisar o artigo 113, do Código Civil, ensina que “a
boa-fé a que alude esse dispositivo não é evidentemente a boa-fé subjetiva, fato psicológico em que, quando
conceituado como convicção de não se estar ofendendo direito alheio, se levam em consideração também
valores morais de honestidade e retidão, mas sim, a boa-fé objetiva que se caracteriza como regra de reta
conduta do homem de bem no entendimento de uma sociedade em certo momento historico. É, portanto, ao
contrário do que ocorre com a boa-fé subjetiva, algo exterior ao sujeito, vinculando-se ao dever de
cooperação que se exige nas relações obrigacionais, e regra de interpretação que ora conduz a um resultado
integrador das obrigações assumidas, ora a um resultado limitador delas...”. Cf. José Carlos Moreira Alves,
O novo Código Civil brasileiro e o direito romano – seu exame quanto às principais inovações no tocante ao
negócio jurídico. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives Gandra da
Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, p. 120.
31
Como se vê, nessas três últimas disposições legais mencionadas,
em todas elas a boa-fé apresenta, em comum, o fato de se apresentar como
elemento externo ao sujeito, e não mais como um elemento interno ligado ao
mesmo. Apesar desse fator comum, no entanto, são muito claras as diferenças
entre cada uma das situações, eis que a boa-fé, como fator externo, pode se
apresentar como um limite previamente estabelecido à atuação concreta do
sujeito (art. 187), como uma diretriz interpretativa dos atos por ele praticados,
ou mesmo com a generalidade de um princípio, que se infiltra por todo o
ordenamento jurídico.
O primeiro grupo de situações acima apontadas, ou seja, as que
relacionam a boa-fé com os aspectos íntimos e psicológicos do sujeito, estão
ligados ao que se denomina de boa-fé subjetiva, enquanto que o segundo, o
que apresenta a boa-fé como um fator externo, relaciona-se à chamada boa-fé
objetiva9.
A denominação, no entanto, não difere, em ambos os casos sendo
usada, pela lei, a expressão “boa-fé”, ao contrário, por exemplo, do direito
alemão, onde são usadas expressões distintas para a boa-fé subjetiva (guter
Glauben) e para a boa-fé objetiva (Treu und Glauben), o que facilita a mais
rápida distinção10. Além disso, e principalmente, como vimos acima, mesmo
9
Há quem prefira usar as denominações “boa-fé-crença” e “boa-fé-lealdade”, sendo a primeira a
posição de quem ignora determinados fatos e pensa, portanto, que sua conduta é legítima e não causa
prejuízos a ninguém; a segunda é referente à conduta da pessoa que considera cumprir realmente com o seu
dever, pressupõe uma posição de honestidade e honradez no comércio jurídico. Cf. Américo Plá Rodriguez,
Princípios de Direito do Trabalho, p. 425. Também Guillermo Guerrero Figueroa, Principios Fundamentales
del Derecho del Trabajo, p. 45, prefere “distinguir la buena fe-creencia y la buena fe-lealtad. La primera se
refiere a la buena fe de quien cree obrar con arreglo a derecho, aunque fundado en una creencia equivocada,
excusable por una apariencia engañosa. La segunda trata de la conducta de la persona que considera
cumplir realmente con su deber. Supone una posición de honestidad que lleva implícita la plena conciencia
de no engañar, ni perjudicar, ni danar. Implica la convicción de que las transacciones se cumplen
normalmente, sin abusos ni desvirtuaciones”.
10
Na realidade, a doutrina alemã, com a precisão que lhe é peculiar, vale-se dessa dualidade
objetividade/subjetividade como um dos critérios para diferenciar a boa-fé no direito das coisas da boa-fé no
campo das relações contratuais. A primeira, ou seja, no direito das coisas, seria a boa-fé subjetiva, ligada ao
estado de espírito do sujeito, que conhece ou ignora os vícios do seu título, enquanto a segunda seria objetiva,
32
dentro de cada uma dessas modalidades de boa-fé encontramos diferenças
marcantes.
Todos esses fatores, como facilmente se pode imaginar, têm-se
constituído, ao longo da evolução da análise da boa-fé pela Ciência do Direito
(e até hoje se constituem), em obstáculo quase intransponível à obtenção de
um conceito abstrato e teórico que se mostre satisfatório. Muito pelo contrário,
embora algumas linhas mestras abstratas possam ser traçadas, sempre haverá
de se mostrar indispensável a análise minuciosa do caso concreto onde tais
linhas devam ser aplicadas, sendo inviável que se atinja solução adequada
apenas em função das normas e valores que informam o sistema.
Na lição de Los Mozos 11, distingue-se na atualidade um
pensamento aporético (ou problemático) e um pensamento sistemático (ou
axiomático). O primeiro busca a solução de cada problema depois de avaliar
as circunstâncias da situação concreta onde esse mesmo problema foi
detectado, e com ele se relaciona a tópica, enquanto o segundo busca,
primordialmente, a sistematização dos conceitos e das soluções que serão
usados em cada caso concreto.
não dependendo do sujeito, mas sim de valores que dele independem. Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans
les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 80, n° 291.
11
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 19-20.
33
No pensamento tópico12 (aporético), não há como se fazer a
sistematização dos conceitos, de modo a que tenham aplicação ampla, pois
com isso se perderia a sua finalidade específica, e é nessa situação que se
enquadra o princípio da boa-fé, que não pode ser considerado senão como um
conceito tópico, cujo conteúdo não consegue encontrar guarida em um
conceito único, válido para todo o sistema. Nesse mesmo sentido, afirma
Béatrice Jaluzot13 que a boa-fé é o instrumento de uma justiça feita caso a
caso, o que inclusive levou a Corte Federal da Alemanha a expressar sua
intenção de não sistematizar as condições para a sua aplicação 14.
A sistematização, portanto, prossegue Los Mozos 15, não pode ser
feita de modo arbitrário, sem que se faça o necessário enquadramento do
indivíduo na realidade que o cerca, assim como sua vinculação a determinados
problemas que se apresentam de modo permanente em um complexo
problemático determinado e real, tais como o negócio jurídico, a proteção da
confiança, etc.
12
Nas palavras de Tércio Sampaio Ferraz Jr., “a tópica não é propriamente um método, mas um estilo.
Isto é, não é um conjunto de princípios de avaliação da evidência, cânones para julgar a adequação de
explicações propostas, critérios para selecionar hipóteses, mas um modo de pensar por problemas, a partir
deles e em direção deles. Assim, num campo teórico como o jurídico, pensar topicamente significa manter
princípios, conceitos, postulados, com um caráter problemático, na medida em que jamais perdem sua
qualidade de tentativa. Como tentativa, as figuras doutrinárias do Direito são abertas, delimitadas sem
maior rigor lógico, assumindo significações em função dos problemas a resolver, constituindo verdadeiras
<fórmulas de procura> de solução de conflito. Noções-chaves como <interesse público>, <vontade
contratual>, <autonomia da vontade>, bem como princípios básicos como <não tirar proveito da própria
ilicitude>, <dar a cada um o que é seu>, <in du bio pro reo>, guardam um sentido vago, que se determina
em função de problemas como a relação entre sociedade e indivíduo, proteção do indivíduo em face do
Estado, do indivíduo de boa-fé, distribuição dos bens numa situação de escassez, etc., problemas estes que se
reduzem, de certo modo, a uma aporia nuclear, isto é, a uma questão sempre posta e renovadamente
discutida e que anima toda a jurisprudência: a aporia da justiça”. Tércio Sampaio Ferraz Jr., Prefácio do
Tradutor. In: Viehweg, Theodor. Tópica e Jurisprudência, p. 3.
13
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 103, n° 370. No entanto, é necessário que se alerte que a referida autora menciona, na mesma
obra e local citados, que, ao lado dessa parte que ela denomina de subjetiva, e que só pode ser aferida caso a
caso, existe também uma parte objetiva, que segundo ela não varia em função das circunstâncias, e que
consiste nos usos e nos valores.
14
Nas atentas palavras de Teresa Negreiros: “A boa -fé constitui um exemplo riquíssimo de como o
Direito é indissociável de sua aplicação”. Cf. Teresa Negreiros, Fundamentos para uma Interpretação
Constitucional do Princípio da Boa-Fé, p. 19.
15
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 21.
34
Assim, conclui o respeitado jurista espanhol, o sistema jurídico
deve ser funcional, buscando sua concreção não nas leis positivadas (sistema
teórico), mas principalmente nos princípios de valoração que a prática
desenvolve e que podem ser extraídos da lei, mas são sempre descobertos e
comprovados no problema concreto. Dessa forma, prossegue o festejado autor,
não é o sistema, em sentido racional, que se deve constituir no centro do
pensamento jurídico, mas sim o problema16, o que torna impossível, como dito
acima, tendo em vista a diversidade de situações possíveis, que se elabore um
conceito geral de boa-fé 17.
Nos próximos itens, buscaremos traçar uma linha evolutiva do
conceito de boa-fé, até que se atinja o conceito atual, para ao final
apresentarmos as “linhas mestras abstratas” acima mencionadas, mas sempre
com freqüentes remissões a situações concretas, que melhor ajudem à
compreensão adequada do tema, e de modo a nos permitir, inclusive, a mais
fácil diferenciação dos institutos que decorrem da boa-fé, institutos esses cuja
análise se constitui no objeto principal do presente trabalho.
Antes de prosseguirmos, contudo, convém observar que, nessa
abordagem coordenada de aspectos abstratos com situações concretas, com
alguma freqüência precisaremos nos valer do direito positivo. É que a
dogmática jurídica, como bem afirma Menezes Cordeiro, deve ser muito mais
do que um simples elemento de captação do material jurídico, devendo
também permitir que seja racionalmente verificada e feita a crítica das
16
Aliás, nas palavras do próprio Theodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, “a tópica é uma técnica
de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica” (p. 17), ou seja, trata-se de “uma techne do pensamento
que se orienta para o problema ” (p. 33).
17
Em certa medida, tal posição se apresenta coincidente com a que é apresentada por Juarez Freitas, A
interpretação sistemática do direito, p. 54. Diz o jurista gaúcho que o sistema é uma rede axiológica e
hierarquizada topicamente de princípios fundamentais. Ora, essa hierarquização tópica nada mais é, segundo
nos parece, do que o cerne da idéia de Los Mozos, ou seja, o topo da hierarquia será ocupado por um
princípio indeterminável em abstrato, só podendo ser apontado com precisão segundo as circunstâncias
tópicas do caso concreto.
35
soluções porventura encontradas, ou seja, deve atender às necessidades da
vida, e por essa razão não pode ficar alheia aos elementos do direito posto, sob
pena de tornar qualquer debate alheio ao Direito e à sua Ciência18.
No entanto, e de um certo modo até paradoxalmente, importante é
que se alerte que no estudo da boa-fé objetiva, campo onde preferencialmente
se situam a Teoria dos Atos Próprios e os demais institutos que lhe são
assemelhados, em geral se mostrarão impossíveis a interpretação e a aplicação
tradicionais da lei, fazendo-se a subsunção do caso concreto à mesma. O
problema é que a boa-fé objetiva, embora esteja, a toda evidência (e a todo
instante), inserida no ordenamento jurídico, de uma certa forma se mantém
fora da norma legal.
Com efeito, facilmente se verifica que as normas legais que
fazem menção à boa-fé não têm, por si sós, uma solução para o caso concreto,
vale dizer, não contêm em seu bojo uma decisão a ser aplicada pelo juiz por
meio da subsunção, ao contrário do método aplicativo tradicional.
Quando o Código Civil, por exemplo, menciona que nas
obrigações provenientes de ato ilícito o devedor deve ser considerado em
mora desde o momento em que o praticou (art. 398), o juiz considera a norma
legal como sendo a premissa maior. Ao examinar um caso concreto, verifica
que “A” deve pagar a “B” uma indenização decorrente de um ato ilícito, e tal
situação real é considerada como a premissa menor. Faz, então, a subsunção,
concluindo com facilidade que “A” está em mora desde o momento em que
praticou o ato que deu origem à dívida, e portanto deverá responder pelos
juros da mora desde o referido momento.
No entanto, veja-se que quando o mesmo Diploma Civil manda
que os direitos sejam exercidos dentro dos limites impostos pela boa-fé (art.
18
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 30-31.
36
187), sob pena de se caracterizar o exercício abusivo, a norma legal mais se
assemelha a uma lacuna, a ser preenchida pelo aplicador, uma vez que não dá
a este qualquer critério para que possa aferir quais são esses limites traçados
pela boa-fé, e o limite dependerá unicamente da atuação do próprio juiz.
Como se vê, portanto, a boa-fé é buscada em virtude da
determinação que emana da ordem legal, mas o seu conteúdo não está – e,
como veremos, nem poderia estar – na lei, mas sim na própria decisão judicial,
que deverá buscar-lhe o melhor preenchimento para as circunstâncias do caso
concreto em exame. Em outras palavras, a compreensão da boa-fé objetiva
decorre muito mais da atividade jurisprudencial do que da análise teóricodoutrinária dos textos legais.
É evidente que, com a evolução da jurisprudência, torna-se
possível que os estudos se encaminhem para uma sistematização da matéria, o
que facilita sobremaneira a análise dos casos futuros, que se torna mais segura,
uma vez que, em sua maioria, tais casos tenderão a ser enquadrados nas
situações já organizadas de modo científico. Como bem aponta Béatrice
Jaluzot 19, é o estudo jurisprudencial e doutrinário que permite que nos
aproximemos do conteúdo da boa-fé.
Por outro lado, no entanto, também não se pode perder de vista
que as decisões judiciais jamais se consolidarão até o ponto de esgotar todas
as novas hipóteses que poderão surgir, vale dizer, sempre surgirão situações
que até então não haviam sido abordadas, com nuances e características
próprias, o que faz com que o estudo de fenômenos como o da boa-fé esteja
em evolução permanente e contínua, sempre havendo espaço para novas
19
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 79, n° 289.
37
construções e, ao mesmo tempo, sempre havendo uma necessária e
insuperável indefinição conceitual.
O sistema jurídico, como se sabe, está em incessante interação
com o meio social onde encontra sua aplicação, em uma troca recíproca de
conceitos e de soluções, e por isso as inovações sociais repercutem quase que
de imediato no ordenamento jurídico, e com freqüência surgem situações que
são alheias às normas legais ou em relação às quais é quase nenhum o
tratamento dispensado pelo direito posto. E é exatamente nessas situações,
pouco ou nada reguladas pela lei, que com mais intensidade se mostra
aplicável a boa-fé, exatamente por ser um conceito estranho à lei, não podendo
ser por esta aprisionado.
Tome-se, a título de exemplo, a questão do abuso do direito,
prevista em nosso ordenamento, unicamente, no artigo 187 do Código Civil,
sem que se possa encontrar qualquer norma legal que cuide de explicar em
maiores detalhes sobre o tema. Ora, em qualquer relação jurídica, onde um
dos sujeitos estará sempre exercendo um ou mais direitos subjetivos, haverá
sempre um largo espaço para a atuação do juiz, com esteio no conceito de
abuso do direito, o que tem a inegável vantagem de permitir que possam ser
corrigidas eventuais distorções – ou mesmo injustiças – decorrentes da
aplicação direta da norma legal.
Tomemos, como exemplo ainda mais específico, para tornar mais
clara a afirmação, um caso que ocorre na prática com muita freqüência, que é
o trabalho do empregado doméstico em extensas jornadas, inclusive aos
domingos e feriados.
O problema começa porque a lei, ao tratar das horas extras e do
Repouso Semanal Remunerado, expressamente exclui o empregado doméstico
da sua abrangência, como se pode observar no Decreto-Lei nº 5.452, de
38
01.05.1943 (CLT), art. 7º, a, e na Lei nº 605, de 05.01.1949, que trata do
Repouso Semanal Remunerado e, em seu artigo 5º, a, explicitamente declara
que seus dispositivos não são aplicáveis aos empregados domésticos. Ao
entrar em vigor, contudo, a atual Constituição Federal determinou, em seu
artigo 7º, parágrafo único, que aos domésticos fosse deferido o Repouso
Semanal Remunerado, preferencialmente aos domingos, continuando a não se
lhe aplicar, contudo, as regras sobre horas extras, previstas na CLT.
Tem-se, portanto, com grande freqüência, a seguinte situação: a
empregada doméstica trabalha em jornadas muito extensas, por vezes
começando antes das 07:00 horas e terminando por volta de 20:00 horas, ou
mesmo depois disso. Ainda, é também muito comum que a empregada
doméstica trabalhe em dias feriados ou mesmo aos domingos. Ora, a única
norma legal a tratar sobre o assunto, como acabamos de mencionar, é o
dispositivo constitucional (CF, art. 7º, parágrafo único), que assegura ao
doméstico o direito ao Repouso Semanal Remunerado, preferencialmente aos
domingos.
O que deve fazer o juiz, portanto, em tais situações? Condenar o
empregador ao pagamento de horas extras ao doméstico? O problema é que do
direito às horas extras são expressamente excluídos esses empregados pela
norma legal. Determinar que o empregador forneça o dia de repouso,
preferencialmente aos domingos? O problema, agora, é que em geral, quando
o empregado busca a Justiça do Trabalho, já não mais trabalha para aquele
empregador, e por isso a determinação não teria qualquer objeto. O que fazer,
então?
No enfrentamento dos casos concretos, a primeira e óbvia
conclusão a que chegaram os juízes do trabalho, foi no sentido de que a falta
de regulamentação da matéria, caso implicasse na ausência de qualquer
39
conseqüência, estaria sendo transformada em manifesta injustiça. A segunda,
foi no sentido de que o empregador doméstico, ao exercer seu direito de exigir
a prestação dos serviços por parte do empregado, em troca do pagamento dos
salários, deveria exercê-lo dentro dos limites que se impõem a todo e qualquer
exercício de direitos subjetivos, sob o risco de se configurar o abuso.
A partir de tal constatação, com uma certa facilidade pôde ser
preenchida a lacuna existente na lei, pois o que se verificou foi que o
empregador doméstico, ao exigir o trabalho em extensas jornadas, que se
mostram desarrazoadas, ou o trabalho nos dias feriados ou em todos os
domingos, estava exercendo de modo abusivo o seu direito, extrapolando os
limites que a boa-fé impõe a tal exercício. Logo, tal empregador deve ser
condenado a pagar ao empregado doméstico uma certa quantia, que, se não
poderá ser paga a título de horas extras, face à expressa exclusão legal, deverá
sê-lo a título de indenização em virtude de ato ilícito, consistente no exercício
abusivo do direito de exigir a prestação dos serviços.
Como se vê, portanto, o juiz recebeu, para decidir, situação
concreta que se encontra sujeita a quase nenhuma regulamentação legal e, para
decidi-la, precisou preencher os claros legais. Ao fazê-lo, lançando mão do
conceito de boa-fé (e dos institutos que dela derivam), além de suprir uma
lacuna legal, corrigiu uma situação que poderia se caracterizar em manifesta
injustiça, caso fosse simplesmente aplicada a norma legal que exclui os
domésticos do âmbito de aplicação da Consolidação das Leis do Trabalho.
Além disso, como também já havíamos alertado linhas atrás,
quanto mais avançar o tratamento jurisprudencial dado à questão, mais seguro
se tornará o enfrentamento da mesma, que poderá ser enquadrada em uma
sistematização que permita prever, com razoável acerto, a solução a ser
aplicada aos futuros casos concretos que se mostrem similares, solução essa
40
que se tornará previsível em seus diversos aspectos, inclusive quanto aos
parâmetros de apuração do valor a ser fixado para a indenização.
Deve-se alertar, contudo, para um sério risco, do qual se deve
fugir, que é o da tentação de preencher o espaço aberto pela indefinição
conceitual de boa-fé com outros conceitos que também se mostram vagos e
indefinidos, e que também são externos à norma legal. Assim ocorre, por
exemplo, quando se busca dizer que os limites da boa-fé são aqueles impostos
pela eqüidade, ou quando se diz que age de boa-fé quem age com equilíbrio
ou conforme a ética.
O problema, que se mostra bastante evidente, é que essas
expressões também não estão conceituadas pela lei, e continuarão a requerer a
atuação do juiz, para o seu preenchimento em cada caso concreto, o que
significa que não se resolveu coisa alguma, mas tão-somente se fez a
substituição de uma expressão indefinida por outras que igualmente o são.
Ademais, substituir a boa-fé por expressões que, supostamente, resolveriam o
problema do seu conteúdo, na realidade seria o mesmo que afirmar que a boafé não se mostra funcional, não podendo ser aplicada nas soluções jurídicas
em virtude da inviabilidade de se construir um conteúdo próprio, por isso que
se teria mostrado indispensável a substituição. E a construção desse conteúdo
próprio é perfeitamente viável, como pretendemos demonstrar mais à frente.
1.2. A boa-fé romana e sua recepção no direito europeu.
Não se nota, nos autores modernos, qualquer interesse no estudo
da fides romana, o que pode ser facilmente explicado quando se observa que,
na realidade, o instituto chegou ao direito moderno através do direito europeu,
que o recebeu e modificou. Mais interessante tem se mostrado, por isso, o
41
estudo da boa-fé nos países da Europa, principalmente a Alemanha, Portugal e
França, destacando-se esta última face à grande contribuição, para o direito
civil em geral, em que se constituiu a primeira grande codificação, e de modo
especial, quanto à boa-fé, sobressaindo-se a Alemanha, onde o estudo do
assunto teve incomparável desenvolvimento. Mas veja-se, contudo, que há
quem alerte que não é possível determinar o conteúdo e a forma da boa ou máfé a não ser observando a enorme diversidade de aplicações da fides no campo
do Direito 20.
De qualquer modo, ainda que brevemente, não é demais
mencionar que a primitiva fides romana, na realidade, desdobrava-se em
diversos significados, podendo-se apontar, à guisa de exemplo, a fides-sacra,
prevista na Lei das XII Tábuas, através da qual se cominava sanção religiosa
contra o patrão que defraudasse a fides do cliente21, a fides-facto, que não
apresentava qualquer conotação religiosa ou moral, ligando-se à questão da
garantia de alguns institutos, e a fides-ética, que também se referia à noção de
garantia, mas agora consistente na qualidade de uma pessoa, por isso que
eivada de um conteúdo moral22. Na realidade, todos os povos da antiguidade,
os romanos em especial, davam extraordinária importância à fides, inclusive
revestindo-a de um conteúdo religioso e informando toda a vida e a
consciência social23.
Mas havia, ainda, outros sentidos para a fides romana. Assim, por
exemplo, a fides-sacra poderia ser ainda dividida em fides-poder e em fidespromessa, a primeira referente à posição do patrão, que detinha poderes de
20
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 22.
A clientela, entenda-se, consistia em uma das classes que compunham a estratificação social romana,
cujos integrantes, os clientes, estavam situados entre o cidadão livre e o escravo, e que assumiam deveres de
lealdade e de obediência ao patrão, em troca da proteção.
22
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 55-56.
23
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 22.
21
42
direção, e a segunda referente à possibilidade de uma pessoa ser recebida na
fides (na proteção) de outra, sem que o fosse por transmissão hereditária, ou
seja, a fides-promessa implicava em uma sujeição à fides-poder. Além disso,
pode-se ainda apontar que a fides também surgiu nas relações externas de
Roma com outros povos, sendo que inicialmente se referia a tratados
igualitários, firmados entre Roma e outros Estados, e depois, com o aumento
do poderio de Roma, à simples submissão desses outros Estados por meio da
força 24. Tratava-se da fides populi Romani25.
Como se vê, a partir dessa brevíssima amostragem, é facilmente
justificado o atual desinteresse científico pelo estudo da fides romana
primitiva, eis que seus contornos não guardam a menor semelhança com
qualquer das diversas abordagens atuais possíveis para a boa-fé. Evoluiu,
contudo, o instituto, e da fides passou-se à fides bona, sendo que esta
significava, na opinião dominante, a fidelidade à palavra dada, com o dever de
cumprimento da promessa, o que fazia com que surgissem efeitos jurídicos e
fosse possível a ação no caso de certos contratos que não eram reconhecidos
pelo ius civile26.
Em outras palavras, os contratos, no direito romano, em princípio
só eram válidos se fosse seguido um minucioso formalismo, não decorrendo
efeitos jurídicos, vale dizer, não ficando vinculadas as partes, se as fórmulas
sacramentais não fossem seguidas de modo rigoroso. A partir da fides bona o
pacto entre as partes passa a ter força vinculante, ainda que não houvesse
qualquer fórmula prevista, para ser seguida pelas partes pactuantes, pois
24
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 59-65.
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 23.
26
José Carlos Moreira Alves. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Roma e America.
Diritto Romano Comune. Rivista di Diritto Dell, integrazione e unificazione del Diritto in Europa e in
America Latina, n° 7/1999, p. 192.
25
43
deveria ser mantida a palavra reciprocamente comprometida. São os contratos
de boa-fé.
Essa qualificação ética (bona) da fides foi uma necessidade
imposta pelo desenvolvimento do comércio. É que, com a expansão do
Império Romano, houve um grande impulso nas relações comerciais entre
romanos e estrangeiros, independentemente de qualquer tratado internacional,
e a partir daí surgiu um novo complexo jurídico, fora do ius gentium, que tinha
como elemento vinculante e princípio normativo precisamente essa fides
qualificada como bona: partia-se de um conceito que correspondia à
confiança, que exprimia uma relação de fidúcia. E os pretores, especialmente
os pretores peregrinos, passaram a reconhecer e sancionar esse complexo de
relações que nasciam com amparo no critério normativo da boa-fé 27.
Não é demais observar que atualmente, ao contrário, todos os
contratos são de boa-fé, não dependendo dessas fórmulas sacramentais
rigorosas, que foram prestigiadas apenas no primeiro período do Direito
Romano, mas que já perderam prestígio no período clássico, e hoje não
passam de uma curiosidade 28.
27
Giuseppe Grosso, verbete Buona fede – La Tradizione Romana, In: Calasso, Francesco (Coord.),
Enciclopédia del Diritto, V, p. 662. “ ...il grande impulso che tali rapporti ricevettero dall’espansione di Roma
al di là dei mari, e dallo sviluppo del comercio che l’ha accompagnato, sin dal chiudersi della prima guerra
punica, diede luogo al formarsi di un nuovo complesso giuridico – noto sotto il nome di ius gentium –
elemento vincolante e principio normativo fu appunto la fides, colla ulteriore qualifica etica di bonna, e cioè
fides bona o bona fides: da un concetto di rispondenza ad un affidamento, che esprimeva un rapporto di
fiduciaretà, generalizzato... Il pretore (più specificamente il praetor peregrinus...) diede sanzione al
complesso di rapporti che ne nasceva, appunto coll’assumere come criterio normativo la fides bona... La
fides bona come criterio obiettivo plasmava cosi la forza vincolante di negozi e rapporti che formavano un
complesso giuridico assunto come prius rispetto alla sanzione processuale, alla stessa guisa del ius civile, e
che fu quindi assorbito nel ius civile quando si affermò la contrapposizione di questo ad un ius honorarium o
praetorium, che rovesciava i rapporti fra diritto sostanziale e tutela processuale”.
28
Sobre o tema, vale conferir a lição de Louis Josserand, O Desenvolvimento Moderno do Conceito
Contratual. In: Revista Forense, n° 72, Dezembro de 1937, p. 533. “...todos os contratos, no direito moderno,
são de boa-fé; a noção do contrato de direito estrito, tão acreditada no Direito Romano da primeira época,
porém já fortemente desprestigiada no período clássico, ficou reduzida, em nossos dias, quase à situação de
uma curiosidade jurídica”.
44
Dentre os aspectos dessa evolução mencionada no parágrafo
anterior, foram marcantes os que se referem ao valor vinculante do negócio
jurídico não solene e à ampliação do papel criador da jurisprudência,
notadamente com os bonae fidei iudicia, cujo fundamento era o suporte dos
poderes do juiz pela própria fides, e que se constituíram em forte elemento de
ligação entre o direito material e a tutela processual, com um modo próprio de
interpretação do conteúdo dos negócios jurídicos 29. Vejamos como isso se
deu.
O direito romano, como se sabe, não se baseava na ordenação
sistemática dos direitos subjetivos abstratos, mas sim na previsão de ações
para os diversos casos concretos. Pois bem, aquelas pretensões que eram
apresentadas com esteio na fides, passaram a ser denominados de bonae fidei
judicia. A característica marcante é que, nos litígios dos bonae fidei judicia,
não se buscava apenas uma composição formal, mas a solução material para o
mesmo, devendo-se descer até o aspecto material da questão. De modo mais
claro, o pretor não se limitaria ao fato central, apresentado como causa de
pedir, mas deveria levar em consideração os fatos ligados ao litígio de modo
periférico.
Dito de modo mais simples, o direito contratual romano, que até
então reconhecia os contratos formais, ou seja, cuja celebração atendia a
fórmulas sacramentais rígidas, passa a reconhecer, também, com base na fides,
os que não dependiam de uma solenidade especial ou fórmula sacramental
para a sua eficácia, e o que se vê é o surgimento de uma dicotomia entre os
contratos de direito estrito e os contratos de “boa-fé”, sendo que os primeiros
eram os contratos formais (do direito civil, ou quiritário), e os segundos, como
29
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 24-25.
45
já mencionado, os que eram eficazes mesmo não tendo obedecido a qualquer
solenidade específica30.
Nessa tarefa, de buscar a solução material mais adequada,
avultava a natureza pretoriana das regras criadas, vale dizer, na solução de
casos concretos que lhes eram apresentados, os pretores começaram a criar
soluções concretas, inclusive com relação às exceções que poderiam ser
apresentadas pelo réu (por exemplo, a possibilidade de ser argüida a
compensação, embora o crédito do réu, contra o autor, não estivesse ligado à
causa de pedir). Colocou-se essa observação em destaque porque, na
realidade, até hoje, como já mencionamos brevemente acima, essa atuação
pretoriana é fundamental para a compreensão do sentido da boa-fé.
No direito romano clássico, portanto, o que se pode verificar é
que a fides bona se apresentava como uma norma de forte conteúdo ético,
referente ao comportamento honesto e leal e que estava de acordo com os
costumes respeitados nos negócios. Apresentava, ainda, face à atuação
pretoriana, alguns característicos bem definidos, como por exemplo a rejeição
ao dolo e a possibilidade de compensar as dívidas. Essa rejeição do dolo deu
origem à exceptio doli, sobre a qual falaremos mais à frente, no presente
trabalho.
Do campo do direito obrigacional, transporta-se a bona fides para
o campo dos direitos reais, mas agora com significado completamente distinto,
passando a significar um estado psicológico de desconhecimento, por parte do
adquirente, de vícios que o impediriam de adquirir a propriedade, e que
encontrava aplicação como um dos pressupostos na aquisição da propriedade
pela usucapião, o que, aliás, embora com outra roupagem (restrita a apenas
uma das diversas espécies de usucapião), até hoje ainda ocorre.
30
Humberto Theodoro Júnior, O contrato e seus princípios, p. 33.
46
Na realidade, como explica Menezes Cordeiro31, originalmente a
usucapião operava em prazos bastante curtos (apenas dois anos para os
imóveis e um ano para os moveis) e não exigia posse qualificada, o que se
justificava por se tratar de uma pequena cidade cuja economia era fundiária, o
que facilitava ao proprietário a imediata interrupção de qualquer posse
ilegítima. Mas era exigido que a posse não fosse furtiva e nem violenta, e é
nessa exigência que se encontra o germe que, mais tarde, viria a se
transformar na bona fides aplicada aos direitos reais, pois o enorme
alargamento do império romano, com grandes distâncias a percorrer e as
prolongadas ausências dos cidadãos, pelas exigências do serviço militar,
fizeram com que passassem a ser impostas, paulatinamente, maiores
dificuldades à aquisição da propriedade pela usucapião.
A partir daí, vale dizer, a partir de seu uso em relação à
ignorância do vício da posse, a bona fides se espalha para outros ramos do
ordenamento jurídico romano, como por exemplo o casamento, mas sempre
com esse mesmo sentido psicológico, ou seja, traduzindo o desconhecimento
de uma certa circunstância ou de um determinado vício.
A bona fides se espraia de tal forma que pode mesmo ser
considerada como um “princípio geral” do direito romano, que passa a ser
voltado para a solução de casos concretos, sem que haja a preocupação de um
desenvolvimento técnico da mesma, que ficou carente de uma definição.
Na realidade, mais adequado se mostraria dizer que a bona fides,
para os romanos, era informadora de todo o ordenamento social e jurídico,
impondo que nas relações interpessoais e nos comportamentos em geral fosse
observada a fidelidade, embora não houvesse qualquer preocupação em
apresentar um conceito único ou mesmo em identificar uma origem única para
31
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Direitos Reais, pp. 671-672.
47
todas as situações onde a mesma encontrava aplicação, até porque, como já
comentamos acima, não era próprio dos romanos o pensamento abstrato e
sistematizado, mas sim o pensamento problemático, tópico, voltado para a
solução de cada caso concreto específico.
De modo generalizante, contudo, pode-se afirmar que, para os
romanos, seria de boa-fé o que correspondesse, no caso concreto, à idéia de
fidelidade, tanto em relação ao conteúdo da relação jurídica quanto em relação
ao comportamento que se esperava dos sujeitos envolvidos 32.
1.3. O direito europeu pré-codificações.
Após o surgimento da Europa, por volta do século IX, tem início
um estudo científico do direito, que passa a ser visto como Ciência, e assim
estudado nas universidades, notadamente nos séculos XIII e XIV, quando
surgem essas escolas superiores. E a base desse estudo científico foi
precisamente o Corpus Iuris Civilis, de Justiniano, monumento do direito
romano. Como se vê, portanto, a recepção 33 do direito romano pelo direito
europeu está na base da abordagem científica deste último, que com esses
contornos passa a ser estudado nas universidades.
32
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 26-27.
Referindo-se ao direito alemão em particular, mas também mencionando o direito europeu em geral,
Wieacker aponta a recepção prática, ou seja, a “grande subversão do antigo direito privado alemão pelo
predomínio do direito justinianeu na teoria do direito privado, na legislação e na aplicação do direito”,
como tendo sido “ a época fundamental da história do direito privado alemão da época moderna”. E esclarece
que não se tratou de um caso isolado, pois “a difusão dos métodos científicos e da dogmática jurídica dos
glosadores e dos conciliadores atingiu, pelo contrário, a maior parte dos países europeus”. Cf. Franz
Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, pp. 129-130. E, ainda na mesma obra, esclarece o autor que
“a história do direito privado moderno inicia-se, na Europa, com a redescoberta do Corpus Iuris justinianeu.
Uma ciência jurídica européia surgiu, quando, pelos inícios da Alta Idade Média, as formas de comentário e
de ensino do trivium, herdadas da antiguidade, fora m aplicadas ao estudo do Corpus Iuris justinianeu” (p.
11).
33
48
Papel importante, nessa recepção, foi o desempenhado pela Igreja
Católica. Como se sabe, a partir do século III, com o Imperador Constantino, o
cristianismo se constituiu em uma grande força do Império Romano. A Igreja
desenvolveu o seu direito próprio, o Direito Canônico, sendo que este, em
grande parte, assemelhava-se ao próprio direito romano, apenas trazendo
adaptações aos novos valores do cristianismo. Assim, a difusão das normas de
direito canônico, em primeiro lugar, acabou por servir de veículo facilitador
para a posterior absorção direta do direito romano, o que foi também facilitado
pela adoção do latim como língua oficial.
E tanto foi assim que várias regulamentações jurídicas foram
recebidas pelo direito civil a partir da Igreja Católica, como por exemplo a
questão das relações pessoais do direito de família, as fundações, os
testamentos, etc. Tão importante quanto a assimilação desses institutos, no
entanto, foi a absorção de alguns métodos que eram usados há muito tempo
pela Igreja. É que, ao contrário do direito secular, a ordem jurídica da Igreja,
desde a Alta Idade Média, já resguardava as suas tradições pelo uso da escrita,
da redação documental, e pelo ensino sistematizado em escolas. Ao contrário
do que ocorria com o “direito profano”, o direito canônico não buscava, em
princípio, uma redescoberta, mas sim a organização formal e espiritual de uma
tradição contínua, que até então se mostrava desordenada 34.
Essa recepção, no entanto, não foi plena, mas seletiva. Em outras
palavras, algumas áreas de abrangência do Corpus Iuris Civilis foram
assimiladas pelos europeus, mas outras não35. Dentre as que não foram
34
Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, pp. 68-70.
Recebido, diz Wieacker, “não foi o direito romano classico (então desconhecido na sua forma
original); também não o direito histórico justinianeu como tal, mas o jus commune europeu, que os
glosadores e, sobretudo, os conciliadores tinham formado com base no Corpus Iuris justinianeu, mas com a
assimilação cientifica dos estatutos, costumes e usos comerciais do seu tempo, sobretudo da Itália do norte”.
Cf. Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, p. 139.
35
49
incorporadas, por exemplo, pode-se apontar o tratamento dado pelos romanos
ao direito público. Além disso, também ficaram de fora algumas áreas
específicas do direito privado, como foi o caso da parte que se referia aos
escravos, incluídos nos direitos reais, eis que considerados como propriedade
dos senhores.
A preferência dada pelos europeus, para a recepção, foi para o
direito das obrigações, campo no qual o direito romano, sem qualquer sombra
de dúvida, havia atingido notável desenvolvimento teórico, oferecendo
conceitos abstratos e, por isso, em condições de perdurar no tempo
independentemente de sua vinculação a casos concretos específicos.
É importante que se observe, contudo, que o direito romano que
se disseminou na Europa não foi diretamente aquele que constava do Corpus
Iuris Civilis, mas sim aquele que decorreu da análise feita pelos glosadores e
pelos pós-glosadores. Os primeiros se limitaram a explicar, inicialmente cada
texto isoladamente, e, posteriormente, de modo sistemático 36, o que constava
do Corpus Iuris Civilis, e essas explicações serviram de base para a formação
teórica dos juristas que iam surgindo, assumiam elevados cargos na
administração pública, e por isso acabaram por exercer enorme influência
política e social em toda a Europa.
36
Na realidade, o que ocorreu foi que os glosadores consideravam que o texto isolado de um jurista
constitui em si mesmo uma verdade, independentemente de sua conexão com o conjunto de todos os textos,
ou seja, os glosadores, ao contrário do que ocorre com a Ciência jurídica moderna, que busca a visão do
sistema, os glosadores buscavam o sentido textual de cada escrito. No entanto, muito cedo essa técnica se
mostrou insuficiente, forçando-os a não se limitarem à exegese corrida de textos isolados: se cada texto
encerrava uma verdade absoluta, então um texto não poderia contradizer um outro, que era igualmente
verdadeiro. Assim, através da exploração incessante e da comparação do material colhido das fontes romanas,
os glosadores acabaram por dominar completamente a problemática global do Corpus Iuris Civile, erguendo
um edifício doutrinário cujos princípios eram harmônicos, eis que não poderia haver, como vimos,
contradição entre as partes do mesmo, sendo que essa construção, embora não se tenha chegado a constituir
um sistema formal ou a destacar quais seriam os seus princípios gerais, ainda hoje se mostra como o
antepassado da atual dogmática jurídica do continente europeu. Cf. Franz Wieacker, Historia do Direito
Privado Moderno, pp. 50-54.
50
É que as glosas, ou seja, o produto do trabalho dos glosadores,
dominou as faculdades de direito da Europa até muito tempo depois do fim da
Idade Média, e o modelo adotado pelos glosadores tornou-se um método que
até hoje ainda é usado como técnica dos juristas, partindo da harmonização
entre textos esparsoas para a busca da solução de problemas práticos,
podendo-se mesmo dizer que os glosadores são os pais da jurisprudência
européia 37. Como as universidades exerciam grande influência na economia,
na cultura e na vida pública da Idade Média, delas também se irradiava uma
enorme influência política e social. Assim, os professores de direito, na Itália e
na França, em pouco tempo formaram um corpo de juristas que começou a
dominar a administração civil das cidades.
Ao lado do ensino religioso (o único até então existente), surge o
ensino jurídico; ao lado dos clérigos, que eram os únicos intelectuais, surgem
os juristas 38. E na medida em que mais e mais juristas iam se formando, tendo
o direito romano na base de sua formação, como não poderia deixar de ser,
passaram a ocupar postos chaves nas administrações de cidades, e as soluções
para os casos concretos do dia a dia começam a ser buscadas com base nas
idéia s absorvidas a partir da formação teórica desses novos administradores,
ou seja, a partir das soluções que eram apresentadas pelo direito romano.
Muito mais importante, contudo, foi o papel dos pós-glosadores,
que buscaram fazer a conciliação entre esse direito romano e os problemas que
afligiam a sociedade de então, e que certamente eram bastante diferentes dos
que haviam levado os romanos, doze séculos antes, a adotarem aquelas leis.
Como explica Wieacker, os glosadores já haviam atingido significativa
importância na vida jurídica e na administração pública do seu tempo, mas o
37
38
Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, pp. 63-65.
Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, pp. 65-66.
51
objeto do seu trabalho era a interpretação do Corpus Iuris, e esses textos em si
mesmos tinham pouca aplicação na Europa, limitando-se pois ao aprendizado
da metologia do direito romano, e não à obtenção de um direito realmente
aplicável, em seus vários domínios, ou seja, à realidade de então39.
Desse modo, os glosadores não estavam preparados para
influenciar diretamente na aplicação prática do direito, na solução dos
problemas reais do quotidiano. As gerações de juristas que a eles se seguiram,
no entanto, denominados de pós-glosadores (ou comentadores práticos ou
conciliadores), já dominava toda a realidade jurídica e social de sua própria
época, e por isso buscaram transpor os métodos revelados pelos glosadores
aos costumes e estatutos das cidades européias, inicialmente as italianas,
depois as francesas e holandesas, e, por último, as cidades e estados alemães.
Com isso, ao transformarem a vida de sua própria época em objeto de sua
ciência, os pós-glosadores conseguiram converter o direito justinianeu no
direito comum de toda a Europa 40.
Os pós-glosadores, em outras palavras, embora também tivessem
tomado por base o Corpus Iuris Civilis, cuidaram de atualizá-lo, ainda que,
para isso, precisassem modificar alguns dos institutos do direito romano ou
mesmo abandonar alguns deles, que já não atendiam mais aos problemas do
seu tempo. Essa adequação do direito romano aos tempos da Idade Média,
permitindo que tivesse utilidade prática na solução dos conflitos, foi que
efetivamente propiciou a recepção do mesmo.
A bona fides, como já tivemos a oportunidade de comentar acima,
havia se espalhado por diversos institutos, no direito romano. No entanto,
como também já vimos, a mesma havia recebido destaque em relação à
39
40
Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, p. 78.
Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, pp. 78-80.
52
questão da posse, pelo adquirente, sem que este soubesse do vício que o
impedia de adquirir, o que se constituía em fator fundamental para que fosse
possível a usucapião. Assim, no trabalho dos glosadores e pós-glosadores,
ganha destaque essa boa-fé com um conteúdo subjetivo, ou seja, como um
elemento psicológico, ligado à convicção, pelo possuidor, de que efetivamente
era o proprietário da coisa possuída.
De qualquer modo, como bem aponta José Carlos Moreira
Alves41, os glosadores e os pós-glosadores se ocuparam da boa-fé quase que
exclusivamente com relação à posse, ou seja, nesse aspecto psicológico acima
mencionado. Relacionaram-na com o erro e se dividiram ao conceituá-la,
havendo alguns que a concebiam positivamente, ou seja, como sendo a crença
de não estar lesando outrem, enquanto outros a conceituavam negativamente,
como sendo a ignorância de causar lesão a direito alheio.
Contudo, o trabalho dos glosadores e dos pós-glosadores, que
tanto contribuiu para a difusão do estudo científico do direito, como já
mencionamos poucas linhas atrás, também funcionou como fator de
engessamento do mesmo, pois uma vez difundidos os comentários dos pósglosadores, a simples existência dos mesmos já dificultava que se pensasse em
inovações. Na sombria análise de Carlos Maximiliano 42, “os pareceres dos
doutores substituíam os textos; as glosas tomavam o lugar da lei; assim, de
excesso em excesso se chegou à deplorável decadência jurídica, ao domínio
dos retóricos e pedantes”.
O fenômeno, como veremos adiante, é semelhante ao que ocorreu
após a primeira codificação (Código de Napoleão), que ao reunir as soluções
41
José Carlos Moreira Alves. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Roma e America.
Diritto Romano Comune. Rivista di Diritto Dell, integrazione e unificazione del Diritto in Europa e in
America Latina, n° 7/1999, p. 187.
42
Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, p. 34.
53
para as mais diversas situações da vida privada, acabou por se tornar um
parâmetro praticamente obrigatório para tais situações, impedindo que
pudessem ser feitas abordagens novas, que destoassem da dicção expressa dos
textos legais.
A Ciência do Direito, portanto, havia ficado viciada com aquelas
idéias que, em virtude da intensa repetição, sufocavam o surgimento de novas
abordage ns para os mesmos problemas. Havia sido criado um círculo vicioso
que dificilmente poderia ser quebrado pela simples atuação dos juristas, pois
estes eram partícipes do mesmo. Surge, então, um elemento novo, externo,
capaz de funcionar como catalisador das necessárias mudanças: o humanismo,
fenômeno cultural que, principalmente a partir do século XIV, passou a
vislumbrar um universo no qual o homem fosse o centro de tudo e que deu
especial atenção à Antiguidade.
Não é difícil de perceber o grande impacto com que o humanismo
repercutiu na Ciência do Direito. Ao colocar em destaque o homem, o
humanismo pôs em relevo, no campo do direito, as relações interpessoais. E,
ao buscar o redescobrimento da Antigüidade, o humanismo impulsionou
fortemente o estudo do direito romano, só que agora indo buscar o estudo
direto das fontes romanas, e não mais se limitando tão-somente ao trabalho
dos glosadores e aos comentários dos pós-glosadores. Veja-se que os pósglosadores, ao adaptarem os textos do Corpus Iuris Civilis para a Idade Média,
acabaram por retirar esses mesmos textos do seu contexto histórico. Agora,
com a busca direta das fontes, voltava a ser acentuado esse mesmo aspecto
histórico e contextualizado.
Ao examinar as causas e as conseqüências desse impacto do
humanismo sobre a ciência jurídica, aponta Franz Wieacker, em sua História
do Direito Privado Moderno (citado) que
54
“
O idealismo e o racionalismo do humanismo tinham socavado a
antiga autoridade dos textos jurídicos justinianeus, apesar de um renovado
entusiasmo pelo direito romano da antiguidade” (p. 12).
.........................................
“
Só com o jusracionalismo radical se legitimou, de forma totalmente
nova, a autoridade do direito positivo a partir do comando soberano do
monarca e da vontade política da nação. A partir daí, o direito terreno não
tem mais que obedecer ao texto intemporalmente racional da ratio scripta,
mas à própria vontade de prosseguir um objetivo. Por outras palavras: o
racionalismo contemplativo e intelectual da Idade Média acabou por gerar o
rcionalismo atuante e prático do moderno legislador e foi, ao mesmo tempo,
absorvido por ele” (pp. 49-50).
.........................................
“
O humanismo pôs em questão estes fundamentos [dos glosadores e
pós-glosadores] e extraiu da literatura e da arte da antiguidade uma nova
imagem do homem e um novo ideal educativo, [e por isso] o choque com a
jurisprudência não podia deixar de se dar” (p. 88).
.........................................
“
Já mais profundo foi o ataque dos humanistas às formas de ensino e à
compreensão do direito por parte da jurisprudência do seu tempo. O desejo
de saber e os métodos dos glosadores promanaram originalmente dos
impulsos espirituais mais vivazes da Alta Idade Média. À medida que, com o
decurso do tempo, as questões controversas se amontoavam e as figuras
lógicas se iam multiplicando, eles foram decaindo numa rotina cada vez
mais embotada e mais conservadora. O ensino lento, moroso e inútil da
época dos conciliadores, que nos é descrito pelos contemporâneos, ficava
muito aquém dos resultados práticos da época”.
“
Em contrapartida, a pedagogia humanista, orientada no sentido do
realismo idealista de Platão... via no ensino a preparação para um
reconhecimento das idéias eternas e realmente existentes, e, portanto,
também da idéia de direito. Ensino do direito queria para eles portanto
significar: despertar no aluno a idéia inata de direito e as suas implicações
mais próximas e orientá-lo, assim, do acidental-especial para o ideal- geral.”
(p.91).
Desse modo, é importante que se realce que esse novo enfoque,
dado pelo humanismo ao direito romano, não consistiu em um simples
refazimento do trabalho já anteriormente efetuado pelos glosadores e pelos
pós-glosadores. Deve-se recordar que o humanismo, na verdade, foi uma das
manifestações culturais do renascimento, e este não se limitou ao simples
55
reavivar dos modelos da antigüidade, nos mesmos moldes dos originais.
Antes, o renascimento consistiu na renovação desses modelos, de modo a que
pudessem ser atualizados e transpostos para o momento em que tal
transposição veio a ocorrer.
Assim, no campo do direito civil, o que se teve não foi o simples
restabelecimento do direito romano, em toda a sua pureza de doze séculos
antes, mas sim uma renovação que se relacionou, principalmente, com a
metodologia da abordagem e do ensino desse direito. Em outras palavras, o
reflexo do renascimento em geral (e do humanismo em particular) sobre a
Ciência do Direito não se traduziu no surgimento de novos institutos jurídicos
e muito menos no simples ressuscitar dos antigos, mas sim na busca de novos
métodos de ensino do direito romano, ou seja, em uma nova abordagem
pedagógica.
Nessa nova abordagem, o que se punha em destaque não era
mais, ao contrário do estudo da glosa e dos comentários dos pós-glosadores, a
transmissão de pontos específicos e isolados, que eram memorizados para a
aplicação, cada um deles referindo-se a um caso com características próprias,
o que tornava o ensino da Ciência Jurídica um acentuado exercício de
memorização e de repetição dos conhecimentos absorvidos.
O que o renascimento buscou, ao contrário, foi detectar quais
eram as idéias gerais que podiam ser extraídas do direito romano, separando
aquelas que se apresentavam como essenciais para a ligação entre as diversas
regras e aquelas que apenas tinham interesse acidental. Dito de outra forma, o
que se percebeu foi que as regras do direito romano não poderiam ser
consideradas de modo isolado, cada uma delas fora do conjunto, pois estavam
ligadas entre si por algumas idéias-base, e a busca passou a se concentrar
56
exatamente na descoberta dessas idéias que funcionavam como cimento de
ligação entre as regras.
Como facilmente se percebe, começa a nascer, com isso, uma
visão do direito como sistema, ou seja, como um conjunto de normas que,
ainda que tratem de temas distintos, estão em estreita conexão umas com as
outras, ligadas entre si por idéias mais amplas e genéricas, que são os
princípios que norteiam um sistema jurídico. Havia “uma pretensão de uma
concatenação dos principios jurídicos sistemática quanto ao conteúdo” 43.
A Ciência do Direito, portanto, a partir daí começa a perceber que
o estudo do direito não podia se limitar ao exame de múltiplos conhecimentos
isolados entre si, como se fossem independentes. Muito pelo contrário, esse
estudo sempre deveria ter em mente que, embora efetivamente se tratasse de
uma gama variada de conhecimentos, que são referentes a temas diversos,
todos eles mantêm entre si uma unidade de idéias, ou seja, estão ligados entre
si pelos princípios, que são essas idéias gerais que passaram a ser buscadas no
renascimento, e que são externas ao conjunto de conhecimentos. Ora, esse
conceito, como se percebe, nada mais é do que a idéia de sistema, sendo que
as “idéias gerais” são os princípios que o informam.
É bem verdade que, com o humanismo, ainda não se havia
chegado a um desenvolvimento suficiente, de tais idéias gerais, para que já se
pudesse falar em sistema, o que só seria atingido posteriormente. No entanto,
é certo que já se tem aí um começo de sistematização, e isso, por si só, já
permitiu que se rompesse o supramencionado círculo vicioso onde até então
patinava o direito dos glosadores e pós-glosadores.
Essa ruptura veio a se mostrar possível porque, com a captura
dessas idéias gerais, que serviam para dar unidade às regras, passam os juristas
43
Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, p. 92.
57
a, em vez de simplesmente “adaptar” o direito romano às novas realidades, a
buscar soluções que mantivessem a coerência com o conjunto de regras, ou
seja, que também estivessem informadas pelas mesmas idéias gerais
apreendidas.
Mas, direcionando as considerações até aqui feitas para o tema
central do presente estudo, convém examinar em que medida essa nova forma
de apreensão do direito romano repercutiu especificamente na questão da boafé, o que passamos a fazer em seguida.
Nessa busca da unidade principiológica, foram colhidos os
diversos temas que se referiam à bona fides (que, como vimos supra, havia se
espalhado para as mais diversas categorias do direito romano), buscando-se a
idéia central que a todos era comum. Dessa pesquisa, resulta a boa-fé com o
seu já conhecido aspecto psicológico, subjetivo, de desconhecimento, mas
agora vinculada a algo mais, que era a idéia de lealdade, da ausência de
intenção de causar danos à outra parte por meio de fraude, coação ou dolo.
Essa a idéia unitária da boa-fé como princípio, colhida sob os influxos do
humanismo.
A pesquisa das idéias que pudessem conferir unidade às diversas
regras continuou. A partir do século XVII, essa pesquisa se une à busca de
soluções racionais para os conflitos, no movimento conhecido como
jusracionalismo, dentro do qual ganha força a aplicação da Filosofia no
Direito, dando origem ao Direito Natural, ou seja, à busca dos princípios que
justificam o direito e que devem informá-lo, para que ele seja considerado
justo, ou seja, a busca de elementos informadores que tivessem a sua validade
não em função de sua origem, mas sim de suas qualidades intrínsecas 44.
44
O Direito Natural, como explica Vicente Ráo, seria, em síntese, obtido a partir da razão. Cada povo,
explica o mestre, tem as suas normas particulares, o seu direito positivo, a partir das quais se revela a sua
58
Destaque, nesses estudos racionalistas, para o trabalho de Grócio,
que desenvolveu um sistema de direito natural cuja grande característica era a
possibilidade de serem previamente conhecidos os seus princípios, mediante o
uso da razão. Particularmente no que se referia à boa-fé, Grócio identificou
cinco aspectos diferentes, dando prevalência, dentre todos, ao que se referia à
fides entre as partes envolvidas em um contrato 45. Essa abordagem de Grócio,
embora não desenvolvendo qualquer conceito, por isso que se limitou a
apontar alguns princípios gerais, foi observada nos estudos posteriores sobre a
boa-fé, que foram por ela influenciados 46.
O grande reforço à idéia de se considerar o Direito como um
sistema, contudo, veio de fora dos estudiosos do direito, mais precisamente
com a obra de René Descartes. É que a doutrina cartesiana veio por em relevo
a predominância do pensamento unitário, ou seja, a necessidade de que haja
um critério único a orientar o pensamento científico. Descartes usou, como
simbologia, a construção de uma cidade, que quando é feita aos poucos, por
diversas pessoas, tende a crescer de modo desordenado, enquanto que, se a
concepção peculiar do que é justo ou injusto. Acima dessas concepções particulares, no entanto, existiria uma
concepção geral do direito, aplicável a todos os povos, não pela força da coerção material, mas pela força
própria dos seus princípios supremos. E é a razão que extrai e declara quais são esses princípios gerais, que
resultam da própria natureza humana. Assim, é na natureza humana (e não na razão) que se encontra o
fundamento do direito natural, sendo que este não é um superdireito, mas um conjunto de princípios
supremos, universais e necessários, que ao serem extraídos da natureza humana pela razão, algumas vezes
inspiram o direito positivo, em outras são por ele imediatamente aplicados, quando definem os direitos
fundamentais do homem. Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, pp. 78-79.
45
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 212.
46
Moreira Alves, no entanto, aponta que o jusracionalismo não trouxe qualquer contribuição de
importância para a questão da boa-fé nas relações jurídicas reais e obrigacionais, indicando, ainda, que Grócio
não tratou expressamente da boa-fé nos contratos, e, com relação à posse, não a conceituou, limitando-se a
expor alguns princípios, que deveriam ser observados pelo possuidor de boa-fé. Cf. José Carlos Moreira
Alves. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Roma e America. Diritto Romano Comune. Rivista
di Diritto Dell, integrazione e unificazione del Diritto in Europa e in America Latina, n° 7/1999, p. 188. Com
todo o respeito que deve ser devotado a tão ilustre jurista e historiador do direito, parece-nos equivocada tal
afirmação, pois foi a partir das idéias recebidas do jusracionalismo que se começa a formar a idéia do direito
como um sistema, ou seja, em vez de um amontoado heterogêneo de regras autônomas, um conjunto
harmônico de normas, coordenadas entre si por idéias gerais que lhes dariam unidade. Assim, embora não
tenha havido, de fato, qualquer estudo significativo diretamente feito sobre a boa-fé, a noção de unidade, de
sistema, foi fundamental para que o estudo da mesma pudesse se desenvolver.
59
construção vier a ser feita a partir de um planejamento único, com uma só
diretriz, resulta em uma cidade organizada e mais aprazível47.
Em relação ao sistema jurídico, como se mostra evidente, esse
“planejamento único”, essa “diretriz”, seria dada pelos princípios gerais que,
permeando-se por todo o ordenamento jurídico, conferem-lhe a unidade
mencionada. Nesse sentido, disse Descartes que “todas as coisas que podem
cair sob o conhecimento dos homens encadeiam-se da mesma maneira, e que,
com a única condição de nos abstermos de aceitar por verdadeira alguma que
não o seja, e de observarmos sempre a ordem necessária para deduzi-las
umas das outras, não pode haver nenhuma tão afastada que não acbemos por
chegar a ela” 48.
A aplicação das idéias cartesianas às ciências humanas,
especialmente à Ciência do Direito, acabou por lançar as bases de uma idéia
mais clara do que seria um sistema jurídico, dessa vez partindo-se de
princípios previamente estabelecidos com vista ao sistema, ou seja, o novo
pensamento sistemático ocorre de forma centralizada, primeiramente
estabelecendo as idéias centrais, básicas, do sistema, e depois passando para o
desenvolvimento metódico deste, como se fosse a suso mencionada
construção empurrada por um planejamento único.
São buscados, então, os princípios mais importantes, a partir dos
quais deveria ser construído todo o ordenamento jurídico, e que seriam
racionais e sempre verdadeiros. O traço unificador desse direito, capaz de
emprestar uniformidade a todo o conjunto de regras, estaria contido nesses
princípios. Também se procura, ao mesmo tempo, separar o direito natural das
convicções religiosas, pois estas não seriam científicas, eis que insuscetíveis
47
48
René Descartes, Discurso do Método, p. 15.
René Descartes, Discurso do Método, p. 23.
60
de demonstração. O sistema jurídico referente ao direito natural, portanto,
deveria ser formado por proposições que se mostrassem lógicas e
demonstráveis, além de harmonizado com o pensamento da época.
Especificamente no que concerne à boa-fé, pode-se observar que
na visão desses jusnaturalistas era em virtude do direito natural que as partes
de um contrato ficavam vinculadas pelo ajuste, ou seja, estava aí presente a
fides, como elemento básico para a ligação entre as partes. Mas, além disso, a
boa-fé também é vista como elemento necessário e indispensável à
configuração da usucapião. No entanto, não se viu entre os jusnaturalistas a
tentativa de agrupar em uma idéia geral todas as hipóteses referentes à boa-fé,
ou seja, faltou buscar o princípio elevado, referente à mesma, para que a partir
daí pudessem ser feitas construções em relação às mais diversas situações em
que a boa-fé estivesse presente.
A boa-fé, portanto, embora tenha sido objeto das preocupações
dos jusnaturalistas que antecederam a primeira codificação civil, o foi apenas
de modo periférico, secundário, centrada em uns poucos institutos, em
especial os contratos, mas sem forças para se irradiar sequer pelo direito
privado, e muito menos pelo ordenamento jurídico em geral.
1.4. A boa-fé após o Código Civil francês.
O acontecimento mais marcante, para o direito privado, sem
dúvida, foi o surgimento do Código Civil francês, mandado elaborar por
Napoleão em 1804 e tendo entrado em vigor em 1806. O referido Código,
como se percebe, veio a lume poucos anos depois da Revolução Francesa
(1789). No entanto, nele não se vislumbra uma ruptura súbita e radical com a
61
cultura jurídica do período pré-revolucionário, mas a natural evolução do
pensamento jurídico anterior.
Como vimos acim a, o direito civil teve sua evolução, na Europa,
a partir do trabalho dos glosadores e dos pós-glosadores, recebendo depois, no
Renascimento, forte influência dos humanistas e, um pouco mais tarde, do
racionalismo. Ocorre que a comissão de juristas encarregados da elaboração
do Código Civil francês, liderada por Portalis, tinha sua formação jurídica
nessa mesma linha evolutiva, não se destacando por qualquer posicionamento
revolucionário, ou seja, não se vislumbrando qualquer diferença significativa
quanto ao conteúdo das normas jurídicas.
A inovação, dessarte, foi quanto à forma pela qual tais normas
passaram a ser apresentadas, ou seja, quanto à codificação em si mesma,
inovando pela reunião das regras jurídicas em um só texto legal, e não quanto
ao seu conteúdo, havendo mesmo quem afirme que “não há, entre a doutrina
jurídica pré-revolucionária e o Código, quaisquer quebras ou, sequer,
evoluções significativas”49.
Na realidade, desde os pós-glosadores que se buscava adaptar o
direito romano para a solução dos conflitos que então surgiam na sociedade,
embora de modo não sistemático. A partir do humanismo, e com maior ênfase
no racionalismo, como visto, inicia-se a busca de uma sistematização,
destacando-se as idéias gerais que serviriam de base para toda a construção
jurídica do direito civil, ao mesmo tempo em que tais idéias gerais passavam a
ser usadas para a solução racional e lógica dos conflitos atuais.
Seguindo essa trilha, uma vez conseguidas a base teórica para
essa sistematização (ou seja, a identificação dos princípios fundamentais do
sistema) e a adequada atualização para os conflitos da sociedade do começo
49
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 226.
62
do século XIX, a conseqüência natural seria – e foi – a reunião ordenada de
todas as regras do direito civil, de modo a ordená-lo e simplificá-lo, tornandoo acessível aos cidadãos.
Assim, como mencionado supra, a inovação foi a reunião de todas
as regras em um código, e aí foi decisiva a participação de Napoleão, que não
apenas determinou a sua feitura como, ainda, acompanhou pessoalmente os
trabalhos da comissão, não permitindo que sofressem qualquer interrupção ou
atraso. Mas o conteúdo do Código Civil francês, no entanto, foi apenas o
desaguar natural do trabalho dos jusracionalistas, que expressava a cultura
jurídica da época.
Veja-se, à guisa de exemplo dessa continuidade de pensamento, o
conceito de propriedade, trazido pelo Código Civil francês, no artigo 54450,
que estabelece que a propriedade é o direito de gozar e dispor dos bens da
forma mais absoluta, desde que não se faça deles um uso proibido pelas leis
ou pelo regulamento.
Essa declaração de que a propriedade seria absoluta, no entanto,
não correspondia à realidade, e apenas refletia o repúdio à propriedade
dualista da concepção feudalista, como já dissemos alhures51, mas sendo fácil
50
Art. 544. La propriété est le droit de jouir et disposer des choses de la manière la plus absolue,
pourvu qu’on n’en fasse pas un usage prohibé par les lois ou par les règlements.
51
Cf. Aldemiro Rezende Dantas Jr., O Direito de Vizinhança, pp. 20-21, nota nº 29: A Idade Média foi
marcada por fortíssima concentração de riquezas, sendo três as principais razões: a) nas guerras de conquista,
os vencedores ocupavam as terras dos vencidos, sendo que os guerreiros de maior prestígio escolhiam para si
as melhores; b) os sacerdotes convenciam as pessoas de que eram os representantes de Deus e que por isso
deveriam receber todas as terras, para poder reparti-las, sendo que acabavam ficando com as melhores para si;
c) a tributação sobre as terras era muito pesada, com conseqüências sobre a própria pessoa do devedor, e por
isso muitos proprietários preferiam entregar suas terras aos sacerdotes e guerreiros (que eram isentos dos
tributos) e se tornar servos destes, sendo muito comuns os contratos pelos quais a pessoa livre se tornava
voluntariamente escrava. Por conta dessa excessiva concentração, eram muito freqüentes as invasões de
terras, gerando muita instabilidade e receio entre os proprietários. Surgiu então a idéia de transferir a terra aos
poderosos, aos quais se jurava submissão e vassalagem, em troca de proteção à fruição do imóvel. Nascia
então o regime feudal, no qual os feudatários davam apoio militar ao soberano e, em troca, recebiam o direito
de usar os imóveis, pelos quais passavam a zelar. Surgia, assim, a dualidade de sujeitos já mencionada, eis
que o soberano tinha o domínio eminente, mas transmitia aos feudatários o domínio útil, enquanto o restante
da população trabalhava em troca de alimentos (servidão da gleba). Já no Século XVIII, o Rei da França,
63
de perceber que, se a propriedade estava sujeita aos limites impostos pela lei e
mesmo aos limites impostos pelos regulamentos, então era relativa, e não
absoluta, e tal visão da propriedade não diferia muito do conceito recebido do
direito romano 52.
Pode ser apontada como novidade, no entanto, no Código de
Napoleão, a disposição trazida pelo artigo 1.134, no sentido de que as
convenções legalmente formadas valeriam como lei para as partes celebrantes.
Essa disposição teve repercussão, inclusive, no que se refere à boa-fé, no
sentido de lealdade, pois conduziu à libertação do formalismo exagerado e
indispensável do direito romano, uma vez que se as partes contratantes
tivessem declarado livremente sua vontade, o contrato deveria ser respeitado,
ainda que não tivessem ocorrido outras formalidades, tais como a tradição ou
o registro imobiliário.
O Código Civil francês, como se sabe, sofreu grande influência
da obra de Pothier. Este, em sua obra, faz diversas referências à boa-fé. Em
seu Tratado das Obrigações, por exemplo, Pothier 53 examina a questão da
percebendo o abalo do domínio eminente, efetuou consulta à Universidade de Sorbonne, para saber sobre a
propriedade das terras. Para agradá-lo, respondeu a Academia que o Rei continuava a ter o domínio eminente
sobre todas as terras concedidas aos súditos. Houve imediata reação, e os Estados-Gerais da França se
reuniram e declararam o princípio segundo o qual a propriedade particular é inviolável. E esse sentimento se
tornou tão forte que na Declaração dos Direitos do Homem, da Revolução Francesa, a propriedade foi
declarada sagrada e inviolável, o que também foi observado no Código Civil Francês, que assegurou ao
proprietário o uso e gozo absoluto, sendo a propriedade individualista (e não dualista) e absoluta. Cf. Darcy
Bessone, Direitos Reais, p. 19-22. Também Serpa Lopes aponta que o Código de Napoleão enfocou a
propriedade sob um aspecto profundamente individual por temer a possibilidade de ser revivida a concepção
feudalista. Cf. Miguel Maria de Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, v. VI: Direito das Coisas, p. 293.
52
Mesmo no Direito Romano, como ensina Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil,
volume IV, dizia-se ser lícito a qualquer proprietário proceder quanto à sua propriedade como melhor lhe
aprouvesse, mas desde que não viesse a interferir na propriedade alheia , e todas as legislações posteriores
enfrentaram a necessidade de harmonizar o exercício dos poderes jurídicos que compõem a propriedade por
parte dos proprietários de prédios vizinhos (p. 141). E também o Código Civil Francês, prossegue o mestre
mineiro, que de modo expresso estabeleceu que a propriedade era um direito absoluto, como já vimos supra
(art. 544), no mesmo dispositivo acrescentou que dela não se poderia fazer um uso proibido pelas leis ou
pelos regulamentos. Ora, se a propriedade fosse, de fato, um direito absoluto, não poderia sofrer restrições
legais e regulamentares, por isso que o absoluto não comporta superlativo, ou seja, não existe um absoluto
que seja menos absoluto do que outro, e na verdade é que de absoluto não se tratava (p. 71).
53
Robert Joseph Pothier, Tratado das Obrigações, p. 53.
64
boa-fé ao tratar “dos diferentes vícios que podem ser encontrados nos
contratos”, dizendo que “no foro interior, deve-se ver contrário a essa boa-fé
tudo aquilo que se separa, por pouco que seja, da mais exata e mais
inescrupulosa sinceridade”, e que, “somente aquilo que fere abertamente a
boa-fé, perante o foro exterior e interior, é considerado um verdadeiro dolo,
suficiente para dar direito à rescisão do contrato”.
Como se vê, na obra de Pothier, a boa-fé, embora mencionada
(até mesmo com uma certa freqüência), não desempenha papel de muita
relevância, em virtude de sua pouca (ou mesmo nenhuma) utilidade. Essa
dificuldade decorre do fato de que não há como trabalhar a boa-fé apenas
ligada a elementos de foro íntimo e psicológico, tais como a sinceridade e a
intenção de dolo, de modo desvinculado de uma situação real, pois é
impossível considerar-se uma idéia geral, que seja central e principiológica de
um sistema, e a partir da mesma desenvolver uma abordagem teórica da boafé.
A boa-fé, portanto, foi conservada nas lições doutrinárias, mas o
foi em virtude da herança jurídica recebida dos romanos, pois desde lá já se
conhecia a bona fides, e por isso não conseguiu grandes progressos com a
sistematização levada a termo pelos racionalistas, pois continuou confinada à
questão da posse ou recebeu inovações que apenas a confundiam com
aspectos morais, sem grande utilidade prática.
Essas mesmas dificuldades também podem ser facilmente
detectadas no próprio texto do Código Civil francês. Este, com efeito, possui
diversas menções à boa-fé, mas quase todas ligadas ao mesmo aspecto
subjetivo da boa-fé possessória da tradição romanística, ou seja, consistindo
no desconhecimento de uma certa circunstância de fato. É por essa razão que,
até hoje, para o jurista francês, a boa-fé é vista, primordialmente, como um
65
estado de espírito, que varia em função dos sujeitos e das circunstâncias do
caso54.
No entanto, não se pode deixar de observar que existe uma
disposição específica, inserida no Código Civil de Napoleão, que parece não
se coadunar com a linha do direito romano, ou seja, que parece escapar a essa
visão ligada ao aspecto subjetivo da boa-fé.
Com efeito, no artigo 1.134, nº 3, o Código Civil francês impôs
aos contratantes o dever de executar as convenções de boa-fé. Como se vê,
essa disposição tem a clara finalidade de reforçar o vínculo contratual através
da exigência de lealdade de cada um dos contratantes para com o outro, o que
veio a surgir com os racionalistas, e não no direito romano. Tem-se, aí, a boafé como uma norma de conduta, e não como o desconhecimento de uma
circunstância. Tem-se, em outras palavras, a boa-fé objetiva.
O grande problema foi que, para que se desse o verdadeiro
sentido à norma legal mencionada, referente à boa-fé objetiva, seria
indispensável que a mesma fosse interpretada com o recurso a conceitos que
se situavam fora do Código Civil, uma vez que este, a toda evidência, apenas
estava a indicar uma regra geral, mas sem traçar os parâmetros de sua
aplicação em cada caso concreto.
Seria necessária, portanto, em outras palavras, a abordagem dos
jusracionalistas, para que a norma em questão fosse vista como uma idéia
geral, um princípio central que serviria de base para a construção de soluções
em casos concretos, e não como uma solução pronta e acabada em si mesma.
E nesse ponto as dificuldades se tornaram intransponíveis.
54
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 80, n° 293.
66
Enquanto não havia sido publicado o Código Civil, o pensamento
racionalista estava no centro dos estudos jurídicos, com a sua noção clara de
um sistema baseado em princípios centrais. Uma vez publicado o Código
Civil, no entanto, a situação se modificou por completo, pois o pensamento
jurídico passa a ser dominado pela escola da exegese, que via no próprio texto
do Código todas as soluções para os conflitos, não sendo admitido o recurso a
soluções não codificadas55. Vejamos como se deu essa mudança.
Em primeiro lugar, a vastidão do Código Civil francês dificultava
a identificação dos princípios centrais, que eram a base do sistema idealizado
pelos racionalistas. Logo, as soluções propostas pela codificação, para os
diversos problemas, ficaram dispersas, desligadas das idéias centrais que
poderiam funcionar como elementos de ligação entre elas.
Além disso, a existência de um texto que trazia, pelo menos em
tese, a compilação de todo o direito civil, começa a seduzir os intérpretes para
a idéia de que ali naquele texto estariam todas as soluções necessárias para
todo e qualquer conflito, e a partir daí o Direito Civil passa a se confundir com
o Código Civil, e a Ciência do Direito se restringe à leitura do Código. Mas
deve ser esclarecido que essa idéia de onipotência do legislador em geral e do
Código Civil em particular não foi dos redatores do Código Civil, e sim dos
seus primeiros intérpretes, como explica Bobbio 56.
Com efeito, explica o jusfilósofo italiano, na obra e local citados,
que em livro escrito antes da elaboração do Código de Napoleão, embora
publicado apenas em 1820, Portalis sustentou que “seja lá o que se faça, as
leis positivas não poderão nunca substituir inteiramente o uso da razão
55
Não é por outra razão que Delia Rubio afirma que a doutrina só começou a prestar atenção à boa -fé
como norma de conduta a partir do momento em que a escola exegética começou a perder espaço no campo
doutrinário. Cf. Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 85.
56
Norberto Bobbio, O positivismo jurídico – Lições de Filosofia do Direito, pp. 73-77.
67
natural nos negócios da vida”, pois enquanto as leis não mudam, a vida social
que é por elas regulada está em contínua mutação. Por essa razão, prossegue
Portalis, “uma grande quantidade de coisas são, portanto, abandonadas ao
império do uso, à discussão dos homens cultos, ao arbítrio dos juizes”.
Caberia ao juiz, portanto, decidir quanto aos detalhes de cada
caso concreto, aplicando os critérios estabelecidos pelas próprias leis, mas
sempre buscando completar as eventuais – e inevitáveis – falhas desta. E
sendo Portalis o grande nome da comissão encarregada da elaboração do
Código Civil, como não poderia deixar de ser, esse entendimento transparecia
de modo claro no projeto apresentado, como se observava nos artigos 4º e 9º
do mesmo. O artigo 4º proibia que o juiz se recusasse a julgar sob o pretexto
de que havia silêncio, obscuridade ou insuficiência da lei (recusa essa que os
juízes haviam passado a adotar, após a Revolução francesa), e o art. 9º
estabelecia que o juiz, no silêncio da lei, deveria fazer uso da eqüidade e dos
usos.
Como se vê, portanto, fica muito claro o espírito dos integrantes
da comissão que preparou o projeto do Código Civil francês, no sentido de
deixar sempre uma porta aberta para o prudente arbítrio do juiz, mandando-o
juiz decidir mesmo que a lei fosse falha, mas ao mesmo tempo apontando-lhe
os critérios a serem observados, com destaque para a eqüidade. O problema é
que, nas palavras esclarecedoras de Bobbio 57,
“Os redatores do Código de Napoleão quiseram eliminar este inconveniente,
ditando o art. 4º que impunha ao juiz decidir em cada caso, e o art. 9º, que
indicava os critérios com base nos quais decidir no silêncio ou, de qualquer
maneira, na incerteza da lei. Eliminado o segundo artigo, o primeiro –
considerado isoladamente e prescindindo dos motivos históricos que o
haviam sugerido – é compreendido pelos primeiros intérpretes do Código de
57
Norberto Bobbio, O positivismo jurídico – Lições de Filosofia do Direito, p. 77.
68
modo completamente diverso; isto é, é interpretado, assim, no sentido de que
se deveria sempre deduzir da própria lei a norma para resolver quaisquer
controvérsias. Tal artigo, de fato, tem sido um dos argumentos mais
freqüentemente citados pelos juspositivistas, para demonstrar que, do ponto
de vista do legislador, a lei compreende a disciplina de todos os casos (isto é,
para demonstrar a assim chamada completitude da lei)”.
E foi com base nessa interpretação do artigo 4º, desvinculada de
seu contexto histórico e isolada do artigo que o complementava, que surgiu a
escola da exegese, ou seja, a escola dos intérpretes do Código Civil, e que
considerava que neste estavam todas as normas para os casos presentes e
futuros, sendo por isso desnecessário o recurso a todo o direito precedente.
Some-se, a tudo isso, o fato de que a ciência e a cultura francesa
sempre foram – até hoje o são – avessas à absorção de ensinamentos
estrangeiros, sempre preferindo restringir-se aos próprios intelectuais e
cientistas franceses. Em relação à Ciência do Direito, o resultado disso foi que
o exame do Código Civil virou um círculo fechado, construído a partir da
análise feita por juristas que tinham idêntica formação, e por isso avesso a
idéias diferentes, que poderiam trazer alguma inovação. Eis, aí, a escola da
exegese, que nada mais era do que um furioso positivismo, fulcrado
exclusivamente no texto do Código Civil francês.
Em relação à boa-fé subjetiva, como já foi dito acima, o Código
Civil francês havia adotado conceito semelhante ao da bona fides, segundo o
qual o possuidor estaria de boa-fé quando ignorasse o vício do título mediante
o qual lhe fora transferida a propriedade. Não houve, portanto, quanto à
mesma, grandes problemas, e o conceito passou a ser apenas repetido pelos
exegetas, que de modo geral identificavam essa noção psicológica da boa-fé
com a ignorância, embora se encontrasse uma ou outra divergência pontual,
como por exemplo em relação a saber se o erro grosseiro do possuidor
69
equivaleria ou não à má-fé. Nada, contudo, que afetasse a idéia básica da
ignorância como elemento central da boa-fé.
Quanto à boa-fé objetiva, no entanto, vale dizer, quanto à norma
legal que mandava que os contratantes, na execução dos contratos, agissem de
boa-fé, os exegetas ficaram desorientados58, pois a identificação do que seria
essa atuação de boa-fé, a toda evidência, não podia ser apreendida do texto do
próprio Código, e por isso demandava a busca de outras fontes, o que se
chocava frontalmente com a convicção, característica da escola da exegese, de
que todas as soluções estavam dentro do próprio Código Civil, e nele
deveriam ser buscadas. Não sabiam os exegetas, portanto, como interpretar o
artigo 1.134, nº 3, pois não sabiam sequer onde deveriam buscar o sentido a
ser dado para o mesmo.
Como aponta Moreira Alves59, essa “parte final do artigo 1334
trouxe grave problema de entendimento de seu alcance desde a entrada em
vigor desse Código, sendo que ainda em tempos mais próximos há
controvérsias”. A verdade, como bem aponta Beatriz Capucho60, é que “a
boa-fé incomodava os adeptos da Escola da Exegese, pois, segundo Clóvis do
Couto e Silva, sua aplicação exigia mais do que podia oferecer o método
subsuntivo, característico dessa Escola”.
Na busca do significado dessa atuação de boa-fé, os exegetas
começam lentamente a caminhar no sentido de que deveriam ser executadas as
convenções de acordo com a intenção das partes, e que o juiz, ao examinar um
caso concreto, não deveria se limitar às palavras usadas para a celebração do
58
É nesse sentido que Béatrice Jaluzot afirma que “Pour le juriste français déclarer que la bonne foi
est objective est um peu incongru”. Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de
droit français, allemand et japonais, p. 80, n° 293.
59
José Carlos Moreira Alves. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Roma e America.
Diritto Romano Comune. Rivista di Diritto Dell, integrazione e unificazione del Diritto in Europa e in
America Latina, n° 7/1999, p. 189.
60
Beatriz Maki Shinzato Capucho, Da boa-fé na negociação coletiva de trabalho, p. 49.
70
contrato, mas procurar a verdadeira intenção das partes, pois aí é que estaria a
realidade contratual. Para o belga Henri de Page 61, por exemplo, o espírito das
convenções é superior à sua letra, pois a vontade real deve predominar sobre
os rituais, uma vez que o direito não se encontra nas palavras, mas na
realidade, e esta não pode ser deformada por aquelas.
Na realidade, como bem aponta Béatrice Jaluzot 62, ainda hoje a
intenção do sujeito é um motivo do comportamento ao qual o direito francês
atribui fundamental importância, sendo que a imensa maioria dos autores
franceses considera a boa-fé como a intenção que anima o sujeito durante seus
atos: se essa intenção é boa, a pessoa está de boa-fé; se é má, então a pessoa
deve ser considerada de má-fé. Desde Rau, esclarece a autora, já se dava esse
sentido ao artigo 1.134, alínea 3, do Código Civil francês: uma convenção
executada de boa-fé é uma execução conforme a vontade das partes.
Tais idéias, como se vê, já se aproximavam mais do racionalismo,
pois a solução buscada era em um nível substancial, ou seja, com o exame da
matéria contratual, e não apenas um exame formal, dependente das palavras
porventura usadas. Obtinha-se, com isso, uma solução mais lógica. O
problema é que, de certa forma, continuava-se a ter um sentido psicológico
para a boa-fé, eis que a noção da mesma, embora não mais ligada ao
61
Henri de Page, Traité Élémentaire de Droit Civil Belge, t. II, p. 411, n° 468. “L’esprit prime la lettre;
la volonté réelle domine le rite; le droit n’est plus dans les mots, mais dans les réalités. Ceux-là ne peuvent,
en aucun cas, permettre de déformer celles-ci”.
62
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 94 n° 340. Textualmente, diz a autora que “L’intention est um motif de comportement auquel le
droit français dans son ensemble accorde une importance fondamentale. L’immense majorité des auteurs
français considère la bonne foi comme l’intention qui anime une partie lors de son acte. Si cette intention est
bonne, la personne est de bonne foi, si elle est mauvaise, la personne est de mauvaise foi. RAU déjà donnait
ce sens à l’article 1134 alinéa 3: une convention exécutée de bonne foi, c’est une exécution conforme à la
volonté des parties”. Essa visão do direito francês, na realidade, foi a fonte do artigo 85, do Código Civil
brasileiro de 1916 (atual artigo 112, do Código Civil), segundo o qual, nas declarações de vontade, deve-se
atender mais à intenção do que ao sentido literal das palavras.
71
conhecimento ou ignorância, estava agora vinculada à intenção do contratante,
e a intenção também se constitui em um aspecto íntimo.
E a partir daí pouco se evoluiu. Ou, até mesmo, regrediu. Nesse
sentido a opinião de Menezes Cordeiro 63, que traça ácida crítica à doutrina
francesa, apontando que
“a literatura francesa actual sobre a boa-fé nas obrigações regrediu: ora
mantém as velhas referências à pretensa extinção da diferença entre os
bonae fidae e os stricti iuris iudicia, ora ignora o tema, ora, um tanto por
influência alemã, lhe concede pequenos desenvolvimentos, sem relevância
jurisprudencial... Conclua -se pelo fracasso da boa-fé no espaço juscultural
francês... Imagem do bloqueio geral derivado de uma codificação fascinante
e produto das limitações advenientes de um positivismo ingênuo e exegético,
a boa-fé napoleônica veio a limitar-se à sua tímida aplicação possessória e,
para mais, em termos de não levantar ondas dogmáticas. Esse fracasso,
patente no panorama dos comentários e obras gerais e claro na falta de
resultados obtidos pelas monografias que, em França, se debruçaram sobre
a boa-fé, acentua-se pela sua não aplicação jurisprudencial e pelo
desaparecimento, no segundo pós-guerra, de estudos a ela votados. Tais
afirmações não são prejudicadas por pequenas alterações recentes, ditadas,
de modo manifesto por transferências culturais alemãs...”.
Veja-se que em Planiol e Ripert64, por exemplo, já na primeira
metade do século XX, lê-se que essa boa-fé referente à execução dos contratos
diz respeito à obrigação de se comportar como uma pessoa honesta e
conscienciosa, sendo tal comportamento exigido não apenas na fase de
formação dos contratos, mas também na execução dos mesmos, não podendo
se limitar o exame do contrato à literalidade das palavras usadas para a sua
elaboração. Continuava pendente, como se percebe, a noção sobre o que seria
esse comportamento como uma pessoa honesta, pois a explicação para isso,
63
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 260 e 267.
Marcel Planiol e Georges Ripert, Traité Pratique de Droit Civil Français, Tome VI: Obligations,
première partie, p. 524, n° 379. “Tous les contrats sont chez nous des contrats de bonne foi. La bonne foi
c’est l’obligation de se conduire en homme honnête et consciencieux non seulement dans la formation, mais
dans l’exécution du contrat, et de ne pas s’en tenir à la lettre de celui-ci”.
64
72
mais uma vez, estava fora do Código Civil. Apenas se trocou, portanto, a
expressão que ficava sem explicação.
Como se vê, os exegetas não conseguiram encontrar uma fórmula
teórica para a boa-fé. E, ainda mais, apesar das diversas menções feitas pelo
Código Civil de Napoleão à boa-fé, não conseguiram também extrair das
mesmas um princípio comum, que pudesse ser aplicado a todas elas, e a
conseqüência foi que tais menções não passaram disso mesmo, ou seja,
simples menções, isoladas umas das outras, aparentemente sem qualquer
elemento de conexão que as unisse.
Houve tentativas de obtenção de um conceito único para a boa-fé,
mas à custa de ser simplesmente ignorada a menção que o Código Civil fazia à
boa-fé como norma de conduta, e na verdade concentrando-se o conceito,
unicamente, na boa-fé subjetiva, o que a toda evidência era inaceitável e
constituía-se em mutilação expressa da norma legal.
Como explica Delia Rubio, foi só depois que a escola exegética
começou a perder espaço na doutrina que os juristas começaram a prestar mais
atenção à boa-fé que aparecia nos ordenamentos de diversos países como
norma de conduta e cumprindo o papel de um princípio geral. E no entanto,
alerta a autora espanhola, as normas não eram novas, pois sempre haviam
estado nas codificações, apenas não se conseguia dar às mesmas a significação
adequada, pois eram vistas apenas como um reforço à obrigatoriedade dos
contratos. Em outras palavras, a mudança no enfoque da boa-fé não se deu
com a mudança da legislação, mas tão-somente com a mudança de atitude dos
cientistas do Direito 65.
65
Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 85.
73
Falhando a unificação, começam os juristas franceses a buscar um
estudo bipartido da boa-fé, separando-a em objetiva e subjetiva66. Em relação
à boa-fé subjetiva, como é fácil de se imaginar, a acomodação doutrinária se
deu de modo fácil, mesmo porque no Código já havia, como vimos acima,
conceito que correspondia ao que fora recebido desde os romanos, referente à
bona fides, no sentido de que a boa-fé seria a ignorância, por parte do
possuidor, dos vícios que maculavam seu título aquisitivo, e a partir daí não
houve qualquer obstáculo em assimilar a boa-fé subjetiva ao desconhecimento
das circunstâncias, o que na verdade já era feito há muito tempo.
Em relação à boa-fé objetiva, no entanto, não foi assim tão
simples. Esta corresponderia à lealdade, ao comportamento normal e ético de
uma pessoa honesta, isento de qualquer dolo, fraude ou abuso do direito,
devendo ser observada no campo contratual, tanto na fase de formação do
contrato quanto ao longo de seu cumprimento.
O problema, como desde logo se percebe, é que tal conceito
explana a boa-fé em função de outros institutos, que também carecem de
explicação, e por isso, na verdade, nada esclarece. Além disso, se a boa-fé
nada mais fosse do que uma função do dolo, da fraude, da ética e do abuso do
direito, na realidade estaria sendo feita uma duplicação de conceitos, pois cada
um desses institutos necessitaria de uma dupla explicação, ou seja, quando
isoladamente considerado e quando vinculado à boa-fé.
Na Itália e em Portugal, principalmente em decorrência da
enorme influência que o Código Civil francês teve nas codificações
posteriormente surgidas nesses dois países (1865 e 1867, respectivamente),
66
Houve, também, quem tentasse uma classificação tripartida, que na verdade nada mais era do que
uma subdivisão da boa-fé objetiva em dois aspectos, um referente à boa-fé como critério de interpretação e
outro que a considerava como sendo a vontade a ser realizada pelas partes e respeitada pelos terceiros, nos
negócios jurídicos. Cf. Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil,
pp. 89 -90.
74
não foi muito diferente o tratamento dado à boa-fé, que também foi
relacionada, em seu aspecto objetivo, ou seja, enquanto norma de conduta, a
outros institutos que igualmente eram carentes de uma conceituação mais
precisa.
Contudo, o que pode ser desde logo colocado em destaque é que,
enquanto o Código Civil italiano mencionava expressamente a boa-fé como
comportamento a ser observado nos contratos, o antigo Código Civil
português, embora se reportando à boa-fé em dezenas de artigo, apenas o fez
quanto à boa-fé subjetiva, nada estabelecendo em relação à formação e à
execução dos contratos.
Curiosamente, inclusive, o Código Civil português, em seu artigo
702º, havia sido inspirado quase que integralmente no artigo 1.134, do Código
Civil francês, determinando que os contratos legalmente celebrados fossem
cumpridos de modo exato, mas a disposição constante do Código de Seabra
cortou exatamente a referência que o Código de Napoleão fazia à boa-fé.
Possivelmente essa ausência tenha sido proposital, pois nos mais de sessenta
anos já decorridos, desde o Código francês até a elaboração do Código
português, já havia sido possível avaliar com realismo as dificuldades que a
doutrina francesa havia enfrentado, ao lidar com a boa-fé objetiva do Código
de Napoleão.
De qualquer forma, em Portugal, a falta de menção expressa no
Código Civil não impediu que naquele país se começasse a perseguir um
conceito geral, que permitisse a aplicação da boa-fé ao campo das obrigações,
inobstante o silêncio do texto codificado. Houve uma certa evolução
doutrinária, mas com praticamente nenhuma repercussão na jurisprudência
portuguesa. De qualquer forma, esses estudos da doutrina formaram a base
necessária para que o assunto fosse muito mais bem tratado no Código Civil
75
português de 1966, como veremos adiante, que de modo sistemático tratou da
boa-fé.
1.5. A boa-fé no Direito Civil Alemão.
Esclarece Bobbio67 que o direito romano – como, de resto, toda a
cultura – havia se eclipsado na Europa Ocidental, durante a Idade Média,
sendo substituído pelos costumes locais e pelo novo direito inerente às
populações germânicas (bárbaras), mas ressurgiu depois do “século das
trevas”, com o aparecimento da Escola jurídica de Bolonha, e espalhou-se não
apenas pelo antigo território do Império Romano, mas também para territórios
que nunca haviam sido dominados por este.
Na Alemanha, esse renascimento do direito romano se deu pelo
fenômeno da “recepção”, por obra, principalmente, do trabalho dos glosadores
e pós-glosadores, como já vimos anteriormente (veja-se, a respeito, o item 1.3,
retro). Foi graças a esse fenômeno da recepção que o direito romano foi
profundamente assimilado pela sociedade alemã, tanto assim que, até o final
do século XIX, antes da elaboração do Código Civil alemão, os tribunais
germânicos ainda aplicavam largamente o direito do Corpus juris, com as
atualizações feitas pelos pós-glosadores, para adaptação às novas exigências
sociais, e com o nome de “usus modernus Pandecta-rum”.
Assim, ao longo de todo o século XIX, enquanto na França a
Ciência do Direito enveredava pela escola da exegese, num positivismo
radical, na Alemanha se trilhava um caminho completamente diverso. Essa
divisão do direito europeu continental encontra vários motivos, como por
exemplo a diversidade lingüística (eis que o latim, antes língua unificada do
67
Norberto Bobbio, O positivismo jurídico – Lições de Filosofia do Direito, p. 30.
76
direito, ia perdendo espaço como tal) e a forte rivalidade entre França e
Alemanha. Além disso, os estudos filosóficos de Kant tiveram um forte
impacto no direito alemão 68.
Convém observar que, ao longo dos séculos XVII e XVIII, era
dominante na Europa o pensamento jusnaturalista. E para que o direito natural
pudesse perder terreno, foi necessário o surgimento de uma outra linha de
pensamento, que se mostrou extremamente crítica às idéias jusnaturalistas.
Isso se deu com o surgimento da escola histórica do direito, no final do século
XVIII e no começo do século XIX, que se difundiu principalmente na
Alemanha e acabou levando à dessacralização do direito natural69.
Segundo a concepção da escola histórica do direito, cujo expoente
máximo foi Savigny, o Direito só poderia ser estudado se fossem levadas em
conta, dentre outras, as seguintes características: a) a individualidade e a
variedade do homem, ou seja, o Direito jamais poderia ser entendido como
único, imutável em todos os lugares e em todos os tempos, pois o mesmo seria
sempre desenvolvido na história, como ocorre com todos os fenômenos
sociais, e por isso variaria no tempo e no espaço; b) o valor da tradição, no
sentido de que deveria ser sobrevalorizado o direito consuetudinário, uma vez
que os costumes, formando-se e desenvolvendo-se por lenta evolução na
sociedade, seriam o Direito que nasce diretamente do povo, exprimindo o
sentimento e o “espírito do povo”70.
68
Uma outra diferença é que a França, logo no começo do século XIX, trouxe ao mundo o seu Código
Civil; na Alemanha, no entanto, a escola histórica do direito, dirigida por Savigny, triunfou ao longo de
praticamente todo esse mesmo século, e como essa escola partia do princípio de que o verdadeiro direito era o
formado pelos costumes (veja-se, no texto acima, poucas linhas adiante), a mesma opunha-se à codificação do
direito civil. Formaram-se, na Alemanha, duas grandes correntes, uma liderada por Thibault, que pedia a
urgente codificação, e a outra liderada por Savigny, que se opunha. Em virtude dessas circunstâncias, o
Código Civil alemão só viria a entrar em vigor quase cem anos depois do francês. Cf. Vicente Ráo, O Direito
e a Vida dos Direitos, pp. 127-128.
69
Norberto Bobbio, O positivismo jurídico – Lições de Filosofia do Direito, p. 45.
70
Norberto Bobbio, O positivismo jurídico – Lições de Filosofia do Direito, pp. 51-52.
77
O Direito, então, na visão da escola histórica, seria um traço
característico de um povo, assim como a língua e os costumes 71. Assim, o
Direito nada mais seria do que uma evolução histórica e sistemática, que tinha
o seu ponto de partida nos costumes e crenças populares e depois era
consagrado na lei e na jurisprudência dos tribunais. Ao direito natural,
portanto, a escola histórica contrapunha o direito costumeiro, por entender que
este era o direito genuíno.
Não se trataria, pois, de uma obra do legislador72, pois este apenas
refletiria na lei a evolução supramencionada 73. Além disso, como a legislação
exprimia todo um conjunto de manifestações do povo, cada norma legal só
poderia ser entendida dentro do conjunto, só podendo ser entendido cada texto
legal quando levado ao cotejo com todo o sistema, e jamais pela interpretação
de um texto isolado. Referindo-se à Escola Histórica, diz Wieacker 74 que “o
seu núcleo é antes constituído por um processo de mutação interna da própria
ciência jurídica que, por volta de 1800, tinha em vista o novo ideal de uma
ciência jurídica ao mesmo tempo positiva – i.e., autônoma – e filosófica – i.e.
– sistemático-metódica”.
Convém lembrar, como acima já mencionamos, que, nessa época,
o direito romano era profundamente arraigado na Alemanha, e portanto foi
71
Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, p. 407, ensina que “A Escola Histórica do
direito descobriu na historicidade do direito a historicidade do proprio povo. Ela viu o mesmo no direito,
primeiro implicitamente depois expressamente, uma manifestação do espírito do povo”.
72
Para a Escola Histórica, diz Wieacker, “o direito já não podia ser compreendido como um sistema de
leis naturais gerais e a-históricas da sociedade humana ou apenas como mero produto artidicial de um
legislador racional”. Cf. Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, p. 406.
73
Curiosamente, no entanto, apesar de preferir o direito costumeiro ao legislado, a escola histórica do
direito acabou se revelando como uma das causas do furioso positivismo que viria a tomar conta da França,
após a publicação do Código Civil de 1806, com a escola exegética, como já vimos no item 1.4, retro.
Curiosamente, dissemos, porque ao pregar a prevalência das normas costumeiras, a escola histórica distanciase enormemente do positivismo que confundiu o estudo do direito civil com o exame do Código Civil. Ocorre
que, ao criticar duramente as concepções jusnaturalistas, a escola histórica acabou por solapar o direito
natural, e foi por isso que, indiretamente, acabou abrindo o caminho para o positivismo. Cf. Norberto Bobbio,
O positivismo jurídico – Lições de Filosofia do Direito, p. 45.
74
Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, p. 419.
78
tomado como ponto central de partida para a escola histórica75. Além disso,
como o Direito era um produto da cultura do povo, buscava-se a colheita de
elementos culturais na sociedade, o que era feito pela observação das
instituições existentes nessa mesma sociedade. Assim, aos princípios centrais
que norteavam o sistema, somavam-se elementos da periferia desse mesmo
sistema, de origem cultural, o que lhe conferia características próprias daquela
sociedade.
É importante observar que foi essa busca da realidade como
parâmetro de referência, que se mostrava como o eixo central da escola
histórica, que permitiu que ganhasse impulso a crítica ao exacerbado
individualismo que se verificava nos Códigos do século XIX, e que em última
análise, como veremos no desenvolvimento do presente item, acabaram por
criar, mais adiante, as condições necessárias para o reconhecimento da boafé 76 como fonte normativa autônoma, e não apenas como uma simples figura
de retórica ou um princípio tão-somente aplicável como reforço dos
contratos 77 ou como a ciência de uma determinada circunstância ligada à
posse, o que pode ser facilmente explicado pelo fato da boa-fé se ligar ao
pensamento problemático, tópico, ou seja, mediante a imersão nas
75
Na realidade, como explica Vicente Ráo, o que aconteceu foi que o direito romano era tão
profundamente enraizado na Alemanha do século XIX, que parecia simplesmente inconcebível um direito
alemão que deixasse de fora as concepções romanas, que não conservasse os conceitos romanos. Ora, é
evidente que a absorção do direito de outro povo e de outra época chocava-se frontalmente com a idéia básica
da escola histórica, no sentido de que o direito era o produto inconsciente e espontâneo do meio social,
variando no tempo e no espaço, como vimos acima. No entanto, a escola história não teria a menor chance de
ser aceita, caso propusesse a exclusão dos preceitos do direito romano, e por essa razão, não sem dificuldade,
esforçou-se em justificar aadmissao do direito romano e dos seus conceitos jurídicos. Vicente Ráo, O Direito
e a Vida dos Direitos, p. 128, nota nº 49.
76
Nesse sentido, poderíamos simplificar dizendo que a boa-fé objetiva representa “uma reação contra
o individualismo, cobrando das partes um comportamento que leve em conta o interesse do parceiro
contratual: um agir solidário”. Cf. Laerte Marrone de Castro Sampaio, A boa-fé objetiva na relação
contratual, p. 28.
77
Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 86.
79
circunstâncias dos problemas concretos que se apresentam ao juiz (veja-se,
supra, o item 1.1).
Interessante notar, portanto, que na visão da escola histórica o
sistema jurídico é construído através da dedução e da indução: partindo-se de
princípios centrais, deduzem-se as regras que formam o sistema, de modo
idêntico ao do racionalismo; ao mesmo tempo, contudo, a partir da observação
dos elementos externos, ou seja, das instituições culturais vigentes na
sociedade, faz-se o processo inverso, induzindo-se os postulados centrais a
partir desse produto dos costumes obtidos diretamente junto ao povo. A
conseqüência mais imediata é que esse sistema está sempre sujeito aos
influxos da vida real, em constante e incessante alteração com esta e, por outro
lado, mostra-se como um sistema adequado para a solução de questões
práticas78.
Essa doutrina alemã do século XIX, tendo adotado a observação
dos fatos culturais como parte de sua metodologia, como não poderia deixar
de ser, precisou enfrentar a questão da boa-fé. Em relação à posse, Savigny
desenvolveu-a com um aspecto psicológico, mas já com alguns traços de
objetivação. Com efeito, Savigny entendia que apenas a vontade do possuidor
(animus) era que permitia transformar a detenção em posse, em claro aspecto
subjetivo, e também que a posse seria de boa-fé quando o possuidor estivesse
convencido de que havia esteio jurídico para sua posse79.
No entanto, apontava Savigny que a posse de boa-fé deveria estar
amparada em um título que a justificasse, ou seja, tem-se aí uma situação
objetiva, na qual a primeira abordagem sobre a existência ou não da boa-fé se
dava em função de um elemento externo, objetivo, que era a existência ou não
78
79
Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, pp. 294-295.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, Direitos Reais, p. 30.
80
do título jurídico, e não apenas a simples análise do que o possuidor tinha ou
não conhecimento (o que, de resto, no mais das vezes é impossível de aferir
com segurança). A boa-fé possessória, portanto, seria protegida como uma
situação objetiva, e não apenas pelo estado psicológico de conhecimento ou de
ignorância do possuidor.
Em relação à boa fé como norma de conduta 80, no entanto, ou
seja, a boa-fé objetiva, muito pequena foi a evolução. No campo das
80
Na realidade, quando se fala em boa-fé como “norma”, está-se passando diretamente à conclusão de
uma polêmica que até hoje divide a doutrina: a de saber-se se a boa-fé se constitui em um standard jurídico
ou em um princípio geral. Entenda-se, por standard, um parâmetro, uma referência para fins de comparação,
ou seja, um modelo de conduta social, em relação ao qual o juiz, em um caso concreto, deverá fazer a
comparação de um comportamento, para aferir se o mesmo foi ou não adequado ao padrão utilizado. O
problema é que o standard não cria normas e nem é, em si mesmo, uma norma, e por isso não funciona como
uma diretriz para o comportamento, mas tão-somente, como dissemos, serve de parâmetro para a comparação
do comportamento já adotado. Assim, por exemplo, quando o Código Civil brasileiro se refere à “pessoa de
diligência normal” (art. 138) ou ao “homem ativo e probo ” (art. 1.011), não está criando norma alguma ou
impondo um comportamento, mas apenas dizendo ao juiz que, em um caso concreto, deverá comparar o
comportamento do sujeito com aquele comportamento-padrão escolhido pelo legislador para aquela situação,
que é o da pessoa de diligência normal ou da pessoa ativa e proba, sendo evidente que o conteúdo desse
comportamento só poderá ser determinado levando-se em conta o desenvolvimento social, econômico,
cultural e até mesmo tecnológico, de uma determinada sociedade. Assim, o standard jurídico não impõe uma
conduta a ser seguida, mas apenas funciona como elemento de comparação da conduta adotada em um caso
concreto. O princípio, ao contrário, não apenas é uma norma em si mesmo (pois impõe um comportamento e
dele decorrem obrigações), mas além disso ainda funciona como gerador de outras normas (Delia Matilde
Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil , p. 102). Assim, quando o artigo 138,
do nosso Código Civil, menciona a pessoa de diligência normal, não está criando obrigações concretas e nem
determinando uma conduta. Ao contrário, quando se fala em comportamento conforme a boa-fé (Código
Civil, art. 422), daí decorrem diversas obrigações concretas para o sujeito, sendo-lhes imposta a observância
de uma determinada conduta. Logo, quando falamos em “boa-fé como norma de conduta”, isso significa que
estamos adotando a idéia de que se trata de um princípio geral, e não apenas um standard comportamental,
sendo certo que o princípio é de aplicação muito mais ampla, eis que se insere por todo o ordenamento
jurídico, sendo exatamente isso o que ocorre, ao nosso ver, em relação à boa-fé. No mesmo sentido é a
conclusão de José Luis De Los Mozos, para quem a boa-fé, em geral, não pode ser confundida com o que a
doutrina anglo-americana classifica como standards jurídicos, pois a boa-fé se limita a atuar uma idéia moral,
que recebe uma instrumentação diferente conforme os diversos topoi jurídicos encontráveis no ordenamento.
Mas aponta o referido autor que, especificamente em relação ao direito obrigacional, ao fazer incidir um
critério de reciprocidade entre os sujeitos, a boa-fé se assemelha aos standards jurídicos, uma vez que
estabelece uma conduta-tipo (El principio de la buena fe, p. 54). No mesmo sentido, ainda, a conclusão de
Béatrice Jaluzot, que após observar que o ponto comum entre as duas concepções (standard jurídico e
princípio) é a ausência de uma definição precisa, sendo isso uma vantagem, pois permite ao juiz atribuir ao
conteúdo da boa-fé a partir de numerosos elementos objetivos e subjetivos, sendo aí que aparecem as
diferenças entre os diversos ordenamentos jurídicos, e conclui apontando que “la conception de la bonne foi
en tant que principe juridique tend à faire l’unanimité” (La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de
droit français, allemand et japonais, pp. 124-125, n°s 445 e 452). Mas a questão não é pacífica, havendo
autores que sustentam que a boa-fé é apenas a representação de um standard. Neste sentido, apontam DiezPicazo e Antonio Gullon que “La buena fe es lo que se ha llamado un standard jurídico, es decir, un modelo
de conducta social o, si se prefiere, una conducta socialmente considerada como arquetipo, o también una
81
obrigações, na realidade, a boa-fé foi examinada por Savigny não como um
princípio inerente às obrigações em geral ou aos contratos em particular, mas
sim como um alargamento do poder decisório do juiz, aproximando-se pois
dos bonae fidei judicia dos romanos.
Desse modo, o juiz não estaria adstrito ao que estivesse expresso
no contrato, mas também poderia levar em conta o que era comum nos
contratos daquela espécie, ou seja, a tutela jurídica levaria em conta a
substância do contrato, e não apenas o que nele estivesse expresso. O réu, por
sua vez, poderia invocar esse maior poder do juiz para trazer ao processo um
eventual crédito que tivesse contra o autor, por exemplo, o que acabou dando
origem à exceção material da compensação.
Como se vê, portanto, até aí se manteve firme a bipartição da boafé, aplicada no campo da posse e no campo das obrigações, mas o progresso
não foi significativo, no sentido de estabelecer conceitos claros e precisos, que
pudessem permitir ao operador do direito a segurança no manuseio da boa-fé,
notadamente no campo contratual.
De qualquer modo, merece destaque o aspecto prático trazido por
Savigny, em relação ao título que esteava a posse e que serviria de amparo à
boa-fé, como vimos acima, pois servia como um fator concreto, a ser
considerado pelo juiz, em contraponto a uma nem sempre possível análise do
conducta que la conciencia social exige conforme a un imperativo ético dado”. Cf. Luis Diez-Picazo y
Antonio Gullon, Sistema de Derecho Civil – v. 1 – Introdución – Derecho de La persona – Negocio Jurídico,
p. 519. Também para Vitor Frederico Kümpel, A teoria da aparência no novo Código Civil brasileiro, p. 77,
“a boa -fé também é uma cláusula geral, pois encerra em si condutas padronizadas (standards)...”. Outros,
ainda, parecem apontar que não há diferença conceitual entre o standard e o princípio geral, como é o caso de
Hernández Gil, para quem “la buena fé, em su significación general, funciona como um principio general o
um standard jurídico” (Antônio Hernández Gil, La posesión, p. 173). E o ilustre autor espanhol repete, em
outra obra, a mesma idéia, afirmando que “la buena fe, considerada en términos generales, funciona como un
principiuo o concepto standard por virtud del cual el ordenamiento, evitando la concreta previsioón de
comportamientos, enuncia un modelo de conducta en el que han de hallarse insertos los destinatarios de las
normas para aprovecharse de ciertos efectos beneficiosos”. Cf. Antônio Hernández Gil, La función Social de
la posesión, p. 130.
82
íntimo do possuidor, para verificar se o mesmo sabia ou não sabia do vício
que lhe maculava a posse.
Além disso, pelo menos a boa-fé se manteve nas discussões
doutrinárias, em seus dois aspectos já abordados desde os romanos, ou seja,
em relação às obrigações e à posse, o que sempre torna possível que novos
estudos venham a se somar aos já existentes, o que de fato viria
posteriormente a ocorrer. As discussões sobre a boa-fé voltariam a se acentuar
em virtude de um curioso caso concreto, na segunda metade do século XIX,
envolvendo a sucessão de um conde alemão, que provocou ruidosa polêmica
entre os juristas 81.
Um conde alemão, morto em 1765, havia feito um testamento,
dez anos antes, no qual designava como herdeiro um filho, determinando
contudo um fideicomisso e a destinação dos bens para depois da morte do
filho. Ocorre que esse filho nunca chegou a nascer e, morto o conde, a irmã
deste, herdeira legítima, de imediato se apossa das propriedades, antes mesmo
da abertura do testamento.
Quase cem anos depois, em 1861, os herdeiros testamentários do
conde (os descendentes do fiduciário) ajuízam ação pedindo que lhes fossem
entregues os bens da herança. Na defesa, argüiu-se a ocorrência da usucapião,
contra a qual os autores apontaram a má-fé da irmã do conde, eis que não seria
possível usucapir sem posse de boa-fé.
A partir daí a discussão se concentra em saber se a irmã do conde,
ao apoderar-se dos bens antes da abertura do testamento, estava de boa-fé ou
de má-fé, ou seja, se o fato de não ter esperado a abertura do testamento, o que
teria sido o mais recomendável, serviria como obstáculo à sua crença de que
81
Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, pp. 308-310.
83
efetivamente seria a herdeira do irmão falecido, por ser indesculpável o seu
erro quanto à propriedade dos bens.
Duas correntes doutrinárias se formaram. Para a primeira,
capitaneada por Carl Wächter, que tomou como referência o largo emprego,
nas fontes romanas, de expressões como putare, ignorare e nescire, a boa-fé
consistiria em um fato puramente intelectivo, ou seja, no simples fato da
crença (errônea) do possuidor de que era o verdadeiro proprietário da coisa.
Por se tratar de um fato, pouco importava se o erro era desculpável ou não,
pois o que interessaria era a crença em si mesma, e não os elementos nos quais
a mesma estaria apoiada. E mesmo a dúvida sobre o direito do antecessor só
excluiria a boa-fé se fosse forte ao ponto de afastar a crença do possuidor em
seu próprio direito 82.
Para Wätcher, portanto, a boa-fé era de conteúdo psicológico, e
não se confundia a boa-fé das relações jurídicas reais com a boa-fé das
relações jurídicas obrigacionais.
Para a segunda corrente, no entanto, liderada por Bruns, essa
análise puramente psicológica da boa-fé, ou seja, tão-somente esteada na
convicção íntima do possuidor, era inaceitável em virtude da extrema
insegurança jurídica que dela decorreria, pois teria que ser feita a análise da
pessoa, em cada caso concreto, para saber o seu grau de credulidade, eis que a
pessoa crédula ou de pouca inteligência seria mais facilmente considerada de
boa-fé do que a pessoa de muitas luzes. A boa-fé do possuidor, portanto, para
Bruns, não seria um conceito psicológico, mas sim um conceito ético 83.
82
José Carlos Moreira Alves.
Diritto Romano Comune. Rivista di
America Latina, n° 7/1999, p. 190.
83
José Carlos Moreira Alves.
Diritto Romano Comune. Rivista di
America Latina, n° 7/1999, p. 190.
A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Roma e America.
Diritto Dell, integrazione e unificazione del Diritto in Europa e in
A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Roma e America.
Diritto Dell, integrazione e unificazione del Diritto in Europa e in
84
Assim, portanto, sustentavam os defensores dessa segunda
opinião que a boa-fé deveria ser colhida a partir de um conteúdo ético, ou seja,
de um comportamento concreto, através do qual se poderia examinar a
honestidade e a correção da conduta, e não pelo exame de elementos
psicológicos e inatingíveis. Para Bruns, o conceito ético da boa-fé seria o
mesmo, tanto em relação à usucapião quanto em relação aos contratos, e em
ambos a boa-fé seria eliminada pelo erro inescusável.
A divisão doutrinária, portanto, pode ser assim resumida: o
conteúdo da boa-fé tem natureza predominantemente psicológica (crença) ou,
ao contrário, apresenta um conteúdo marcantemente ético? Para Wächter,
como vimos, a boa-fé consiste em um aspecto psicológico, que se caracteriza
por uma crença errônea, qualquer que seja a sua natureza (a sua causa). Para
Bruns, ao contrário, a boa-fé tem um conteúdo ético, e este só se materializa
quando essa crença não é culposa, ou seja, não é suficiente a crença em si
mesma.
Alguns outros autores, por sua vez, tentaram uma doutrina
intermediária, como Pernice e Bonfante, apontando, em síntese, que a partir
das fontes romanas poderiam ser apontados dois aspectos para a boa-fé, um
aplicável aos direitos reais e o outro aplicável em relação às obrigações, não
sendo uma delas equiparável à outra. Assim, nos direitos reais a boa-fé seria
marcada por um conteúdo principalmente psicológico (a consciência),
enquanto nas obrigações haveria um forte componente ético (moralidade) 84.
Em relação à análise das fontes romanas, vale dizer,
considerando-se o sentido da boa-fé em relação ao direito romano, a razão
estaria com Wächter, pois para os romanos a boa fé possessória apresentava
84
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 27-28.
85
um conteúdo puramente psicológico, não levando em consideração a questão
da desculpabilidade do erro em que se assentava 85.
Do ponto de vista da moderna Ciência do Direito, no entanto,
deu-se exatamente o contrário, ou seja, atualmente se entende que a boa-fé
apresenta marcante caráter ético, que prevalece sobre o psicológico, por isso a
crença deve ser justificada, vale dizer, deve ser desculpável, assentada em
fatos que de modo razoável possam justificá-la 86. Essa segunda posição, aliás,
foi expressamente adotada pelo Código Civil alemão (§ 932, 2), como
veremos logo adiante, neste mesmo item.
Esse conteúdo ético se revela com mais clareza quando se avalia
a boa-fé subjetiva, ou seja, essa boa-fé ligada à crença, ao conhecimento ou ao
desconhecimento acerca de uma certa circunstância do negócio jurídico. Mas
isso não significa, obviamente, que a boa-fé objetiva, enquanto norma de
conduta, esteja despid a desse mesmo conteúdo ético 87.
Neste ponto, deve-se alertar que essa distinção entre conceito
psicológico e conceito ético de boa-fé, nos moldes em que foi colocada nessa
polêmica entre Wätcher e Bruns, encontra-se superada, e não pode ser
confundida com a atual separação entre boa-fé subjetiva e boa-fé objetiva,
pois na verdade ambas as correntes, tanto a de Wätcher quanto a de Bruns,
podiam ser qualificadas como subjetivas, uma esteada na crença, e a outra
dependendo da existência ou não de culpa no surgimento da crença.
A boa-fé subjetiva se apresenta como um fato psicológico, no
qual se levam em conta os valores éticos, sendo no campo dos direitos reais a
sua atuação predominante. A boa-fé objetiva, por sua vez, se apresenta como
85
86
87
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 312.
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 27.
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 29.
86
regra de conduta do homem de bem, conforme os padrões de uma sociedade
em um certo momento histórico, sendo, pois, exterior ao sujeito. 88
O que acontece é que esse conteúdo ético da boa-fé se infiltra no
ordenamento jurídico de tal modo e em tal profundidade que, muitas vezes,
transmuda-se de seu aspecto subjetivo para um objetivo, vale dizer, deixam-se
de lado aspectos como a intenção, a culpa, a consciência, etc. (o aspecto
psicológico, enfim), e passa-se a apreciar tão-somente se se trata de um
comportamento socialmente aceitável.
Na lição precisa de Lombardo 89, o princípio ético da boa-fé se
funde organicamente com o ordenamento jurídico, e se manifesta de modo
mais ou menos rigoroso, na medida exata das exigências sociais (e não além
delas), chegando a converter-se, em relação a determinadas conseqüências
jurídicas, de princípio subjetivo em objetivo, onde a boa-fé deixa de ser
esteada sobre a intenção do sujeito e passa a ser considerada como um mero
comportamento socialmente apreciável. A noção jurídica de boa-fé, assim, se
apresenta estruturada como um modo de ser do espírito, considerado
exclusivamente na objetividade de sua manifestação. Em matéria contratual,
por exemplo, a boa-fé passa a significar a medida das ações subjetivas e,
portanto, um critério normativo de comportamento.
Trata-se da boa-fé, como se vê, considerada como norma de
comportamento, ou seja, norma de conduta, e, portanto, aquilo que mais tarde
viria a ser denominado de boa-fé objetiva. Pode-se dizer que é nesse mesmo
sentido, descrito por Lombardo, que o artigo 110 do nosso Código Civil
estabelece que a manifestação de vontade subsistirá ainda mesmo que o seu
88
José Carlos Moreira Alves. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Roma e America.
Diritto Romano Comune. Rivista di Diritto Dell, integrazione e unificazione del Diritto in Europa e in
America Latina, n° 7/1999, p. 192.
89
Luigi Scavo Lombardo, verbete Buona fede – La Tradizione Canonistica, In: Calasso, Francesco
(Coord.), Enciclopédia del Diritto, V, p. 666.
87
autor tenha feito a reserva mental de não querer aquilo que manifestou, exceto
se a outra parte tinha conhecimento dessa ressalva mental.
Com efeito, o dispositivo em questão informa que a vontade
manifestada, que pode tê-lo sido por meio de palavras ou mediante um
determinado comportamento, e que ao ser externada pôde ser apreendida pelos
demais sujeitos envolvidos no mesmo negócio jurídico, prevalece sobre a
intenção, ou seja, sobre a vontade interna, formada no íntimo do declarante,
mas que por não ter sido exteriorizada não era do conhecimento dos demais
sujeitos.
Na lição de Esser 90, essa eliminação da consideração da intenção
interna confere à verdade jurídica uma dimensão própria, decorrente das
intervenções que os princípios morais operam no Direito. Diz o ilustre jurista
que
“Los principios morales suministran el conveniente enlace entre la norma y
el patrón ético (ethical standard) del sistema jurídico... la eliminación de
cuestiones de itención interna, assegura a la verdad jurídica y a los principios
del enjuiciamiento en derecho una dimensión propia frente a todo
intervencionismo moralizante. Pero el dualismo aparece también en los topoi
determinantes, cuya antítesis má conocida es la de la intención frente al acto,
o la del motivo frente al fin del negocio”.
Essa mesma idéia, ou seja, de que a boa-fé pode ser aferida como
um critério normativo de comportamento, verificando-se tão-somente se o
mesmo se mostra socialmente aceitável (e, por isso, se pode ser considerado
como sendo juridicamente admissível), foi, mais do que desenvolvida, intuída
pelos tribunais alemães muito antes da entrada em vigor do Código Civil
daquele país e antes mesmo de qualquer suporte teórico-doutrinário, como
passamos a examinar.
90
Josef Esser, Principio y norma em la elaboración jurisprudencial Del derecho privado, p. 79.
88
Em 1900 entrou em vigor o Código Civil alemão, que em relação
à boa-fé trazia algumas referências, mas que eram insuficientes para estear
qualquer construção mais precisa e firme acerca da mesma. Apesar disso, no
entanto, e até mesmo de modo surpreendente, vê-se nos tribunais alemães uma
explosão de aplicações concretas da boa-fé, com diversas variantes e
formando padrões determinados.
Surgem, então, algumas das figuras que se constituem no objeto
principal de estudo do presente trabalho, como o venire contra factum
proprium, a exceptio doli, a suppressio, etc., decorrentes da aplicação da boafé aos casos levados aos juízes.
Na realidade, contudo, deve-se alertar que as decisões dos
tribunais não surgiriam “do nada”, sem qualquer embasamento históricocultural. O Direito, dentre outras coisas, é sempre produto de uma evolução
sócio -cultural contínua, e não dá saltos para a frente a partir de um vazio. O
que ocorreu, na Alemanha, foi que desde o começo do século XIX, face ao
incremento das relações comerciais na Europa, começaram a surgir tribunais
comerciais, cujas decisões eram de cunho eminentemente prático, não se
prendendo à legislação estatal. E nessas decisões era muito comum a menção
à boa-fé, e não apenas a subjetiva, referente a um estado de ignorância, mas
também no sentido objetivo, referente a uma forma de conduta ou ao modo de
interpretar os contratos comerciais.
Assim, por exemplo, os tribunais comerciais alemães entendiam
que quando o destinatário de uma mercadoria, por alguma razão, não queria
aceitá-las, ainda que a rejeição decorresse de algum vício ou defeito que as
mesmas tivessem, deveria comunicá-lo ao vendedor o mais rápido possível,
pois a demora feria o comportamento de boa-fé que se poderia esperar do
comprador.
89
Como se vê, nada mais é do que o instituto que posteriormente
viria a ser denominado de suppressio, ou seja, a demora tamanha para o
exercício de um direito que chega a ferir a boa-fé, levando à perda da
possibilidade de exercer esse mesmo direito de modo tão tardio. Convém
lembrar que ainda não estava em vigor o Código Civil alemão, e por isso não
havia qualquer previsão de prazo para redibir contratos em virtude de defeitos
da coisa.
Essas decisões dos tribunais comerciais, no entanto, não
encontravam qualquer apoio doutrinário, notadamente no que se refere à boafé como uma norma de comportamento (objetiva) que, como vimos, estava
ainda praticamente à margem das considerações teóricas dos juristas do século
XIX. Assim, a boa-fé entendida como uma norma de comportamento começa
a despontar muito mais como a conseqüência de decisões em casos concretos
do que como o resultado de um estudo científico consistente. Aliás, desde logo
se adianta que os contornos jurídicos atuais da boa-fé objetiva se originaram
da construção pretoriana dos alemães 91, sendo depois aperfeiçoados pela
doutrina moderna.
Antes do Código Civil, em 1861, foi publicado o Código
Comercial alemão, mas o mesmo não trazia um único artigo referente à boafé, possivelmente em virtude da timidez doutrinária sobre o assunto. A
jurisprudência comercial, no entanto, não se abalou com isso, e continuaram a
proliferar as decisões que traziam a clara rejeição ao exercício de posições
jurídicas que, por ofenderem a boa-fé de terceiros, se mostrassem
inadmissíveis.
91
Bruno Lewicki, Panorama da boa-fé objetiva. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito
Civil-Constitucional, pp. 61-62.
90
De qualquer forma, os tribunais comerciais foram incorporados
aos tribunais civis em 1879, e por isso essas decisões tomadas pelos primeiros
foram importantes para que os tribunais alemães em geral, depois da vigência
do Código Civil, passassem a também levar em conta a boa-fé para o direito
privado em geral, o que acabou por revigorar as discussões doutrinárias, e
levou aos estudiosos do Direito a necessidade de lidar com conceitos de
conteúdo que em abstrato se mostravam incompletos, e que por isso não
poderiam ser delimitados sem uma situação concreta de aplicação.
De modo mais específico, os juristas passaram a se debruçar
sobre situações onde se falava em “conduta conforme a boa-fé”, mas sendo
que o significado completo de tal conduta não poderia ser fixado
aprioristicamente, mas tão-somente no exame de um problema concreto.
O grande problema, no entanto, continuava a persistir, e consistia
no fato de que a boa-fé, sendo um produto da jurisprudência, surge fortemente
ligada às situações reais, ou seja, com os seus contornos formados a partir de
casos concretos, mas ficando longe do núcleo do sistema jurídico, onde podem
ser encontradas as idéias centrais de todo o sistema.
Ao serem transportados esses elementos jurisprudenciais para o
núcleo do sistema (o que se coaduna com a metodologia da escola histórica,
como vimos acima), os mesmos ficam isolados das peculiaridades dos casos
concretos que os levaram a surgir, e aí se tornam meras referências sem
sentido. Em outras palavras, as decisões tomadas para um caso particular
encontram grande dificuldade para que possam ser transformadas em
conceitos genéricos, em princípios gerais aplicáveis a todo o sistema.
O Código Civil alemão trouxe disposições referentes à boa-fé
subjetiva e à boa-fé objetiva (embora tais denominações ainda não fossem
usadas). Quanto à primeira, conceituou-a de modo negativo, estabelecendo
91
que “o adquirente não está de boa-fé quando lhe seja conhecido ou, em
conseqüência de grande negligência, desconhecido, que a coisa não pertence
ao alienante” (§ 932, 2), além de mencioná-la repetidas vezes, em diversas de
suas disposições.
O BGB, como se vê, valeu-se da noção de ignorância qualificada,
ou seja, levou em conta a desculpabilidade da ignorância, rejeitando a boa-fé
nos casos em que a mesma decorresse de grande negligência do adquirente92.
Em relação à boa-fé objetiva, no entanto, claramente diferenciada
da subjetiva (até mesmo por expressões lingüísticas diferentes, como já
vimoa), não trouxe o Código Civil alemão qualquer conceito, limitando-se a
apresentar regras de conteúdo impreciso, que requeriam preenchimento pelo
juiz. Assim, por exemplo, o BGB estabeleceu que “os contratos interpretamse como o exija a boa-fé” (§ 157) ou que “o devedor está adstrito a realizar a
prestação tal como o exija a boa-fé” (§ 242).
A questão é que a cultura jurídica alemã imediatamente anterior
ao Código Civil, como vimos, era no sentido de que a boa-fé (objetiva)
enquanto norma de comportamento só poderia ser entendida a partir de
elementos concretos, situados fora do núcleo do sistema. E é evidente que essa
cultura se refletiu no BGB, e quando a boa-fé foi codificada, ou seja, quando
se tentou levá-la para o centro do sistema, não foi possível se desvencilhar
dessa sistemática, continuando a ser necessárias noções que não podiam ser
contidas na codificação, pois eram obtidas de situações reais.
92
Na verdade, como regra geral, pode-se apontar que apenas a ignorância daquele que se portou de
modo diligente é que deve ser entendida como boa-fé, pois se o desconhecimento for decorrente de culpa do
próprio sujeito, que se portou de modo negligente, não se poderá mais falar em estado de boa-fé subjetiva.
Nesse sentido, aponta Delia Rubio que “sólo el error excusable genera uma situacion de buena fé; es decir
que solo tiene buena fé el sujeto que actúa diligentemente”. Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el
principio general em el derecho civil, p. 92.
92
Trata-se, na realidade, como ensina Esser93, de uma tradução da
ética para o plano jurídico, sendo que essa impossibilidade de se obter um
conceito puramente jurídico, liberto da noção ética, contradiz a errônea idéia
de autonomia das regras e figuras jurídicas positivas diante dos elementos
“metajurídicos”.
E alerta, ainda, o autor, na mesma obra e local, que não se deve
subestimar a importância desse processo de fusão entre o direito e a moral94 (a
ética), não se adotando nem uma fé cega na lei, nos moldes positivistas, e nem
um desesperado e irreal dualismo entre lei e ética. Se, por um lado, os
princípios morais fornecem o liame entre a norma e o padrão ético de um
sistema jurídico, por outro, não interferem na construção institucional e nem
na estabilidade do direito positivo. Ao mesmo tempo, contudo, o dualismo
também se faz presente nas considerações tópicas, em cada situação concreta a
ser examinada, como por exemplo no confronto entre a intenção (elemento
psicológico) e o ato (elemento externo).
A boa-fé objetiva, referente à conduta dos sujeitos (e não à
ciência sobre algum fato), dessarte, foi incluída no Código Civil alemão
exatamente da mesma forma como era vista pelos tribunais comerciais, ou
seja, como um reforço substancial aos contratos e às obrigações em geral, e
deixou muito clara a incapacidade do sistema de prever todas as soluções para
os casos da vida real.
93
Josef Esser, Principio y norma em la elaboración jurisprudencial Del derecho privado, p. 78. “No
debemos subestimar la importancia de este proceso de fusión del ‘derecho’ y la moral en el plano de lo que
en apariencia es pura técnica: ni para la superación de una positivista fe ciega en la ley, ni para la
superación de un desesperado e irreal dualismo de ley y éteica. Sería nefasto que los conceptos y argumentos
jurídicos fueran erigidos en categorías independientes: el método jurídico quedaría estéril sin la
incorporación de aquellas verdades morales reducidas a evidencias de fuerza lógica o social”.
94
Sobre essa interpenetração entre a moral e o direito, diz Norberto de Almeida Carride que “a boa-fé é
essencialmente uma atitude de cooperação, destinada a atender de modo positivo à expectativa da outra
parte. O princípio da boa-fé é o caminho pelo qual a moral penetra no direito”. Cf. Norberto de Almeida
Carride, Vícios do Negócio Jurídico , p. 39.
93
Foi por essa razão, mencionada no parágrafo anterior, que o
codificador alemão optou pela adoção de cláusulas gerais, abertas, que estão a
requerer um desenvolvimento em cada caso concreto, de modo a que sirvam
para atender situações diversas, muitas delas nem ao menos imaginadas pelo
legislador, e sempre temperadas pelas circunstâncias concretas do problema
que está sendo analisado 95.
Um dos primeiros problemas a ser enfrentado, na aplicação da
boa-fé como uma cláusula geral, foi o que se referia ao seu âmbito de
aplicação, ou seja, se a mesma apenas poderia ser aplicada quando houvesse
lacuna contratual e legal, vale dizer, quando as partes não tivessem regulado a
questão ao elaborar o contrato e não houvesse disposição legal específica e
adequada para o caso, ou se, ao contrário, o campo de abrangência da boa-fé
seria não apenas o de integração das lacunas, mas deveria se estender para
todas as situações onde surgissem, nas obrigações, uma posição jurídica
inaceitável de um dos sujeitos, que agredisse a noção de lealdade, de justiça
ou de equilíbrio. A boa-fé, portanto, não seria apenas um meio de integração,
mas também de controle das obrigações, e foi esta segunda posição que desde
os primórdios do BGB acabou por prevalecer.
A boa-fé objetiva, portanto, como se vê, busca obter um resultado
justo em cada situação, sendo que a noção do que é justo deve ser apreendida
alhures, eis que não contida na própria boa-fé. Não se trata, pois, de uma idéia
autônoma, completa em si mesma, mas sim de uma noção que precisa ser
95
Como ensina Ana Prata, “a intervenção do juiz tende a ser admitida com uma latitude sempre maior
e ganha condições de eficácia pelo tratamento teórico das chamadas cláusulas gerais, nos usos das quais
aquela se processa. Com maior ou menor resistência, a doutrina foi sendo forçada a admitir que em muitos
casos só face às circunstâncias concretas se poderia formar e emitir um juízo de valor da situação,
informado obviamente pelos princípios jurídicos que integram as referidas cláusulas gerais”. Cf. Ana Prata,
A tutela constitucional da autonomia privada, p. 56.
94
complementada pelo aplicador da regra em cada situação específica, levandose em conta as peculiaridades de tal situação.
Têm-se aí, portanto, regras que divergem das demais regras
jurídicas, uma vez que não comportam aplicação direta e imediata, não
comportam a pura e simples subsunção. Ao contrário, as normas referentes à
boa-fé como norma de conduta demandam a sua concretização, pois de nada
vale o legislador dizer, por exemplo, que o devedor deve realizar sua prestação
conforme a boa-fé, a menos que o juiz, no caso concreto, possa completar a
regra com a idéia sobre o que seria, naquele caso específico, esse “prestar
conforme a boa-fé”.
No caso real, em regra não se apresenta muita dificuldade para
que o juiz possa apreender qual é o sentido da boa-fé, ou seja, qual seria a
melhor solução para que fosse mantido o equilíbrio entre os sujeitos
envolvidos. No entanto, essa solução estará invariavelmente impregnada de
elementos materiais, estranhos à estrutura do sistema jurídico, e na hora de
transplantá-la para esse mesmo sistema, de modo a ser sistematizada – o que
se mostra indispensável para que o sistema seja juridicamente seguro –, a
tarefa se torna impossível, a não ser com o uso de expressões metajurídicas,
tais como eqüidade, justiça social, equilíbrio, comportamento de pessoa
honesta, etc.
Uma coisa pode ser tida como certa: na aplicação da boa-fé é
indispensável que se lance mão de elementos que são necessariamente
externos ao direito positivo, pelo simples fato de que este não tem como
contê-los em uma regra legal. A questão que se coloca é sobre quais são esses
elementos, se podem ser buscados fora do direito ou se, ao contrário, os
mesmos também devem ser buscados junto aos elementos jurídicos.
95
No entanto, é importante que se destaque que a idéia não é a de se
determinar previamente os elementos concretos específicos, pois é evidente
que os mesmos só poderão ser determinados de modo tópico, ou seja, na
própria situação problemática concreta. O que se quer, portanto, é a adoção de
parâmetros que indiquem ao operador do direito, no caso concreto, como deve
ser feita a busca, quais são os elementos a serem pesquisados e levados em
conta para a aferição dos elementos específicos do caso real.
Nessa busca de elementos jurídicos que pudessem complementar
a boa-fé, surge a idéia de que o essencial era a valoração dos interesses96 que
estivessem em jogo, e não a simples consideração de conceitos aos quais se
pudesse fazer a subsunção. Assim, nos casos em que o juiz não tivesse como
fazer a subsunção lógica, como ocorria na aplicação das regras sobre a boa-fé,
a lei deveria atribuir ao juiz a avaliação e ponderação dos interesses que
estavam envolvidos no caso concreto, sendo que a valoração de tais interesses
deveria ser feita conforme critérios ou juízos de valor previamente fixados
pelo próprio legislador. O grande problema era que não havia como fixar tais
critérios, e assim o impasse se mantinha.
Além disso, esse sistema tinha a desvantagem de ser fechado em
si mesmo, ou seja, as soluções dependeriam dos critérios internos, fixados na
própria norma legal, e não dos fatores externos, culturais, o que traria as
conseqüentes dificuldades de absorção de situações novas, e na verdade o juiz
continuaria obrigado a proceder à subsunção, sempre submetendo o caso
concreto à previsão legal. Assim, quando o juiz se deparasse com uma
situação que até então não fora imaginada pelo legislador, certamente não
encontraria na lei os critérios adequados para resolvê-la, e não poderia fazer
96
Pontes de Miranda resume a questão dizendo que “a boa-fé é protegida à custa de alguém (e.g.,
verdadeiro titular); de modo que o direito pesa, aí, respeitáveis interesses”. Pontes de Miranda, Tratado de
Direito Privado, v. 1, p. 193
96
uso dos vetores sociais para orientá-lo na solução adequada e na valoração dos
interesses envolvidos.
Na realidade, como ensina José Luis de Los Mozos97, a antinomia
metodológica entre a jurisprudência de conceitos e a jurisprudência de
interesses, assim como entre as correntes que deram continuidade a essa
contraposição entre positivismo e formalismo de um lado, e naturalismo e
realismo do outro, está na base da questão da assimilação do princípio da boafé.
A jurisprudência dos conceitos parte da idéia de que uma dada
ordem jurídica constitui um sistema fechado, independente da realidade social
das relações da vida, e por isso sustentava que seria sempre possível obter uma
decisão correta apenas por meio de uma operação lógica, consistente na
subsunção da situação real à valoração de um princípio geral dogmático, ou
seja, os conceitos não teriam apenas valor ordenador do sistema, mas
representariam uma realidade direta, sendo que sua aplicação lógica só
poderia conduzir a uma solução justa 98.
É que embora o positivismo científico (ou pandectismo) também
se valesse dos princípios gerais para filtrar a realidade e examiná-la à luz do
mundo fechado do Direito, continua de Los Mozos, foi quando a consciência
jurídica se tornou mais realista, buscando considerar, nas decisões, os
conteúdos econômicos e sociais, e dando origem à jurisprudência de interesses
(denominação usada por Heck) ou jurisprudência integradora (Betti), que se
passou a entender que em toda interpretação de uma norma se produz um
processo valorativo, semelhante ao que se verifica na criação do Direito, e
portanto atribui função criadora ao jurista.
97
98
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 15-16.
Franz Wieacker, Historia do Direito Privado Moderno, pp. 494-495.
97
Dessa forma, ainda que a concepção do Direito, que se mostrou
própria do pandectismo ou do formalismo, não tenha servido de impedimento
para a consideração dos princípios gerais, na atividade interpretativa do
jurista, por outro lado é certo que foi renovado o significado desses princípios
nessa mesma interpretação, a partir dessa visão mais realista, surgindo uma
concepção mais substancial (e menos formal) do Direito, cuja ênfase se dá,
muito mais do que em uma consideração axiomática do texto legal, pela
expressão de uma justiça material, funcionalizada de modo específico para os
problemas jurídicos concretos, e por isso capaz de proporcionar uma maior
segurança no seu manejo99.
Neste ponto, convém ressaltar a enorme diferença da abordagem
feita pelos juristas alemães, em relação àquela que é feita pelos franceses 100.
Estes, como já vimos, buscam o “estado de espírito” do sujeito, enquanto a
jurisprudência alemã entende que a apreciação segundo a boa-fé só pode ser
feita segundo critérios objetivos, considerados dentro de um caso concreto,
não havendo como deixar de levar em conta os elementos objetivos desse
mesmo caso. Essa diferença se reflete até mesmo na linguagem utilizada: o
juiz francês diz que um sujeito está ou não está de boa-fé, enquanto o juiz
alemão determina se foi violado ou respeitado o princípio da boa-fé101.
99
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 17-18.
Tanto o Código Civil francês quanto o alemão, em maior ou menor grau, sofreram influência do
direito romano; além disso, o Código Civil francês serviu de fonte para o alemão. Por que, então, tanta
diferença? Na verdade, apesar dessas origens comuns, na época da discussão sobre a codificação alemã, o
Império alemão encontrava-se sobre influências normativas variadas: em uma parte do território era vigente o
Código da Prússia, em outra era o Código Civil francês, e em outra, ainda, era o direito comum alemão,
conjugado com os costumes locais. A influência à qual foram mais sensíveis os elaboradores do código
alemão foi a dos direitos alemães regionais (vê-se, aí, a influência da escola histórica), sendo as disposições
do Código Civil francês adotadas apenas na medida em que se harmonizavam com esses direitos particulares.
Cf. Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, pp. 127-129.
101
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, pp. 80-81, n°s 293 e 296. E sobre essa diferença entre os juristas franceses e alemães, prossegue a
autora dizendo que “Le juge doit-il prendre em considération uniquement les éléments extérieurs et apparents
d’une affaire ou bien peut-il scruter la volonté interne des parties et porter sur elles une sanction? Sur ce
100
98
Mas retornemos à análise feita por De Los Mozos.
A chamada jurisprudência de interesses, portanto, prossegue o
respeitado jurista espanhol, funcionou como a grande irrupção do pensamento
problemático no pensamento codificador, uma vez que o interesse é pura e
simplesmente um topos, e tornou claro o valor de uma abordagem pragmática,
que desenvolvesse uma lógica problemática, vale dizer, voltada para a
interpretação objetiva dos problemas concretamente considerados. Dito de
modo mais direto, “la buena fe es um principio problematico, um verdadero
topos, llamado a actuar en cada momento de la interpretación”102.
De modo geral, pode-se observar que, na Alemanha, o Código
Civil foi um tanto quanto tímido, em relação à boa-fé objetiva, mas o mesmo
não se pode dizer em relação à jurisprudência do direito privado, que de modo
acelerado desenvolveu-se intensamente em relação ao tema, muitas vezes sem
apoio (ou mesmo com a hostilidade) da doutrina, dando origem a figuras que
hoje se mostram de larga aceitação, como já vimos. Da conjugação do uso de
cláusulas gerais com essa doutrina que propugnava a ponderação e a valoração
dos interesses envolvidos em cada caso concreto, acabou por ser realçada a
inadequação de um juiz que funcionasse apenas como a boca da lei, fazendo
de modo mecânico e automático a subsunção.
Contudo, o fato do desenvolvimento da boa-fé ter se dado quase
que exclusivamente em função da jurisprudência, que não foi acompanhada
pela Ciência do Direito, cobrou o seu preço, pois o seu desenvolvimento se
deu sem que fosse obedecida qualquer metodologia científica, o que dificultou
a captação do verdadeiro sentido da boa-fé e a sua generalização para o
atendimento de situações novas com segurança jurídica.
point, les cceptions s’opposent, les juges français accordant une grande faveur à l’itention au sens chrétien
du terme, tandis que les juristes allemands ont rejeté ouvertement une telle recherche”. Idem, p. 81, n° 297.
102
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 36-37.
99
A falta de uma noção científica deu origem a uma linguagem
metajurídica, recheada de termos pomposos e empolados, mas que em regra
não conseguem ganhar significado fora dos casos reais 103. Os tribunais,
contudo, têm encontrado aplicações concretas com esteio na boa-fé, apesar de
não terem sido acompanhados pela metodologia científica, problema do qual
ainda hoje se ressente o estudo da matéria.
1.6. A boa-fé objetiva e seu aspecto normativo. Tendência expansionista.
Como vimos, no item anterior, a idéia sobre a boa-fé, que entre os
romanos significava o desconhecimento de uma circunstância de fato ou da
existência de um impedimento à aquisição da propriedade pelo possuidor,
evoluiu nos tribunais da Alemanha em virtude de situações concretas com que
as Cortes se depararam, passando a também conter o significado de uma
norma de conduta a ser observada pelo sujeito de um negócio jurídico. Essa
evolução, no entanto, foi surgindo de modo assistemático e casuístico, sem
que houvesse um eixo central desenvolvido pela doutrina, em torno do qual
pudessem gravitar conceitos genéricos sobre o tema.
Com efeito, entre os tribunais germânicos a boa-fé foi mais
intuída do que propriamente desenvolvida, tendo isso ocorrido antes mesmo
de haver qualquer previsão legislativa sobre a mesma. De qualquer modo,
como também já comentamos, supra, posteriormente, com a entrada em vigor
do Código Civil alemão (BGB), diversos dispositivos passaram a tratar de
modo explícito acerca da boa-fé, inclusive causando alguma perplexidade
103
Na verdade, como bem adverte Delia Rubio, trata-se de uma característica dos autores alemães essa
imersão constante nas peculiaridades de cada caso concreto. No caso específico do estudo da boa-fé, os usos
em voga no comércio não funcionaram apenas como um elemento integrador ou interpretativo dos contratos,
mas como o próprio caminho para a identificação da boa-fé como critério normativo. Delia Matilde Ferreira
Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 133.
100
inicial em relação a qual seria o dispositivo mais adequado para estear o
entendimento da boa-fé como uma norma comportamental (veja-se, adiante, o
item 2.2).
A partir do BGB (art. 242 104), a boa-fé passou a constar
expressamente em vários Códigos Civis, generalizando-se a sua previsão legal
nos diversos ordenamentos, embora geralmente vinculada especificamente ao
campo das relações obrigacionais e, no mais das vezes, sem que se captasse a
verdadeira essência dos dispositivos que encontravam seu apoio nessa figura
da boa-fé. Com efeito, a menção à boa-fé pode ser encontrada, dentre outros,
nos artigos 187 105 e 422 106, do Código Civil brasileiro, no artigo 1.071107, do
Código Civil argentino, no artigo 1.258, do Código Civil espanhol108, nos
artigos 1.337 109 e 1.375110, do Código Civil italiano, no artigo 227111, do
Código Civil português, etc., e assim por diante, em praticamente todas as
codificações civis da atualidade.
O que facilmente se observa, mesmo a partir da perfunctória
análise dos diversos dispositivos mencionados, é que na mesma linha de
decisões que se firmou nos tribunais germânicos, a boa-fé superou a sua
104
105
106
107
108
109
110
111
§ 242. o devedor está obrigado a executar a prestação como a boa-fé, em atenção aos usos e
costumes, o exige”. Tradução de Souza Diniz, Código Civil alemão.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente
os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato como em sua
execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Art. 1.071. La ley no ampara el ejercicio abusivo de los derechos. Se considerará tal al que contraríe
los fines que aquélla tuvo em mira al reconocerlos o al que exceda los límites impuestos por la buena fe, la
moral y las buenas costumbres.
Art. 1.258. Los contratos se perfeccionan por el mero consentimiento y desde entonces obligan, no
sólo al cumplimiento de lo expressamente pactado, sino también a todas lãs consecuencias que, según su
naturaleza, sean conformes a la buena fe, al uso y a la ley.
Art. 1.337. As partes, no desenvolvimento das tratativas e na formação do contrato, devem
comportar-se segundo a boa-fé.
Art. 1.375. O contrato deve ser executado segundo a boa-fé.
Art. 227°. Culpa na formação dos contratos.
1. Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na
formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente
causar à outra parte.
101
vinculação inicial à vontade ou à ciência do sujeito, vale dizer, superou o seu
caráter inicial eminentemente subjetivo, e passou a ser enfocada sob um
ângulo objetivo, como uma norma comportamental, passando a ser tratada
como uma conduta a ser observada por esse mesmo sujeito. Dito em outras
palavras, a boa-fé deixa de ser apenas um elemento interno, íntimo e
psicológico do sujeito do negócio jurídico, passando a ser considerada
também em seu aspecto de elemento externo, vale dizer, como uma norma que
estabelece comportamentos que devem ser observados por tal sujeito.
Como acertadamente observa De Los Mozos112, referindo-se ao
artigo 1.258, do Código Civil espanhol, a boa-fé passa a ser colocada em
plano idêntico ao da lei, o que significa que se pretendeu atribuir à mesma
uma função dispositiva, cuja natureza é objetiva, desvinculando-se da vontade
do sujeito. A arguta observação pode ser com tranqüilidade estendida para
diversos dispositivos legais existentes em outros ordenamentos.
Assim, por exemplo, no Código Civil brasileiro os artigos 187 e
422 claramente indicam a boa-fé como uma norma de comportamento, capaz
de estabelecer limites para a conduta do sujeito que exerce um direito
subjetivo ou que, de modo mais específico, figura como sujeito de um negócio
jurídico. Trata-se, portanto, como mencionado no parágrafo anterior, de um
elemento externo ao sujeito, e por isso desvinculado de sua vontade, vale
dizer, tendo caráter objetivo e despido de subjetividade.
E não se pode deixar de observar que o legislador brasileiro foi
ainda um pouco mais longe, e expressamente referiu-se ao princípio da boa-fé,
no artigo 422, sendo certo que andou muito bem ao fazê-lo. É que a boa-fé, de
fato, mais do que uma norma comportamental de aplicação específica para o
campo dos contratos, se entranha pelo ordenamento jurídico em geral,
112
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 45.
102
balizando os negócios jurídicos nos mais diversos campos do direito, inclusive
espraiando-se para fora do direito privado.
É nesse sentido a lição de Américo Plá Rodriguez 113, ao
mencionar que “a boa-fé não é uma norma – nem se reduz a uma ou mais
obrigações – mas é um princípio jurídico fundamental, isto é, algo que
devemos admitir como premissa de todo o ordenamento jurídico. Informa a
sua totalidade e aflora de maneira expressa em múltiplas e diferentes normas,
ainda que nem sempre se mencione de forma explícita... Por tal razão, podese dizer que este princípio está dotado de singular plasticidade”.
Parece-nos já completamente superada, portanto, a doutrina
segundo a qual “a proteção da boa-fé se veio a impor, excepcionalmente, ao
legislador, só se atende a ela onde há regra jurídica que a tutela. Não se deve
ir além das espécies previstas, a título de interpretação das regras jurídicas
113
Américo Plá Rodriguez, Princípios de Direito do Trabalho, pp. 420-421. Mas não se pode deixar,
aqui, de cometer a ousadia de fazer pequeno reparo à lição do festejado jurista uruguaio. É que, embora
concordemos plenamente com a idéia de generalidade expressa no texto transcrito, ou seja, com o sentido de
que a boa-fé se estende por todo o ordenamento jurídico, e não apenas pelo campo mais estreito do direito
obrigacional – extensão essa, aliás, defendida expressamente em diversas passagens do presente estudo –
parece-nos equivocada e já superada a distinção feita pelo mestre entre norma e princípio. Com efeito, para
sustentar que a boa-fé é um princípio, começa Plá Rodriguez por afirmar que “a boa-fé não é uma norma ”.
Ocorre que os princípios nada mais são do que um tipo de norma, ou seja, “los principios generales no son
sino normas fundamentales o generalísimas del sistema, las normas más generales... son normas como todas
las otras”. Cf. Norberto Bobbio, Teoría General del Derecho, p. 239. No mesmo sentido o entendimento de
Naria Helena Diniz, que ao se referir às discussões doutrinárias sobre se os princípios gerais do direito podem
ou não ser considerados como norma, afirma de modo enfático que é “veementemente, contra a opinião que
não os considera como normas”. Cf. Maria Helena Diniz, As lacunas no Direito, p. 231. Para Ricardo
Lorenzetti, a doutrina moderna é unânime em afirmar que os princípios são normas, embora reconheça que
não é simples determinar a que tipo de normas pertencem. Prossegue e conclui o ilustre Professor da
Universidade de Buenos Aires dizendo que se trata de normas fundamentais, uma vez que os princípios
apresentam todas as funções que podem ser atribuídas às normas fundamentais, dentre as quais destaca: a)
função integradora (preenchimento de lacunas); b) função interpretativa (orientação ao intérprete); c) função
delimitadora (imposição de limites às atuações legislativa, jurídica e negocial); d) função fundante (um valor
que informa o ordenamento e permite criações pretorianas). Cf. Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do
Direito Privado, pp. 317 -319. Em sentido contrário, contudo, afirma Oliveira Ascensão, de modo categórico,
que “os princípios não são regras”, esclarecendo, em nota de rodapé, que usou o termo regras no mesmo
sentido de normas. Cf. José de Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral, p. 418.
103
especiais” 114. Muito pelo contrário, há uma claríssima tendência de contínua
expansão da seara na qual a proteção à boa-fé se mostra aplicável, abarcando
vorazmente cada nova situação que venha a surgir, de modo a dominar todo o
espectro da ciência jurídica.
Com efeito, como veremos nos dois itens seguintes (vejam-se,
adiante, os itens 1.7 e 1.8), a boa-fé também serve como fonte normativa em
relação ao direito público (por exemplo, nas relações da Administração
Pública com os administrados) e nos demais ramos do direito privado, como o
Direito do Trabalho, o Direito de Família, o Direito das Sucessões, etc.
E em todos esses campos do ordenamento jurídico, na verdade, a
boa-fé desenvolve múltiplas funções (sobre essa multifuncionalidade da boafé veja-se, adiante, o item 1.8), atuando não apenas como uma norma em si
mesma, mas também como ponto de referência para o legislador, que para
diversas
situações
costuma
elaborar
normas
legais
que
lhes
são
especificamente destinadas (é o caso, por exemplo, dos artigos 170 115 e 473,
parágrafo único 116, ambos do Código Civil brasileiro).
Pode-se, igualmente, encontrar a boa-fé como parâmetro a ser
observado pelo juiz, que no caso concreto, ao extrair a vontade das partes a
partir do conteúdo do negócio jurídico, deverá examinar-lhe as cláusulas e o
comportamento à luz do princípio da boa-fé, ou, ainda, pelo intérprete da
norma legal ou contratual, que haverá de completar-lhe as lacunas a partir da
114
Nesse sentido, em lição que, no passado, já foi admitida como correta, mas que hoje, ao nosso sentir,
se encontra irremediável e inegavelmente superada, Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, tomo 1,
p. 193.
115
Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o
fim, a que visavam as partes, permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.
116
Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera
mediante denúncia notificada à outra parte.
Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos
consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo
compatível com a natureza e o vulto dos investimentos.
104
consideração sobre o que seria o comportamento de boa-fé para aquela
situação, etc.
Assim, por exemplo, sabendo-se que os sujeitos, em um
determinado
negócio
jurídico,
jamais
conseguirão
prever
todas
as
circunstâncias fáticas que podem surgir na vida real, é precisamente a partir da
consideração e da aplicação do princípio da boa-fé que o juiz poderá sopesar
quais são as normas mais adequadas para reger essa situação inesperada,
concretizada a partir de circunstâncias que não haviam sido previstas pelos
sujeitos. Um exemplo típico, que bem espelha essa possibilidade, é o da
conversão do negócio jurídico117 nulo, que no nosso ordenamento jurídico
encontra previsão expressa no artigo 170, do Código Civil, e que vale tanto
para a conversão própria ou substancial quanto para a imprópria ou formal118.
No sentido mencionado no parágrafo anterior, considere-se, à
guisa de ilustração, a hipótese de um contrato de compra e venda de um
imóvel cujo valor supera trinta vezes o salário mínimo, sendo que o contrato
foi celebrado pelas partes mediante instrumento particular. A toda evidência o
contrato será nulo, uma vez que foi descumprida a formalidade expressamente
exigida pela norma legal, como se vê da combinação entre os artigos 108 e
166, IV, ambos do Código Civil brasileiro.
117
Nesse sen tido, José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 47.
Explica Orlando Gomes que a conversão própria se dá nesse caso do exemplo apresentado no texto
acima, ou seja, quando as partes celebram um negócio que vem a se revelar nulo, em virtude de defeito de
forma, mas que apresenta as características de um outro negócio, que também atende ao que as partes
pretendiam e cujas exigências formais foram atendidas; a conversão imprópria, por sua vez, ocorre quando
um negócio pode ser celebrado por diversas formas, e as partes resolvem adotar a mais rigorosa de todas, mas
o fazem de modo defeituoso, podendo, contudo, ser considerado o negócio como tendo sido celebrado pela
forma menos rigorosa. Seria o caso, por exemplo, da compra e venda de um imóvel cujo valor não supera 30
vezes o salário mínimo, e que por isso poderia ter sido celebrada mediante instrumento particular (art. 108, do
Código Civil), mas os contratantes resolveram fazê-lo por escritura pública. Esta, no entanto, vem a se revelar
nula (por ter sido afastado o tabelião, por exemplo), mas mesmo assim o contrato será válido como se tivesse
sido celebrado mediante instrumento particular. Note-se que não há uma conversão, propriamente dita (e por
isso é que se denomina de imprópria), pois os efeitos que serão gerados serão os do próprio contrato que as
partes queriam celebrar, apenas com a consideração de outra forma. Cf. Orlando Gomes, Contratos, p. 217.
118
105
No entanto, é bastante razoável que se entenda que efeito
semelhante ao que as partes pretendiam obter, com o contrato de compra e
venda que se mostra nulo, poderia ser obtido pela celebração do contrato de
promessa de compra e venda, sendo que este último pode ser validamente
celebrado mediante instrumento particular.
Logo, nessas condições, se do instrumento particular utilizado
para a celebração do contrato nulo constarem todos os elementos necessários,
a compra e venda, embora nula, deverá ser convertida em contrato de
promessa de compra e venda, pois se deverá entender que assim teriam
procedido as partes, caso tivessem desde logo previsto a ocorrência da
nulidade contratual.
Em outras palavras, na situação acima descrita entender-se-á que
as partes celebraram, validamente, uma promessa de contratar, futuramente, a
compra e venda do imóvel, o que ocorrerá quando for lavrada a escritura
pública referente ao negócio e efetuado o necessário registro junto ao Cartório
do Registro Imobiliário.
Da mesma forma, ainda no que se refere à mencionada conversão
do negócio jurídico, vejamos situação onde a mesma poderia ocorrer fora do
campo das obrigações, confirmando, portanto, o que acima dissemos, no
sentido de que a regência do princípio da boa-fé se espraia por todo o direito,
não se limitando apenas ao campo das relações obrigacionais.
Suponha-se que uma determinada pessoa, ao elaborar seu
testamento, decide fazê-lo com uma única disposição testamentária, através da
qual decide legar a um amigo uma jóia de pequeno valor, que é de seu uso
pessoal e que sempre foi muito admirada pelo amigo que agora está sendo
indicado como beneficiário.
106
O testamento, no entanto, foi celebrado pela forma particular, sem
que estivesse presente qualquer testemunha. Ou, então, se testemunhas havia,
suponha-se que a disposição de última vontade tenha sido escrita em língua
estrangeira, sendo que esta não é compreendida pelas testemunhas que
presenciaram o ato. Em qualquer desses casos, a toda evidência o testamento
será nulo, por ter sido descumprida solenidade essencial, conforme prevêem
os artigos 1.876, § 1°, e 1.880119, ambos do Código Civil brasileiro.
Apesar da nulidade, vale dizer, embora nula seja essa disposição
de última vontade enquanto testamento, a mesma poderá ser aproveitada como
codicilo, por atender plenamente à vontade do testador e conter os requisitos
essenciais do mesmo, como se verifica no artigo 1.881 120, do mesmo Código
Civil.
Como se vê, portanto, nas duas situações acima exemplificadas, o
que se tem é a utilização do princípio da boa-fé como uma forma de regular
situações que os sujeitos não haviam previsto inicialmente, por ocasião da
celebração do negócio jurídico, e com isso se consegue quebrar o rigor da lei
pensada em abstrato, interpretando-a de modo mais maleável para que, sem
causar qualquer prejuízo a quem quer que seja e sem violação de norma de
ordem pública, sejam aproveitadas as vontades desses mesmos sujeitos.
Nessa função de integração da vontade das partes, ou seja, nesse
papel de criar as normas que as partes, ao ajustarem sua vontade negocial,
119
120
Art. 1.876. O testamento particular pode ser escrito de próprio punho ou mediante proces so
mecânico.
§ 1°. Se escrito de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade seja lido e assinado por
quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever.
Art. 1.880. O testamento particular pode ser escrito em língua estrangeira, contanto que as
testemunhas a compreendam.
Art. 1.881. Toda pessoa capaz de testar poderá mediante escrito particular seu, datado e assinado,
fazer disposições especiais sobre o seu enterro, sobre esmolas de pouca monta a certas e determinadas
pessoas, ou indeterminadamente, aos pobres de certo lugar, assim como legar móveis, roupas ou jóias, de
pouco valor, de seu uso pessoal.
107
deixaram de criar, a boa-fé desempenha relevante papel em relação aos
contratos inominados. Convém recordar que o nosso Código Civil, em seu
artigo 425, diz ser lícito às partes celebrar contratos atípicos, desde que
respeitadas as normas gerais fixadas na lei. Ora, em se tratando de contrato
que não recebeu tratamento legislativo específico, torna-se mais provável que
as partes contratantes deixem de regular alguns dos desdobramentos do
mesmo, e por essa razão será necessário que se faça o complemento das
normas contratuais, ou seja, a sua integração, o que será feito com esteio no
princípio da boa-fé.
Por outro lado, em relação à interpretação dos contratos (e dos
negócios jurídicos em geral, por isso que a regra, acertadamente, foi inserida
na parte geral do Código Civil), a boa-fé representa importantíssimo critério a
ser observado pelo intérprete. Aliás, não se pode deixar de observar que o
Código Civil, de modo expresso, determinou que a interpretação dos negócios
jurídicos (em geral, repete-se, e não apenas os contratos) seja feita conforme a
boa-fé e os usos do lugar de sua celebração (art. 113). E, esclarecendo em
parte o significado de tal disposição, diz o artigo seguinte, 114, que os
negócios jurídicos benéficos devem ser interpretados restritivamente121.
121
Não se pode deixar de observar o quanto o nosso Código Civil foi econômico, em relação às regras
de interpretação do negócio jurídico. No entanto, parece-nos que também não se pode deixar de observar o
exagero que se verifica em alguns Códigos, que traçam de modo minucioso as regras de interpretação, de
certo modo engessando a atividade do juiz. É o caso, por exemplo, do Código Civil colombiano, que chega ao
ponto de apresentar o conceito de várias palavras, em detalhes mínimos. Assim, os artigos 28 e 29, do referido
Código, estabelecem que:
Articulo 28. Las palabras de la ley se entenderán em su sentido natural y obvio, según el uso general
de las mismas palabras; pero cuando el legislador las haya definido expressamente para ciertas materias,
se les dará en éstas su significado legal.
Articulo 29. Las palabras técnicas de toda ciencia o arte se tomarán en el sentido que les den los que
profesan la misma ciencia o arte; a menos que aparezca claramente que se han formado en sentido diverso.
Por sua vez, o artigo 33, em um verdadeiro e claro exemplo de disposições legais supérfluas,
estabelece que:
Articulo 33. Las palabras hombre, persona, niño, adulto, y otras semejantes que en su sentido general
se aplican a indiviuos de la especie humana, sin distinción de sexo, se entenderán que comprenden ambos
108
Ocorre que a boa-fé, enquanto norma de conduta, impõe aos
sujeitos de um negócio jurídico um comportamento leal, honesto, solidário,
cooperativo, etc. (veja-se, logo adiante, neste mesmo item, a abordagem mais
detalhada dessas características), e que se mostre coerente com o que poderia
ser esperado para aquela mesma situação.
Ora, em se tratando de um negócio gratuito, não seria razoável
esperar-se que o sujeito que concordou em sofrer um sacrifício patrimonial,
sem nada receber como contraprestação, ainda tivesse que suportar a extensão
do seu sacrifício por força de interpretação ampliativa de sua vontade, pois
não se pode entender que o comportamento desse sujeito, esperado para tal
situação, seja no sentido de aumentar ainda mais o seu próprio sacrifício,
estendendo-o para o que não foi expressamente mencionado. É que não se
tem, no caso, “a comutatividade, o equilíbrio, razão pela qual a interpretação
há que ser diversa da geral” 122.
Assim, por exemplo, suponha-se que em um contrato de locação,
o fiador do locatário assumiu a obrigação de pagar os aluguéis, caso o
afiançado não o faça. Ao interpretar tal ajuste, o intérprete deverá concluir que
o fiador se obrigou ao pagamento dos aluguéis e dos respectivos acessórios
(uma vez que estes, como se sabe, salvo disposição legal em contrário, devem
seguir a mesma sorte do principal), tais como os juros, a cláusula penal, etc.
No entanto, não se poderá estender a obrigação do fiador, por exemplo, para o
pagamento da taxa condominial ou da conta do serviço de energia elétrica.
Cabe observar que, em relação especificamente à fiança, o artigo
819, do Código Civil, determina que à mesma não se dê interpretação
122
sexos en las disposiciones de las leys, a menos que por la naturaleza de la disposición o el contexto se
limiten manifiestamente a uno solo.
Por el contrario, las palabras mujer, niña, viuda, y otras semejantes que designan el sexo femenino,
no se aplicarán a otro sexo, a menos que expressamente la extienda la ley a él.
Renan Lotufo, Código Civil Comentado – v. 1, p. 318.
109
extensiva. Mas veja-se que a fiança, em regra, apresenta-se como negócio
jurídico gratuito, e por esta razão se pode afirmar que o artigo 819 nada mais é
do que uma aplicação concreta e específica do supramencionado artigo 114, e
por isso não se poderia interpretar o negócio jurídico da fiança de modo a
ampliar a responsabilidade do fiador, que deverá ser restringida àquilo que o
mesmo expressamente se comprometeu.
Acima dissemos que o artigo 114 esclarece apenas em parte o
significado do artigo 113, ambos do Código Civil pátrio. É que o referido
artigo apenas se refere ao significado da interpretação conforme a boa-fé em
relação aos negócios gratuitos, mas nada diz em relação aos negócios jurídicos
onerosos. Quanto a estes, portanto, vejamos o que seria essa interpretação
conforme a boa-fé.
Em relação aos negócios benéficos, como vimos, determina a
norma legal que o intérprete não amplie ainda mais o sacrifício patrimonial,
uma vez que nada é oferecido em troca a quem o sofre. Nos negócios jurídicos
onerosos, contudo, outra é a situação, pois todos os envolvidos nos negócios
estarão sofrendo uma redução patrimonial, mas, ao mesmo tempo, cada um
deles também estará recebendo, em troca, uma vantagem oferecida pelo outro
envolvido. Nessas condições, portanto, o que se mostra razoável esperar do
comportamento de cada um deles – e que, a toda evidência, se mostra mais
consentâneo com a solidariedade social – é que esteja sendo buscado o
equilíbrio entre as prestações recíprocas.
Assim, surgindo em um negócio jurídico oneroso uma situação de
conflito, sendo que a partir das cláusulas negociais são possíveis duas ou mais
interpretações distintas, deverá o intérprete, sempre, optar por aquela que
preserve de modo mais adequado o equilíbrio entre as prestações, ou seja,
deverá prevalecer a interpretação que melhor assegure a reciprocidade dos
110
interesses envolvidos, aproximando os valores das prestações recíprocas, pois
é desse modo que estará sendo atendida a determinação legal de interpretar o
negócio conforme os ditames da boa-fé.
Em defesa do sentido suso mencionado, em relação aos contratos
onerosos – e, portanto, complementando o parcial tratamento legal dado ao
tema – pode-se apontar o respeitado e respeitável magistério de Caio Mário da
Silva Pereira123. Aponta o eminente jurista das Minas Gerais que “os contratos
a título gratuito devem interpretar-se da maneira menos onerosa ao obrigado
(favor debitoris), enquanto que os onerosos se entenderão em termos que
realizem equânime temperamento dos interesses em jogo”.
Também se colhe idêntica regra da lição de Orlando Gomes 124.
Examinando a interpretação dos contratos, dizia o saudoso mestre baiano que
são três os princípios que dominam a interpretação do contrato: o da boa -fé, o
da conservação do contrato e o da extrema ratio. Em relação a este último,
esclarecia o ilustre jurista que a extrema ratio é uma regra que se inspira na
necessidade de atribuir ao contrato, por mais obscuro que seja, algum
significado. Assim, “quando a sua obscuridade permanece a despeito da
aplicação de todos os princípios e regras de interpretação, recorre o
intérprete ao critério extremo que o orienta no sentido de entendê-lo menos
gravoso para o devedor, se gratuito, e de que realize eqüitativo equilíbrio
entre os interesses das partes, se a título oneroso”.
No mesmo sentido, ainda, pode-se indicar a lição de Maria
Helena Diniz 125, para quem “nos contratos gratuitos, a interpretação deve
proceder-se no sentido de fazê-lo o menos pesado possível para o devedor, e,
123
124
125
Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, v. III, p. 38.
Orlando Gomes, Contratos, p. 228.
Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro – v. 3, p. 75.
111
nos onerosos, no de alcançar um equilíbrio eqüitativo entre os interesses das
partes”.
Pensamos, contudo, que pequeno reparo pode ser feito nas lições
dos mestres acima mencionados, uma vez que se limitaram a apontar as regras
interpretativas em relação aos contratos, quando na verdade essas mesmas
regras, como já vimos supra, são aplicáveis a todos os negócios jurídicos em
geral, e tanto assim que constam na parte geral do nosso Código Civil, e não
na parte referente aos contratos.
Assim, pode-se com tranqüilidade apontar que essas mesmas
regras também seriam aplicáveis, por exemplo, às declarações unilaterais de
vontade, escapando, pois, aos limites mais estreitos da seara exclusivamente
contratual. Contudo, o que na prática se verifica é que, quase sempre, sua
aplicação está ligada à matéria contratual, sendo por isso plenamente
compreensível o motivo do restritivo conceito apresentado pelos ilustres
juristas citados.
Antes de prosseguirmos, pensamos que se mostra adequado, neste
ponto, chamar a atenção para um aspecto que será visto em maiores minúcias
mais à frente (especificamente no item 1.8). É que realçamos, acima, os papéis
de integração e de interpretação, desempenhados pela boa-fé, ou seja, a
aplicação do princípio para complementar as normas que as partes deixaram
de criar ou, então, para aferir qual é o sentido que se deve dar às declarações
de vontade. No entanto, deve-se ressaltar que o princípio da boa-fé (na
realidade, os princípios em geral) também funciona como norma inclusive em
relação a temas sobre o qual as partes contratantes expressamente trataram.
Assim, como veremos no supramencionado item 1.8, a boa-fé
também funciona como elemento de controle do conteúdo convencional, ou
seja, as manifestações explícitas das vontades dos sujeitos dos negócios (e não
112
apenas as lacunas, portanto) também se sujeitam à aplicação do princípio da
boa-fé.
Outro aspecto importantíssimo, no que diz respeito ao conteúdo
normativo da boa-fé, e que também se encontra indicado no artigo 113, do
Código Civil, é o que se refere aos “usos do lugar” onde foi celebrado o
negócio jurídico. Com efeito, determina o referido artigo do Diploma Civil
que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos
do lugar de sua celebração. Qual o significado dessa determinação? O que
pretende a norma legal, ao determinar que a interpretação se dê conforme os
usos? Temos, aí, dois elementos distintos, a “boa-fé” e os “usos”, a serem
isoladamente considerados pelo intérprete? Vejamos.
Na realidade, há uma ligação indissolúvel entre a boa-fé e os
usos, sendo estes um modo de concretização daquela, uma vez que esses usos
do lugar se apresentam como elemento fundamental para o surgimento da
confiança (cuja tutela, em última análise, se constitui em objeto da boa-fé,
como veremos adiante), ou seja, é bastante razoável que cada uma das partes
envolvidas no negócio jurídico crie a justa expectativa de que a outra irá se
comportar de acordo com o que se mostra usual no lugar, para os negócios
daquela mesma espécie, sendo certo que “a expectativa... tem relevância
jurídica” 126.
Assim, ao examinar um determinado negócio jurídico, o
intérprete deverá considerar que o sentido da cláusula negocial, caso esta não
esteja clara, é o que melhor se adequa aos usos e costumes do lugar, e que
estará de boa-fé o sujeito que se comportou conforme os mesmos, pois essa
atuação corresponde plenamente às expectativas da outra parte. Ao contrário,
126
Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional (trad. Maria
Cristina De Cicco), p. 127.
113
estará ferindo a boa-fé o sujeito que, por agir em desacordo com o que se
mostra usual para aquele tipo de negócio, surpreende negativamente a outra
parte e vem a frustrar-lhe as expectativas.
É nesse sentido, aliás, a lição de Savigny127, que ao tratar da boafé em relação aos contratos (Treu und Glauben, do direito alemão), aponta que
a interpretação da mesma não é uma questão de sentimentos nobres, de
generosidade ou de auto-sacrifício, sendo que o que se deve fazer, prossegue o
ilustre jurista alemão, para que a mesma se torne compreensível, é a
observação dos usos, pois é sobre estes que repousa a confiança indispensável
dos outros.
No mesmo sentido, aponta Oliveira Ascensão 128, referindo-se
especificamente ao artigo 113 do Código Civil brasileiro, que “para saber o
que a parte quis dizer, é necessário enquadrar a declaração pelos usos:
porque um destinatário médio também se determinará por estes no
entendimento do que lhe é dirigido... para se construir mentalmente o que
seria a impressão do destinatário, é preciso entrar em conta com os usos.
Sempre que não houver na posição do declaratário real nada que introduza
em sentido contrário, um destinatário médio determinar-se-á justamente pelos
usos no entendimento da declaração”.
Aliás, não é demais observar que o artigo 113, do nosso Código
Civil, inspirou-se no artigo 157, do Código Civil alemão, sendo que este foi
muito mais preciso do que o nosso, ao fazer essa relação entre a boa-fé e os
usos129. Com efeito, menciona o § 157, do BGB, que “Os contratos devem ser
interpretados como exige a boa-fé, atendendo-se aos usos e costumes”. Como
127
Friedrich Carl von Savigny, Sistema do direito romano atual (trad. Ciro Mioranza), p. 108.
José de Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral, p. 282.
129
Embora, por outro lado, tenha sido menos preciso ao se referir ao campo de atuação dessa
interpretação conforme a boa-fé, que foi restrito apenas aos contratos, o que facilmente se explica, como já
vimos, pela origem contratual dos estudos da boa-fé como norma de conduta.
128
114
se vê, o dispositivo do código tedesco deixa claro que as exigências da boa-fé
são aquelas que atendem aos usos e costumes.
E o artigo 242, do mesmo Código Civil alemão, é ainda mais
claro e explícito (embora formalmente restrito ao direito obrigacional) acerca
dessa relação de continente e conteúdo que existe entre a boa-fé a os usos, ao
estabelecer que “o devedor está obrigado a executar a prestação como a boafé, em atenção aos usos e costumes, o exige”.
E não se pode deixar de observar que essa vinculação explícita,
entre a boa-fé e os costumes, mostra-se de fundamental importância para
possibilitar a atualização do direito, que pode assim, mais facilmente, adaptarse às novas necessidades da sociedade, ou seja, através dessa cláusula geral o
sistema jurídico permanece aberto para que possa continuar a atender as
exigências crescentes do comércio jurídico 130. Não é demais apontar que “a
boa-fé, dentro da dogmática jurídica, vem estabelecida através de cláusulas
gerais” 131.
Aliás, as cláusulas gerais 132, como já decidiu o Tribunal
Constitucional da Alemanha, funcionam como meio de introdução dos direitos
e valores fundamentais, trazidos pela Constituição Federal, nos diversos
130
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, pp. 105-106, n° 375.
131
Vitor Frederico Kümpel, A teoria da aparência no novo Código Civil brasileiro, p. 76.
132
A técnica legislativa das cláusulas gerais, embora já aparecesse, em relação à boa-fé, no § 242, do
BGB, desde o final do século XIX, ganhou especial relevo e passou a ser largamente empregada a partir da
segunda metade do século XX, possibilitando à jurisprudência o desenvolvimento da regulamentação legal e a
sua adaptação às diversificadas circunstâncias da vida. Além disso, essas cláusulas gerais permitem que se dê
uma certa abertura aos sistemas legislativos fechados, deixando ao juiz, no exame do caso concreto, a
possibilidade de extrair, a partir do negócio jurídico, conseqüências que não estavam previstas nas normas
legais e nem nas convencionais, integrando, restringindo, ampliando ou mesmo modificando o conteúdo do
negócio, independentemente das vontades dos sujeitos envolvidos. Cf. José Carlos Moreira Alves. A boa-fé
objetiva no sistema contratual brasileiro. Roma e America. Diritto Romano Comune. Rivista di Diritto Dell,
integrazione e unificazione del Diritto in Europa e in America Latina, n° 7/1999, p. 193. No dizer de Vitor
Frederico Kümpel, A teoria da aparência no novo Código Civil brasileiro , p. 80, “são estas cláusulas [gerais]
que dão mobilidade ao sistema jurídico, alçando o juiz a uma posição extraordinária, para preencher
lacunas com os valores que se encontram de forma abstrata nas coisas”.
115
domínios do direito133. Ou seja, o texto constitucional consagra a sua tábua de
valores e as escolhas fundamentais feitas pelo constituinte, e esses valores
serão obrigatoriamente observados na interpretação e na aplicação das
cláusulas gerais que se encontram espalhadas pela lei ordinária, em todos os
ramos do direito, e desse modo funcionam como uma linha diretriz a ser
seguida pelo intérprete e aplicador.
Veja-se que não se trata de negar a existência dos ramos setoriais
do direito, mas sim de lhes conferir unidade sistemática. Em outras palavras, e
dirigindo a afirmação para o Direito Civil, é evidente que este continua a
existir, mas a mudança – bastante significativa, ressalte-se – é que os seus
pontos de referência, antes localizados no Código Civil, foram deslocados
para a Constituição Federal134, cuja tábua axiológica, ao ser obrigatoriamente
observada na elaboração, na interpretação e na aplicação de todos os “ramos
setoriais” do direito, reúne-os e lhes confere a consistência sistemática 135-136.
133
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 122, n° 439.
134
No dizer de Maria Celina Bodin de Moraes, Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura CivilConstitucional dos Danos Morais, p. 70, os direitos fundamentais têm sua origem ligada à defesa do
indivíduo contra a ingerência excessiva do Estado, mas passaram a desempenhar relevante papel em relação à
convivência social entre os particulares, pois é no Direito Constitucional que se encontra o conjunto de
valores sobre os quais se constrói, na atualidade, o pacto de convivência coletiva, função que um dia já foi
desempenhada pelo Código Civil.
135
Gustavo Tepedino, Temas de Direito Civil, p. 13. E, ainda mais, os princípios fundamentais e os
valores erigidos pela Constituição Federal deverão se revezar no topo da escala hierárquica, só podendo ser
decidido em cada caso concreto qual deles é que ocupa essa posição de supremacia, vale dizer, a
hierarquização só poderá ser feita de modo tópico, conforme as peculiaridades do problema que estiver sendo
analisado. Nesse sentido, parece-nos bastante adequado o conceito de “sistema jurídico como uma rede
axioló gica e hierarquizada topicamente de princípios fundamentais, de normas estritas (ou regras) e de
valores jurídicos cuja função é a de, evitando ou superando antinomias em sentido lato, dar cumprimento aos
objetivos justificadores do Estado Democrático, assim como se encontram consubstanciados, expressa ou
implicitamente, na Constituição”. Cf. Juarez Freitas, A interpretação sistemática do direito, p. 54. E esclarece
o professor gaúcho que usou propositadamente a palavra “rede”, para sugerir conexões neuroniais, de modo a
indicar que o sistema jurídico “funciona” por inteiro, ainda quando se concentrem atividades nesta ou naquela
parte.
136
Em se tratando de um sistema, contudo, convém assinalar que não existem atividades isoladas,
localizadas unicamente em setores estanques, por isso que todas as frações do sistema guardam conexão entre
si. Resulta daí que qualquer atividade interpretativa resulta, direta ou indiretamente, na aplicação de
princípios, regras e valores, componentes da totalidade do sistema juríd ico. Assim, tem-se que cada um dos
preceitos deve ser sempre visto como uma parte viva do todo, pois apenas diante do exame do conjunto de
116
Tal mudança implicou na introdução, em todos os campos do
direito, mas no Direito Civil em particular, dentro do que nos interessa, de
valores fundamentais, tais como a dignidade humana, a solidariedade social,
etc., o que se mostrou de fundamental importância para a expansão da boa-fé,
como abordaremos logo adiante, no próximo subitem.
Nos temas acima tratados, referimo-nos à boa-fé como modo de
interpretação e de integração da vontade negocial, declarada pelas partes em
um negócio (ou que ficou obscura nesse mesmo negócio). Antes, contudo,
havíamos abordado essa mesma boa-fé como atenuante de formalismos legais.
A boa-fé, dessarte, tanto pode ser invocada para tornar menos rígida alguma
exigência legal referente às formalidades dos negócios jurídicos, quanto para
integrar a norma legal que se mostra lacunosa, ou ainda para dar suporte aos
atos da vontade.
Dirigindo tais conceitos especificamente em relação ao venire
contra factum proprium, desde logo se adianta que é o cotejo com um
primeiro comportamento, considerado à luz da boa-fé, que permitirá aferir se
o segundo comportamento teve o efeito de frustrar a confiança que havia sido
gerada no outro sujeito a partir do primeiro, vale dizer, se o venire (o segundo
comportamento) de fato contrariou, injustificadamente, a expectativa criada a
partir do factum proprium (o primeiro comportamento). Em relação à
abordagem mais completa e minuciosa sobre o venire contra factum
proprium, veja-se, adiante, o exame feito no item 2.3.
Embora a boa-fé, como acabamos de mencionar, seja princípio
que encontra aplicação em relação a todos os campos do direito, é certo que,
na prática, sua mais freqüente seara de aplicação, a toda evidência, se dá no
todo o ordenamento é que se pode melhor equacionar qualquer caso a ser resolvido. Cf. Juarez Freitas, A
interpretação sistemática do direito, p. 70.
117
campo das relações obrigacionais, principalmente quanto aos contratos, onde,
aliás, como vimos acima, teve origem a consideração da boa-fé como uma
norma de conduta a ser observada pelos contratantes.
E no que se refere a essa aplicação da boa-fé quanto aos
comportamentos dos sujeitos dos contratos em geral, cumpre ainda observar
que, em se tratando de princípio que se mostra aplicável a todo o direito, não
há, nos contratos, um momento específico ao qual esteja ligada a boa-fé como
norma comportamental.
Com efeito, parece bastante claro que, se toda a seara jurídica está
permeada pelo princípio da boa-fé, pode-se apontar como decorrência
imediata dessa impregnação o fato de que todas as etapas contratuais, e
mesmo aquelas que antecedem o aperfeiçoamento ou sucedem a extinção de
cada contrato, sendo momentos que também são regidos pela normatização
jurídica, estarão sob a regência desse mesmo princípio, vale dizer, dessa
mesma norma que se apresenta como originária da boa-fé.
Dito de modo mais claro, o que se pode afirmar é que o princípio
da boa-fé deverá ser obrigatoriamente observado, em relação à conduta dos
contratantes, não apenas no momento em que o contrato vem a ser celebrado,
mas ao longo de toda a sua execução, caso esta se dê de modo diferido no
tempo.
E, ainda mais do que isso, o princípio da boa-fé deverá ser
também observado ainda mesmo quando o contrato nem ao menos foi
celebrado, mas os sujeitos já se aproximaram um do outro em virtude da
possibilidade de celebração da avença. Ainda não são contratantes, pois
contrato ainda não existe, mas já terão os respectivos comportamentos regidos
pela conduta ditada pela boa-fé.
118
Da mesma forma, embora o contrato já tenha sido integralmente
cumprido, e, portanto, já esteja extinto, é possível que, mesmo depois dessa
extinção, ainda ocorram situações cujas origens podem ser encontradas nesse
mesmo contrato, e por isso continuarão os comportamentos dos sujeitos a ser
regidos pelo princípio da boa-fé, embora não sejam mais contratantes, eis que
não existe mais contrato.
Nesse mesmo sentido a lição de Emilio Betti137, para quem existe
um triplo campo de observação e aplicação do princípio da boa-fé, em relação
aos contratos: a) anterior à conclusão do contrato ou à entrada em vigor do
preceito contratual, e que se trata principalmente do dever de lealdade,
impondo deveres negativos; b) obrigações concomitantes ao desenvolvimento
da relação contratual, numa extensão que não estava indicada no contrato; c)
obrigações subseqüentes ao cumprimento das prestações.
Esses comportamentos da parte, acima mencionados, nos
momentos que antecedem ao aperfeiçoamento do contrato, e também nos
momentos posteriores à extinção da avença, são as chamadas obrigações précontratuais e pós-contratuais, que serão minuciosamente examinadas adiante,
especificamente no item 1.8.
Essa diversidade de momentos nos quais a boa-fé se mostra
aplicável, e mesmo a diversidade de situações que são regidas pela mesma
(em muito ultrapassando o campo das relações obrigacionais), atualmente
encontra sua razão de ser no fato de que o princípio da boa-fé, pelo menos no
nosso ordenamento jurídico, tem assento constitucional, daí sua aplicação
diversificada a todos os relacionamentos interpessoais e mesmo nas relações
137
Emilio Betti, Teoria generale delle obbligazoni, v. I, pp. 95-96. Mas esclarece o autor, na mesma
obra e local, que essa classificação é apenas extrínseca, e por isso tem a falha de não distinguir entre o
adimplemento da expectativa do credor e o simples dever de respeito que nasce em virtude do contato social
entre duas esferas de interesses contíguos.
119
da Administração Pública com os administrados, como já comentamos
brevemente e veremos em maiores detalhes mais à frente (item 1.7).
Na realidade, o que se percebe com clareza é que a boa-fé
normativa, ao longo dos anos, tem apresentado forte caráter expansionista, ou
seja, saindo do campo dos contratos, seu habitat inicial, para ocupar todos os
ramos do direito privado e, inclusive, espraiando-se pelo direito processual e
pelo direito público. Essa expansão, ao que nos parece, se apresenta como
reflexo direto da visível constitucionalização pela qual tem passado o direito
civil138, levando alguns princípios que antes eram apenas deste a figurar no
texto constitucional, e daí a se estender a outros ramos do direito139.
Examinaremos
de
modo
mais
detalhado
esse
assento
constitucional da boa-fé logo adiante, no próximo e específico subitem.
Antes, contudo, convém que sejam feitas algumas considerações
sobre o conteúdo normativo da boa-fé. Acima dissemos que a boa-fé encontra
a sua aplicação, ditando as condutas a serem observadas, nos momentos que
antecedem à formação do contrato, ao longo de toda a sua execução, e mesmo
depois de sua extinção em virtude do seu cumprimento. E, ainda mais do que
138
Teresa Negreiros, Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-Fé, pp.
8-9. Mas deve-se tomar cuidado para não confundir o Direito Civil Constitucional com o simples conjunto de
dispositivos sobre institutos tradicionais do direito civil (propriedade, família, casamento, etc.) que foram
inseridos na Constituição Federal, pois Direito Civil Constitucional é o direito civil como um todo, no sentido
de que todo ele está jungido à incidência dos valores e princípios eleitos pela Constituição Federal. Nesse
sentido a advertência de Leonardo Mattietto, O Direito Civil Constitucional e a Nova Teoria dos Contratos.
In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional , p. 170. Idêntica advertência é
feita de modo ainda mais incisivo por Maria Celina Bodin de Moraes, Danos à Pessoa Humana – Uma
Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais, p. 68. Esclarece a ilustre Professora Titular da Faculdade de
Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro que é “insuficiente constatar a mera transposição dos
princípios básicos do texto do Código Civil para o texto da Lei Maior. É preciso avaliar sistematicamente a
mudança, ressaltando que, se a normativa constitucional se encontra no ápice do ordenamento jurídico, os
princípios nela presentes se tornaram, em conseqüência, as normas diretivas, ou normas-princípios, para a
reconstrução do sistema de Direito Privado. É preciso, portanto, buscar perceber e valorar o significado
profundo, marcadamente axiológico, dessa ‘constitucionalização’ do direito civil”.
139
Não assiste razão, portanto, a Beatriz Capucho, quando afirma, referindo-se ao “princípio da boa-fé
lealdade”, que “questiona-se sua aplicação a outros ramos do direito”, já sendo pacífica, nos tempos atuais, a
aceitação dessa extensão da boa-fé aos demais ramos do direito, inclusive o processual e o publico. Cf.
Beatriz Maki Shinzato Capucho, Da boa-fé na negociação coletiva de trabalho, p. 42.
120
isso, também comentamos que a boa-fé impõe os comportamentos a serem
seguidos não apenas no campo dos contratos, mas em todos os negócios
jurídicos em geral, inclusive espraiando-se pela seara do direito público.
Diante de tamanha amplitude, pode perguntar-se o leitor qual
seria o conteúdo dessa norma decorrente da boa-fé, capaz de atender a tal
diversidade de situações. Na realidade, convém esclarecer, não existe uma
norma única, decorrente da boa-fé, que se apresente como um padrão ou um
standard140 comportamental, mas sim uma diversidade de normas, que se
adequam e se adaptam a cada situação concreta.
Dito de outra forma, a boa-fé, na realidade, não se apresenta
como uma norma comportamental, mas sim como uma fonte de normas, cujos
conteúdos não são e nem podem ser previamente determinados, uma vez que
serão revelados apenas quando forem conhecidos os contornos da situação
concreta onde tais normas sejam chamadas a atuar.
Como já mencionamos acima (e tornaremos a examinar no
subitem seguinte), a boa-fé impõe ao sujeito a adoção de um comportamento
que respeite a esfera dos interesses jurídicos alheios e que se mostre leal e
honesto, e é certo que o significado dessa afirmação não pode ser definido em
abstrato, uma vez que apenas na situação concreta é que se poderá aferir com
precisão qual é o comportamento que se mostra adequado a essa mesma
situação.
140
Veja -se, retro, no item 1.5, em nota de rodapé, algumas observações acerca da discussão doutrinária
existente sobre a natureza normativa da boa-fé ou sobre ser a mesma um standard jurídico. Nesse mesmo
local indicado nos posicionamos de modo claro no sentido de que a boa-fé tem conteúdo normativo, não se
apresentando como um simples standard.
121
É nesse mesmo sentido a lição de Alfonso de Cossío y Corral141,
segundo a qual, no direito moderno, a boa-fé assumiu o papel de uma fonte de
normas objetivas, cuja atuação concreta se dá mediante a aplicação de
princípios gerais, esclarecendo em seguida que isso significa que a boa-fé
pode ser entendida como uma norma geral, que se diversifica e especializa
para cada situação concreta, ou seja, cujo conteúdo será formado e
determinado em função das circunstâncias da hipótese concreta.
E é também nesse mesmo sentido que afirma De Los Mozos 142,
como já vimos (veja-se, retro, o item1.5), que “la buena fe es um principio
problematico, um verdadero topos, llamado a actuar en cada momento de la
interpretación”. E, ainda com esse mesmo significado, afirmando tratar-se de
um topos subversivo do direito obrigacional, ensina Judith Martins-Costa que
“constitui a boa-fé objetiva uma norma proteifórmica, que convive com um
sistema necessariamente aberto, isto é, o que enseja a sua própria
permanente construção e controle” 143.
1.6.1. O fundamento constitucional da boa-fé como norma de conduta: o
princípio da solidariedade.
Acima dissemos – ainda que apenas em breves e superficiais
comentários –, repetidas vezes, que em relação aos contratos a conduta ditada
141
Alfonso de Cossío y Corral, El dolo en el derecho civil, pp. 244-245. “...la buena fe, según hemos
visto, más que un estado de ánimo subjetivo, ha llegado en nuestro derecho a significar una fuente de normas
objetivas, o, si se prefiere, un complejo de normas jurídicas, que carecen de formulación positiva concreta,
son reunidas bajo esta designación impropia y ocasionada a equívocos. Lo que se aspira a conseguir es que
el desenvolvimiento de las relaciones jurídicas, el ejercicio de los derechos y el cumplimiento de las
obligaciones, se produzca conforme a una serie de principios que la conciencia jurídica considera como
necesarios, aunque no hayan sido formulados por el legislador ni establecidos por la costumbre o por el
contrato; principios que están implícitos o deben estarlo en el ordenamiento positivo, que tienen carácter
general, pero que exigen una solución distinta en cada caso concreto”.
142
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 36-37.
143
Judith Martins-Costa, A boa-fé no Direito Privado, p. 413.
122
pela boa-fé se impõe não apenas ao longo da execução do mesmo, mas antes
mesmo de ter se aperfeiçoado o ajuste e ainda depois que o mesmo já foi
integralmente cumprido, nas fases pré e pós-contratuais. E, ainda mais, tal
comportamento não se impõe apenas em relação aos negócios jurídicos que se
situam dentro do campo das obrigações, mas em relação a todos os negócios
jurídicos em geral.
Trata-se, portanto, de um princípio fundamental que se espalha e
se estende por todos os ramos do ordenamento jurídico. Nas precisas palavras
de Guillermo Figueroa 144, Professor Emérito da Universidade de Cartagena
(Colômbia), “la buena fe es un principio funddamental que se debe admitir
como supuesto de todo ordenamiento jurídico; informa la totalidad de él y
aflora de modo expreso en múltiples y diferentes normas aun que no se le
mencione en forma expresa”.
Essa onipresença da boa-fé decorre de seu assento constitucional,
como passaremos a demonstrar em seguida, desde logo alertando que, tendo
em vista buscarmos o apoio do texto constitucional positivado, faremos
referência específica à Constituição Federal entre nós vigente, especialmente
quanto ao que dispõe os artigos 1°, III, e 3°, I, da nossa Lex Mater.
Com efeito, em nosso ordenamento jurídico a necessidade de
observância de um comportamento conforme os ditames da boa-fé pode ser
com tranqüilidade extraída a partir dos dispositivos indicados, que se referem
à dignidade da pessoa humana e à solidariedade social, respectivamente,
ambas explicitamente listadas dentre os objetivos fundamentais da nossa
República Federativa.
A questão encontra seu apoio no fato de que a boa-fé, enquanto
norma de conduta, engloba um comportar-se de modo honesto, com lealdade,
144
Guillermo Guerrero Figueroa, Principios Fundamentales del Derecho del Trabajo, p. 44.
123
do modo como legitimamente poderia ser esperado, pelas outras pessoas, que
fosse o comportamento do sujeito naquelas circunstâncias. Facilmente se
percebe, portanto, que o comportamento de boa-fé leva em consideração,
dentre outros fatores, a sua repercussão na esfera jurídica alheia, ou seja, são
levados em conta os interesses de terceiros, integrantes do mesmo grupamento
social.
Em outras palavras, a atuação de boa-fé implica em uma atuação
solidária, com o escopo de promoção da dignidade e do desenvolvimento da
personalidade humanas, refletindo uma preocupação real com a construção de
uma ordem jurídica que se mostre mais sensível aos problemas e desafios que
permeiam a sociedade contemporânea, dentre os quais se inclui a busca de um
direito contratual parametrizado de tal forma que possa apresentar como seus
paradigmas, a um só tempo, o atendimento às necessidades econômicas (como
sempre foi o campo das obrigações contratuais), e o atendimento à
determinação de solidariedade social, de modo a que também se volte para a
busca da promoção da dignidade da pessoa humana145.
Mudaram, portanto, como facilmente se percebe, os paradigmas
do direito privado 146, notadamente em relação ao direito contratual. Como
muito bem detectou Ricardo Lorenzetti147, quando se vive em uma sociedade
de massa, a atuação do indivíduo não é e nem pode ser indiferente quanto aos
145
Leonardo Mattietto, O Direito Civil Constitucional e a Nova Teoria dos Contratos. In: Tepedino,
Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional, p. 164.
146
No dizer de Alinne Novais, “o contrato que tem o modelo liberal como seu paradigma, cujo
princípio máximo é a autonomia da vontade, reflete, na verdade, um momento histórico que não corresponde
mais à realidade atual. Essa concepção tradicional do contrato, que tem na vontade a única fonte criadora
de direitos e obrigações, formando lei entre as partes, sobrepondo-se à própria lei, bem como a visão do
Estado ausente, apenas garantidor das regras do jogo, estipuladas pela vontade dos contratantes, já há muito
vêm tendo seus pilares contestados e secundados pela nova realidade social que se impõe”. Cf. Alinne
Arquette Leite Novais, Os Novos Paradigmas da Teoria Contratual: O Princípio da Boa-fé Objetiva e o
Princípio da Tutela do Hipossuficiente. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito CivilConstitucional, p. 17.
147
Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do Direito Privado, pp. 82-83.
124
demais indivíduos e aos bens públicos, e a mudança dos paradigmas decorre
precisamente da consciência dessa inter-relação. Surge a necessidade de se
considerar o “sujeito situado”, em vez do “sujeito isolado”, ou seja, de se
estabelecerem regras institucionais que possam estabelecer os parâmetros
mínimos para a organização dessa relação de um indivíduo com os demais e
com os bens públicos.
O Direito Privado não podia ficar indiferente à organização da
sociedade, e por isso começou a observar o sujeito sob essa perspectiva da
vida comunitária, e isso significou, em relação aos contratos, a ampliação da
sua função social148, eis que o contrato deixa de ser visto como ato exclusivo
das partes e passam a ser considerados os seus efeitos sobre terceiros, e por
isso o Estado intervém no conteúdo contratual. Contudo, essa intervenção
estatal, na realidade, mais do que uma restrição, implica na preservação da
liberdade individual, eis que busca a assegurar aos contratantes uma igualdade
substancial, no lugar daquela simplesmente formal149.
Essa nova realidade, imposta pela reorganização do quadro social,
já havia sido detectada há muito tempo por Emilio Betti150, que há quase meio
século já se referia às “exigências de coexistência”, das quais decorreria a
148
Segundo entendemos, a grande mudança do direito clássico para o direito moderno, em relação aos
contratos, foi precisamente em relação a essa abordagem dos contratos sob a perspectiva da função social que
eles têm a cumprir. Deixou-se para trás, portanto, o exame estrutural dos contratos (na verdade, dos negócios
jurídicos em geral) e passou-se para uma abordagem sob o prisma da função social, ou seja, a análise dos
contratos funcionalizada aos valore s fundamentais eleitos pela Constituição Federal. A mudança, portanto,
não é meramente estrutural, mas antes de tudo funcional. Nesse sentido, parece-nos completamente
equivocada a análise feita por Flávio Tartuce, ao afirmar que “não se pode mais aceitar o contrato com sua
estrutura clássica...[pois o que estamos vivenciando é] uma modificação nas suas estruturas principais.
Flávio Tartuce, A revisão do contrato pelo novo Código Civil. Crítica e proposta de alteração do art. 317 da
Lei 10.406/02. In: Delgado, Mário Luiz e Alves, Jones Figueirêdo, Novo Código Civil – Questões
Controvertidas, p. 130.
149
Heloisa Carpena Vieira de Mello, A boa-fé como parâmetro da abusividade no direito contratual. In:
Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional, p. 312.
150
Emilio Betti, Cours de Droit Civil comparé des obligations, 1957-1958, p. 80. “Ces exigences de
coexistence peuvent être envisagées sous un double point de vue, négatif e positif... Au point de vue positif on
exige des divers membres de la communion sociale, en tant qu’associés dans le cadre d’un corps social, une
solidarité qui comporte sous certaines conditions une ligne de conduite positive et maints devoirs de
coopération envers les autres associés: cooperation propre à favoriser leurs intérêts”.
125
imposição, aos membros da sociedade, de um duplo comportamento, negativo
e positivo. O negativo consistiria na já tradicional abstenção de causar dano a
outrem. O positivo, no entanto, seria a exigência, em relação a cada um dos
integrantes dessa comunhão social, de uma solidariedade, decorrente do
simples fato de se integrar o quadro desse corpo social, e, sob certas
condições, um dever de cooperação em favor dos demais associados, de modo
a favorecer os interesses destes.
Pois bem, essa atenção para com os interesses das outras pessoas,
com as quais o sujeito mantém um relacionamento social, e que poderão ser
afetados em virtude de seu comportamento, nada mais é do que a preocupação
com a construção de uma sociedade solidária, mencionada expressamente no
artigo 3°, I, da nossa Constituição Federal de 1988, e tem por função a
promoção da dignidade da pessoa humana, aqui em relação ao âmbito
obrigacional151.
Nesse sentido, pode-se apontar que a presença da cláusula geral
da tutela da dignidade humana consistiu em fator decisivo para que o
legislador infra-constitucional (em todos os ramos do direito, e não apenas no
direito civil) passasse a adotar uma nova postura metodológica. Pode-se
mesmo dizer que foi atendendo às diretrizes ditadas pelo Texto Maior de 1988
que o legislador ordinário (primeiro, no Código de Defesa do Consumidor;
depois, no Código Civil), observando os princípios constitucionais
151
Sobre o tema, diz Rogério Ferraz Donnini, Responsabilidade Pós-Contratual no Novo Código Civil e
no Código de Defesa do Consumidor, p. 117, que “decorrem do princípio da dignidade da pessoa humans os
principios da solidariedade e da igualdade, pois são, na realidade, verdadeiros instrumentos da efetiva
proteção da dignidade humana. A solidariedade, por sua vez, prevista na Constituição Federal no art. 3º, I
(art. 2º da Constituição da República italiana), um dos objetivos fundamentais estampados no texto
constitucional, está vinculada às cláusulas gerais, uma vez que estas buscam o comportamento solidário
entre as partes, isto é, uma atitude compatível com a concepção social, seja no contrato (art. 421 do novo
CC) ou mesmo na propriedade (art. 1.118, § 1º, do novo CC)”. Nota: acreditamos que o autor pretendeu se
referir ao artigo 1.228, § 1º, do atual Código Civil.
126
fundamentais da dignidade da pessoa humana, solidariedade social e igualdade
substancial, optou por prestigiar expressamente o princípio da boa-fé 152.
No dizer de Teresa Negreiros 153, “o princípio da boa-fé, como
resultante
necessária
de
uma
ordenação
solidária
das
relações
intersubjetivas, patrimoniais ou não, projetada pela Constituição, configurase muito mais do que como fator de compressão da autonomia privada, como
um parâmetro para a sua funcionalização à dignidade da pessoa humana, em
todas as suas dimensões”. Para Pietro Perlingieri154, por sua vez, “os
princípios da solidariedade e da igualdade são instrumentos e resultados da
atuação da dignidade social do cidadão”.
E não é demais recordar que a Constituição Federal não está
apenas sugerindo aos integrantes da comunhão social um comportamento que
se coadune com a busca de uma sociedade justa e solidária, mas está impondo
esse mesmo comportamento, eis que não se pode olvidar que a Constituição
Federal não é apenas um estatuto programático, não se limita apenas a definir
regras para a futura organização política, econômica, social, etc. Antes disso, a
Constituição se apresenta como um projeto de transformação da sociedade, e
para isso impõe-lhe os comportamentos que considera mais adequados às suas
próprias finalidades inovadoras 155.
Por essa razão, cada um dos indivíduos que integram um mesmo
aglomerado social, independentemente do tamanho do mesmo, deverá sempre
buscar comportar-se de um modo que se mostre leal e honesto, em relação a
152
Célia Barbosa Abreu Slawinski, Breves reflexões sobre a eficácia atual da boa-fé objetiva no
ordenamento jurídico brasileiro. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional,
p. 85.
153
Teresa Negreiros, Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-Fé, pp.
222-223.
154
Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional (trad. Maria
Cristina De Cicco), p. 37.
155
Cf. Ana Prata, A tutela constitucional da autonomia privada, p. 59.
127
cada um dos demais integrantes do mesmo grupo, vale dizer, de modo tal que
em
conseqüência
do
seu
comportamento
não
venham
a
ser
desnecessariamente prejudicados os interesses alheios, e notadamente de um
modo tal que não venham os demais integrantes desse mesmo grupo a ser
atingidos em sua dignidade humana.
Dito de modo mais claro, o que se percebe é que, cada um dos
indivíduos de um grupo social, ao adotar, em uma situação, um determinado
comportamento, dentre os vários que seriam possíveis, deverá observar de
modo cuidadoso qual será a repercussão dessa sua conduta na esfera dos
interesses alheios, para que possa ser atendida a determinação constitucional
no sentido de que seja buscada uma sociedade justa e solidária, e tal cuidado
nada mais é do que a adoção de um comportamento segundo a boa-fé.
E deve ser destacado, por ser assunto que se mostra de extrema
importância, que não se trata apenas de uma norma de conteúdo negativo, ou
seja, no sentido de serem proibidas as condutas que se mostrem desleais ou
desonestas, mas sim de uma norma que se forma, especificamente para aquela
situação, e cujo conteúdo também é positivo, vale dizer, também impõe ao
sujeito um comportamento positivo, que se mostre solidário e cooperativo, em
relação aos demais integrantes do grupo social. Nesse sentido a lição de DíezPicazo156, para quem:
“Si la buena fe, considerada objetivamente, em si misma, es un modelo o un
arquetipo de conducta social, hay una norma jurídica que impone a la
persona el deber de comportarse de buena fe en el tráfico jurídico. Cada
persona debe ajustar su própria conducta al arquetipo de la conducta social
reclamada por la idea imperante. El ordenamiento jurídico exige este
156
DÍEZ -PICAZO, La doctrina de los propios actos, p. 139, apud José Luis de Los Mozos, El Principio
de La Buena Fe, p. 37.
128
comportamiento de buena fe, no solo en lo que tiene de limitación o de veto
a una conducta deshonesta (v. gr. no engañar, no defraudar, etc.), sino
también en lo que tiene de exigencia positiva prestando al prójimo todo
aquello que exige una fraterna convivencia (v. gr., deberes de diligencia, de
esmero, de cooperación, etc.)”.
Embora de modo apenas superficial, não se mostra despiciendo
comentar que esse conteúdo positivo da boa-fé enquanto norma de conduta
acaba por também se refletir na chamada boa-fé subjetiva, que passa a
abranger não apenas a crença do sujeito de não realizar uma injustiça com seu
comportamento, mas também a crença de estar agindo de modo a promover a
justiça157.
Facilmente se conclui, portanto, como já havíamos destacado
supra, que a boa-fé como norma de conduta, vale dizer, como imposição de
balizamentos para os comportamentos do indivíduo, pode ser descrita como
sendo a concretização do princípio constitucional da solidariedade social.
Dissemos, poucas linhas acima, que esse aspecto normativo da
boa-fé, vale dizer, essa atenção solidária para com a repercussão que um
comportamento adotado por um indivíduo terá sobre os demais integrantes do
mesmo grupo social independe do tamanho deste. A questão é interessante, e
sobre ela passamos em seguida a nos debruçar.
Se, por um lado, qualquer que seja o tamanho do grupo social
será sempre possível detectar essa preocupação solidária que se relaciona com
a boa-fé, por outro, parece-nos evidente que a intensidade dessas normas de
conduta originárias da boa-fé será inversamente proporcional ao tamanho
157
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 63.
129
desse mesmo grupo, e diretamente proporcional à intensidade das relações
entre os seus membros.
Com efeito, quando se considera um grupo de maior porte, como
por exemplo a sociedade como um todo, as relações sociais entre seus
diversos indivíduos integrantes como que se diluem, esgarçando-se, uma vez
que o comportamento de cada um deles repercute de modo mínimo nas esferas
jurídicas dos demais, e por essa razão será menos intensa e menos perceptível
a imposição de normas comportamentais ditadas pela boa-fé, embora seja
inegável a sua presença.
Quando se considera um grupo menor, como por exemplo uma
associação ou uma sociedade empresarial, ou mesmo os moradores de um
condomínio residencial, as relações sociais entre os seus integrantes se
mostram muito mais intensas, uma vez que a menor dimensão do grupo leva à
maior proximidade entre seus integrantes, e por essa razão se mostra muito
mais forte e clara a repercussão do comportamento de cada um deles sobre os
interesses dos demais, sendo por isso mais intensa a determinação de condutas
como conseqüência da boa-fé comportamental.
E podemos avançar ainda mais nessa redução do âmbito
considerado, reduzindo as relações sociais aos integrantes de um contrato de
compra e venda, por exemplo. Aqui, são tão reduzidas as dimensões desse
“grupo” no qual se desenrolam as relações sociais, que muito mais forte se
mostra a imposição das condutas em decorrência da boa-fé, e é exatamente em
virtude dessa maior intensidade que a boa-fé como norma de conduta costuma
ser identificada com o campo das obrigações, especialmente em relação aos
contratos, sendo aí, inclusive, que se deu o desenvolvimento do seu estudo e
onde o tema encontra maior aplicação prática (veja-se, adiante, o item 1.8).
130
E quando se considera esse “grupo social” como sendo formado
pelos sujeitos contratantes, como é o caso do comprador e do vendedor, o que
se pode observar é que a boa-fé impõe a ambos um dever de colaboração
recíproca, ou seja, cada um deles deve cooperar com o outro, para que possa
cumprir a sua prestação contratual, não podendo o vendedor, por exemplo,
colocar obstáculos que dificultem ao comprador a efetivação do pagamento do
preço (seria o caso, por exemplo, do vendedor que não desse informações
precisas sobre o local do pagamento). Nesse sentido, aliás, é que se diz que a
boa-fé objetiva realça a idéia de cooperação, que se acha na essência da
relação obrigacional158.
Ora, desenvolvendo-se as relações sociais em grupo tão pequeno,
a solidariedade (aqui vista como cooperação) é dirigida diretamente de um
para o outro, de modo recíproco, daí a sua maior intensidade e a sua mais fácil
visibilidade, podendo-se ainda apontar que essa cooperação se verifica na
totalidade dos comportamentos dos contratantes, inclusive nos momentos que
antecedem à formação do contrato e mesmo depois que o mesmo já se
extinguiu. Esse tema, que já havia sido brevemente mencionado, supra, será
profundamente desenvolvido adiante, no item 1.8.
É nesse sentido acima mencionado que, em relação aos contratos,
afirma De Los Mozos 159 que a boa-fé é um critério de reciprocidade, que deve
ser observado nas relações jurídicas que se desenvolvem entre sujeitos que
têm uma mesma dignidade moral, sendo que é nessa reciprocidade que se
explica a solidariedade que liga cada um dos participantes de uma comunidade
158
Laerte Marrone de Castro Sampaio, A boa-fé objetiva na relação contratual, p. 29.
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 47. No mesmo sentido a afirmação de
Betti, para quem “il criterio della buona fede è essenzialmente un criterio de reciprocità”. Cf. Emilio Betti,
Teoria generale delle obbligazoni, v. I, p. 94.
159
131
aos demais, e tanto mais os liga quanto mais intensas sejam as relações dentro
dessa comunidade, como sói acontecer nas relações associativas.
Da mesma forma, em outras relações de direito privado, situadas
fora do direito obrigacional e nas quais os casos concretos se desenrolam entre
umas poucas pessoas de cada vez, também vamos encontrar de modo muito
nítido essa reciprocidade, inclusive podendo ser apontadas diversas hipóteses
que receberam um tratamento específico do direito positivo. O direito das
coisas, por exemplo, tem se mostrado campo fértil para essa abordagem
específica da boa-fé, feita pelo direito positivo para algumas situações
pontuais. Vejamos alguns exemplos160.
Em relação às servidões, por exemplo, os artigos 1.383 e 1.384, 1ª
parte, ambos do Código Civil, por um lado, permitem ao dono do prédio
serviente que, à sua custa, possa remover a servidão para outro local, se isso
não reduzir as vantagens do prédio dominante. Por outro lado, no entanto, ao
mesmo tempo determinam que o dono do prédio serviente não poderá de
modo algum causar embaraços ao legítimo exercício da servidão pelo dono do
prédio dominante.
Concomitantemente, e ainda em relação às servidões, o que se vê
nos artigos 1.384, 2ª parte, e 1.385, é que também ao dono do prédio
dominante a lei permite que o mesmo, à sua custa, remova a servidão para
outro local, se dessa remoção lhe resultar considerável aumento de utilidade e
não prejudicar o prédio serviente. Ao mesmo tempo, no entanto, impõem ao
dono do prédio dominante que, ao exercer a servidão, faça-o apenas até o
limite das necessidades do seu prédio, de modo tal que não agrave o encargo
imposto ao prédio serviente.
160
Os exemplos foram adaptados, na realidade, a partir da obra de José Luis de Los Mozos, El Principio
de La Buena Fe, pp. 145-147.
132
Se o prédio dominante, levando-se em conta o tipo de atividade
agro-econômica ou industrial que nele é desenvolvida, necessitar que a
servidão seja ampliada (por exemplo, estava prevista a passagem de veículos
de pequeno porte, mas se mostra necessária a passagem de caminhões
pesados), o dono do prédio serviente será obrigado a aceitar essa ampliação,
mas por outro lado terá direito de ser indenizado em virtude da mesma, de
modo complementar, ou seja, independentemente da indenização que tenha
inicialmente recebido.
Como facilmente se pode perceber, em todas essas situações
acima referidas, e que foram tratadas de modo específico e preciso pela Lei
Civil, o que a norma legal faz nada mais é do que impor a solidariedade e a
cooperação de cada um dos sujeitos em favor do outro, ora mandando que
tolere a adoção de determinada providência, capaz de trazer ao outro uma
vantagem considerável, ora mandando que lhe seja paga uma indenização, em
virtude dos transtornos que terá que suportar.
E essa cooperação recíproca, pontual e especificamente imposta
pela norma legal, como já vimos acima, nada mais é do que a própria
aplicação do princípio da boa-fé, como conseqüência do princípio da
solidariedade social. Convém esclarecer que a cooperação é recíproca, embora
o Código Civil, em cada caso, possa determiná-la apenas em favor do dono do
prédio serviente ou do dominante. É que não interessa quem seja a pessoa do
dono ou qual seja o prédio dominante ou serviente, pois a cooperação se dará
em favor de qualquer prédio que se enquadre na situação descrita na lei.
Assim, por exemplo, nada impede que entre dois prédios vizinhos
existam, simultaneamente, duas servidões, com as posições invertidas em cada
uma delas, ou seja, um dos prédios é o dominante em uma das servidões (de
vista, por exemplo), mas é o serviente na outra (de passagem, v.g.). E em cada
133
uma delas haverá a imposição, em favor do prédio que ocupar a posição
indicada na lei, dessa cooperação acima mencionada, ou seja, a cooperação
seria imposta a cada um deles em favor do outro, em evidente situação de
reciprocidade.
Ainda no campo do direito das coisas, vê-se no artigo 1.285, do
Código Civil, que se refere à passagem forçada, que o dono do prédio que
estiver encravado, sem acesso à via pública, nascente ou porto, poderá exigir
de seu vizinho, mediante o pagamento de indenização cabal, que lhe dê
passagem, sendo o rumo desta fixado mediante acordo entre ambos ou, se
necessário, judicialmente.
Nesse dispositivo indicado no parágrafo anterior, até de modo
mais evidente do que nos outros exemplos até aqui apresentados, percebe-se
de modo muito claro a imposição do dever de cooperação e de solidariedade,
entre os proprietários dos prédios encravado e serviente. Com efeito, o que se
verifica é que o prédio encravado, não fosse o direito à exigência da passagem
forçada, sem possibilidade de acesso à via pública, seria completamente inútil,
não sendo possível sua exploração econômica ou qualquer destinação social.
A determinação para que o vizinho tolere a passagem, portanto,
nada mais é do que a imposição da cooperação, da solidariedade social, para
que também o prédio encravado possa receber adequada destinação social e
econômica, e para isso se torna necessária a cooperação do dono do prédio
serviente. Nesse sentido, aliás, é expresso o magistério de Maria Helena
Diniz 161, para quem o “direito à passagem forçada funda-se no princípio de
161
Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro – v. 4, p. 235. Concordamos com tão ilustre
autora, apenas ressalvando que, ao nosso sentir, o princípio da solidariedade social não preside apenas as
relações de vizinhança, mas sim todas as relações sociais, dentre as quais as jurídicas, como, aliás, se encontra
expressamente determinado no artigo 3°, I, da Constituição Federal. No mesmo sentido, também apontando
que o fundamento do direito à passagem forçada se encontra na solidariedade que preside as relações de
vizinhança, o magistério sempre respeitado de Washington de Barros Monteiro, acrescentando o mestre,
134
solidariedade social que preside as relações de vizinhança”. Como se vê, o
direito à passagem forçada, em última análise, também se apresenta como
aplicação concreta do princípio 162 da boa-fé, no seu aspecto de solidariedade
social.
E não é demais observar que, no caso, o princípio geral e
fundamental da solidariedade prevalece sobre a legalidade estrita, pois aquele,
por óbvio, é que condiciona a interpretação da norma legal. À guisa de
exemplo, suponha-se que o prédio dominante, de pequena área, possui uma
saída para a via pública, mas que tal saída é excessivamente dispendiosa ou
exige trabalhos desmesurados, e isso, na prática, inviabiliza a exploração do
referido imóvel. Se nos ativermos apenas ao que se encontra expresso no texto
legal, este se refere ao prédio “que não tiver acesso a via pública”, e por isso o
prédio do nosso exemplo não dará ao seu proprietário o direito de exigir a
passagem forçada.
No entanto, o princípio da solidariedade social impõe aos
vizinhos que colaborem, na medida do possível, para que o proprietário do
prédio “semi-encravado” possa obter de seu imóvel a máxima utilidade
possível, ou seja, possa fazer com que seja viável a exploração de seu imóvel,
e por isso, apesar de, no caso, ser possível o acesso à via pública, a
interpretação do texto do Código Civil à luz do princípio da solidariedade
contudo, que é o interesse social (o que nos parece dar esteio à afirmação que fizemos, no sentido de que a
solidariedade se impõe em todas as relações sociais, e não apenas nas de vizinhança) que exige o
estabelecimento do direito de passagem. Cf. Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, v. 3, p.
143.
162
Na realidade, em se tratando de matéria positivada explicitamente pelo Código Civil, não se poderia
falar em princípio, eis que se trata da própria norma legal. Contudo, não se pode deixar de observar que essa
positivação nada mais é do que a recepção do princípio pela lei. Nesse mesmo sentido José Luis de Los
Mozos, El principio de la buena fe, p. 146.
135
social levará a que se conclua que, mesmo assim, haverá o direito à passagem
forçada 163.
Novamente buscando outro ramo do direito, vamos encontrar na
parte geral do Código Civil, especificamente em relação às modalidades do
negócio jurídico, outra claríssima aplicação concreta do princípio da boa-fé.
Trata-se do disposto no artigo 129, segundo o qual a condição deve ser
considerada: a) implementada, quando seu implemento foi maliciosamente
obstaculizado pela parte a quem desfavorecia; b) não verificada, quando seu
implemento foi maliciosamente provocado por aquele a quem a mesma
aproveitaria.
Na verdade, o que se tem aí, nas duas hipóteses enfocadas no
referido dispositivo legal, é uma sanção punitiva para o sujeito que, envolvido
em um negócio jurídico, deixou de agir conforme as regras de conduta que, no
caso concreto, se mostrariam consentâneas com a cooperação e solidariedade,
em relação ao(s) outro(s) sujeito(s) envolvido(s), ou seja, deixou de agir
conforme as regras da boa-fé. Com efeito, veja-se que o sujeito agiu de modo
desleal, não cooperando com o outro, uma vez que lhe criou embaraços, quer
pelo implemento forçado da condição, quer pelo impedimento malicioso a que
esta viesse a ser implementada.
E não é demais observar que o nosso Código Civil, ao contrário
do que faz o Código Civil espanhol (art. 1.119164), refere-se a qualquer pessoa
que, podendo ser atingida favorável ou desfavoravelmente pelo implemento da
condição, de modo malicioso venha a forçar ou impedir tal implemento, e não
apenas ao devedor. Seria o caso, por exemplo, de uma doação feita com a
cláusula de reversão, ou seja, com a estipulação de que o bem doado voltaria
163
164
À mesma conclusão chegou Lenine Nequete, Da passagem forçada, p. 22.
Artículo 1.119. Se tendrá por cumplida la condición cuando el obligado impidiese voluntariamente
su cumplimiento. (grifamos).
136
ao patrimônio do doador, caso este sobrevivesse ao donatário (CC, art. 547).
Imagine-se que, estando em precárias condições de saúde o donatário, prestes
a morrer, o filho deste, estando na iminência de ver o bem retornar ao
patrimônio do autor da liberalidade, manda assassinar o doador, e com isso
impede que a condição resolutiva (o doador sobreviver ao donatário) venha a
ser implementada.
Em relação ao filho e herdeiro do donatário (que não foi parte no
negócio), portanto, que seria desfavorecido pelo implemento da condição,
como sanção punitiva ao seu comportamento desleal, que se choca de modo
frontal com a conduta solidária (independentemente das óbvias considerações
sobre os aspectos criminais do caso) imposta pela boa-fé, determina o Código
Civil que essa mesma condição seja reputada como tendo sido implementada,
vale dizer, os efeitos jurídicos que serão produzidos serão os equivalentes aos
da morte do donatário antecedendo à do doador, e portanto o bem doado
retornará ao patrimônio deixado pelo doador, após a morte do donatário, não
devendo ser transmitido ao herdeiro que forçou o implemento da condição.
1.7. A boa-fé objetiva no Direito Público e no campo processual.
A boa-fé objetiva sempre foi mais estreitamente ligada ao Direito
Civil, mas, sendo neste relacionada com as obrigações, fácil é de se imaginar
que a mesma, sem qualquer obstáculo, também se espalhou pelos demais
ramos do direito privado, cuja base também se encontra nas relações
obrigacionais, apresentando, pois, um caráter marcadamente expansionista,
espraiando-se sem muita cerimônia para outros ramos do direito.
Essa expansão pôde ser vista, em primeiro lugar, em relação ao
Direito Comercial, que foi onde, aliás, os tribunais comerciais primeiro lhe
137
deram aplicabilidade, antes mesmo que isso ocorresse no Direito Civil, como
vimos anteriormente. Depois, em um segundo momento, no Direito do
Trabalho, cuja relação básica, de natureza contratual (o contrato de trabalho),
nada mais foi do que um aperfeiçoamento do contrato de prestação de
serviços, originário do Direito Civil. Nenhuma surpresa, portanto, nessa
extensão da boa-fé a todo o domínio do direito privado.
Além disso, ainda na seara do direit o privado, também podemos
encontrar, com facilidade, aplicações da boa-fé no campo do direito das
coisas, no direito de família, no direito das sucessões, etc.
Contudo, não ficou nisso, pois também no campo do direito
processual se viu a escalada da aceitação da boa-fé objetiva, o que é também
fácil de se compreender, uma vez que o processo não tem um fim em si
mesmo, apenas servindo como instrumento para o direito material, e por essa
razão tende a refletir, ainda que o faça de modo esmaecido, algumas
características deste. Logo, no processo civil, como não poderia deixar de ser,
repercutiram as influências da boa-fé sobre o direito privado.
À guisa de simples exemplo pode-se apontar o disposto no
Código de Processo Civil brasileiro, que de modo expresso determina às
partes litigantes o dever de se comportar com lealdade e boa-fé (art. 14, II),
condenando ao pagamento de perdas e danos aquele que litigar pleiteando de
má-fé (art. 16). E veja-se que o diploma processual pátrio, ao esclarecer o que
se deve considerar como litigante de má-fé, tanto se vale de aspectos
subjetivos (por exemplo, ao dizer que litigante de má-fé é quem interpõe
recurso com intuito manifestamente protelatório – art. 16, VI) quanto de
considerações objetivas, referentes ao comportamento da parte (por exemplo,
no caso de quem deduz pretensão contra texto expresso de lei – art. 16, I).
138
Normas semelhantes, referentes ao dever de se comportar no
processo segundo as regras da boa-fé, podem ser também encontradas no
direito processual civil português, cujo Código de Processo Civil, em seu
artigo 456, impõe sanções para o comportamento processual que esteja
viciado pela má-fé. Na realidade, a repressão ao uso abusivo das vias
processuais é tão antiga quanto generalizada, sendo encontrada desde a Roma
antiga e em praticamente todos os sistemas processuais. Com efeito, logo após
indagar sobre se poderia ser responsabilizado aquele que fizesse uso abusivo
da via judicial, esclarece Josserand 165 que
Essa questão chamou a atenção de quase todos os legisladores, que
invariavelmente lhe deram resposta afirmativa, pelo menos para os casos de
abusos mais típicos e mais graves, ou seja, para aqueles de má-fé: em todas
as épocas e em todos os países, o espírito de chicana, a vontade de prejudicar
a outrem e o uso abusivo das vias legais foram considerados como um
verdadeiro delito, penal ou civil, comportando, como sanção mínima, uma
reparação de ordem pecuniária... Já em Roma, medidas enérgicas foram
tomadas a fim de prevenir ou de reprimir o espírito de chicana. Era o
jusjurandum calumnice; eram as diversas penalidades que eram aplicadas à
infitiatio e à plus petitio, tipos de delitos específicos que se enquadram sem
nenhuma dúvida no abuso das vias de direito... Na França, como na Bélgica,
na Itália, na Suíça ou na Alemanha, o princípio jamais foi colocado em
dúvida: nos tribunais sempre foi admitida a possibilidade de abuso das vias
legais; reconhecem que o direito de pleitear ou aquele de recorrer às vias
165
Louis Josserand, L’Esprit des Droits et de leur Reativité – Théorie dite de l’Abus des Droits, pp. 6668, nrs. 46 e 47. Diz o mestre que “Cette question a retenu l’attention de presque tous les legislatéurs qui lui
ont invariablement donné une solution affirmative, du moins pour le cas d’abus le plus typique et le plus
grave, c’est-à-dire pour celui de la mauvaise foi: à toute époque et en tout pays, l’esprit de chicane, la
volonté de nuire à autrui en mésusant des voies légales, ont été considerérés comme constitutifs d’un
véritable délit, pénal ou civil, comportant, comme minimun de sanction, une réparation d’ordre pécuniaire. A
Rome déjà, des mesures énergiques avaient été prises afin de prévenir ou de réprimer l’esprit de chicane:
c’était le jusjurandum calumnice; c’était les diverses pénalités qui venaient frapper l’infitiatio et la plus
petitio, sortes de délits spécialisés ressortissant sans aucum doute à l’abus des voies de droit...En France,
comme en Belgique, en Italie, en Suisse ou en Allemagne, le principe n’a jamais été mis en doute: nos
tribunaux ont toujours admis la posibilité d’abus des voies légales; ils ont reconnu que le droit de plaider ou
celui de recourir aux voies d’exécution, comportaient, à côté des limitations impersonelles et ob jectives
constituées par les règles de procédure, des restrictions d’ordre personnel et subjcetif tirées de la mentalité
du plaider ou du poursuivant qui ne peuvent pas aller à l’encontre des fins de l’institution, et qui, notamment,
ne sauraient impunément mettre les voies de droit au service d’une volonté à base de malice, de méchanceté,
de rancune ou de persécution, commettant ainsi une sorte de profanation juridique qu’aucun législateur,
qu’aucun juge ne peuvent tolérer”.
139
executivas, comportam, ao lado das limitações impessoais e objetivas
trazidas pelas regras de procedimento, restrições de ordem pessoal e
subjetiva, extraídas da idéia de que pleitear ou litigar não podem ir contra os
fins da instituição, e que, notadamente, as vias judiciais não podem ser
impuneme nte colocadas ao serviço de uma vontade esteada na malícia, na
maldade, no rancor ou na perseguição, cometendo pois um tipo de
profanação jurídica que nenhum legislador e nenhum juiz podem tolerar.
Na jurisprudência pátria também se encontram exemplos de
aplicações concretas do princípio da boa-fé, inclusive, de modo mais
específico, da caracterização (e repressão) do venire contra factum proprium
em matéria processual. Assim, por exemplo, já decidiu o Tribunal Superior do
Trabalho que
RECURSO
DE
REVISTA.
CERCEAMENTO
DE
DEFESA.
INDEFERIMENTO DA OITIVA DE TESTEMUNHAS. DEPOIMENTO
ANTERIOR PELO RECLAMANTE. PROVA DA JORNADA. A pretensão
do reclamante em produzir prova testemunhal contrariamente ao que ele
próprio já afirmara em processo anterior, quando serviu de testemunha em
outra reclamação retrata o repudiado venire contra factum proprium. Se o
reclamante depôs em outro processo como testemunha, suas declarações
foram feitas sob juramento, e a expectativa de boa-fé e verdade sob a qual
foi prestado aquele depoimento, repita-se, sob compromisso, não pode agora
ser negado para pretender provar outra realidade. Não se pode ter por
cerceamento de defesa a decisão do juízo de origem que, diante de tal
hipótese, indefere a oitiva de testemunha apresentada pelo reclamante
relativa a fato já provado em outro processo. Recurso de Revista de que não
se conhece 166 .
166
Ac. RR -783.685/2001.5, 5ª Turma, Ac. unânime. Relator Min. João Batista Brito Pereira. J.
15.12.2004, P. DJ. 18/02/2005. No caso concreto, no entanto, temos fortes dúvidas sobre a adequação da
decisão tomada pela Colenda Corte, uma vez que o Acórdão revela que o reclamante, em processo anterior,
fora testemunha da empresa reclamada quando ainda era empregado da mesma, e na ocasião declinou jornada
de trabalho diferente daquela que indicou na petição inicial da reclamação em que ele mesmo figurava como
reclamante. Ora, em se tratando de empregado, havia o estado de subordinação, e a realidade da Justiça do
Trabalho mostra que os empregados, em tal situação (quando são testemunhas do empregador), no mais das
vezes limitam-se a informar aquilo que lhes foi determinado pela empresa empregadora, ainda que estejam
sob o compromisso de dizer a verdade. Entre o medo de ser dispensado e ficar desempregado, em tempos de
poucos empregos, e o de ser enquadrado em uma remotíssima hipótese de falso testemunho, o primeiro dos
medos fala muito mais alto, e o empregado, subordinado que é, não hesita em cumprir a ordem de falsear a
verdade. E parece evidente que se pode apontar que, sendo o primeiro dos comportamentos adotado em
virtude de coação (grave ameaça, ainda que implícita, de perda do emprego), não pode servir de parâmetro
para, em cotejo com o segundo, caracterizar o venire contra factum proprium. De qualquer modo, pensamos
140
Também na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça são
encontráveis decisões referentes ao venire, especificamente em matéria
processual. Decidiu aquela Corte Superior que
PROCESSUAL CIVIL. DOCUMENTO. JUNTADA. LEI GERAL DAS
TELECOMUNICAÇÕES. SIGILO TELEFÔNICO. REGISTRO DE
LIGAÇÕES TELEFÔNICAS. USO AUTORIZADO COMO PROVA.
POSSIBILIDADE.
AUTORIZAÇÃO
PARA
JUNTADA
DE
DOCUMENTO PESSOAL. ATOS POSTERIORES. "VENIRE CONTRA
FACTUM PROPRIUM". SEGREDO DE JUSTIÇA. ART. 155 DO
CÓDIGO
DE
PROCESSO
CIVIL.
HIPÓTESES.
ROL
EXEMPLIFICATIVO. DEFESA DA INTIMIDADE. POSSIBILIDADE.
- A juntada de documento contendo o registro de ligações telefônicas de uma
das partes, autorizada por essa e com a finalidade de fazer prova de fato
contrário alegado por essa, não enseja quebra de sigilo telefônico nem
violação do direito à privacidade, sendo ato lícito nos termos do art. 72, §
1.°, da Lei n.º 9.472/97 (Lei Geral das Teleco municações).
- Parte que autoriza a juntada, pela parte contrária, de documento contendo
informações pessoais suas, não pode depois ingressar com ação pedindo
indenização, alegando violação do direito à privacidade pelo fato da juntada
do documento. Doutrina dos atos próprios.
- O rol das hipóteses de segredo de justiça não é taxativo, sendo autorizado o
segredo quando houver a necessidade de defesa da intimidade.
Recurso especial conhecido e provido. 167
Interessante aplicação da boa-fé objetiva no processo foi a que
surgiu nos tribunais portugueses, na década de 70. Com efeito, nas ações que
dissessem respeito ao estado da pessoa, face à relevância dos direitos
personalíssimos que estão em jogo, acentuou-se ainda mais o dever de expor
os fatos conforme a verdade. Assim, em uma ação de investigação de
paternidade, o investigado negou que tivesse mantido relações sexuais com a
mãe da autora, sendo que tais relações vieram a ser posteriormente provadas.
que a decisão mencionada serve para demonstrar que nossos tribunais não vêem maiores problemas no
acolhimento do venire em relação ao processo.
167
REsp 605687/AM; Recurso Especial 2003/0202450-6, 3ª T. Ac. unânime. Relatora Min. Nancy
Andrighi, j. 02/06/2005, p. DJ 20.06.2005, p. 273.
141
Entendeu o Supremo Tribunal de Justiça que tal comportamento configurava o
procedimento processual como litigância de má-fé168.
Mas deve-se tomar cuidado com os exageros, pois é evidente que
a boa-fé processual, no que se refere ao dever de expor os fatos conforme a
verdade, encontra certos limites que são, ao nosso ver, intransponíveis. Assim,
por exemplo, suponha-se que em uma ação de anulação do casamento fundada
em erro essencial sobre a pessoa do cônjuge, a esposa impute ao marido a
autoria de um grave crime, anterior ao casamento, ou a opção homossexual.
Parece evidente que não se poderá exigir que o marido, em tal caso, venha a
confessar fato de seu passado (ou mesmo de seu presente) que lhe traz grande
vergonha e constrangimento ou que poderá expô-lo a inevitáveis preconceitos
e discriminações.
O mesmo se poderia apontar em relação à ação de separação
litigiosa, fundada no adultério do cônjuge, e que foi por este negado, mas que
veio depois a ser provado sem que remanesça qualquer dúvida. Ou ainda
quando a ação tenha por suporte o fato de que o cônjuge trabalhava, antes do
casamento, como garoto ou garota de programa. Parece evidente que não se
poderá pretender punir por má-fé o cônjuge que optou por tentar esconder o
seu próprio comportamento socialmente reprovável.
Neste ponto, como uma última observação acerca da aplicação do
princípio da boa-fé na seara processual, não se pode deixar de observar a
existência de uma clara diferença, no que se refere à aplicação da boa-fé
quanto às relações de direito material. É que nestas, como veremos adiante
(veja-se o item 2.3.1), em geral predomina a idéia de proteção à boa-fé de um
dos sujeitos, e não de punição à má-fé do outro. No campo processual, ao
168
249.
Supremo Tribunal de Justiça, 01.02.1974, Boletim do Ministério da Justiça, nº 234 (1974), pp. 246-
142
contrário, como vimos acima, a idéia principal é a de punição à parte que atua
no processo de modo malicioso, ou seja, o enfoque se dá na repressão à má-fé,
e não na proteção à boa-fé.
Em continuação, veremos agora que a boa-fé também pode ser
estendida, além do campo processual, para as relações mantidas pela
Administração Pública com os particulares, apesar do que possa parecer ao
primeiro exame, que aponta para a aparente restrição da boa-fé, enquanto
norma de conduta, à seara do direito privado.
Com efeito, como já mencionamos reiteradas vezes, o princípio
da boa-fé encontrou seu campo de desenvolvimento e de aplicação no direito
privado, principalmente no direito obrigacional, com larga aplicação em
relação aos contratos, como veremos logo adiante, em mais detalhes (veja-se,
adiante, o item 1.8). Além disso, pode-se ainda apontar que o princípio da
boa-fé atua de modo supletivo, ou seja, nos casos onde a lei é lacunosa, mas
não cabe sua invocação como parâmetro de conduta nas situações nas quais a
própria lei já indica expressamente tal parâmetro (mas desde que essa norma
legal não entre em choque com o princípio, pois se tal choque se der a lei
deverá ser afastada, prevalecendo o princípio – veja-se, adiante, o item
2.3.2.1.c, onde essa questão é examinada em detalhes).
Desse modo, levando-se em conta que a origem do princípio está
ligada exclusivamente ao direito privado, e que no campo do direito público,
em tese, não há espaço para lacunas, uma vez que ao administrador público só
é permitido fazer aquilo que a lei expressamente admite, poderia parecer, em
um primeiro e perfunctório exame, que o princípio da boa-fé não encontra
aplicação na seara do direito público.
No entanto, ao contrário de tal conclusão, hoje é pacífica a
aceitação da idéia de que se aplica o princípio da boa-fé, também, nas relações
143
de direito público 169, estando o princípio da boa-fé contido no princípio da
moralidade administrativa.
E as razões dessa extensão podem ser percebidas sem grandes
dificuldades. É que, se ao particular se exige um comportamento conforme os
ditames da boa-fé, de modo que os sujeitos partícipes de uma relação jurídica
não possam, cada um, quebrar a confiança que fez surgir no espírito do outro,
com muito mais razão não se poderá admitir que a Administração Pública, nas
suas relações com os cidadãos administrados, possa criar situações em cuja
seriedade esses mesmos cidadãos confiaram, para posteriormente agir de
modo contraditório, voltando atrás e desfazendo o que antes fizera, quebrando
a confiança gerada nos súditos. Admitir essa possibilidade, a toda evidência,
violaria o princípio da moralidade administrativa, que se encontra insculpido
expressamente no artigo 37, da Constituição Federal.
Deve a Administração Pública, portanto, atender aos ditames de
uma conduta conforme os parâmetros estabelecidos pela boa-fé, com o
cabimento da aplicação dos diversos institutos que da boa-fé decorrem,
interessando-nos em particular o venire contra factum proprium, que não
permite à Administração Pública voltar sobre seus próprios passos, atuando de
modo contraditório, em relação à sua atuação anterior, e desfazendo o que
antes fizera, gerando incertezas capazes de tumultuar a vida social.
Nesse mesmo sentido acima mencionado é a posição de Karl
Larenz 170, destacando o respeitado jurista alemão a importância de que seja
169
Nesse sentido, aponta Delia Rubio que “El principio general de la buena fé opera – com las
adaptaciones del caso – em todas las ramas del ordenamiento. No se trata de um principio exclusivo del
Derecho Civil, em sentido estrito;... la aplicabilidad del principio de buena fe em las relaciones de la
Administración com los administrados”. Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em
el derecho civil , p. 140.
170
Karl Larenz, Derecho de obligaciones, v. I, p. 144. Literalmente, diz o mestre alemão que: “La
salvaguardia de la buena fe y el mantenimiento de la confianza forman la base del tráfico jurídico y en
particular de toda la vinculación jurídica individual. Por esto, el principio no puede limitarse a las
144
mantida a boa-fé e preservada a confiança, elementos que se apresentam como
basilares em toda relação jurídica individual, e que por tal razão não podem
ser confinadas unicamente às relações obrigacionais, também alcançando o
direito processual e o direito público.
Na doutrina pátria, ao discorrer sobre o princípio da moralidade,
ensina Sylvia di Pietro 171 que “não é preciso penetrar na intenção do agente,
porque do próprio objeto resulta a imoralidade. Isto ocorre quando o
conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade,
retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa-fé, ao
trabalho, à ética das instituições”.
Como se vê, sustenta a respeitada autora que haverá imoralidade
administrativa sempre que for ultrapassado, dentre outros limites, aquele que é
imposto pela boa-fé, sendo que tais limites devem ser aferidos de modo
objetivo, ou seja, sem que sejam necessárias investigações acerca da intenção
do agente. Boa-fé como regra de conduta, objetiva, portanto. No mesmo
sentido a sempre respeitada lição de Celso Antônio Bandeira de Mello 172, que
ao tratar do mesmo princípio esclarece que “compreendem-se em seu âmbito,
como é evidente, os chamados princípios da lealdade e boa-fé”.
Tratando especificamente da proibição do venire contra factum
proprium em relação à atuação da Administração Pública, aponta Egon
Bockmann Moreira 173 que “do princípio da boa-fé objetiva deriva, quando
menos, o seguinte: a)...; b) proibição do venire contra factum proprium
(conduta contraditória, dissonante do anteriormente assumido, ao qual se
havia adaptado a outra parte e que tinha gerado legítimas expectativas”.
relaciones obligatorias, sino que es aplicable siempre que exista una especial vinculación jurídica, y en este
sentido puede concurrir, por tanto, en el Derecho de cosas, en el Derecho procesal y en el Derecho público”.
171
Maria Sylvia Zanella di Pietro, Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, p. 111.
172
Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, p. 89.
173
Egon Bockmann Moreira, Processo Administrativo, p. 91.
145
Juarez Freitas 174 examina a questão sob a ótica do conflito entre
princípios superiores, mais especificamente entre o princípio da legalidade
estrita e o da confiança, figurando situação na qual a aplicação da legalidade
estrita estaria a indicar a anulação do ato administrativo, mas a tal solução se
contrapõe a confiança de um administrado de boa-fé. E esclarece o ilustre
Professor do Rio Grande do Sul que, não raro, o princípio da legalidade estrita
deve ceder, colocando-se limites à anulação dos atos administrativos, em
virtude da preponderância tópica (ou seja, examinada sob a visão problemática
do caso concreto) do princípio da confiança, que está a recomendar a
estabilidade do ato administrativo.
Nos tribunais estrangeiros é pacífica a aceitação da idéia de que
também a Administração Pública, em sua atuação, deve pautar sua conduta
segundo os ditames do princípio da boa-fé. Em decisão de 1991, conforme
noticia Béatrice Jaluzot 175, a 3ª Câmara Civil da Corte de Cassação, na França,
expressamente reconheceu essa aplicação do princípio aos atos da
Administração Pública. No caso em questão, uma empresa de distribuição
adquiriu um terreno, com o objetivo de nele instalar um supermercado. Treze
anos depois, contudo, em virtude das restrições administrativas que proibiam a
construção no imóvel em questão, a construção ainda não havia sido erguida, e
a empresa resolveu vender o terreno para o próprio município.
Quatro meses depois de adquirir o terreno, no entanto, a
Administração Municipal reforma as normas administrativas e passa a ser
permitida a construção no mesmo. O terreno, então, é revendido a uma outra
empresa de distribuição, por preço quatro vezes superior ao que havia sido
pago pelo Município.
174
Juarez Freitas, A interpretação sistemática do direito, p. 246.
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 341, n° 1211.
175
146
Reformando a decisão tomada pela instância anterior, entendeu a
Corte de Cassação que o Município, ao negociar a aquisição do imóvel ao
mesmo tempo em que já estava em negociações com um eventual comprador
para o mesmo, e por outro lado omitindo do alienante que já estava em
andamento um projeto para a reforma das normas administrativas, que
permitiriam que a construção viesse a ser erguida no terreno, o que, por óbvio,
iria valorizá-lo de modo acentuado, não se comportou com a boa-fé que seria
exigível, devendo pois responder por isso.
Também a jurisprudência pátria reconhece, com tranqüilidade, a
aplicabilidade do princípio da boa-fé à atuação da Administração Pública,
inclusive com expressa menção à proibição do venire contra factum proprium,
como se vê, por exemplo, no Recurso Especial n° 47.015/SP, que tratava de
hipótese de desapropriação indireta, na qual a fazenda pública havia apontado
a irregularidade – e conseqüente nulidade – no título de propriedade exibido
pelo autor da ação, título esse que havia sido emitido por ela mesma, de modo
irregular, o que havia sido rejeitado pela instância inferior, o Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo. Da ementa, na parte que interessa ao presente
trabalho, assim consta:
Administrativo e processual civil. Titulo de propriedade outorgado pelo
poder público, através de funcionário de alto escalão. Alegação de nulidade
pela própria administração, objetivando prejudicar o adquirente:
inadmissibilidade... I- se o suposto equivoco no titulo de propriedade foi
causado pela própria administração, através de funcionário de alto escalão,
não ha que se alegar o vicio com o escopo de prejudicar aquele que, de boafé, pagou o preço estipulado para fins de aquisição. Aplicação dos princípios
de que "nemo potest venire contra factum proprium" e de que "nemo
creditur turpitudinem suam allegans". 176
176
STJ, 2ª Turma, REsp 47.015/SP, Rel. Min. Adhemar Maciel, Ac. maioria, j. 16.10.1997, p. DJ
09.12.1997, p. 64655.
147
No voto do Ministro Adhemar Maciel, relator, lê-se que
“o TJSP aplicou – a meu ver, acertadamente – o princípio de que nemo
potest venire contra factum proprium (“ninguém pode se opor a fato a que
ele próprio deu causa”)... Realmente, não pode a FAZENDA PÚBLICA,
décadas após a venda do imóvel realizada por funcionário de alto escalão
em nome da Administração, vir a juízo pleitear a nulidade dos títulos. Ora,
se há mácula no título, essa foi causada pelo próprio poder público, o qual
não pode invocar o suposto equívoco do seu secretário de Estado, para
prejudicar aquele que legitimamente adquiriu a propriedade, pagando para
tanto. Em suma, Senhor Presidente, se o suposto equívoco no título de
propriedade foi causado pela própria Administração, não há que se alegar o
vício com o escopo de prejudicar aquele que, de boa-fé, pagou o preço
estipulado para fins de aquisição.”
Ainda na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, também
no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 1995/0044476-3 a Corte
Superior afirmou expressamente que não se pode permitir à Administração
Pública que, depois de criar justa expectativa nos cidadãos, mediante a
assunção de compromisso público, possa simplesmente voltar atrás, frustrando
as justas expectativas criadas.
Tratava-se de hipótese na qual o Governo Federal, por meio do
Ministro da Fazenda, comprometeu-se publicamente a suspender, por noventa
dias, as execuções de créditos do Banco do Brasil, desde que o devedor se
dispusesse a um acerto de contas com o banco credor. Posteriormente, no
entanto, o Banco do Brasil e o Governo Federal pretenderam alegar que o
compromisso não era apto a gerar vinculação, sendo tão-somente uma
manifestação de intenção das autoridades públicas, de caráter genérico e
normativo.
No Superior Tribunal de Justiça, embora tenha sido ao final
denegada a segurança (mas apenas porque já havia transcorrido prazo superior
aos noventa dias da prometida suspensão), foi expressamente adotada a tese de
148
que também à Administração Pública se proíbe o venire contra factum
proprium, ou seja, os comportamentos contraditórios, de modo tal que o
segundo comportamento frustra a justa expectativa que havia sido gerada em
virtude do primeiro, violando a conduta imposta pela boa-fé (objetiva). A
decisão recebeu a seguinte ementa:
Memorando de entendimento. Boa- fé. Suspensão do processo. O
compromisso público assumido pelo Ministro da Fazenda, através de
‘memorando de entendimento’, para suspensão da execução judicial de
dívida bancária de devedor que se apresentasse para acerto de contas, gera
no mutuário a justa expectativa de que essa suspensão ocorrera, preenchida a
condição. Direito de obter a suspensão fundado no principio da boa-fé
objetiva, que privilegia o respeito a lealdade. Deferimento da liminar, que
garantiu a suspensão pleiteada. Recurso improvido. 177
No voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, relator, lê-se que:
“
O compromisso público assumido pelo Governo, através do seu
Ministro da Fazenda, o condutor da política financeira do país, e com a
assistência dos estabelecimentos de crédito diretamente envolvidos,
presume-se tenha sido celebrado para ser cumprido. Se ali ficou estipulado
que as execuções de créditos do Banco do Brasil seriam suspensas por
noventa dias, desde que o devedor se dispusesse a um acerto de contas, é
razoável pensar que esse seria o comportamento futuro do credor, pelo
simples respeito à palavra empenhada em documento público, levado ao
conhecimento da Nação.”
“
No direito civil, desde os estudos de Ihering, admite-se que do
comportamento adotado pela parte, antes de celebrado o contrato, pode
decorrer efeito obrigacional, gerando a responsabilidade pré-contratual. O
princípio geral da boa- fé veio realçar e deu suporte jurídico a esse
entendimento, pois as relações humanas devem pautar-se pelo respeito à
lealdade.”
“
O que vale para a autonomia privada vale ainda mais para a
administração pública e para a direção das empresas cujo capital é
predominante público, nas suas relações com os cidadãos. É inconcebível
que um Estado democrático, que aspire a realizar a justiça, esteja fundado no
princípio de que o compromisso público assumido pelos seus governantes
177
STJ, 4ª Turma, RMS 6.183/MG, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, Ac. unânime, j. 14.11.1995, p. DJ
18.12.1995, p. 44573.
149
não tem valor, não tem significado, não tem eficácia. Especialmente quando
a Constituição da República consagra o princípio da moralidade
administrativa.”
“
Tenho que o ‘Memorando de Entendimento’, embora não seja uma
lei, nem mesmo possa ser definido como contrato celebrado diretamente
entre as partes interessadas, criou no devedor a justa expectativa de que,
comparecendo ao estabelecimento oficial de crédito a fim de fazer o acerto
de contas, teria o prazo de suspensão de 90 dias, para o encontro de uma
solução extrajudicial. Havia, portanto, o direito do executado de obter a
suspensão do processo de execução, demonstrando ter se apresentado para o
acerto de contas. Não se trata de hipótese legal de suspensão, mas de
obrigação publicamente assumida pela parte de que teria aquela conduta,
cumprindo ao juiz lhe dar eficácia.”
Desde logo se observa, em relação à decisão supratranscrita, que
ainda não havia um contrato aperfeiçoado entre as partes, mas tão-somente um
comportamento adotado pelo credor e que, embora não atendesse aos
requisitos para que pudesse ser considerado um contrato, já foi suficiente para
gerar na outra parte (o devedor) a justa expectativa de que o segundo
comportamento seria o de suspender a execução, o que não foi feito,
frustrando a expectativa e desatendendo ao dever de lealdade, derivado da
boa-fé.
Aliás, parece-nos que cabe pequeno reparo ao teor do Acórdão,
pois do mesmo consta que havia a “obrigação” de suspender a execução. Ora,
se de obrigação se tratasse não haveria a necessidade de se recorrer ao
instituto da boa-fé, sendo suficiente que se valesse o julgador das normas
referentes ao cumprimento das obrigações. A questão será examinada em
detalhes, mais à frente, no item 2.3.2.1, c.
Ainda dentre as decisões do Superior Tribunal de Justiça que
expressamente determinam a observância, pela Administração Pública, do
princípio da boa-fé enquanto norma de conduta, vale destacar o que consta do
Recurso Especial 141879/SP. Tratou-se de situação na qual um Município
150
celebrou contratos de promessa de compra e venda, referentes a lotes
integrantes de uma gleba de sua propriedade. Posteriormente, no entanto, o
próprio Município decidiu promover a anulação judicial dos contratos de
promessa, ao argumento de que o parcelamento não estava regularizado, por
faltar-lhe o devido registro. A ementa foi publicada nos seguintes termos:
Loteamento. Município. Pretensão de anulação do contrato. Boa- fé. Atos
próprios. - Tendo o Município celebrado contrato de promessa de compra e
venda de lote localizado em imóvel de sua propriedade, descabe o pedido de
anulação dos atos, se possível a regularização do loteamento que ele mesmo
está promovendo. Art. 40 da lei 6.766/79. - A teoria dos atos próprios
impede que a administração publica retorne sobre os próprios passos,
prejudicando os terceiros que confiaram na regularidade de seu
procedimento. Recurso não conhecido. 178
E no voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar lê-se expressamente
que “o princípio da boa-fé deve ser atendido também pela administração
pública, e até com mais razão por ela, e o seu comportamento nas relações
com os cidadãos pode ser controlado pela teoria dos atos próprios, que não
lhe permite voltar sobre os próprios passos depois de estabelecer relações em
cuja seriedade os cidadãos confiaram”.
Situação que, no Brasil, vem se repetindo com enorme
freqüência, é a da contratação de trabalhadores, pela Administração Pública,
sem o necessário concurso público, em burla à vedação que se encontra
expressa no artigo 37, II, da Constituição Federal de 1988. Posteriormente,
após a dispensa do trabalhador sem que este nada tenha recebido, e
confrontada com o pedido judicial de verbas trabalhistas, a Administração
Pública alega que as mesmas não são devidas, pois a contratação sem
concurso é nula e por isso não pode gerar efeitos jurídicos.
178
STJ, 4ª Turma, REsp 141.879/SP, Rel. Ruy Rosado de Aguiar, Ac. unânime, j. 17.03.1998, p. DJ
22.06.1998, p. 90.
151
Como se vê, em tais casos, a Administração Pública procede ao
arrepio da lei, contratando sem concurso, e mais tarde pretende alegar que a
contratação sem tal requisito não pode servir como fonte de produção de
efeitos jurídicos, em virtude da nulidade absoluta do contrato. Os tribunais
superiores pátrios, tanto o Tribunal Superior do Trabalho quanto o Superior
Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, têm repelido com firmeza,
ainda que com uma certa timidez, essa linha de argumentação, que no fundo
acaba por se configurar em venire contra factum proprium 179.
Com efeito, como se vê na Súmula 363, do Tribunal Superior do
Trabalho, a contratação de trabalhadores sem concurso público, por parte da
administração publica, vai sempre gerar efeitos jurídicos, consistentes no
pagamento dos salários dos dias efetivamente trabalhados e no recolhimento
do FGTS sobre tais salários.
Tais efeitos reconhecidos, ao que nos parece, ainda são muito
poucos, e outros mais poderiam sê-lo, como por exemplo a anotação da
Carteira de Trabalho e o pagamento de parcelas como as férias e o 13º salário,
e por essa razão foi que dissemos, no parágrafo anterior, que há uma certa
timidez no posicionamento dos tribunais superiores pátrios. Contudo, não se
pode deixar de observar que já se tem aí uma obrigação de comportamento
coerente, imposta à Administração Pública, da qual não se admite que atue de
modo ilegal para, ao depois, alegar a própria ilegalidade como causa de
afastamento de todos os efeitos do ato.
E há, por último, um aspecto importantíssimo, no que se refere à
necessidade da Administração Pública se comportar de boa-fé, não atuando de
modo contraditório, ou seja, não “voltando sobre seus próprios passos”. É que
179
Na realidade, essa mesma situação também poderá ser caracterizada como tu quoque , como melhor
abordaremos mais à frente, no item 2.3.2.1.c.1.
152
o comportamento abusivamente contraditório da Administração Pública, ao
contrário do que ocorre em relação ao comportamento do particular, pode se
dar sem que isso necessariamente ocorra dentro de uma mesma relação
jurídica. Expliquemos melhor.
Quando se analisa o comportamento de um particular, para que se
possa avaliar se esse comportamento ofende a boa-fé, por se mostrar
contraditório com uma conduta anterior, essa análise é feita dentro de um
mesmo negócio jurídico (ou, pelo menos, dentro de um conjunto de negócios
que se desenvolveram entre as mesmas pessoas), dentro do qual um primeiro
comportamento de um dos sujeitos gerou no outro a expectativa legítima
acerca de como poderia ser um segundo. Assim, por exemplo, examinam-se os
comportamentos anterior e posterior de um prestador de serviços, no mesmo
contrato de prestação de serviços, para que se possa aferir a eventual
existência de contradição.
Em relação à Administração Pública, no entanto, outra é a
situação. É que a Administração, por evidente, adota políticas impessoais, que
direcionam as vidas dos seus súditos, ainda que com estes não seja mantida
qualquer negociação direta. Ou seja, a Administração Pública adota certas
linhas de conduta, ou determinados pontos de vista jurídicos, e a partir desses
atos, os administrados programam os seus próprios negócios, suas próprias
atuações. Logo, a mudança súbita da linha diretriz seguida por essa mesma
Administração, poderá surpreender negativamente o súdito, causando-lhe
prejuízos de grande monta.
153
Nesse mesmo sentido a lição de Béatrice Jaluzot180, para quem,
dentro de certas condições, um comportamento desleal pode decorrer da
adoção de um ponto de vista jurídico que se mostra em contradição insolúvel
com um comportamento anterior do sujeito. Isso não implica necessariamente,
prossegue a autora, que os comportamentos anterior e atual, que se mostram
contraditórios, tenham sido adotados em uma mesma relação obrigacional, ou
que a confiança de um dos contratantes, que se mostre digna de ser protegida,
seja constituída pelo comportamento precedente. Em outras – e, pensamos,
mais claras – palavras, a confiança pode ser gerada a partir da simples adoção
de uma posição política ou jurídica, e não necessariamente a partir da prática
de um determinado ato.
Entre nós, além de inúmeras situações concretas que poderiam
servir como exemplo, pode-se apontar a hipótese da adoção, com ampla
divulgação na mídia, pelo Goferno Federal, da política de incentivo à
produção de um determinado tipo de produto agrícola. Os produtores rurais,
induzidos por tal política governamental, investem maciçamente na referida
produção. Em seguida, no entanto, o Governo Federal entende que não é mais
conveniente aquele tipo de produto, pois houve uma supersafra, e
simplesmente abandona os produtores à própria sorte, não cuidando sequer de
providenciar os meios necessários ao escoamento da produção, como por
180
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 90, n° 329. E a ilustre autora francesa exemplifica narrando situação enfrentada pelo poder
judiciário alemão, após a reunificação da Alemanha. Na Alemanha Oriental havia uma empresa estatal que,
obrigatoriamente, tinha que funcionar como intermediária em todos os contratos celebrados entre empresa da
Alemanha Oriental com empresa da Alemanha Ocidental, mediante o pagamento de uma taxa. Após a
reunificação, essa empresa estatal, intermediária obrigatória, foi dissolvida, e foi sucedida pelo Estado Federal
quanto aos créditos referentes às taxas pelas intermediações que já haviam sido feitas, e o Estado sucessor
pretendeu cobrar judicialmente a dívida de uma empresa. A Corte Federal Alemã, no entanto, entendeu que
havia, ali, um comportamento contraditório por parte do Estado Federal, uma vez que este pretendia se valer
de um contrato forçado, originário de uma economia comunista, quando ele mesmo era um Estado que se
apoiava em um sistema de economia de mercado, e no qual a liberdade contratual se apresentava como uma
das garantias fundamentais. A contradição estaria no fato de que um Estado com economia de mercado
pretendesse se beneficiar das regras de uma economia comunista.
154
exemplo a existência de um meio de transporte adequado ou um porto
marítimo. Trata-se, a toda evidência, de hipótese clara de caracterização do
venire.
1.8. A responsabilidade pré e pós-contratual e a complexidade das obrigações.
Tema que encontra forte ligação com a boa-fé objetiva, é o que se
refere ao exame das obrigações como um processo, ou seja, como uma relação
complexa, formada por deveres acessórios, que acompanham as prestações
principais das partes e que destas são independentes, mas que sempre
caminham com a finalidade de buscar o adimplemento da obrigação 181, por
isso que já se disse que o cumprimento da obrigação é a regra, e o
inadimplemento se constitui na “parte patológica do direito obrigacional” 182.
É que o desenvolvimento desse processo é que requer a cooperação e a
lealdade recíproca entre as partes, para que ambos caminhem em direção à
finalidade comum do negócio, e por isso requer que ambos se comportem
segundo a boa-fé.
Esse tema, como veremos em seguida, começou a ser estudado
como decorrência dos estudos sobre a chamada responsabilidade précontratual.
A questão da responsabilidade pré-contratual veio a ser
examinada, pela primeira vez, na Alemanha, por Rudolf Von Jhering 183, com a
181
Entre nós, o primeiro a fazer tal afirmação foi Clóvis do Couto e Silva, A obrigação como um
processo, pp. 5-6. Ensina o mestre, logo na introdução de sua obra, que é “o adimplemento [da prestação]
atrai e polariza a obrigação. É o seu fim. O tratamento teleológico permeia toda a obra, e lhe dá unidade...
Como totalidade, a relação obrigacional é um sistema de processos”.
182
Agostinho Alvim, Da inexecução das obrigações e suas conseqüências, p. 3.
183
Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 528. No mesmo
sentido, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, p. 272. E este último esclarece, na mesma
obra e local citados, que os estudos de Jhering tinham por objeto a consideração da boa-fé dos contraentes a
155
denominação de culpa in contrahendo. Jhering baseou seu exame em um
contrato de compra e venda à luz do direito romano, detendo-se especialmente
na situação em que o contrato apresentasse um vício que o tornasse nulo,
sendo tal vício desconhecido do comprador. Este, em tal caso, poderia ajuizar
ação para exigir a conclusão de um contrato válido ou, ao contrário, poderia
apenas buscar o ressarcimento dos danos referentes aos gastos que teve com a
preparação do contrato e com a sua não conclusão 184.
Em tal situação, o vendedor responderia pelos danos não em
virtude do contrato ser nulo, uma vez que a nulidade decorre diretamente da
aplicação da norma legal, mas sim do fato de que deveria ter conhecimento do
respeito da celebração de um negócio nulo ou anulável, mas que os horizontes da responsabilidade prénegocial se expandiram cada vez mais, até englobarem em seu conceito também as hipóteses de negócio
válido e eficaz, mas que no processo de formação haviam surgido danos a serem reparados, e ainda as
situações nas quais não se tinha celebrado negócio algum, em virtude de ruptura da fase negociatória ou
decisória.
184
Indaga Josserand, analisando a questão referente ao direito de não contratar, ou seja, o direito de se
recusar a dar ao negócio a conclusão que a outra parte deseja, se tal direito é suscetível de abuso. Em
princípio, prossegue, a resposta é negativa, pois o contrato é definido como o livre acordo entre duas
vontades, e a idéia de contrato obrigatório seria um monstro jurídico, uma contradictio in adjeto. No entanto,
informa Josserand que há casos em que essa recusa pode se mostrar abusiva ou, até mais do que isso, pode
mesmo se mostrar ilegal, intrinsecamente ilícita. Isso poderia acontecer, por exemplo, em relação àqueles que
exercem suas atividades por autorização ou delegação do poder público e sob o controle deste. Tais pessoas
não podem pretender escolher seus clientes ou negar seus serviços a quem os solicitar, de modo arbitrário.
Seria o caso dos notários, operadores de câmbio, instituições financeiras, etc. Da mesma forma, as empresas
que exercem um monopólio de direito ou de fato não têm a faculdade de escolher seus clientes, como ocorre
com as estradas de ferro, com as empresas de ônibus ou de transporte aéreo. Refere-se o mestre, ainda, ao
caso de teatros e cassinos (em geral, casas de diversão abertas ao público), que não têm o direito absoluto de
recusar a entrada, em seu estabelecimento, de quem bem entenderem. Essa hipótese de vedação arbitrária do
ingresso está se tornando cada vez mais comuns em danceterias (ou estabelecimentos semelhantes) das
grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, onde a entrada de clientes pode ser permitida ou negada de
modo absolutamente arbitrário, conforme a boa ou má-vontade de um todo-poderoso porteiro do
estabelecimento. Josserand cita antiga decisão da Corte de Cassação (nota 3, p. 128), de fevereiro de 1896, em
hipótese na qual o Cassino de Nice pretendia se valer do “direito absoluto e sem controle” de recusar a
entrada de quem bem entendesse. A Corte entendeu que tal pretensão era infundada, não podendo ser
invocadas as regras sobre a liberdade de comércio ou da indústria para barrar o acesso ao cassino sem
qualquer razão plausível, apenas por capricho ou rancor. Não é demais lembrar que no nosso Código Civil,
especificamente no artigo 429, foi disciplinada a questão da oferta ao público, que equivale à proposta de
contratar. Logo, se uma casa de diversão divulga seus eventos para o público em geral, tem-se aí uma situação
equivalente a uma proposta de contrato, e esse estabelecimento estará obrigada a mantê-la para quem quer que
concorde com os termos em que foi feita. Ademais, não custa lembrar que a discriminação pura e simples
entre os “candidatos a freqüentadores” viola, mais do que o princípio da isonomia, o princípio basilar da
dignidade humana, sendo por isso, ao nosso ver, inaceitável. Cf. Louis Josserand, L’Esprit des Droits et de
leur Reativité – Théorie dite de l’Abus des Droits, pp. 126-129.
156
vício capaz de gerar a nulidade e tomar as providências capazes de evitá-la. O
problema que se constitui no principal foco da investigação de Jhering, no
entanto, surge no momento em que se procura determinar a natureza jurídica
dessa responsabilidade do vendedor, ou seja, seria contratual ou aquiliana?
Em uma primeira análise, como não houve qualquer contrato
válido entre as partes, parece que essa responsabilidade do vendedor só
poderia ser aquiliana, ou seja, extracontratual. Jhering, no entanto, sustentou
que os danos do comprador só se concretizaram em virtude de uma declaração
de vontade que tinha o escopo específico de fazer surgir um contrato, e por
isso a responsabilidade do vendedor, no direito romano, deveria ser
considerada como contratual185.
185
Doutrinadores mais modernos, contudo, apontam que a proximidade, o contato entre os sujeitos, já é
capaz de gerar a relação contratual de fato, da qual decorre um liame obrigacional entre os sujeitos, capaz de
gerar os mesmos efeitos jurídicos do contrato. Mário Júlio de Almeida Costa, por exemplo, assinala que, em
certos casos, ligados aos bens e serviços massificados, o comportamento de uma pessoa, pelo seu significado
social típico, ainda que não apresente os requisitos jurídicos para a configuração de um contrato (por não
restar atendida a forma ou por não ter havido uma declaração de vontade, por exemplo), pode ser
caracterizado como uma relação contratual de fato (ou, como preferem alguns, um comportamento social
típico, denominação que tem a vantagem de deixar claro que não depende de uma declaração da vontade,
como ocorre com os contratos) capaz de gerar as mesmas conseqüências jurídicas de um contrato, mas que
com este não se confunde. Assim, prossegue o autor português, “decorre da doutrina exposta que a
autonomia privada se realiza através de duas formas típicas: uma delas é o negócio jurídico, designadamente
o contrato – no qual a aparência de vontade e as expectativas criadas podem ceder diante da falta de
consciência de declaração ou incapacidade do declarante; a outra reporta-se às relações contratuais fáticas
– onde a irrelevância do erro na declaração e das incapacidades se justifica por exigências de segurança, de
celeridade e demais condicionalismos do tráfico jurídico”. Cf. Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das
Obrigações, p. 203. Essa doutrina dos “comportamentos sociais típicos” foi invocada pelo Superior Tribunal
de Justiça, em situação na qual se discutia a responsabilidade de um estabelecimento bancário, em virtude do
furto do veículo de um cliente, em área disponibilizada para o atendimento à clientela. O STJ esclareceu, no
Acórdão, que não se tratava de contrato de depósito, havido entre o cliente e o banco, mas que ainda assim
uma vinculação obrigacional entre ambos, decorrente da simples existência da “conduta socialmente típica”, e
que em virtude desta incumbiria ao “estabelecimento fornecedor do serviço e do local de estacionamento o
dever, derivado da boa -fé, de proteger a pessoa e os bens do usuário”. Esclareceu, ainda, aquela Corte
Superior, que “não há cuidar de contrato de depósito, simplesmente porque não existe contrato de depósito.
Há apenas o descumprimento do dever de proteção, que deriva da boa-fé, dever secundário independente. No
âmbito da responsabilidade civil, seria dispensável estabelecer a distinção entre a responsabilidade
contratual ou extracontratual, pois ambas encontram sua fonte no ‘contato social’”. STJ, 4ª Turma, AgRg no
Ag 47.901/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 12.09.1994, DJ 31.10.1994, p. 29505. Veja -se que, como
bem elucidou o referido Acórdão, para efeitos práticos mostra-se irrelevante perquirir se houve ou não o
contrato, vale dizer, se a responsabilidade é contratual ou aquiliana, pois de qualquer modo é certo que haverá
o dever de reparar os danos sofridos.
157
A partir de tal análise, Jhering conclui que ainda que um contrato
seja nulo, dele poderão decorrer conseqüências jurídicas, e que tal acontece
porque em um contrato, se por um lado é certo que o objetivo principal é no
sentido de que sejam cumpridas as prestações principais (no caso da compra e
venda, a entrega da coisa, pelo vendedor, e o pagamento do preço, pelo
comprador), por outro lado também existem alguns objetivos acessórios,
como, por exemplo, a devolução das arras que já foram entregues, e mesmo no
caso em que não devam ser cumpridas as prestações principais, em virtude da
nulidade do contrato, ainda assim sobrevive a necessidade de cumprimento
dos elementos acessórios.
Tomando essa constatação como ponto de partida, pode-se
observar que em uma relação obrigacional existem as prestações principais, a
serem cumpridas pelos sujeitos envolvidos, e que sem sombra de dúvida se
constituem no principal elemento da obrigação. No entanto, ao lado dessas
prestações principais, existem vários outros deveres laterais, ou acessórios, e
que também devem ser observados e cumpridos pelos sujeitos da relação
obrigacional186, que deverão observar determinadas condutas. Em outras
186
As obrigações acessórias são uma criação jurisprudencial comum aos sistemas jurídicos francês e
alemão, e são fundamentais para o estudo das obrigações com suporte no princípio da boa-fé, tendo
influenciado consideravelmente o direito dos contratos contemporâneo. Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi
dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 511, n° 1750. E esclarece a
autora, ainda, na mesma obra (p. 510, n° 1752), que a denominação usada é diversificada, falando-se em
“obrigações acessórias”, “obrigações secundárias”, “obrigações de comportamento”, “obrigações fundadas na
boa-fé”, etc. Na realidade, encontra-se na doutrina quem sustente a diferenciação em virtude da adjetivação
dos diversos deveres: os deveres secundários seriam aqueles que complementam a prestação principal, como
por exemplo o dever do vendedor de entregar a coisa em perfeito estado de funcionamento; os deveres
acessórios, por sua vez, seriam aqueles ligados à conduta do sujeito, e não à prestação, tais como o dever de
informação, o de proteção, etc. Nesse sentido, por exemplo, a lição de Rogério Ferraz Donnini,
Responsabilidade Pós-Contratual no Novo Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, p. 40. Outra
divisão, ainda, pode ser encontrada em Laerte Sampaio, que os separa em deveres principais e secundários,
sendo estes últimos subdivididos, ainda, em secundários acessórios da prestação principal e secundários com
prestação autônoma, e acrescenta, ainda, os deveres laterais, sendo nestes últimos que se enquadrariam os
decorrentes da boa-fé. Cf. Laerte Marrone de Castro Sampaio, A boa-fé objetiva na relação contratual, pp.
54-55. Neste trabalho, no entanto, usamos as expressões “deveres laterais”, “deveres acessórios”, deveres
secundários”, etc., como se fossem sinônimas, sem maiores preocupações com a distinções entre elas, mesmo
porque pensamos que tal distinção é artificial e cerebrina, sem maiores interesses práticos. Com efeito, se
158
palavras, o que se observa é que “o contrato não envolve só a obrigação de
prestar, mas envolve também uma obrigação de conduta” 187.
É que a obrigação não pode, a toda evidência, ser resumida
exclusivamente ao cumprimento das prestações centrais, eis que tal
cumprimento requer uma série de medidas complementares, que servirão para
possibilitá-lo. Assim, esses deveres laterais não estão diretamente ligados ao
cumprimento das prestações principais (pelo menos os que nos interessam no
presente estudo), vale dizer, não se confundem com estas, mas funcionam
como elemento de apoio para que as partes envolvidas na obrigação possam se
desincumbir a contento de suas respectivas obrigações principais.
De modo mais claro, pode-se dizer que os deveres acessórios
servem, dentre outras coisas, para possibilitar que um contrato venha a ser
celebrado, por exemplo, pois neles está englobado o dever de esclarecimento
sobre todas as circunstâncias relevantes, que digam respeito a tal contrato. Ou
seja, antes de celebrar o contrato, e mesmo para decidir se irá ou não celebrálo, cada um dos possíveis contratantes deverá receber do outro todas as
informações e esclarecimentos que se façam necessários, pois só de posse de
tais dados é que poderá manifestar sua vontade de modo a que esteja isenta de
qualquer vício, pois sempre lhe caberá a opção de não contratar, caso não
concorde com as circunstâncias que já lhe foram previamente esclarecidas.
Se optar por contratar, uma vez celebrada a avença, os deveres
acessórios funcionarão como balizamento para o comportamento dos
contratantes, pois tal comportamento deverá ser orientado, em todos os
entre as partes há o dever de cooperação recíproca, como decorrência da boa-fé, então parece-nos que pouco
importa, para fins práticos (em relação ao estudo da boa-fé, bem entendido), se essa cooperação se dirige a
permitir o próprio cumprimento da prestação principal ou se é para permitir que a outra parte possa colher o
máximo proveito dessa prestação.
187
Cláudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações
contratuais, P. 108.
159
momentos, para que se possa chegar ao ponto culminante do contrato, que é o
cumprimento das prestações principais, e nesse sentido os deveres laterais
servem como preparação para o cumprimento da prestação central.
Os contratantes, portanto, desde quando começam a entabular as
conversações sobre a celebração do contrato e ao longo de toda a execução
deste, deverão se comportar com lealdade, um em relação ao outro, não
adotando qualquer medida que impeça a outra parte de cumprir sua própria
prestação ou de obter o máximo proveito da prestação que receber. É nesse
sentido que ensina Orlando Gomes 188 que a boa-fé deve traduzir o interesse
social de segurança das relações jurídicas, e por isso “as partes devem agir
com lealdade e confiança recíprocas... entre o credor e o devedor é
necessária a colaboração, um ajudando o outro na execução do contrato”.
Mas é evidente que não se trata, tão-somente, do surgimento de
obrigações negativas, ou seja, não basta que cada uma das partes se abstenha
de praticar qualquer ato que impeça a outra de obter o máximo proveito da
prestação recebida. Pelo contrário, a boa-fé impõe a obrigação de fazer
(positiva, portanto) tudo quanto seja necessário para assegurar à contraparte o
resultado útil da prestação, ou seja, cada contratante não estará limitado
apenas àquilo que expressamente assumiu no contrato, mas a tudo o que se
mostrar necessário para assegurar ao outro o resultado útil da prestação
devida189.
Veja-se que o exame dos contratos à luz do princípio da boa-fé
conduziu a uma importantíssima modificação, eis que o contrato deixou de ser
188
Orlando Gomes, Contratos, p. 43.
Emilio Betti, Teoria generale delle obbligazoni, v. I, p. 94. “...il criterio della buona fede porta ad
imporre, a chi deve la prestazione, di fare tutto quanto è necessario – sia stato o non sia stato detto – per
assicurare alla controparte il risultato utile della prestazione stessa... Pertanto possiamo dire che la buona
fede, in quanto integrativa dell’obbligo testualmente assunto col contratto, impone al debitore di fare non
soltanto quel che egli ha promesso, ma tutto quello che è necessario per far pervenire alla controparte il
pieno risultato utile della prestazione dovuta”.
189
160
visto como a representação de direitos antagônicos, levando os contraentes a
serem considerados como parceiros, e não mais como opositores um do outro,
como informa Laerte Marrone de Castro Sampaio 190. E essa necessidade de
que os contratantes colaborem um com o outro afeta toda a sociedade, eis que
todo contrato cumpre uma função social, e por isso interessa à sociedade que
os contratantes atuem de modo correto, criando um novo espírito contratual,
que pode ser chamado de princípio da sociabilidade191.
Na medida em que as relações sociais e econômicas vão se
tornando mais e mais complexas, também as relações obrigacionais seguem a
mesma tendência, pois estas estão em função direta daquelas, e a
conseqüência é a hipertrofia do conteúdo dessas relações obrigacionais, que
cresce de modo contínuo e paralelo ao aumento de complexidade das relações
sociais. O problema foi magistralmente descrito por Josserand192, para quem
“...é o mundo das obrigações que se multiplica em todos os seus
compartimentos, e cria, com as suas transformações incessantes e rápidas,
uma sociedade cada vez mais complexa e mais ativa; as relações
obrigacionais estão em função das relações econômicas e sociais, de modo
que a intensificação destas determina fatalmente o desenvolvimento
daquelas; a multiplicação das relações entre os seres humanos determina
necessariamente um entrelaçamento dos liames jurídicos, e a hipertrofia do
conteudo obrigacional dos contratos nao é senão uma das manifestações
mais características desse fenômeno”.
E mesmo depois de concluído o cumprimento das prestações
principais, muitas vezes ainda se mostrará necessário que um deles preste
assistência ao outro, esclarecendo sobre o correto uso de um equipamento, por
exemplo, ou então garantindo a obtenção de peças que se mostrem
190
Laerte Marrone de Castro Sampaio, A boa-fé objetiva na relação contratual, p. 30.
Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do Direito Privado, p. 551.
192
Louis Josserand, O Desenvolvimento Moderno do Conceito Contratual. In: Revista Forense, n° 72,
Dezembro de 1937, p. 533.
191
161
indispensáveis à manutenção, ou ainda evitando uma concorrência que possa
se mostrar desleal, por captar a clientela que antes comparecia ao negócio que
foi para o outro alienado.
Como se vê, apenas a partir desse breve exemplo acima indicado,
os deveres acessórios se desdobram em diversos matizes, podendo surgir antes
mesmo de vir a se concretizar a obrigação (ou mesmo em hipóteses nas quais
a obrigação nem virá a se concretizar), manifestando-se ao longo de toda a
vigência da mesma, impelindo os sujeitos envolvidos a se comportarem de
modo tal que cada um deles não apenas cumpra a sua prestação, mas também
obtenha a prestação que lhe é devida e dela possa obter o máximo proveito, e
em alguns de seus aspectos ainda perdurando mesmo depois que as prestações
principais já foram corretamente cumpridas por cada um deles.
Esses múltiplos deveres acessórios, portanto, permeiam as
relações sociais em geral, e não apenas os contratos, sendo exatamente por
essa razão que podem surgir independentemente de ainda não ter surgido o
contrato e ainda mesmo que este nem ao menos venha a se aperfeiçoar ou,
ainda, como veremos adiante, mesmo depois do mesmo já ter sido extinto.
É nesse sentido, indicado no parágrafo anterior, que Emilio
Betti193 afirma que a lei exige de ambos os contratantes o mútuo respeito à
boa-fé, tanto no momento em que se vai formar o vínculo obrigatório quanto
durante o desenvolvimento da relação contratual e por ocasião da execução da
obrigação, sendo que, por essa razão, prossegue o ilustre autor italiano, para se
compreender o verdadeiro sentido da boa-fé é preciso observar todas as
193
Emilio Betti, Cours de Droit Civil comparé des obligations, 1957-1958, p. 79. “En obéissant aux
exigences morales de la conscience sociale, la loi exige de tous les deux contractants un respect mutuel de la
bonne foi, soit au moment de la formation du lien obligatoire, soit pendant le dévellopement du rapport e
dans l’exécution de l’obligation... Or pour bien comprendre le sens de ce standard ou critérium-guide
qualifié, comme ‘bonne foi’, il faut embrasser d’un coup d’oeil les multiples exigences d’une communion
sociale et les devoirs qu’elles comportent pour les particuliers qui y coexistent”.
162
múltiplas exigências impostas pela vida em comunidade e os deveres que daí
decorrem para os particulares que dela fazem parte.
Nessa ótica, os deveres laterais podem ser desmembrados em
deveres de proteção, de informação, de lealdade, de assistência, etc. Na
realidade, embora alguns autores apresentem suas próprias classificações, o
fato é que não é possível uma sistematização uniforme, ou seja, não é possível
estabelecer uma lista taxativa, contendo todos os deveres acessórios que
podem surgir nos casos concretos, tamanha é a sua diversidade.
Essa variabilidade dos deveres acessórios pode ser facilmente
explicada se observarmos que o próprio conteúdo normativo da boa-fé só pode
ser delineado em cada caso concreto, em função das peculiaridades desse
mesmo caso (veja-se, retro, o item 1.6). Em outras palavras, o conteúdo da
boa-fé, enquanto norma de conduta, como já vimos, varia conforme as
circunstâncias de cada caso concreto onde se busca esteio no princípio da boafé, e tal conteúdo se mostrará diferente cada vez que forem diferentes as
realidades fáticas dos casos examinados.
Dessa forma, se os deveres secundários se apresentam como
manifestações concretas da boa-fé, vale dizer, se tais deveres se revelam, em
cada situação real, como sendo a conduta a ser adotada pelo sujeito, para que
seu comportamento obedeça aos ditames da boa-fé, é evidente que, se o
conteúdo da boa-fé se mostra variável, então os deveres acessórios, que são
uma das suas manifestações concretas, também se mostrarão diversificados,
variando em cada hipótese concreta, em função das características dessa
mesma hipótese, da mesma forma que ocorre com a boa-fé em si mesma, que
é a fonte de onde se irradiam os deveres laterais. Em resumo, se a fonte (a
boa-fé) varia, o que dela se origina (os deveres laterais) também varia.
163
Béatrice Jaluzot 194 aponta como sendo de Wilhelm Weber a mais
clara das classificações dos deveres acessórios, contendo seis categorias
principais:
a) obrigação de diligência em sentido estrito, que impõe um
comportamento de modo a assegurar uma execução diligente do contrato,
compreendendo, entre outras, a obrigação de vigilância, a de enviar a coisa e
as obrigações de tomá-la sob sua proteção;
b) obrigação de proteção em sentido estrito, prevenindo os danos
não apenas em relação ao objeto da prestação, mas também quanto aos objetos
necessários à prestação e às partes da relação obrigacional;
c) obrigações de informação, que se manifesta sempre que
houver necessidade de responder a uma questão implícita ou explícita, em
virtude da boa-fé;
194
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, pp. 511-512, n°s 1756 a 1762. Mas a autora acrescenta, ainda, um sétimo dever, por ela denominado
de obrigação de mitigação, e que consistiria na obrigação positiva de evitar o acréscimo dos danos nos casos
onde a inexecução dos contratos faz nascer uma responsabilidade contratual, e exemplifica com uma situação
concreta, na qual o locador esperou onze anos, antes de cobrar os aluguéis em atraso e pleitear a resolução do
contrato, tendo entendido o tribunal, em tal caso, que uma espera tão longa provocou o aumento inaceitável
da dívida, e que por isso estava caracterizada a atuação contrária à boa-fé, por parte do locador (obra citada, p.
521, n° 1795). Em um caso do quotidiano, por nós presenciado, uma locadora de vídeos alugou um DVD para
um cliente, que não o devolveu no prazo assinalado. A locadora, por sua vez, aguardou quase quatro anos
para cobrar a devolução e os aluguéis em atraso, que já superavam os cinco mil reais, ou seja, já equivaliam a
cerca de cem vezes o valor do próprio DVD. Veja-se que o nosso Código Civil, ao disciplinar o contrato de
seguro, trata especificamente de situação onde se pode vislumbrar essa obrigação a qual Béatrice Jaluzot
denominou de mitigação. Trata-se do artigo 771, do nosso Código Civil, onde se lê que o segurado, ocorrido
o sinistro, deverá adotar as medidas imediatas, que se fizerem necessárias (e que estejam ao seu alcance, é
evidente) para minorar-lhe as conseqüências, sob pena de perda do direito à indenização. A situação descrita
pela ilustre autora, não restam dúvidas, se revela de grande importância prática, eis que sua ocorrência, na
prática, é bastante comum. No entanto, pensamos que a denominação própria e a tentativa de enquadramento
como uma categoria à parte se mostram completamente equivocadas, uma vez que essa suposta obrigação de
mitigação, na realidade, nada mais é do que o dever de cooperação. Com efeito, como veremos poucas linhas
à frente, neste mesmo item, o dever de cooperação se caracteriza pela imposição, a cada um dos sujeitos, da
adoção de uma conduta que proteja os interesses do outro, todas as vezes em que for possível fazê -lo sem
prejuízo dos seus próprios interesses e sem que daí lhe decorram grandes sacrifícios. Logo, o que nos parece é
que esse dever de mitigação, como descrito, se enquadra nesse conceito mais amplo de dever de cooperação,
por isso que, ao evitar o acréscimo da dívida alheia, o sujeito nada mais estará fazendo do que proteger os
interesses do outro, sem prejuízo dos seus próprios.
164
d) obrigação de instrução, compreendendo a obrigação de alertar,
de transmitir uma obrigação e de explicação, surgindo todas as vezes em que
houver um dado desconhecido pela outra parte e que deva ser conhecido para
que o contrato possa ser cumprido ou para que essa outra parte possa desfrutar
integralmente da prestação que obteve;
e) obrigação de cooperação, que impõe a necessidade de ajudar a
outra parte na conclusão e na execução de um contrato, e em particular, de
ajudar o outro sujeito do negócio contra os obstáculos surgidos durante a
execução;
f) obrigação de preocupação com o outro sujeito, nascendo das
relações humanas entre as partes e dos interesses comuns, como é o caso, por
exemplo, da fidelidade e da lealdade entre as partes contratantes.
Outra classificação bastante conhecida é a do ilustre civilista
português, Mário Júlio de Almeida Costa195, que primeiramente a apresenta de
modo macro, e em seguida apresentando as hipóteses dos deveres que
denomina de “laterais”, e que são os que se constituem no foco no nosso
estudo, no presente momento. Assim, diz o jurista luso que existem, em
primeiro lugar, os deveres principais (ou primários) de prestação, que se
constituem na “alma” da relação obrigacional, e que definem o tipo do
contrato.
Ao lado deles existem, ainda, os deveres secundários (ou
acidentais) de prestação, e que se subdividem em duas modalidades: a) os
deveres secundários meramente acessórios da prestação principal, que se
destinam a preparar o cumprimento ou assegurar sua perfeita realização; b) os
deveres secundários com prestação autônoma, que ainda podem se apresentar
como sucedâneos do dever principal (por exemplo, a indenização resultante da
195
Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, pp. 65-67.
165
impossibilidade culposa, que substitui o dever principal) ou coexistentes com
o dever principal (no caso da mora ou cumprimento defeituoso, por exemplo).
Além dos deveres de prestação, no entanto, prossegue o jurista
português, na mesma obra e lugar citados, existem ainda os deveres laterais,
que podem derivar de uma cláusula contratual, de um dispositivo de lei ou do
princípio da boa-fé. Os deveres laterais não interessam diretamente ao
cumprimento da prestação principal, e sim ao exato processamento da relação
obrigacional. Esses deveres laterais, prossegue o autor, podem ser
apresentados em vários tipos, como os deveres de cuidado, previdência e
segurança, deveres de aviso e informação, deveres de notificação, deveres de
cooperação, e os deveres de proteção e cuidado relativos à pessoa e ao
patrimônio da contraparte.
De qualquer sorte, convém observar que essas divisões, acima
apresentadas, dos deveres secundários, além de incompletas, ainda apresentam
o pecado da imprecisão, sendo que apenas para fins didáticos é que tais
deveres podem ser apresentados como se houvesse uma clara distinção entre
eles, eis que, na realidade, a linha que separa uns dos outros, muitas vezes,
tem posição incerta e imprecisa, e um mesmo dever pode ser apresentado
como sendo de informação e de proteção, por exemplo, pois apresenta as
características de ambos. Veremos, adiante, alguns exemplos dessa pouca
clareza, que por vezes ocorre na distinção entre os diversos deveres
acessórios.
Esses deveres, como dissemos linhas acima, são independentes da
prestação principal a ser cumprida por cada um dos sujeitos, e essa é a razão
dos mesmos se manifestarem antes de um contrato ser celebrado ou mesmo
que nunca venha a sê-lo, e de se prolongarem mesmo depois que o contrato já
se extinguiu, em virtude do cumprimento das prestações recíprocas. Alguns
166
exemplos ajudarão a melhor esclarecer essas afirmações, desde logo
esclarecendo que os exemplos apresentados não têm a pretensão de esgotar o
rol de deveres acessórios que podem surgir em um caso concreto, mesmo
porque, como já vimos acima, poucas linhas atrás, não existe esse rol taxativo.
Comecemos pelo dever de cooperação, que sem sombra de
dúvida se apresenta como um dos principais – se não o principal – modo de
concretização do conteúdo normativo do princípio da boa-fé, e tanto assim
que, em alguns casos, a cooperação chega mesmo a se confundir com a
solidariedade social, imposta pelo texto constitucional como um dos objetivos
fundamentais da República brasileira (veja-se, sobre esse assunto, o item 1.6,
retro). Essa importância tão destacada do princípio da cooperação pode ser
explicada pelo fato de que, embora se tratando de obrigação acessória, seu
objetivo direto e específico, em muitos casos, é possibilitar o cumprimento das
obrigações principais, preservando o bom andamento do contrato e a
eliminação dos entraves à sua execução.
Suponha-se que em uma relação obrigacional, como garantia da
dívida, o devedor entrega ao credor as ações de uma determinada empresa.
Estando ainda pendente a obrigação, e encontrando-se as ações com o credor,
o devedor pede que ele as venda, em virtude da possibilidade de
desvalorização, e em seguida adquira as ações de uma outra companhia
específica. O credor, no entanto, recusa-se a atender a solicitação. Logo em
seguida, as ações que estavam em seu poder se desvalorizam em 35%,
enquanto as ações que o devedor pretendia adquirir valorizaram-se em 40%.
Na situação acima relatada, entendeu o Tribunal do Império, na
Alemanha, que o credor havia violado o seu dever acessório de cooperação,
imposto em decorrência do princípio da boa-fé, conforme relata Béatrice
167
Jaluzot 196, sendo que, se um dos sujeitos da obrigação (no caso, o credor) pode
sem problemas atender aos interesses do outro (o devedor), sem que daí lhe
decorra qualquer prejuízo ou sacrifício excessivo, e mesmo assim não o faz,
então esse sujeito descumpriu o seu dever de cooperação, agindo de modo
contrário à boa-fé.
Observe-se que a situação mencionada traz interessante solução
para a aferição, nos casos concretos, sobre se houve ou não a infração ao dever
de cooperação. É que, no mais das vezes, para atender esse dever, o sujeito
deverá adotar um comportamento ativo, deverá tomar alguma providência, e
por isso cabe perguntar até onde precisará se esforçar, para cumprir a referida
providência, de modo a não infringir o dever de cooperação. Em outras
palavras, quais sacrifícios podem ser exigidos do sujeito da relação
obrigacional, para que não reste infringido o dever lateral de cooperação?
O critério acima apresentado, para a resposta da pergunta, se
apresenta de modo objetivo: não se poderá exigir do sujeito, a pretexto de
atendimento ao dever de cooperação, o sacrifício desmesurado, a afetação
significativa dos seus próprios interesses, para que possam ser atendidos os do
outro sujeito. No entanto, se for possível a um dos sujeitos atuar de modo a
preservar os interesses do outro, sem que isso implique em sacrificar os seus
próprios interesses e sem que isso lhe demande um grande esforço, então ele
deverá adotar as medidas que se fizerem necessárias, sob pena de restar
violado o dever de cooperação.
Mas não se pode deixar de observar que essa obrigação de
cooperação, dentro de um contrato, não apresenta um conteúdo próprio e
genérico, e por essa razão jamais poderá ser determinada de modo antecipado,
196
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 514, n° 1770.
168
só podendo o juiz, no caso concreto e posteriormente, aferir se houve ou não a
sua violação197.
Vejamos um outro exemplo, agora ligado ao dever acessório de
proteção, que se manifesta tanto em relação à pessoa quanto ao patrimônio do
outro sujeito envolvido. Suponha-se que A pretende comprar um veículo
pertencente a B e, com tal finalidade, o possível comprador vai até a casa do
vendedor, para examinar as condições do veículo e discutir os termos do
negócio. O contrato, no entanto, não chega a ser celebrado, uma vez que A
não se agradou do carro. Enquanto estava na casa de B, contudo, A vem a cair
em um buraco, cuja tampa estava mal colocada e acabou por ceder.
Nessas condições acima descritas, pode-se apontar que, ainda que
não tenha ocorrido a celebração do contrato, já se impunha aos sujeitos
envolvidos o dever de proteção recíproca, e tal dever foi violado por B, que
negligenciou os cuidados que deveria ter tomado, de modo a garantir que A
não seria vítima de qualquer dano. Esse dever acessório de proteção, como
facilmente se percebe, independe de surgirem ou não as prestações principais
(que no caso não surgiram), pois se apresenta como inerente a uma etapa ainda
preparatória para um contrato que é apenas possível. No entanto, tal dever só
se manifestou em virtude de estarem os sujeitos buscando a celebração de um
contrato, e por isso já lhes era imposta a conduta adequada à busca da
proteção recíproca.
Como se vê, portanto, o dever acessório de proteção pode ser
apontado como sendo uma imposição aos sujeitos no sentido de que, ainda
que apenas se esteja na fase das negociações prévias, cada um dele s deve se
abster de causar danos ao outro e, ainda mais, adotar todas as medidas
197
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 516, n° 1777.
169
necessárias para evitar que tais danos ocorram (obrigações negativas e
positivas, como se vê). Devem ser evitados não apenas os danos diretos,
causados à pessoa e ao patrimônio do outro sujeito, mas também os danos
indiretos, ou seja, consistente nas eventuais despesas que foram realizadas por
se mostrarem indispensáveis à contratação.
Na mesma situação da venda do veículo, acima indicada, figurese que o comprador, A, tendo gostado do veículo, foi dirigir o mesmo nos
arredores, para poder decidir se efetivamente iria comprá-lo. Ocorre que o
carro apresentava um problema nos freios, que com alguma freqüência
falhavam, e A veio a sofrer violento acidente, ferindo-se gravemente. Nesse
caso, embora o contrato, mais uma vez, não tenha chegado a ser celebrado,
percebe-se com facilidade que o vendedor, B, deixou de cumprir o dever
acessório de informação, pois deveria ter esclarecido ao comprador A todas as
circunstâncias relevantes que fossem referentes ao negócio, dentre as quais,
obviamente, a questão do freio.
O dever lateral de informação, portanto, impõe a cada um dos
envolvidos nas negociações que preste ao outro todos os esclarecimentos que
se fizerem necessários à correta avaliação do negócio, sendo certo que tais
esclarecimentos funcionarão como elemento fundamental para que ambos os
sujeitos possam avaliar se lhes interessa ou não a conclusão do mesmo.
O dever de informação, como pode ser facilmente imaginado,
comporta uma grande diversidade de conteúdos, uma vez que o seu
atendimento pode ter as mais diversas finalidades, dentro de uma relação
obrigacional. Assim, por exemplo, na fase das negociações pré-contratuais, a
informação deve ser prestada para que o outro sujeito possa avaliar
corretamente se lhe será ou não conveniente a celebração do contrato.
170
Ao longo do contrato, por sua vez, as informações adequadas
podem ter a função de proteger o outro sujeito contra danos decorrentes do
mau uso, ou de permitir que um certo bem, que lhe foi transferido, possa ser
usado, ou de possibilitar que a prestação seja adequadamente cumprida, etc.
E mesmo na fase pós-contratual, muitas vezes poderão ser
necessárias informações, sobre a operação correta de um determinado bem ou
sobre a assistência técnica.
Uma situação específica, na qual a violação do dever de
informação é reprimida pelo nosso Código Civil, é a que se refere à omissão
dolosa, na fase pré-contratual de um contrato bilateral. Com efeito, ao tratar
sobre os defeitos do negócio jurídico, especificamente sobre o dolo, estabelece
o Código, no artigo 147, que nos negócios jurídicos bilaterais, se uma das
partes omite a informação acerca de fato ou qualidade que a outra desconhece,
estará caracterizada a omissão dolosa, se provado que o negócio não se teria
realizado, caso a informação tivesse sido prestada. Em tal hipótese, a presença
do dolo torna o negócio jurídico anulável, nos termos do artigo 145, do
mesmo Diploma Civil.
Seria o caso, por exemplo, do Município que, na França,
negociou com um proprietário a compra de um terreno, omitindo-lhe contudo
que as normas administrativas referentes ao direito de construir, que impediam
a construção nesse mesmo terreno, estavam sendo revisadas, e tanto assim
que, poucos meses depois da compra, já sendo possível a construção, o
Município revendeu o imóvel por valor quatro vezes superior ao que havia
pago (veja-se, para maiores detalhes, o item 1.7, retro, onde a situação é
descrita em suas minúcias). No caso, o imóvel só foi vendido ao Município
porque este, dolosamente, ocultou do vendedor que em breve seria possível
erguer a construção até então proibida.
171
Mas neste ponto é importante observar que viola o dever de
informação não apenas aquele que omite algum esclarecimento, mas também
aquele que presta informações incorretas, e com isso impede que o outro
sujeito possa fazer a correta avaliação de todas as circunstâncias, e em última
análise impede que possa haver a real manifestação livre de vontade, que
haveria se fosse honesta a conduta do que se conduziu de modo a violar tal
dever.
E também é interessante comentar que os deveres secundários,
como já havíamos mencionado linhas atrás (neste mesmo item), muitas vezes
se confundem uns com os outros, nem sempre sendo possível traçar uma
divisão clara entre eles. Assim, por exemplo, muitas vezes o dever de
informação se confunde com o dever de proteção, como no exemplo
apresentado, no qual o vendedor de um automóvel deixou de informar a um
possível comprador, que saiu com o carro para testá-lo, sobre um problema
nos freios. Veja-se que houve clara infração ao dever de informação, mas ao
mesmo tempo também se caracterizou a quebra do dever de proteção, eis que
expôs a perigo a integridade física da outra pessoa.
Da mesma forma, na venda de um produto extremamente tóxico,
deve ser informada ao adquirente essa característica, além de também
deverem ser informadas as precauções que devem ser tomadas para o
manuseio seguro e adequado do produto, o que deve ser feito em caso de
contato ou ingestão acidental com o mesmo, etc. Mas facilmente se percebe
que esse dever, que pode ser caracterizado como sendo de informação,
também pode ser descrito como se tratando de dever de proteção.
A mesma confusão entre os dois deveres colaterais mencionados
também pode ser vista em situação que se mostra extremamente corriqueira, e
que muitas vezes ocorre antes mesmo de ter sido celebrado qualquer contrato
172
ou mesmo depois que tal contrato já foi extinto pelo integral cumprimento. É a
situação de uma loja, por exemplo, cujo piso está sendo lavado. A colocação
de um aviso, indicando que o piso está molhado, e, por isso, escorregadio,
atende não apenas ao dever de informação, mas também ao dever de proteção
aos clientes, ainda que estes ainda não tenham comprado qualquer produto ou
que, já tendo pago o preço e recebido a mercadoria, seus contratos já tenham
sido extintos.
Podemos buscar outro exemplo, agora ligado ao dever de
lealdade, em um caso concreto, do qual tivemos conhecimento, e no qual o
proprietário de um terreno, pessoa medianamente esclarecida, ofereceu-o à
venda, em anúncio público. Um possível comprador, com formação jurídica,
interessou-se pelo imóvel, e fez uma oferta de pagamento parcelado, que foi
aceita pelo vendedor, mediante o esclarecimento (prestado pelo comprador) no
sentido de que, em vez da compra e venda, o negócio celebrado seria o de
promessa de compra e venda, o que conferiria segurança ao alienante.
O possível comprador, então, ofereceu-se para redigir o contrato,
nos exatos termos ajustados por ambos, e o proprietário entregou-lhe toda a
documentação necessária para a elaboração do instrumento contratual.
Passados alguns dias, no entanto, o promitente comprador entrou em contato
com o proprietário e, sem qualquer outra explicação, disse que não tinha mais
interesse no negócio e devolveu-lhe os documentos que havia recebido.
O contrato não chegou a ser celebrado, como se vê, eis que a
promessa de compra e venda só se aperfeiçoa com a obediência à forma
escrita. No entanto, esse abandono injustificado da fase pré-contratual, depois
de ter gerado no outro sujeito a justa expectativa de que o contrato seria
celebrado, de modo muito claro viola o dever acessório de lealdade, que deve
conduzir o comportamento recíproco das partes.
173
É evidente que o simples fato de uma pessoa ter ingressado nas
negociações referentes a um contrato não obriga a que o mesmo venha a ser
efetivamente celebrado, pois tais negociações é que irão, ao final, permitir que
os sujeitos possam decidir pela celebração ou não da avença.
No entanto, parece evidente que, se um dos sujeitos agiu de tal
modo que despertou no outro a justificada confiança na conclusão, a quebra
injustificada de tal confiança (e não o fato de não vir a ser celebrado o
contrato) viola o dever de lealdade, pois o promitente comprador não se
comportou como o proprietário poderia legitimamente esperar que o fizesse,
em virtude de suas atitudes anteriores.
Sobre o tema, vale a pena conhecer a opinião sempre respeitada e
sempre segura de Louis Josserand198, em cujo texto se lê que
“...o direito de contratar não é suscetível de abuso, mas o direito de não
concluir um contrato pode, ao contrário, ser contaminado pelo abuso; o
mesmo direito que na sua forma positiva é absoluto, torna-se relativo, tornase motivado (causé), quando considerado no seu aspecto negativo: a recusa
de contratar pode apresentar um caráter abusivo, não certamente quando se
trata de uma situação completamente negativa, isto é, quando não existe
oferta alguma, pois, nesse caso, não sendo possível forçar-nos a contratar,
poderemos usar integralmente do direito de inércia. Mas é diferente a
situação, desde o momento em que houve uma oferta, a qual constitui, de
certo modo, o embrião de um contrato. Não há dúvida de que, em princípio,
nos é lícito retirar a oferta que tivermos feito: a simples oferta não nos
prende, não tem valor obrigatório. Mas esse direito de retratação não é
absoluto; deve ser motivado; é preciso que ele se apóie em causa legítima;
inspirada em motivos ilegítimos, a revogação da oferta torna-se geradora de
responsabilidade, por ser abusiva; o conceito do abuso encontra aí uma
oportunidade para se manifestar.”
198
Louis Josserand, O Contrato de Trabalho e o Abuso dos Direitos. In: Revista Forense, n° 75,
Setembro de 1938, p. 507. E Josserand exemplifica, na mesma obra e local citados, com os casos ocorridos
em França, nos quais as empresas se recusavam a admitir nos seus serviços qualquer trabalhador que fosse
filiado ao sindicato. Os tribunais resolveram a questão à luz do abuso do direito, condenando o empregador
recusante a pagar indenização.
174
O dever acessório de lealdade, como se observa, pode ser descrito
como a imposição que se faz às partes para que não se desviem de uma
conduta honesta, para que cada uma delas não surpreenda o outro negociante
com comportamentos inesperados e que destoam completamente dos que
haviam sido anteriormente adotados. A partir dos comportamentos
anteriormente observados, surgiu uma relação de confiança entre elas, que
passaram a ter razões fáticas para acreditar em um determinado e específico
desdobramento da questão, sendo em seguida violada, sem qualquer
justificativa, essa mesma crença.
Mas veja-se que esse mesmo dever de lealdade, referindo-se à
conduta honesta de cada um dos contratantes, pode ainda ser desdobrado em
inúmeras facetas, conforme as peculiaridades de cada situação concreta.
Assim, suponha-se que durante o encetamento das negociações uma das partes
precisou expor à outra um segredo industrial, para que fosse possível a
obtenção de um financiamento, por exemplo. É evidente que, em tal caso,
além da vedação do abandono abrupto e injustificado das negociações, como
foi visto no parágrafo anterior, também será imposto aos sujeitos o dever de
sigilo, consistente na vedação de divulgar segredos que tenham sido
apreendidos em decorrência das negociações pré-contratuais.
Ainda em relação ao dever de lealdade, pode-se apontar para o
mesmo, também, a proibição da concorrência desleal, nos casos em que o
contrato já havia sido celebrado e está sendo cumprido. Sobre o tema,
inclusive, encontramos algumas situações claramente positivadas em nosso
direito. Assim, por exemplo, em relação ao contrato de trabalho199, a
199
Em relação aos sujeitos do contrato de trabalho, mais especificamente em relação ao empregado, o
dever de lealdade ganha uma roupagem própria e especial, apresentando-se como um dever de fidelidade do
trabalhador, quanto ao empregador. Esse sentido particular de boa-fé-lealdade impõe ao empregado que se
175
Consolidação das Leis do Trabalho proíbe ao empregado que negocie de
modo habitual, por contra própria ou alheia, quando tais negócios impliquem
em concorrência desleal com o empregador (art. 482, c).
Da mesma forma, a Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245, de
18.10.1991), ao permitir que o locador não residencial se oponha à renovação
compulsória com esteio na retomada do imóvel para instalação de fundo de
comercio próprio, já existente há mais de um ano, esclarece que não poderá
ser usado o imóvel retomado para atividade empresarial do mesmo ramo que
era explorado pelo locatário (art. 52, II e § 1º). A idéia, como se vê, está ligada
diretamente à proibição da concorrência desleal, pois o legislador teve a clara
intenção de evitar que o locador, retomando o imóvel, venha a se aproveitar
dos esforços que o locatário havia feito para captar a sua clientela.
Em um último exemplo, suponha-se que uma gráfica tenha
importado uma moderníssima impressora, sendo a única empresa do ramo, na
cidade, a dispor desse tipo de equipamento, e inclusive tendo enviado um de
seus funcionários para participar de um treinamento na fábrica, para poder
operá-lo. Algum tempo depois, por qualquer razão, essa impressora vem a ser
vendida para uma outra empresa, sendo que o pagamento já foi efetuado à
vista e a máquina já foi entregue. O contrato, portanto, foi celebrado e já foi
cumprido, eis que cumpridas foram suas prestações centrais.
No entanto, mesmo após essa execução contratual, e ainda que
nada tenha sido explicitamente ajustado, é evidente que o vendedor precisará
prestar assistência ao comprador, em relação ao manuseio, auxiliando-o nas
eventuais dificuldades que venham a surgir na operação de tão moderno
equipamento. Ou seja, embora já tenha sido executado o contrato, ainda estará
abstenha de todo ato que possa prejudicar o empregador e que cumpra aqueles que protejam os interesses
deste. Cf. Guillermo Guerrero Figueroa, Principios Fundamentales del Derecho del Trabajo, p. 45
176
presente, entre as partes, o dever lateral de assistência, por um dos
contratantes ao outro, e a quebra desse dever (a negativa da assistência) se
configuraria em inaceitável conduta do alienante.
O dever de assistência, dessarte, pode ser apresentado como o
dever que cada uma das partes tem, não apenas ao longo da execução do
contrato, mas também depois do seu cumprimento, de auxiliar a outra no que
se fizer necessário, para que possa ser obtido, da prestação fornecida, o
rendimento máximo possível, ou pelo menos para que tal prestação possa
continuar a ser útil para quem a recebeu. É esse mesmo dever de assistência
que impõe ao fabricante de um determinado produto que, mesmo que resolva
parar de fabricá-lo, continue a garantir as peças de reposição por um tempo
razoável, que somente poderá ser aferido no caso concreto, conforme a
duração estimada do produto em questão.
Nesse último exemplo figurado, referente à venda da moderna
máquina impressora, abre-se um novo campo de investigação, que é o da
responsabilidade pós-contratual (culpa post pactum finitum). Trata-se, como
se vê, do fenômeno inverso ao da responsabilidade pré-contratual: nesta, os
deveres acessórios se manifestam antes mesmo do pacto vir a ser celebrado,
enquanto que na responsabilidade pós-contratual, ao contrário, trata-se de
deveres acessórios que sobrevivem à extinção do contrato, impondo-se aos excontratantes mesmo depois que o pacto já foi extinto.
E nessa mesma linha de raciocínio, ou seja, em relação aos
deveres que se manifestam após a extinção do contrato, e cuja violação dá
origem à responsabilidade pós-contratual, diversos são os deveres acessórios
que podem ser apontados. Assim, por exemplo, suponha-se que em virtude de
um contrato, um dos contratantes tomou conhecimento de determinadas
informações cuja divulgação poderia causar sérios prejuízos ao outro. Nesse
177
caso, parece evidente que se impõe, mesmo depois do término do pacto, o
dever lateral de não revelar tais informações, que foram obtidas ao longo e em
virtude do contrato.
E também poderiam ser apontados, como deveres acessórios que
se manteriam mesmo após a extinção do pacto, o dever de prestar assistência
técnica, o dever de fornecer peças de reposição por um período que se mostre
razoável para o caso concreto, o dever de prestar todos os esclarecimentos
necessários sobre o funcionamento da coisa alienada, para que o adquirente
possa obter da mesma o máximo rendimento, o dever de proteção, no sentido
de evitar que o outro sujeito venha a sofrer danos em sua pessoa ou em seu
patrimônio, o dever de tolerância, etc.
Muito comum, na prática, tem sido uma situação que se liga
exatamente ao dever acessório de proteção. É no caso do chamado recall, que
com freqüência é feito pelas fábricas de veículos automotores. Muitas vezes, a
partir de pesquisas em laboratório ou de ocorrências concretas, a fábrica
detecta um problema, em relação ao veículo, que pode causar danos aos seus
usuários. Para evitar que tais danos ocorram (dever de proteção), faz ampla
divulgação de um chamado para que os proprietários do veículo em questao
compareçam a uma oficina autorizada, para que o problema possa ser
preventivamente chamado.
Veja-se que, em grande parte dos casos, os proprietários dos
veículos já pagaram integralmente o preço, estando cumprido e extinto o
contrato, mas ainda assim se manifesta o dever acessório de proteção.
Outra situação, cuja ocorrência prática também se revela bastante
comum, é aquela onde havia um contrato de locação de imóvel, na qual o
locatário havia instalado, no prédio alugado, uma loja ou, em se tratando de
um profissional liberal, o local onde recebia e atendia sua clientela. Findo o
178
contrato de locação e mudando-se o locatário para um novo endereço, o
locador deverá aceitar que, durante algum tempo, permaneça afixada, junto ao
imóvel, placa indicativa do novo endereço profissional do locatário, de modo
a lhe permitir o adequado direcionamento de sua clientela.
Também se mostra freqüente a situação na qual um determinado
fabricante, mesmo depois de ter deixado de fabricar um certo produto durável,
deverá ainda continuar, por um período que se mostre razoável, a fabricar e
fornecer as peças de reposição, para o correto e adequado atendimento técnico
aos seus clientes que adquiriram o produto enquanto o mesmo ainda era
regularmente fabricado, e que têm a legítima expectativa 200 de poder continuar
a usar esse mesmo bem durante algum tempo, eis que se trata de produto
durável, como mencionado.
Facilmente se percebe que essas situações de deveres acessórios,
que se manifestam mesmo depois do contrato ter sido extinto, de modo
idêntico ao que ocorre com os deveres pré-negociais, são todas esteadas na
boa-fé, que impõe aos sujeitos envolvidos o dever de, em geral, não frustrar a
confiança que, a partir das negociações que tinham em vista a efetiva
celebração do negócio, veio a surgir entre as partes. Se não fosse assim, vejase que o contrato se resumiria a uma simples troca formal de prestações,
despido de qualquer conteúdo relacional entre as partes, esvaziando-se por
completo tão logo estivessem trocadas as prestações recíprocas.
Faz-se aqui um breve parêntese para uma necessária observação.
É que o leitor mais atento certamente percebeu que, em geral, nos referimos
aos deveres pré-contratuais ou pós-contratuais. Em outras ocasiões, contudo,
200
Não é demais recordar, aqui, a lição de Orlando Gomes, segundo a qual a boa-fé, aplicada em relação
à interpretação dos contratos, dirige-se à aferição da vontade real dos contratantes e é explicada pela
necessidade de proteger a legítima expectativa de cada um dos contraentes e de não perturbar a segurança do
tráfico. Cf. Orlando Gomes, Contratos, pp. 227-228.
179
fizemos referencia aos deveres pré ou pós-negociais. É que, se por um lado
tais deveres têm campo fértil na seara contratual, onde ocorrem com maior
freqüência, por outro, também ocorrem regularmente em outros negócios
jurídicos, além dos contratos.
Imagine-se, por exemplo, um casamento – fora da área contratual,
portanto – que durou longos anos. Após o divórcio, rompido o vínculo
matrimonial, é evidente que cada um dos cônjuges deverá respeitar os
segredos do outro, dos quais teve conhecimento ao longo da convivência na
sociedade conjugal, manifestando-se tais deveres tanto em relação aos
assuntos pessoais quanto em relação, por exemplo, aos assuntos profissionais
do cônjuge. A violação do dever de sigilo, em tal caso, poderá gerar a
responsabilidade civil do cônjuge que o violou, mesmo já estando divorciado
o casal.
Mário Júlio de Almeida Costa 201 aponta que “a expressão mais
rigorosa será a de responsabilidade pré-negocial, dado que o problema
transcende o puro domínio dos contratos”, podendo acontecer, também, em
relação aos negócios jurídicos unilaterais. No entanto, prossegue o autor
português, é a denominação “responsabilidade pré-contratual” que atrai a
preferência dos autores em geral, o que pode ser facilmente explicado pelo
fato de que é nos contratos que se encontra o campo principal de atuação dessa
figura.
Veja-se que em todas essas hipóteses acima o dever acessório se
manifestou em situação na qual não havia a prestação central a ser cumprida,
ou por não ter ainda sido celebrado o contrato, e nem chegou a surgir a
prestação principal, ou por já ter sido o mesmo executado, com o
201
Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, p. 270 (nota de rodapé n° 1).
180
cumprimento, pelos contratantes, das prestações centrais que a cada um deles
incumbia.
O que ocorre é que, em alguns casos, ainda que não existam
vínculos contratuais (ou, pelo menos, não existam mais tais vínculos) entre os
sujeitos,
há
uma
proximidade
tão
grande
entre
eles
que
surge,
espontaneamente, um sentimento de confiança recíproca, que não pode ser
impunemente frustrado, e é dessa situação de confiança que derivam os
deveres laterais tantas vezes citados. Aliás, sobre a confiança já se disse que a
mesma atua como verdadeiro cimento da convivência coletiva 202.
Façamos, por enquanto, breve parêntese, para que possamos falar
especificamente sobre a confiança entre os sujeitos, antes de retomarmos o fio
da meada. A confiança entre as partes se apresenta como um elemento
essencial entre os interesses das mesmas 203, sendo por excelência o elemento
protegido pelo princípio de “Treu und Glauben”, do direito alemão. Aliás,
pode-se observar que a expressão, literalmente traduzida, significa “fidelidade
e confiança”, e segundo a doutrina alemã, o princípio é a expressão da
fidelidade à palavra dada e a obrigação de inspirar confiança, de ser
confiável204.
E não é despiciendo observar que a proteção da confiança não
atende apenas aos interesses privados dos sujeitos do negócio jurídico,
ultrapassando essa esfera tão limitada. Na realidade, o que também se busca é
202
Judith Martins-Costa, O adimplemento e o inadimplemento das obrigações no novo Código Civil e o
seu sentido ético e solidarista. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives
Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, pp. 349.
203
Laerte Marrone de Castro Sampaio, A boa-fé objetiva na relação contratual, p. 28, nota 84.
204
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 86, n° 315.
181
a preservação de um interesse público, consistente na defesa dos valores
sociais da segurança do comércio jurídico205.
Nas palavras de Mário Júlio de Almeida Costa206,
“Através da responsabilidade pré-contratual tutela-se directamente a
confiança fundada de cada uma das partes em que a outra conduza as
negociações segundo a boa-fé; e, por conseguinte, as expectativas legítimas
que a mesma lhe crie, não só quanto à validade e eficácia do negócio, mas
também quanto à sua futura celebração. Convirá salientar, todavia, que o
alicerce teleológico desta disciplina ultrapassa a mera consideração dos
interesses dos particulares em causa. Avulta, com especial evidência, a
preocupação de defesa dos valores sociais da segurança e da facilidade do
comércio jurídico”.
Ora, basta lembrarmos que todo contrato, por exemplo, cumpre
uma função social (como, aliás, se encontra expresso no art. 422, do Código
Civil), ou seja, atende a interesses sociais, e por essa razão existe interesse
público em que tal contrato seja celebrado e cumprido em condições
juridicamente seguras para os contratantes.
Por outro lado, continua Béatrice Jaluzot 207, não é toda e qualquer
confiança que merecerá receber a proteção, mas tão-somente aquela que se
mostre digna de ser protegida, o que ocorre, precisamente, quando a atitude de
uma das partes faz nascer na outra a confiança de que a primeira não praticará
um determinado ato. De modo contrário, a confiança de uma parte não será
digna de proteção quando a mesma já foi previamente advertida sobre o que
ocorreria nesse negócio jurídico em que se encontra envolvida208.
205
Teresa Negreiros, Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-Fé, pp.
70-71.
206
Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, p. 271.
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, pp. 86, n° 316.
208
No entanto, não se pode deixar de observar que “não há relação necessária entre duração das
tratativas e caracterização da confiança na conclusão do contrato, embora não se possa deixar de ponderar
que o estado avançado das tratativas é um excelente indicador da existência da confiança na celebração do
207
182
Além disso, a confiança a ser protegida não é aquela que se
traduz em objetos meramente ideais, abstratos, absolutos e imutáveis no
tempo. Muito pelo contrário, a confiança é um bem cultural, e por essa razão
deve se caracterizar pela existência necessária à ordem jurídico-social que está
vigente naquele momento em que é avaliada, devendo ainda ser dotada do
caráter de realizabilidade. Em outras palavras, em cada lugar e espaço a
confiança será protegida quando tiver concreta eficácia jurídica, servindo
como fundamento de um conjunto de princípios e regras que permitem,
simultaneamente, o cumprimento do que foi pactuado e a repressão à
deslealdade 209.
Retomemos, em seguida, a linha de pensamento que foi
brevemente interrompida, uns poucos parágrafos atrás.
Ora, sendo certo que a situação de confiança decorre diretamente
das tratativas para a celebração de um contrato (ou mesmo da execução de tal
contrato), então os deveres acessórios, que têm sua gênese ligada a esse
mesmo dever de confiança, decorrem, ainda que indiretamente, da busca que
as partes desenvolveram para a celebração da avença ou da execução da
mesma. Em última análise, portanto, pode-se com tranqüilidade apontar que
os deveres acessórios, surgidos embora em um momento pré ou póscontratual, ainda assim têm natureza contratual, pouco importando se o
contrato nem chegou a ser formado ou se, ao contrário, já se extinguiu.
Neste ponto, convém insistirmos na questão da independência dos
deveres acessórios, frente às prestações principais e, mais do que isso, frente
às relações obrigacionais nas quais se inserem. Tal conclusão pode ser
negócio”. Cf. Cristiano de Sousa Zanetti, Responsabilidade pela ruptura das negociações no direito civil
brasileiro, p. 119.
209
Judith Martins-Costa, O adimplemento e o inadimplemento das obrigações no novo Código Civil e o
seu sentido ético e solidarista. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives
Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, pp. 349.
183
facilmente obtida quando se observa que os deveres acessórios se manifestam
ainda quando a relação obrigacional não chegou a ser formada, como vimos
nos diversos exemplos acima, tanto em relação ao dever de proteção, quanto
ao de lealdade e ao de informação. Da mesma forma, se a relação obrigacional
viesse a ser constituída mas depois anulada em virtude de um vício, ainda
assim haveria os deveres laterais.
Assim, por exemplo, suponha-se que pessoa absolutamente
incapaz viesse a comprar uns móveis em uma loja. O contrato de compra e
venda, no caso, é nulo de pleno direito. Não obstante, se os funcionários da
loja, não tendo ainda sido detectada a nulidade, vão efetuar a entrega na
residência do comprador, e lá quebram um vidro ou provocam algum outro
prejuízo, é evidente que o vendedor deverá ressarci-lo, por ter violado o dever
lateral de proteção (neste caso, em relação ao patrimônio do outro sujeito).
Veja-se, pois, que para a ocorrência do dever lateral mostra-se irrelevante a
eventual nulidade do negócio obrigacional, o que confirma a independência
mencionada, entre os deveres acessórios e a obrigação.
Dessarte, antes da conclusão do contrato têm-se os deveres que se
relacionam à culpa in contrahendo,
cuja
violação
dá
origem
à
responsabilidade pré-contratual. Após o cumprimento do contrato, por sua
vez, a violação dos deveres acessórios dá origem à responsabilidade póscontratual. Mas é claro que, além desses deveres acessórios acima
exemplificados, e que se manifestam antes do contrato se formar ou mesmo
depois de sua extinção, é evidente que outros existem e que se concretizam ao
longo da vigência do contrato, quando, após a sua celebração, o mesmo ainda
está sendo cumprido ou nem ao menos começou a sê-lo.
À guisa de mais um exemplo, suponha-se que uma fábrica de
automóveis e uma loja celebraram um contrato para que a segunda passasse a
184
vender, na cidade onde está estabelecida, os veículos fabricados pela primeira,
sendo que no contrato não foi estabelecido o prazo de vigência. Para que o
contrato pudesse ser adequadamente cumprido, o lojista precisou efetuar
algumas despesas que são inerentes ao ramo de venda de veículos, tais como a
construção de um amplo pátio de exposição dos automóveis, expositores
elevados e giratórios, treinamento de pessoal, propaganda, etc.
No entanto, sabe-se que, em regra, os contratos de prazo
indeterminado podem ser rescindidos a qualquer momento pelas partes
contratantes, mediante aviso prévio concedido à outra210, uma vez que
ninguém pode ser obrigado a contratar ou a se manter vinculado a um
contrato. Nessas condições, poucos meses após a inauguração da loja de venda
de veículos, o fabricante dos automóveis resolve denunciar o contrato, dando
aviso prévio de que em sessenta dias o mesmo será rescindido e não mais
permitirá que o comerciante continue a vender seus veículos.
Ora, é certo que o lojista, dono da revendedora, ao efetuar as
significativas despesas que se fizeram necessárias, para que pudesse dar início
ao negócio, fê-lo por acreditar que o mesmo teria duração suficiente para que
seus elevados investimentos pudessem ser recuperados, pois com certeza não
os faria se soubesse da breve ruptura do contrato. Assim, o procedimento
adotado pelo fabricante, rompendo muito cedo e de modo injustificado o
contrato, quebra a confiança do revendedor, e por isso viola um dever
acessório ligado à conduta dos contratantes no cumprimento do contrato.
210
Nesse sentido, alerta Humberto Theodoro Júnior, O contrato e seus princípios, p. 143, que “nos
mecanismos legais de certos contratos onde se inclui, tradicionalmente, a faculdade da resilição unilateral,
figuram sempre ressalvas em defesa do outro contratante, para que o exercício do direito potestativo de
romper prematuramente o vínculo contratual não se faça de maneira ruinosa ou excessivamente lesiva para
ele. A necessidade de um aviso ou notificação seguida de um certo prazo são medidas que invariavelmente se
impõem ao denunciante do contrato”.
185
Essa situação, em particular, foi positivada pelo artigo 473,
parágrafo único, do atual Código Civil brasileiro, que expressamente se refere
aos contratos onde é admitida a resilição unilateral, esclarecendo que nos
casos onde uma das partes precisou efetuar investimentos vultosos, a denúncia
do contrato pela outra só irá produzir efeitos jurídicos depois de ter
transcorrido um tempo que se mostre compatível com o vulto dos
investimentos realizados.
Na realidade, em face do que foi dito acima, neste ponto convém
que se faça um breve reparo, de modo a que possamos melhor vislumbrar os
limites impostos pela boa-fé à conduta do sujeito. É que, poucas linhas atrás,
mencionamos que, em regra, os contratos de prazo indeterminado podem ser
rescindidos a qualquer tempo pelas partes contratantes, mediante a concessão
de aviso prévio à outra. Mais adequado, portanto, é que se faça a ressalva no
sentido de que os contratos de prazo indeterminado, salvo abuso no exercício
de tal direito211, podem ser rescindidos a qualquer tempo. E essa situação
retratada pelo artigo 473, do nosso Código Civil, busca reprimir precisamente
essas situações de abuso.
No entanto, de um modo geral, ao contrário do que ocorreu em
outros Códigos, o nosso Diploma Civil foi muito tímido ao regular a
necessidade de que os contratantes observem uma conduta de boa-fé, e que em
última análise significa na observância estrita dos deveres acessórios.
Com efeito, o Código Civil pátrio, em seu artigo 422, estabelece
que os contratantes são obrigados a guardar, na conclusão e na execução do
contrato, o princípio da boa-fé. Não se referiu o nosso Código, como se vê,
aos momentos que antecedem a conclusão da avença, ou seja, a fase pré211
Nesse mesmo sentido a lição de Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative
de droit français, allemand et japonais, pp. 351, n° 1239.
186
contratual, e nem à fase posterior à execução contratual, vale dizer, ao
momento pós-contratual212.
Ao contrário do nosso, que é silente a respeito, o Código Civil
italiano, em seu artigo 1.337, aponta expressamente que as partes devem se
comportar de acordo com a boa-fé desde o desenvolvimento das negociações,
estabelecendo de modo claro, portanto, a questão dos deveres acessórios précontratuais. De igual forma, o Código Civil português, em seu artigo 227,
estabelece que a boa-fé deve ser observada pelos negociantes tanto nas
negociações preliminares quanto na formação do contrato.
De qualquer modo, parece evidente que o fato de ter sido sucinto
o nosso Código Civil não tem o condão de afastar os deveres acessórios que se
verificam nos momentos pré e pós-contratual213. É que tais deveres, como já
mencionamos brevemente, supra, decorrem da imposição de uma conduta de
boa-fé aos contratantes (ou aos que se aproximam com a mera possibilidade
de se tornarem contratantes), e tal conduta, ainda que não esteja indicada de
modo explícito, sempre o estará de modo implícito214.
212
Nesse ponto, portanto, é plenamente justificada a crítica de Antônio Junqueira de Azevedo, que na
análise do então Projeto de Código Civil já apontava, dentre as insuficiências no tratamento dado à questão da
boa-fé objetiva, a falta de previsão quanto à necessidade de sua observação nas fases pré e pós-contratual. Cf.
Antônio Junqueira de Azevedo. Insuficiências, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil na
questão da boa-fé objetiva nos contratos. Revista trimestral de direito civil – v. 1, pp. 5. Contudo, como
esclareceremos logo adiante, no texto acima, essas deficiências podem ser – e são – facilmente supridas pelo
intérprete, para tanto bastando que se proceda à interpretação sistemática. Além do mais, como o princípio da
boa-fé tem assento constitucional (veja-se, a respeito, o item 1.6.1, retro), o mesmo se estende por todas as
fases do contrato, inclusive os momentos pré e pós-contratuais.
213
E também nos parece evidente que não se pode dizer que “o intérprete do direito brasileiro está
forçado a percorrer um caminho mais longo do que os juristas italianos e portugueses para cuidar do
período das negociações”, como, ao nosso ver de modo equivocado, assinala Cristiano de Sousa Zanetti,
Responsabilidade pela ruptura das negociações no direito civil brasileiro, p. 109.
214
Não nos parece que mereça acolhida, nesse particular, a crítica de Antônio Junqueira Azevedo, para
quem não é possível saber, a partir da análise do artigo 422, sequer se o mesmo representa uma norma
cogente ou dispositiva, uma vez que o nosso Código Civil não teria adotado a clareza do Código Comercial
Uniforme Americano, por exemplo, que de modo expresso assinala que a obrigação de boa-fé não pode ser
afastada por contrato, vale dizer, é cogente. Cf. Antônio Junqueira de Azevedo. Insuficiências, deficiências e
desatualização do Projeto de Código Civil na questão da boa-fé objetiva nos contratos. Revista trimestral de
direito civil – v. 1, pp. 4. Não nos parece sequer que possa haver qualquer dúvida séria sobre o fato de que a
norma em questão é imperativa, cogente, estando fora do alcance das vontades das partes. Nesse sentido, “a
187
Na realidade, mesmo muito antes da entrada em vigor do atual
Código Civil, ou seja, na vigência do Código de 1916, que nem ao menos se
referia à boa-fé contratual, nossos autores já admitiam de modo tranqüilo a
responsabilidade pré-contratual, por exemplo. Orlando Gomes215, por todos,
há muito já apontava que, embora as negociações preliminares não vinculem e
nem obriguem a contratar, é possível que, em circunstâncias especiais, sua
ruptura brusca, depois de ter sido gerada na outra parte a expectativa de que o
contrato seria celebrado, venha a resultar no dever de indenizar.
Não havendo dúvidas sobre a possibilidade de ser cabível a
indenização, prossegue Orlando Gomes, na mesma obra e local, esclarecendo
que a única dúvida que remanesce é quanto ao fundamento dessa obrigação de
reparar os danos, havendo três opiniões doutrinárias distintas: a) para uns, o
fundamento se encontra na teoria da culpa in contrahendo, ou seja, aquele que
vê frustrada sua fundada esperança de contratar, tem direito à reparação dos
prejuízos sofridos; b) para outros, o fundamento é a teoria do abuso do direito,
pois romper caprichosamente as negociações preliminares seria um
comportamento abusivo, sujeitando o agente ao dever de reparar o dano; c)
para outros, finalmente, o fundamento dessa responsabilidade se encontra no
princípio segundo o qual os interessados na celebração de um contrato devem
comportar-se de boa-fé, procedendo com lealdade recíproca216.
boa-fé opera ex lege. Nem ao agente é dado excluí-la, nem evitá-la. Produz-se ela no mundo fático”. Cf.
Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, tomo 1, p. 197. No mesmo sentido, Rogério Ferraz Donnini,
Responsabilidade Pós-Contratual no Novo Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, p. 112,
afirma que “embora o artigo [422] em análise tenha uma redação pouco precisa, indiscutivelmente em todas
as fases (pré-contratual, contratual e pós-contratual) está ínsito o dever de boa-fé e probidade, mesmo
porque se trata de cláusula geral, que impõe essa atitude de probidade e correção não somente nas relações
contratuais, mas também em qualquer outra relação jurídica, comando esse de ordem pública, consoante
estabelecido no parágrafo único do art. 2.035 do novo Código Civil”.
215
Orlando Gomes, Contratos, p. 64.
216
Antônio Chaves, no entanto, cataloga seis teorias diferentes, todas buscando explicar qual seria o
fundamento dessa responsabilidade contratual: a) teorias de base contratual pura; b) de base contratual
especial ou quase contratual e do enriquecimento indevido; c) baseadas no conceito de convenção ou de
garantia tácita; d) na noção de declaração unilateral de vontade; e) na responsabilidade decorrente de dolo ou
188
Na realidade, o que nos parece é que a responsabilidade in
contrahendo, sem sombra de dúvida, encontra seu suporte no princípio da
boa-fé, por isso que as três correntes mencionadas pelo mestre Orlando
Gomes, na verdade, nada mais são do que facetas da boa-fé, ou seja, todas têm
por pano de fundo a boa-fé normativa.
Para que se chegue à conclusão mencionada no parágrafo
anterior, sobre a aplicabilidade ampla da norma de conduta decorrente da boafé, basta que se observe, a respeito, que mesmo na vigência do nosso anterior
Código Civil, que não se referia expressamente ao princípio da boa-fé, a
doutrina217 já apontava com tranqüilidade que o mesmo era um dos princípios
gerais a serem observados em relação aos contratos. Logo, em se tratando de
princípio, será aplicável em todos os momentos jurídicos, e não apenas
durante a execução do contrato, mas também nos momentos pré e póscontratuais.
Na realidade, aqui se reforça tema que já foi previamente
examinado, na ocasião sendo tratado com maiores riquezas de detalhes (vejase, retro, sobre a classificação jurídica da boa-fé, nota de rodapé inserida no
item 1.5). É que a boa-fé, recorde-se, na verdade, se apresenta como um
princípio geral, e não apenas em um princípio setorial, aplicável ao campo do
direito contratual. Logo, além de encontrar aplicação nos momentos anteriores
de culpa devidamente verificados; f) na noção de abuso do direito; g) nas noções de boa-fé, de eqüidade e dos
usos do comércio; h) de responsabilidade pré-contratual sui generis. Cf. Antônio Chaves, Responsabilidade
Pré Contratual, p. 107. Deixamos de aprofundar o exame do tema, por se encontrar à margem do objetivo do
presente trabalho.
217
Dentre outros, Antunes Varela, Direito das Obrigações, v. I, n° 57, p. 63. Dizia o ilustre jurista que
“o princípio da boa-fé, em matéria de obrigaçoes, não se encontra explicitamente formulado no Código Civil
brasileiro... Pode-se, todavia, sustentar que a regra da boa-fé constitui um dos princípios gerais de direito
abrangidos na remissão genérica do art. 4° da Lei de Introdução, em face das suas aflorações especiais
noutras zonas do Direito vigente”. No mesmo sentido a lição de Maria Helena Diniz, que ainda na vigência
do Código Civil anterior já incluía a boa-fé como um dos princípios fundamentais do direito contratual, sendo
que, segundo tal princípio, “as partes deverão agir com lealdade e confiança recíprocas”. Cf. Maria Helena
Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro – v. 3 (1995), pp. 31-32.
189
à celebração do contrato e posteriores à sua extinção, a boa -fé também pode
ser invocada para a regência de outros negócios jurídicos não inseridos dentre
os contratos. Veja-se, para maiores detalhes sobre o caráter expansionista da
boa-fé, abarcando inclusive o direito processual e o direito público, os itens
1.6 e 1.7, supra.
É que os Códigos Civis, de um modo geral, se valeram de dois
modos distintos, para determinar a observância da conduta conforme os
ditames da boa-fé: em alguns, como ocorre no Código Civil espanhol e no
Código Civil suíço, há uma regra contida na parte geral, que determina a
adoção de conduta conforme a boa-fé em todos os negócios jurídicos; em
outros, contudo, como é o caso do Código Civil brasileiro, do italiano e do
argentino, a imposição da boa-fé como norma de conduta vem mencionada em
uma espécie particular de relação jurídica, normalmente as obrigações ou os
contratos.
Na primeira hipótese, vale dizer, quando se trata de uma norma
geral, não há maior dificuldade em se constatar a sua aplicabilidade ampla, em
todos os negócios jurídicos. Mas mesmo na segunda hipótese, ou seja, quando
a norma impositiva de conduta conforme os ditames da boa-fé vem ligada a
um tipo específico de relação jurídica (como no caso do art. 422, do nosso
Código Civil, voltado especificamente para as relações contratuais), ainda
assim deve ser feita a sua transposição para as relações jurídicas em geral, seja
por meio de aplicação da analogia ou, de modo mais direto, pela pura e
simples aplicação do princípio geral, que se permeia por todo o tecido do
ordenamento jurídico218.
Retornando ao campo específico dos contratos, que no momento
é o que mais diretamente nos interessa, é importante ressaltar que a aferição da
218
Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 229.
190
responsabilidade pré-contratual não decorre do atendimento de qualquer
formalismo do contrato em si mesmo. Com efeito, se por um lado é certo que,
nos casos em que o contrato se apresenta como um negócio jurídico formal,
enquanto não for atendida a forma indicada pela lei o mesmo não estará
aperfeiçoado, por outro lado não se pode esquecer que as conversações que
antecedem a conclusão do contrato jamais dependem de qualquer solenidade,
e por isso a forma do negócio que se está sendo discutido se mostra
absolutamente irrelevante para que possam surgir os deveres acessórios
anteriores ao contrato.
Na realidade, basta que se recorde o que já dissemos linhas atrás,
no sentido de que os deveres acessórios são independentes das prestações
centrais do negócio jurídico, e por essa razão o desatendimento do formalismo
imposto pela lei no caso concreto, ainda que funcione como obstáculo
intransponível quanto ao surgimento das prestações principais, em nada
afetará o surgimento dos deveres acessórios. Aliás, como também já
mencionamos, se é certo que mesmo na obrigação nula podem surgir deveres
laterais válidos, pode-se com facilidade concluir que o não atendimento à
forma legal gera a nulidade do negócio, mas não impede o surgimento de
outros efeitos jurídicos acessórios.
Assim, por exemplo, suponha-se que A e B entabulem
conversações sobre uma doação, sendo que o primeiro, verbal e
expressamente, diz que irá doar ao segundo uma determinada lancha. B, o
donatário, não tendo onde guardar o bem que irá receber, celebra contrato de
locação de vaga em uma marina, além de comprar um reboque para poder
transportar a lancha com o seu próprio carro.
Após esses gastos efetuados por B, no entanto, A recusa-se a
assinar o contrato escrito de doação. Ora, sendo a doação um contrato formal,
191
eis que deve ser celebrado por escritura pública ou instrumento particular (art.
541, do Código Civil brasileiro), é evidente que não houve contrato válido,
pois do ajuste verbal não surge negócio jurídico válido, nos casos em que a lei
exige forma (artigos 104, III e 107, ambos do Código Civil). No entanto,
houve negociações pré-contratuais, e para estas a lei não impõe – e nem
poderia impor – qualquer formalismo, e por isso já se têm elementos
suficientes para que se concretize a culpa in contrahendo (responsabilidade
pré-contratual) de A.
De tudo quanto se disse sobre os deveres acessórios, ressalta a
idéia de que uma relação obrigacional, longe de ser uma simples oposição
entre a pretensão do credor de receber (e exigir) uma determinada prestação e
a posição contrária do devedor, que se vê compelido a prestá-la, é formada por
um complexo de múltiplos efeitos jurídicos, múltiplas pretensões (e os deveres
contrapostos) que são autônomas entre si, mas que pouco importam quando
isoladamente consideradas, pois é do seu conjunto que surge a relação
obrigacional em si mesma.
Importante realçar, nessa linha de idéias, que uma relação
obrigacional não é a simples soma dos deveres acessórios e das prestações
centrais que a compõem. É que, na realidade, todo esse conjunto de efeitos
jurídicos está orientado para uma mesma finalidade, direcionado para a
conclusão e a execução satisfatórias da obrigação para todos os sujeitos
envolvidos. Em outras palavras, a relação obrigacional é formada por
elementos que são autônomos mas que compõem um organismo único, que é
impulsionado sempre para a obtenção, por cada um dos envolvidos, da
prestação central que lhe é devida.
É nesse sentido que se fala em uma relação obrigacional como
um todo, como um processo, ou seja, como uma série de atos (o atendimento
192
aos deveres diversos) que têm, todos, a mesma finalidade, que têm sempre o
mesmo objetivo de realização integral das prestações devidas. Nas palavras de
Mário Júlio de Almeida Costa219, “todos os referidos elementos [os deveres
principais, os secundários e os laterais] se coligam em atenção a uma
identidade de fim”.
Assim, como todos os deveres acessórios estão sempre voltados
para o atingimento do resultado final da obrigação, é possível que, ao longo do
desenrolar desse processo, em virtude das circunstâncias do caso concreto, tais
deveres sofram alterações ou adaptações, pois o comportamento que em uma
certa situação se mostrava como sendo o mais adequado, de repente pode
passar a ser caracterizado como uma conduta inadequada.
No entanto, é certo que essas alterações pontuais dos deveres
laterais, como sempre manterão a mesma orientação, no sentido de ser
buscada a conclusão satisfatória das prestações, em absolutamente nada
afetarão a relação obrigacional considerada no seu conjunto, ou seja, não terão
o efeito de descaracterizar a obrigação em si mesma, que continuará a ser um
conjunto de deveres, principais e acessórios, unidos pela mesma finalidade,
ainda que um ou outro desses deveres possa ter sido eventual e pontualmente
alterado.
Começamos o presente item realçando que a boa-fé objetiva
mantém estreita ligação com o tema das obrigações como um processo. Esse
aspecto, na realidade, se apresenta como sendo de fundamental importância
para a melhor análise do objeto principal do presente trabalho, que consiste
precisamente no exame e no cotejo de comportamentos específicos, que
implicam em violações da conduta que se poderia esperar a partir da boa-fé,
219
Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, p. 63.
193
como veremos no capítulo seguinte. Como se configura, portanto, tal ligação?
Vejamos.
Vimos, nos parágrafos anteriores, que a relação obrigacional é
formada por um complexo de prestações, dentre as quais algumas são centrais,
ou seja, são o foco principal da relação, e outras são acessórias, mas que é a
reunião de todas elas, principais e acessórias, que caracteriza a obrigação, pois
as prestações secundárias (os deveres acessórios) são todas orientadas para
uma mesma finalidade comum, que é a de que sejam adequadamente
cumpridas ou aproveitadas as prestações principais.
E também examinamos que, para que tal finalidade seja sempre
atendida, por vezes será necessário que os deveres acessórios sofram
adaptações ou modificações, para que continuem atuando no sentido de
cumprimento das prestações primárias. E é exatamente aí que surge a
necessidade de se recorrer à boa-fé, pois é esta que servirá como vetor de
orientação para os deveres acessórios, indicando em cada momento qual deve
ser o comportamento que melhor se coaduna com o cumprimento satisfatório
e adequado da prestação principal.
Ora, se é possível dizer que esse comportamento deve ser pautado
pela ética, ou seja, que o sujeito deve se comportar de modo ético, e que o
significado de tal afirmação só pode ser aferido com precisão no caso
concreto, ou seja, de modo problemático, então podemos afirmar, na boa
companhia de De Los Mozos 220, que: a) a boa-fé serve como veículo de
recepção, para que seja possível a integração do ordenamento jurídico
conforme uma regra ético-material; b) a boa-fé é um princípio problemático,
um verdadeiro topos, que precisa ser chamado para atuar a cada momento em
que se vai interpretar se um comportamento foi ou não adequado.
220
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 34 e 36.
194
Faça-se, aqui, mais um breve parêntese para explicar, com esteio
na lição de Delia Rubio 221, que a boa-fé, na realidade, é multifuncional, ou
seja, cumpre diversas funções essenciais em todo o sistema jurídico, podendose destacar: a) funciona como critério informador do ordenamento jurídico, ou
seja, é na boa-fé que têm origem várias normas concretas, voltadas
especificamente para algumas situações peculiares; b) é um critério limitador
da conduta que pode ser tida como juridicamente admissível; c) funciona,
ainda, como critério interpretativo, devendo ser interpretada a norma jurídica
de acordo com aquilo que, sob os ditames da boa-fé, se deveria entender; d)
critério integrador, com força normativa para ser aplicada aos casos
particulares, em relação aos quais não exista norma específica 222.
Nessas duas últimas funções mencionadas, o que facilmente se
percebe é que “el principio de la buena fe sirve para suplir, integrar y
corregir el contenido del negocio [jurídico]” 223.
Para nós, no presente estudo, interessa principalmente o segundo
dos critérios acima indicados, ou seja, a função da boa-fé como critério
221
Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, pp. 162-164.
Mas convém destacar que, como acontece com os institutos jurídicos em geral, há variações entre os
diversos autores que cuidam de apresentar a classificação das funções da boa-fé. Assim, por exemplo, para
Judith Martins-Costa a boa-fé objetiva cumpre três funções distintas: a) cânone hermenêutico-integrativo do
contrato; b) norma de criação de deveres jurídicos; c) norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos.
Cf. Judith Martins-Costa, A boa-fé no Direito Privado, p. 428. Guilherme Martins, por sua vez, refere-se às
funções interpretativa, de integração e de controle. Cf. Guilherme Magalhães Martins, Boa-fé e contratos
eletrônicos via Internet. In : Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional, p. 139.
Já para Maurício Jorge Mota, as multifunções da boa-fé podem ser desmembradas em: a) interpretativa; b)
integrativa; c) de controle; e d) de resolução dos contratos. Cf. Maurício Jorge Mota, A pós-eficácia das
obrigações. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional, p. 196. E várias
outras classificações podem ser encontradas, se pesquisarmos vários outros autores, mas no essencial,
inobstante as variações quanto às denominações usadas, não se verifica substancial diferenças, nas
classificações diversas, entre as funções cumpridas pela boa-fé.
223
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 46. E esclarece o respeitado autor
espanhol, mais à frente (p. 180), que na integração, a boa-fé atua para completar o quadro dos efeitos do
negócio jurídico, enquanto a interpretação apenas se refere ao conteúdo da declaração de vontade. Ocorre que
o papel essencial da boa-fé objetiva é que, normalmente, se apresenta como normativa, ou seja, se apresenta
como fonte de onde se originam normas de conduta, o que corresponde à função de integração da vontade
negocial. Por essa razão, o ilustre jurista espanhol denomina a boa-fé objetiva de imprópria, quando a mesma
atua em matéria de interpretação.
222
195
limitador, capaz de marcar a divisão entre os comportamentos que podem e os
que não podem ser admitidos como juridicamente válidos. Nesse sentido, a
boa-fé tanto funciona em relação ao exercício dos direitos, sendo limite que,
uma vez ultrapassado, dá origem ao abuso do direito – e tanto assim que o
nosso Código Civil foi expresso (art. 187) ao apontar que se constitui em
exercício abusivo do direito aquele que excede manifestamente, dentre outros
limites, o que é traçado pela boa-fé – quanto em relação ao cumprimento dos
deveres e, de modo mais geral, a todas as condutas que devem ser observadas
pelos sujeitos em uma relação jurídica.
Mas é importante recordar que, quando falamos em limitação da
conduta do sujeito, não estamos nos referindo apenas à proibição de adoção de
determinados comportamentos, ou seja, apenas a limites negativos.
Na verdade, essa limitação, para que a conduta possa ser
localizada dentro dos parâmetros criados pela boa-fé, também se apresenta de
modo positivo, ou seja, como a imposição de que o sujeito adote certos
comportamentos, como por exemplo no dever de prestar assistência, que se
impõe às partes contratantes mesmo depois que o contrato já se extinguiu pelo
cumprimento das prestações principais, como já examinamos, retro.
Ou, ainda, no dever de cooperação, que se impõe a cada um dos
contratantes, para possibilitar que o outro possa cumprir sua prestação. Vejase, retro, para maiores detalhes, o item 1.6 do presente estudo.
E mais, é ainda dentro dessa função de limitadora da vontade que
vamos encontrar importantíssimo aspecto do princípio da boa-fé, que é o de
permitir o controle do conteúdo dos contratos ou, de modo mais genérico, o
controle da autonomia da vontade (configurando, portanto, a autonomia
196
privada) 224. Em outras palavras, é sabido que a autonomia da vontade encontra
diversos limites, e dentre estes podem ser enquadrados os que são impostos
pela boa-fé e para os quais devem ser observadas as repercussões sobre as
outras pessoas que vivem na mesma sociedade.
A teoria do contrato, por isso mesmo, não pode mais partir da
idéia de que é na vontade, como fonte única, que estão esteadas as relações
jurídicas, e por essa razão a referida teoria se encontra recheada de normas de
ordem pública, que se destinam à proteção de grupos de contratantes, das
disposições imperativas que se impõem nas relações de consumo e nos
contratos de adesão, das normas que estabelecem uma diretriz para a
economia como um todo, etc. E esse conjunto de normas tem mudado
substancialmente o enfoque jurídico das declarações da vontade, pois o
Direito Privado começa a se interessar não apenas pelas conseqüências
públicas das ações privadas, mas também pelo seu impacto sobre os demais
224
Como esclarece Judith Martins-Costa, o direito obrigacional moderno se desenvolveu com apoio no
conceito de autonomia da vontade, assim entendida a liberdade humana para a criação de vínculos jurídicos.
Ocorre que essa expressão realça a vontade humana como causa maior (e quase exclusiva) do nascimento das
relações jurídicas, e aí reside a sua falha. Ora, hoje é pacífica a idéia de que a autonomia deve ser exercida em
estreita ligação com o respeito à dignidade humana e com a promoção do desenvolvimento da personalidade,
que devem servir de parâmetro para a vida em comunidade. Dessa forma, a expressão inicial evoluiu para a
“autonomia privada”, que poderia ser descrita como a autonomia da vontade temperada pelos vetores acima
mencionados, de mo do tal que na base dos negócios jurídicos não se encontra apenas a vontade dos
particulares envolvidos, mas também os limites e as condutas negativas ou positivas que são impostas pelos
referidos vetores. Dito de outra forma, a vontade dos particulares, ao ser manifestada, está condicionada e
limitada pelo ordenamento jurídico que a reconheceu aos declarantes, e por isso o negócio jurídico passa a ser
formado não apenas pela vontade dos sujeitos, mas também por um setor que escapa a essa vontade, e que por
ela não pode ser atingido, nem afastado e nem ao menos modificado. E a autora prossegue, sugerindo que,
hoje, a denominação mais adequada seria a de autonomia solidária, tendo em vista a necessária correlação
que deve haver entre a autonomia privada e a função social, como se encontra expresso no artigo 421, do
Código Civil brasileiro, sendo certo que essa função social, que se constitui em elemento constitutivo da
própria autonomia (e não apenas um agente externo limitador), impõe uma atuação solidária, que permita a
permanente busca do atingimento de uma solidariedade justa e solidária, o que se apresenta como um dos
objetivos fundamentais da nossa República. Cf. Judith Martins-Costa, O adimplemento e o inadimplemento
das obrigações no novo Código Civil e o seu sentido ético e solidarista. In: Franciulli Netto, Domingos;
Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em
Homenagem ao Prof. Miguel Reale, pp. 345-347.
197
indivíduos da mesma comunidade, levando a que se atribua status jurídico a
bens que antes eram irrelevantes225.
No entanto, embora se mostre óbvio, convém que se ressalte que
não foi suprimido – e nem poderia sê-lo – integralmente o princípio da
autonomia da vontade, pois o que ocorreu foi a redução (substancial, é
verdade) de sua importância, pois tal princípio, que antes era visto como um
dogma inafastável e basilar pela teoria contratual clássica, deixou de sê-lo,
passando a dividir espaço com uma série de normas que se encontram fora do
campo volitivo e que o limitam e condicionam, eis que a visão clássica hoje se
revela completamente anacrônica, não mais se coadunando com o momento
atual226.
Assim, suponha-se que em um contrato as partes contratantes
adotaram cláusula explícita, acerca de um dos aspectos do negócio. Tal
cláusula poderá ser afastada pelo juiz, caso este entenda que a mesma não
obedece aos comandos do princípio da boa-fé. Esse aspecto específico, de
controle do conteúdo convencional, será visto logo adiante, neste mesmo item,
mas desde logo podemos observar que, na realidade, do princípio geral da
boa-fé decorrem direitos para os sujeitos de um negócio jurídico, e tais
direitos não podem ser afastados pelas cláusulas convencionais estipuladas por
esses mesmos sujeitos 227.
225
Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do Direito Privado, pp. 83-84.
Alinne Arquette Leite Novais, Os Novos Paradigmas da Teoria Contratual: O Princípio da Boa-fé
Objetiva e o Princípio da Tutela do Hipossuficiente. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de Direito
Civil-Constitucional, p. 21.
227
Veja -se, aliás, que esse papel criador de direitos foi reconhecido de modo explícito pelo artigo 7°, do
Código de Defesa do Consumidor, que se refere aos direitos que “derivem dos princípios gerais de direito”, e
em relação, especificamente, ao princípio da boa-fé, nada mais é do que uma conseqüência lógica e simétrica
do papel limitador por ele exercido. Com efeito, quando em virtude da aplicação da boa-fé um dos sujeitos
tem os seus direitos sendo limitados, isso significa que, automática e simetricamente, para o outro ocorreu o
surgimento de algum direito. Assim, por exemplo, quando em virtude da boa-fé um dos sujeitos sofre
restrição quanto ao seu direito de resilir o contrato, isso significa que, para o outro, surgiu o direito de exigir
que esse mesmo contrato seja mantido vigente.
226
198
Retomemos o exame dos deveres acessórios. Imagine-se, por
exemplo, que ao credor é possível a adoção de dois comportamentos, sendo
que ambos conduzirão à satisfação da prestação principal que lhe é devida,
mas sendo que um deles imporá um enorme sacrifício patrimonial ao devedor,
dúvidas não há em se afirmar que o credor, que deverá ter sempre seu
comportamento orientado no sentido coincidente com aquele que é indicado
pelo vetor boa-fé, terá que adotar, necessariamente, a atitude que se mostrar
menos prejudicial para o outro sujeito.
Tal regra, aliás, foi positivada em nosso direito especificamente
em relação ao processo de execução (Código de Processo Civil, art. 620), mas
por força da atuação balizada pelo princípio da boa-fé pode ser estendida para
toda e qualquer relação substancial, transcendendo os procedimentos
processuais.
Como observa Judith Martins-Costa228, a respeito desse mesmo
tema, a questão é que, se por um lado, toda a relação obrigacional encontra-se
direcionada para o seu adimplemento, uma vez que é em tal momento que se
realiza o interesse principal do credor, por outro lado, no processo
obrigacional há todo um conjunto de interesses envolvidos, e nesse conjunto
se incluem não apenas outros interesses do próprio credor, que não se
vinculam direta ou indiretamente à prestação principal, mas também os
interesses que derivam dos deveres de conduta e que se vinculam à
manutenção do estado patrimonial e pessoal dos sujeitos envolvidos, inclusive
os interesses do devedor, ligados à confiança que se encontra presente em toda
relação intersubjetiva legítima.
228
Judith Martins-Costa, O adimplemento e o inadimplemento das obrigações no novo Código Civil e o
seu sentido ético e solidarista. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives
Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, pp. 347348.
199
Como se observa, portanto, mesmo em relações obrigacionais
onde apenas um dos sujeitos envolvidos tenha prestação principal a ser
cumprida, ainda assim a posição do credor não pode ser definida como
estando isenta de qualquer prestação, pois sempre haverá a presença dessas
prestações secundárias, que são os deveres laterais, que deverão ser por ele
observados, de modo que receba a prestação que lhe é devida, mas que ao
fazê-lo não imponha ônus desmesurado e inaceitável à outra parte.
Trata-se, no caso, do dever de colaboração, que é imposto ao
credor, e que em nosso direito pode ser obtido, para os negócios jurídicos em
geral, a partir do artigo 187, do Código Civil, que manda que os direitos sejam
exercidos, dentre outros limites, dentro daqueles que são impostos pela boa-fé.
E em relação aos contratos, em particular, esse mesmo dever de colaboração
pode ser facilmente extraído a partir do artigo 422, do mesmo Código Civil,
que determina aos contratantes que suas atuações sejam sempre pautadas pelo
princípio da boa-fé.
De outra parte, é evidente que também ao devedor serão impostos
deveres acessórios, e que também serão orientados, em cada momento, pela
conduta pautada na boa-fé. Assim, por exemplo, se o devedor dispuser de
vários modos para o cumprimento de sua prestação principal, sendo-lhe
indiferente a adoção de um ou de outro, deverá sempre adotar aquele que, no
caso concreto, permita ao credor o melhor aproveitamento de tal prestação.
Em um caso concreto, por exemplo, suponha-se que o locatário,
findo o contrato de locação do imóvel, deva entregá-lo pintado ao locador,
sendo que no instrumento contratual, no entanto, não se fixou qual deve ser a
cor da tinta a ser utilizada na pintura. Em tal caso, o locatário poderá, em um
sentido literal emprestado à cláusula contratual, desincumbir-se da prestação
pintando o imóvel com tinta de qualquer cor, inclusive preta ou roxa. No
200
entanto, parece evidente que se o fizer não estará se comportando conforme a
boa-fé, pois claramente estará impondo danos desnecessários ao locador, cujo
imóvel será desvalorizado, exigindo uma nova pintura para que tal não ocorra.
O comportamento adequado, portanto, interpretando-se a
disposição contratual com base no princípio da boa-fé, parece indicar que a
pintura deverá ser feita usando-se a mesma cor que havia quando o imóvel foi
entregue pelo locador ao locatário, sob pena de infração severa dos deveres
ditados pela boa-fé. Como se vê, a boa-fé serve não apenas para pautar, a cada
momento, a conduta dos sujeitos envolvidos na relação obrigacional, mas
também como orientação na interpretação de cláusulas contratuais.
Colocamos em maior destaque, supra, a questão dos deveres
acessórios no momento pré-contratual, uma vez que foi em relação a tal
momento que se desenvolveu o estudo da culpa in contrahendo. No entanto,
também ao longo da execução do contrato, são variadas as formas pelas quais
tais deveres podem se manifestar.
Assim, por exemplo, suponha -se que um empregado, enquanto
prestava seus serviços ao empregador, estava trabalhando a uma altura de
cinco metros, em relação ao solo, sem que lhe tivesse sido fornecido qualquer
equipamento de segurança, quando veio a cair, ferindo-se gravemente ou
mesmo vindo a morrer. Nesse caso, pode-se com tranqüilidade apontar que o
empregador violo u o dever lateral de proteção, pois deveria ter adotado todas
as medidas para que o trabalho fosse prestado de modo seguro pelo
empregado, afastando ou pelo menos minimizando os riscos, e por tal razão
deverá responder pelos danos causados ao trabalhador. Essa responsabilidade
do empregador, não é demais lembrar, foi explicitamente indicada no artigo
7º, XXVIII, da Constituição Federal.
201
Também o dever secundário de esclarecimento (informar) se
manifesta com enorme freqüência, ao longo da execução dos contratos,
ganhando destaque em alguns contratos específicos, como o de prestação de
serviços por advogado. É que o profissional da área jurídica, detentor dos
conhecimentos técnicos, deve sempre esclarecer ao cliente que o procura, e
que apenas conhece os fatos, mas não o direito aplicável, quais são os riscos
referentes à sua pretensão, assim como as possíveis conseqüências do
ajuizamento da ação. Aliás, o Código de Ética e Disciplina da OAB, dispõe
expressamente em seu artigo 8º que o advogado deve informar o cliente, de
forma clara e inequívoca, quanto a eventuais riscos de sua pretensão, e das
conseqüências que poderão advir da demanda.
Assim, por exemplo, suponha-se que, em uma investigação de
paternidade, o investigado, estando certo de que não é o pai do investigante,
sente-se indignado com a determinação para que se submeta ao exame de
DNA, e recusa-se a fazê-lo. Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça já
sumulou o entendimento no sentido de que a recusa do suposto pai a
submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade
(Súmula 301). Assim, deverá o advogado informá-lo sobre as possíveis
conseqüências de sua recusa, para que o investigado decida, sabendo o que
poderá vir a ocorrer, se lhe é conveniente insistir em tal comportamento.
Em outro exemplo, imagine-se que uma empregada, tendo sido
dispensada sem justa causa, pleiteia judicialmente a reintegração ao emprego
esteada no argumento de que estava grávida ao ser dispensada. O empregador,
reconhecendo embora que a gravidez existia, recusa-se a admitir a volta da
empregada, informando ao seu advogado que não tinha conhecimento do
estado gravídico da trabalhadora, e por isso pedindo-lhe que conteste o pedido
e, se necessário, recorra de eventual sentença adversa.
202
O advogado do réu, em tal situação, deverá esclarecer-lhe no
sentido de que os tribunais superiores, tanto o Supremo Tribunal Federal
quanto o Tribunal Superior do Trabalho, há muito já pacificaram o
entendimento de que a regra constitucional que protege a empregada gestante
contra a dispensa imotivada (Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, art. 10, II, b), é de natureza objetiva, e não subjetiva, ou seja, a
gravidez é protegida em si mesma, pouco importando se era conhecida ou não.
Logo, deverá o advogado informar ao cliente que, muito provavelmente, será
vencido ao final, e apenas conseguirá procrastinar o resultado e aumentar seus
gastos com o processo.
Interessante notar que, nesse caso particular do advogado, o dever
acessório de informar se desdobra em um dever de se manter informado e
atualizado sobre os temas de sua profissão, pois é certo que o advogado não
poderá informar adequadamente o cliente se ele mesmo estiver desatualizado
em relação às inovações legislativas ou às posições dos tribunais. Veja-se,
portanto, que nesse caso o dever de agir conforme a boa-fé acaba por se
confundir com o dever de continuar estudando e se aperfeiçoando, de modo a
se manter atento às novidades em sua área profissional.
Também nos contratos de prestação de serviços médicos o dever
acessório de informação ganha bastante destaque, face à importância do que
está em jogo, ou seja, a saúde do paciente. Assim, antes de dar início a um
tratamento médico ou a uma intervenção cirúrgica que podem ter graves
conseqüências, o médico tem o dever de esclarecer o paciente sobre o seu real
estado de saúde e sobre as possíveis conseqüências que advirão do tratamento.
É que, algumas vezes, essas conseqüências são tão gravosas, ou submetem o
paciente a um risco tão grande, que ele poderá optar por não se sujeitar ao
203
tratamento. Para que possa tomar tal decisão, contudo, é evidente que
precisará ser informado pelo médico.
A respeito desse tema, não é demais observar que o nosso Código
Civil brasileiro, em seu artigo 15, esclareceu que ninguém pode ser
constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou
intervenção cirúrgica. Facilmente se percebe que, em tal disposição, está
embutido implicitamente o dever do médico de prestar ao paciente todas as
informações que se fizerem necessárias para a avaliação do risco, para que
possa decidir se valerá a pena (ou não) sujeitar-se ao tratamento que poderá
causar-lhe a morte ou deixar graves seqüelas.
Suponha-se a hipótese, por exemplo, de uma pessoa que tenha
sido atingida por um tiro, estando há vários anos com a bala alojada na base
do crânio, nas proximidades do coração, ou em qualquer outra área delicada
do organismo humano. Se essa pessoa vem a procurar um cirurgião, para a
retirada da bala, o médico deverá informá-la se existem e quais são os riscos
de tal intervenção cirúrgica. É possível, por exemplo, que como conseqüência
da cirurgia o paciente venha a morrer ou a se tornar tetraplégico, e nesse caso
talvez prefira continuar convivendo com a bala em seu organismo, como faz
há vários anos, embora consciente que isso também poderá trazer-lhe graves
problemas no futuro.
Mas é evidente que esse dever de informação, embora avulte
nesses dois tipos de contratos indicados, também se verifica nos mais variados
tipos de negócios. Assim, por exemplo, em uma situação real que
presenciamos, em relação ao contrato de prestação de serviços de telefonia
celular móvel, uma determinada operadora de telefonia divulgava, em sua
publicidade, que sua área de cobertura atingia todo o interior do Estado. Além
204
disso, divulgava também as inovações tecnológicas e as vantagens da
tecnologia CDMA.
Um cliente, diante de tais informações, trocou seu antigo aparelho
de telefonia celular, que usava tecnologia TDMA, por um dos novos modelos,
aproveitando promoção que oferecia descontos e parcelamentos. Ocorre que
esse cliente trabalhava no interior do Estado, para onde viajava com grande
freqüência. Na primeira viagem, para sua surpresa, descobriu o cliente que no
interior do Estado só funcionavam os aparelhos que usavam a tecnologia
antiga, TDMA, pois a operadora ainda não havia disponibilizado o uso da
tecnologia CDMA.
Como se vê, na hipótese acima, claramente a prestadora de
serviços telefônicos não se desincumbiu do dever de informar, pois em
nenhum momento, quer em seus anúncios de publicidade, quer no contato
direto com o cliente, informou-o sobre essa restrição de uso. Aliás, é até
desnecessário apontar que o dever de informar, também nos contratos de
consumo em geral, se revela de extrema importância, inclusive havendo quem
sustente que uma das causas de desequilíbrio das relações entre consumidores
e fornecedores é precisamente a desigualdade de informações entre as partes,
ou seja, os fornecedores conhecem bem os seus produtos e serviços oferecidos
no mercado, enquanto a maioria dos consumidores é incapaz de avaliar e
comparar com os similiares esses produtos e serviços. Por essa razão, vale
dizer, para buscar o equilíbrio das relações contratuais entre consumidores e
fornecedores, foi que se desenvolveu a idéia de se reconhecer, em favor do
consumidor, um direito à informação 229.
Em relação ao dever acessório de lealdade, a ser observado
quanto aos contratos que se encontram em vigor, aplicação prática de grande
229
Sílvio Luís Ferreira da Rocha, A Oferta no Código de Defesa do Consumidor, pp. 86-87.
205
utilidade é a que se relaciona à questão das prestações centrais que foram
cumpridas, mas que o foram de modo imperfeito. É de se observar,
inicialmente, que ao tratar da exceção do contrato não cumprido, nosso
Código Civil, no artigo 476, estipula que nenhum dos contratantes, nos
contratos bilaterais, poderá exigir o cumprimento da prestação, pelo outro,
antes de ter cumprido a sua própria. Ocorre que, algumas vezes, um dos
contratantes cumpriu a sua prestação, mas o fez de modo defeituoso, ou seja,
não atendeu integralmente aos ditames contratuais, e apesar disso se põe a
exigir o cumprimento da prestação do outro.
Veja-se que tal hipótese não se enquadra integralmente na que se
encontra prevista no suso mencionado artigo 476, do Código Civil, pois o
referido dispositivo legal se refere ao não cumprimento da prestação, enquanto
na hipótese figurada tem-se o cumprimento defeituoso. O demandado, ao ser
exigido, certamente argüirá a exceptio, o que é perfeitamente válido, pois de
fato não recebeu exatamente a prestação que lhe era devida.
No entanto, não se pode perder de vista que, se essa prestação,
ainda que defeituosamente cumprida, apresentou resultado útil para o
demandado, este, por obediência ao dever de lealdade, deverá dispor-se a
contraprestar a parcela da prestação que recebeu e da qual obteve proveito.
Hipótese de aplicação concreta dessa situação descrita em tese no
parágrafo anterior é a prevista no artigo 606, do Código Civil, referente ao
contrato de prestação de serviços. Com efeito, dispõe a referida norma legal
que, quando o prestador dos serviços não estava habilitado para prestá-los, não
poderá requerer a remuneração normalmente paga para os serviços daquela
espécie.
No entanto, o mesmo dispositivo do Diploma Civil ressalva que,
se desse serviço, ainda que prestado por pessoa não habilitada, houve
206
resultado útil para o outro contratante, deverá este pagar uma retribuição
razoável, conforme o proveito que tenha obtido, ou seja, deverá contraprestar
a parcela que recebeu e que lhe foi útil, ainda que não corresponda exatamente
à prestação que lhe era devida.
No exemplo acima, o dever de lealdade foi mencionado em
relação ao demandado, que para atendê-lo deverá contraprestar a parcela da
prestação que recebeu com proveito. No entanto, esse mesmo dever, mutatis
mutandis, pode ser apontado em relação ao autor da ação. Com efeito, se o
credor já recebeu uma parte do pagamento, a toda evidência deverá, ao efetuar
a cobrança, fazer a ressalva da parte que já recebeu, sob pena de infringir o
dever de comportar-se com lealdade.
Nesse sentido é que o artigo 940, do Código Civil brasileiro,
impõe ao credor o dever de, ao demandar dívida que já foi parcialmente paga,
fazer a ressalva da parcela recebida, sob pena de ter que indenizar o devedor.
Imposição específica, como se vê, do dever acessório de lealdade, que de todo
modo já decorreria da observância da boa-fé.
Vimos, até aqui, que os agentes de um negócio jurídico têm seu
comportamento balizado, em cada momento, por uma série de deveres
laterais, ou seja, ocorre a imposição de uma série de comportamentos que
devem ser observados, em cada momento, pelos sujeitos envolvidos. Esses
comportamentos se impõem desde a fase pré-negocial até depois da extinção
do negócio, passando ainda, obviamente, pelo período em que o negócio
estava sendo cumprido pelas partes.
Observamos, também, que o mesmo dever acessório, conforme o
momento e as circunstâncias que o acompanham, em cada caso concreto,
poderá apresentar-se com algumas modificações, ou seja, a observância de um
dever lateral não significa que o sujeito deverá sempre manter o mesmo
207
comportamento, em todos os momentos. Muito pelo contrário, essa conduta a
ser observada será sempre transformada pelos fatores externos de cada
momento do negócio.
Assim, o dever de proteção, por exemplo, na fase pré-contratual
poderá significar a diligência para evitar que o outro sujeito caia em um
buraco, mas ao longo da execução do contrato esse mesmo dever já poderá ser
sinônimo do fornecimento de um equipamento de proteção.
No entanto, cada um desses deveres é unitário, apesar das
eventuais adaptações ou transformações que venha a sofrer. Assim, por
exemplo, há um único dever de proteção, que se manifesta desde as
negociações iniciais e perdura até o momento posterior à extinção do contrato,
ainda que com exteriorizações distintas em cada momento. E o mesmo pode
ser dito em relação a cada um dos deveres contratuais. E o que confere a
unidade mencionada a cada um desses deveres é a boa-fé, que permite a cada
um dos sujeitos envolvidos esperar que os demais não se comportem de modo
a quebrar as expectativas comportamentais legitimamente criadas, para que
não frustrem a confiança recíproca que do negócio decorreu.
E é importante ressaltar que essa boa-fé – e, em última análise, os
deveres acessórios – se impõe como parâmetro comportamental por força do
ordenamento jurídico, diretamente originada na lei, e não em decorrência da
vontade das partes envolvidas. Logo, fácil é de se concluir que é irrelevante
perquirir quais são as partes envolvidas e qual é o negócio de que se trata, no
caso concreto, para que se possa aferir a presença de uma pauta de conduta
ditada pela boa-fé, eis que esta sempre estará presente e sempre deverá ser
observada.
Por outro lado, parece evidente que, para a adaptação de cada
dever lateral às circunstâncias do caso concreto, será imperioso que se observe
208
quem são os sujeitos envolvidos e qual é o negócio entre eles surgido (ou, pelo
menos, negociado), pois tais elementos são integrantes dessas circunstâncias, e
portanto fundamentais para a conformação concreta dos deveres laterais em
cada hipótese. Em outras palavras, não interessa quem é o sujeito envolvido
para que surja um comportamento ditado pela boa-fé, mas tal sujeito deverá
ser considerado para a determinação precisa e específica do conteúdo da boafé no caso concreto.
Na realidade, pode-se mesmo apontar que os deveres laterais não
nascem da boa-fé, mas apenas são por ela direcionados. Além disso, tais
deveres também não nascem do negócio jurídico em si mesmo, e essa seria a
razão pela qual os deveres acessórios se manifestam mesmo quando o negócio
jurídico não se concretizou ou mesmo depois que o mesmo já foi extinto.
A verdadeira gênese dos deveres acessórios, portanto, pode ser
encontrada no fato mesmo do relacionamento entre os sujeitos envolvidos,
fato esse que pode ou não vir a se transformar em um negócio jurídico. Assim,
a aproximação entre os sujeitos, de modo que possam entabular as
negociações iniciais, por si só é um fato que dá origem aos deveres
secundários, ainda que de tais negociações não surja o negócio jurídico que as
partes tinham em mente.
Impende buscar, neste ponto, qual seria o conteúdo da boa-fé, de
modo a que se possa identificar qual é o direcionamento a ser dado, em cada
caso concreto, aos deveres acessórios. Comecemos recordando que os deveres
laterais devem ser adaptados e transformados conforme os fatos e
circunstâncias que se verifiquem em cada momento, o que obviamente
conduzirá à conclusão de que também a boa-fé tem um conteúdo que varia em
cada momento, conforme as circunstâncias de cada ocasião.
209
Desse modo, pode-se facilmente constatar que, se os deveres
acessórios são (ou podem ser) redirecionados a todo instante, e se o que os
direciona é a boa-fé, então isso significa que também a boa-fé está sendo
adaptada a cada instante, pois seu conteúdo é largo e abrangente, carecendo de
ajustes específicos para cada caso.
As observações acima são para destacar um aspecto importante,
referente à busca da determinação do conteúdo da boa-fé para a identificação
concreta dos deveres laterais. É que, face à largueza de tal conteúdo, o que
pode torná-lo vago e impreciso, não se deve buscar o amparo na boa-fé
quando houver disposição normativa expressa, de origem legal ou contratual,
impondo os deveres acessórios. Em outras palavras, deve-se considerar que a
boa-fé, como parâmetro de conduta a ser seguida, atua de modo supletivo,
apenas nos casos onde não houver norma expressa, legal ou convencional, que
possa funcionar como tal parâmetro230.
Tome-se como exemplo o caso do advogado, acima mencionado,
no qual verificamos que o mesmo, na prestação dos seus serviços, tem o dever
de informar ao cliente sobre os riscos de sua pretensão e sobre as possíveis
conseqüências da demanda. Vimos que tal dever se enquadra no dever lateral
de informação, por ser, no caso concreto, a conduta orientada pela boa-fé. No
entanto, como já existe norma expressa estipulando que o advogado preste tais
esclarecimentos ao cliente (art. 8º, do Código de Ética da OAB), não haveria
230
Mas desde que essa norma atenda, ela mesma, como é evidente, aos ditames da boa-fé (de modo
mais amplo, que atenda aos valores constitucionais de dignidade, solidariedade social, etc.), pois caso
contrário tal norma, seja ela legal ou convencional, deverá ser afastada pela incidência do princípio da boa-fé.
Nesse sentido, esclarece com precisão Maria Celina Bodin de Moraes, Danos à Pessoa Humana – Uma
Leitura Civil-Constitucional dos Danos Morais, pp. 67-68, que os valores que integram a tábua axiológica
eleita pela Constituição Federal tomam o lugar das normas jurídicas quando estas se mostram arbitrárias ou
injustas, modificando-as para que reflitam o valor da dignidade humana, sobre o qual se funda, atualmente, a
quase totalidade dos ordenamentos jurídicos.
210
qualquer sentido em recorrer-se à boa-fé para a identificação desse mesmo
dever de informar.
Dito de outro modo, se a norma existente já indica de modo claro
qual deve ser o comportamento de um dos sujeitos envolvidos no negócio, não
há necessidade – e nem sentido lógico – de se recorrer à boa-fé para a
identificação desse mesmo comportamento, pois tal recurso demandaria ainda
a investigação das circunstâncias concretas para que se pudesse determinar o
conteúdo da boa-fé e, como conseqüência de tal conteúdo, o direcionamento e
os limites do dever de informar.
O resultado de tal investigação é que serviria para que se
avaliasse exatamente o quê deveria ser informado pelo advogado ao cliente.
Como se vê, todo esse esforço, além de poder conduzir a um resultado de
contornos imprecisos, é perfeitamente dispensável, uma vez que a norma já
deixa muito claros os contornos do dever de informar nessa situação
específica, o que vem a confirmar o mencionado caráter complementar da
boa-fé.
Por outro lado, no entanto, não se pode deixar de apontar que,
apesar do caráter complementar, é muito amplo o campo que se abre para a
aplicação da boa-fé como parâmetro único a direcionar a conduta dos sujeitos
de um negócio jurídico. É que o legislador, a toda evidência, jamais poderá
cobrir todo o espectro negocial, sempre havendo enorme quantidade de áreas e
situações que demandarão o recurso à boa-fé.
Além
disso,
mesmo
nas
situações
onde
o
legislador
especificamente cuidou de regulamentar em detalhes os comportamentos a
serem adotados pelos sujeitos, sempre poderá ocorrer uma variação das
circunstâncias do caso concreto, de modo a tornar inadequada a simples
211
aplicação da norma, por isso que se mostrará indispensável o recurso à boa-fé
como diretriz da conduta.
Excluída, pois, a utilização da boa-fé quando houver norma
comportamental explícita, de qualquer modo ainda resta um vastíssimo campo
no qual o conteúdo da boa-fé requer determinação, para aplicações concretas.
Esse conteúdo deve ser sempre aferido levando-se em conta as características
e a finalidade dos negócios jurídicos, ou seja, o que seria razoável de se
imaginar que as partes pretendiam obter, mediante a celebração daquele
negócio específico.
O que o intérprete jamais poderá perder de vista, a toda evidência,
é que os negócios jurídicos estão situados no campo das declarações da
vontade, com o intuito de serem obtidos determinados efeitos jurídicos, e por
isso o comportamento das partes, vale dizer, os deveres acessórios a serem
observados pelas mesmas, deverá ser sempre voltado para o atingimento
desses objetivos inerentes ao negócio, jamais sendo admitido um
comportamento que tenha por escopo causar prejuízos aos demais sujeitos.
Desse modo, a atuação dos sujeitos se desenvolve no campo da
autonomia privada, sendo certo que nesta se permite toda atuação válida, isto
é, voltada para a obtenção dos negócios e seus efeitos conforme as vontades
dos sujeitos envolvidos, mas não podem ser toleradas atuações que mostrem
finalidades estranhas à obtenção desses mesmos efeitos.
Assim, por exemplo, em um contrato, serão tolerados – e mesmo
impostos – todos os comportamentos dos contratantes que se liguem direta ou
indiretamente ao cumprimento das prestações centrais, ou seja, tanto o
cumprimento das mesmas, propriamente dito, quanto as condutas que sirvam
de suporte para tal cumprimento. Mas não serão toleradas as condutas que se
mostrem estranhas a tal finalidade, como por exemplo a que impeça um dos
212
contratantes de obter o máximo proveito da prestação que lhe foi entregue ou
a que imponha ao outro um ônus desmesurado e desnecessário.
Nessas circunstâncias, ou seja, não havendo uma norma expressa
e mesmo assim sendo necessário que se imponham limites aos
comportamentos dos sujeitos envolvidos, parece bastante claro que caberá ao
juiz (ao operador do direito), em cada caso concreto, definir quais são tais
limites.
Pode-se dizer, portanto, que a boa-fé, ao pautar a conduta a ser
adotada pelos sujeitos envolvidos no negócio jurídico, impõe-lhes um dever
que apenas pode ser conceituado de modo genérico, e que consiste em se
comportarem com a finalidade de cumprimento e aproveitamento adequados
das prestações centrais e de propiciar os meios para que tal cumprimento
ocorra, abstendo-se, simultaneamente, de praticar atos que se mostrem
estranhos ou mesmo contrários a tais finalidades.
Mas é o operador do direito que, a partir desse dever genérico,
que é comum a todos os negócios jurídicos, deverá observar, em cada situação
que lhe for apresentada, se já existe norma que esclareça no que devem
consistir tais comportamentos e, caso a resposta seja negativa, deverá aferir
quais são esses comportamentos a serem adotados pelos sujeitos no caso
concreto. A orientação fornecida pela boa-fé, portanto, apenas funciona de
modo genérico, mas não afasta a necessidade de intervenção específica para a
sua conformação ao caso concreto. Muito pelo contrário, como já havíamos
visto, requer tal intervenção.
Nessa atuação, no entanto, um outro problema poderá vir a surgir.
É que, em alguns casos, não existirá qualquer norma no direito positivo e, ao
mesmo tempo, também não a existirá nas cláusulas negociais ajustadas entre
os sujeitos. Diante desse silêncio absoluto, é fácil de perceber que o operador
213
do direito terá um amplo campo de liberdade para a averiguação dos limites
específicos da hipótese examinada, limites esses que se mostrem capazes de
manter os comportamentos das partes dentro dos trilhos da conduta que se
mostre consentânea com a finalidade do negócio.
No entanto, casos haverá em que, apesar da lacuna verificada nas
normas do direito positivo, as cláusulas negociais estabelecidas pelas partes
tratam especificamente do problema, estipulando quais os comportamentos
que são esperados para aquele caso concreto. O problema, então, se apresenta
com outra roupagem, que é o de se perquirir se, também nessa hipótese, o juiz
continuará a ter amplo campo de liberdade para a investigação, ou seja, para
aferir quais são os comportamentos dos sujeitos que se mostrem consentâneos
com a boa-fé, e sobre o que fazer quando tais comportamentos divergirem
daqueles previstos pelas partes para o negócio jurídico.
Poderá o juiz, nesse caso, controlar o conteúdo convencional do
negócio, dando prevalência aos comportamentos ditados pela boa-fé? A
resposta só pode ser positiva, como veremos em seguida, pois é certo que a
integração não se encontra dependente da existência de lacunas231. Antes,
contudo, faremos breve análise de opinião que aparenta ser diferente, ou seja,
que parece responder negativamente à pergunta que acabamos de fazer, no
sentido de que o juiz não poderia controlar o conteúdo convencional dos
negócios jurídicos.
Ao examinar o tema, Béatrice Jaluzot232 apresenta uma distinção
entre a “fé do contrato” e a “fé das partes contratantes”. A primeira seria o
“espírito do contrato”, ou seja, aquilo que o anima, e em geral é estabelecida a
partir dos acordos que os sujeitos contratantes firmaram entre si. A segunda,
231
Ana Prata, A tutela constitucional da autonomia privada, p. 56.
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 98, n°s 49 e ss.
232
214
ou seja, a fé das partes, por sua vez, se relaciona com aquilo que os
contratantes pretendem obter a partir do negócio jurídico. E em uma certa
medida, prossegue a autora, ambas podem se apresentar em oposição, uma em
relação à outra.
Com efeito, esclarece a autora francesa, na obra e local citados no
parágrafo anterior, a partir do momento em que a fé do contrato se firma, ela
se torna intangível, e a fé das partes não pode mais influenciá-la. Em outras
palavras, se a vontade das partes já se encontra claramente formada acerca de
um determinado ponto, este não mais poderá ser alterado em virtude da boa-fé
das partes contratantes, pois deve haver estrito respeito à vontade das partes
nos moldes em que foi formada, pois o juiz não pode se valer da cobertura da
boa-fé para simplesmente modificar o contrato.
A conclusão da autora, como se vê, no sentido de que o juiz não
pode se valer da menção à boa-fé para simplesmente modificar o contrato,
parece indicar em sentido oposto ao que acima mencionamos, ou seja, parece
indicar que o juiz não poderia modificar o conteúdo convencional do negócio
jurídico, ao contrário do que afirmamos e que logo em seguida passaremos a
demonstrar. No entanto, na realidade não há contradição alguma, sendo
perfeitamente harmonizáveis, conforme nos parece, a nossa opinião e a da
citada autora francesa.
Na realidade, parece-nos evidente que a referida autora se refere à
inalterabilidade das cláusulas contratuais, mas desde que sejam atendidos dois
requisitos básicos: a) tais cláusulas tenham sido ajustadas de modo válido, o
que engloba o respeito à conduta de boa-fé, impondo a cooperação e a
solidariedade mútua entre os contratantes; b) que não tenha havido alteração
significativa das circunstâncias fáticas externas ao contrato, capaz de alterar o
equilíbrio que havia entre as partes.
215
Logo, se por um lado, de fato, o ajuste contratual firmado de
modo claro e inequívoco entre as partes contratantes não poderá, em princípio,
ser alterado pelo juiz, pois a autonomia da vontade deve ser respeitada, e
portanto o contrato deverá ser cumprido conforme o que foi pactuado entre
elas, por outro, se nesse ajuste uma das cláusulas se mostra contrária à boa-fé,
configurando-se em claro e nítido abuso do direito, parece-nos muito claro
que, em tal hipótese, o juiz não apenas poderá, mas mesmo deverá intervir
para afastar o ato ilícito (abusivo). Na verdade, portanto, pode-se mesmo dizer
que é a “autonomia privada” que deverá ser respeitada, e não a “autonomia da
vontade”.
E tanto é assim que, mais à frente, na mesma obra, a ilustre autora
francesa faz referência a decisão do Tribunal Constitucional alemão para
apontar que “a ciência jurídica é, em conclusão, unânime sobre o fato de que
o princípio da boa-fé designa um limite imanente ao direito de contratar e
autoriza um controle judicial do conteúdo do contrato”. Esclarece a autora
que o Tribunal Constitucional tedesco reconhece que a autonomia privada é
um valor constitucional (o que também ocorre entre nós), mas ao mesmo
tempo indica que esse valor deve ser protegido pela boa-fé, servindo esta para
a imposição de limites que impliquem no verdadeiro respeito à autonomia 233.
E o mesmo pode ser dito em relação ao contrato no qual, embora
não se vislumbre abuso em suas cláusulas, pois no momento em que foi
celebrado, apresentava um equilíbrio entre os contratantes, ocorreu que fatos
externos (supervenientes e imprevistos, por exemplo), estranhos às vontades
dos contratantes, vieram a provocar grave desequilíbrio, tornando as cláusulas
233
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, pp. 123-124, n° 442. “La science juridique est, en fin de compte, unanime sur le fait que le principe
de bonne foi designe une limite immanente au droit de formation du contrat et fonde l’autorisation d’un
contrôle juridictionnel du contenu du contrat” (tradução livre).
216
contratuais, nos moldes em que foram avençadas, claramente injustas, quando
também será cabível a intervenção do juiz para o restabelecimento do
equilíbrio entre os contratantes.
Parece-nos conclusiva e irrespondível, sobre o tema, a observação
de Ana Prata 234, que tem o condão de, em curto texto, fazer um resumo de
todas as possibilidades de intervenção judicial no conteúdo do contrato, além
de fazer a vinculação dessa intervenção com o princípio da boa-fé. Diz a
ilustre jurista lusitana que
“
A utilização dos instrumentos correctivos dos efeitos pretendidos
pelos particulares por parte do juiz pode ir desde uma particular capacidade
de intervenção na interpretação e integração do regulamento contratual, à
qualificação de uma situação não expressamente prevista pela lei como
ilícita, com o consequente declarar da sua invalidade e/ou da existência de
um direito a indemnização, ou ainda à possibilidade de alterar o contrato ou,
pura e simplesmente, resolvê-lo, verificadas dadas circunstâncias.”
“
Das três formas que a intervenção judicial pode assumir, a segunda
enunciada reconduz-se ao estudo da identificação teórica dos deveres
impostos pela ordem pública, bons costumes e boa fé e das consequências
jurídicas da ofensa destes; a terceira forma centra-se no estudo da
modificação ou resolução dos contratos por alteração das circunstâncias.”
Como se vê, ultrapassa-se a simples aferição subjetiva, ou seja, o
campo das intenções dos sujeitos envolvidos no negócio jurídico, passando-se
ao exame dos resultados concretos desse mesmo negócio, e em função desses
resultados é possível que o conteúdo contratual, oriundo da vontade, venha a
ser alterado. É que “os novos fatos sociais dão ensejo a soluções objetivistas e
não mais subjetivistas, a exigirem do legislador, do intérprete e da doutrina
uma preocupação com o conteúdo e com as finalidades das atividades
desenvolvidas pelo sujeito de direito”235.
234
235
Ana Prata, A tutela constitucional da autonomia privada, p. 56.
Gustavo Tepedino, Temas de Direito Civil, p. 6.
217
Essas observações conduzem a uma importante conclusão, no
sentido de que a boa-fé, quando aplicada aos negócios jurídicos, possui um
conteúdo que não depende da vontade dos sujeitos desse mesmo negócio. Ora,
se a boa-fé permite que seja modificado o próprio conteúdo convencional do
negócio jurídico, como acabamos de ver, e se essa mesma boa-fé não depende
da vontade dos sujeitos, então podemos concluir que, na verdade, em uma
certa medida (que coincide com o campo de incidência da boa-fé), o conteúdo
de uma relação obrigacional é formado por normas que podem independer da
vontade das partes envolvidas, ou seja, tal relação apresenta uma dinâmica e
uma extensão que podem estar situadas fora do controle dos sujeitos que a
integram.
É nesse sentido, mencionado no parágrafo anterior, que De los
Mozos 236 afirma que “el contrato depende, tanto en el nacimiento de sus
efectos como en su cessación, de dos elementos: la voluntad de las partes y la
buena fe, por eso, añade que averiguar el juego de ambas es misión del juez”.
E na junção desses dois elementos, vontade e boa-fé, o que se observa é que
“o princípio da boa-fé, sem desprezar a vontade contratual, procura ir além
dela e tomar em consideração sua exteriorização e as repercussões dessa
exteriorização – perante a outra parte contratante e até mesmo perante
terceiros e o meio social”237.
Já havíamos visto, retro, neste mesmo item, em nota de rodapé,
que em relação aos serviços e bens massificados, a possibilidade de ocorrência
dos comportamentos sociais típicos, ou seja, situações nas quais, embora não
236
José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p. 166.
Antônio Junqueira de Azevedo. Interpretação do contrato pelo exame da vontade contratual. O
comportamento das partes posterior à celebração. Interpretação e efeitos do contrato conforme o princípio da
boa-fé objetiva. Impossibilidade do venire contra factum proprium e de utilização de dois pesos e duas
medidas (tu quoque). Efeitos do contrato e sinalagma. A assunção pelos contratantes de riscos específicos e a
impossibilidade de fugir do “programa contratual” estabelecido. Revista Forense – v. 351, p. 279.
237
218
haja contrato, haverá entre as partes envolvidas uma relação obrigacional,
cujos efeitos jurídicos serão idênticos aos de um contrato, independentemente
de não ter havido declaração de vontade. No parágrafo anterior, contudo,
vimos que esses efeitos jurídicos que independem da vontade também podem
ocorrer fora dos contatos sociais massificados, nas relações intersubjetivas
individuais 238.
Passaremos a examinar, em seguida, essas duas hipóteses,
capazes de justificar a intervenção do juiz no conteúdo do contrato, de modo
mesmo a possibilitar a alteração das cláusulas que foram convencionadas
pelas partes contratantes.
Em primeiro lugar, pode-se observar que a determinação de que
seja observado o princípio da boa-fé se apresenta como norma de ordem
pública, que não está ao alcance de ser afastada pela vontade dos sujeitos
envolvidos no negócio, ou seja, “El principio del § 242 [do Código Civil
alemão] es irrenunciable, ya que representa el precepto fundamental de la
juridicidad”239. Assim, só em virtude dessa primeira observação já se poderia
confirmar a resposta positiva, acima indicada: se as cláusulas negociais
pactuadas entre as partes impõem comportamentos que se mostram contrários
àqueles que são ditados pela boa-fé, é esta última que deverá prevalecer.
Mas pode-se ainda observar, em importante reforço à conclusão
acima, que quando o ordenamento prestigia as convenções firmadas pelos
sujeitos, no exercício de suas auto nomias privadas, o faz por entender que as
vontades que estão sendo manifestadas são verdadeiramente livres, por terem
238
Na realidade, também nas relações jurídicas coletivas, como ocorre, por exemplo, em relação às
relações coletivas de trabalho, nas quais também deve haver entre as partes envolvidas a confiança e a
lealdade recíprocas, da mesma forma que ocorre nas relações individuais de trabalho. Cf. Beatriz Maki
Shinzato Capucho, Da boa-fé na negociação coletiva de trabalho, p. 44.
239
Karl Larenz, Derecho de obligaciones, v. I, p. 145.
219
sido manifestadas dentro de uma igualdade substancial entre os sujeitos, e não
em uma igualdade que se mostre tão-somente formal.
Aliás, exatamente o fato de não levar em conta tal aspecto, ou
seja, a igualdade que conduz à verdadeira liberdade é a substancial, e não a
formal, foi que sucumbiu o modelo liberal-individualista da Codificação de
Napoleão, que partia da idéia de que bastava deixar os sujeitos de um negócio,
fossem eles quem fossem, livres de qualquer interferência do Estado, que a
partir daí o que viesse a ser entre eles ajustado seria sempre e
irremediavelmente a manifestação das vontades livres.
Na realidade, cedo se percebeu que a “liberdade” de negociação
entre sujeitos desiguais, na realidade, era fonte de opressão, pois o que se
mostrasse economicamente mais forte, inevitavelmente, tenderia a impor a sua
vontade e a oprimir o economicamente mais fraco. Por esta razão, cedo
também se percebeu que, quando houvesse essa desigualdade econômica entre
os sujeitos do negócio jurídico, seria necessária a intervenção do Estado,
editando normas que se impusessem obrigatoriamente aos sujeitos,
beneficiando o mais fraco, de modo a compensar-lhe a fraqueza econômica e
não podendo ser afastadas pelas cláusulas negociais.
Em termos históricos, como se sabe, o fenômeno foi percebido de
modo claro, pela primeira vez, em relação ao Direito do Trabalho240, em
virtude de razões que logo a seguir voltaremos a mencionar.
Desse modo, a ausência de normas oriundas do Estado não
permitiria que as vontades fossem de fato livres, todas as vezes em que não
240
Sobre o tema, informa Bruno Lewicki que “a pretensa isenção total que o Estado deveria guardar
em relação à vida econômica vai cedendo espaço, lentamente, para um intervencionismo... O primeiro
terreno que demandou a intervenção estatal foi justamente o das relações de trabalho. No rastro de uma
série de tratados internacionais que traçavam diretrizes sobre a matéria, e com o já citado processo de
industrialização ganhando fôlego, não houve como prolongar a era de plena liberdade contratual nesta
área”. Cf. Bruno Lewicki, Panorama da boa-fé objetiva. In: Tepedino, Gustavo (Coord.). Problemas de
Direito Civil-Constitucional, p. 65.
220
houvesse igualdade entre os sujeitos que estivessem emitindo suas vontades.
Nessas condições, a liberdade funcionaria muito mais como um fator de
opressão, e não pode o ordenamento prestigiar esse estado de coisas. Daí,
como dissemos acima, a necessidade de intervenção do Estado nas relações
intersubjetivas.
Essa intervenção pode ocorrer com a fixação de regras que
estabeleçam comportamentos específicos, que imponham deveres claros e
facilmente identificáveis, como vimos no caso do dever de esclarecimento,
imposto ao advogado e ao médico, nas respectivas prestações de serviços. No
entanto, é evidente que nem sempre o Estado poderá, ao editar suas normas,
prever em minúcias todos os comportamentos que devem ser adotados pelas
partes, e por isso podem ser utilizadas condutas genéricas, que imponham
comportamentos cuja finalidade está identificada, mas cuja delimitação
precisa só pode ser buscada quando confrontada com as particularidades da
situação real. É o que acontece com a imposição de observância da boa-fé.
A parametrização dos comportamentos pela boa-fé, portanto,
nada mais é do que uma dessas intervenções do Estado, que têm a finalidade
de compensar a desigualdade substancial entre os sujeitos e evitar que um
deles possa ser explorado e oprimido pelo outro, apenas tendo a
particularidade de se mostrar como uma intervenção que se apresenta com
características genericamente estabelecidas, ao contrário de outras nas quais os
contornos do que pretende o Estado se mostram claramente delineados.
Ocorre que, como mencionamos acima, uma das principais
características dessa intervenção do Estado é precisamente o fato de que são
criadas regras que, sob pena de inocuidade, estão fora do alcance da vontade
dos sujeitos envolvidos, vale dizer, não podem ser afastadas pelas vontades,
sendo de observância obrigatória.
221
Nessa ótica, sendo a boa-fé uma dessas modalidades de
intervenção, mostra-se irrelevante o fato de que se apresenta com uma
roupagem genérica, que ainda está a requerer a delimitação precisa de seus
contornos, pois é certo que, uma vez sendo feita essa delimitação e
identificados esses contornos para o caso concreto, da mesma forma surgirão
regras que não podem ser afastadas pela vontade das partes envolvidas, sob
pena de se tornarem inócuas.
Logo, se as partes já criaram essas regras negociais, se mais
adiante for identificado que tais regras vêm a se chocar com aquelas que
foram apreendidas a partir da imposição da observância da boa-fé, estas
últimas é que deverão prevalecer, como dissemos acima, caso contrário estaria
sendo admitido que a autonomia da vontade fosse exercida de modo a afastar
a intervenção estatal que busca impedir a opressão de um dos sujeitos pelo
outro, ou seja, em última análise, admitir-se-ia que a autonomia da vontade
fosse exercida como meio de opressão, o que viria a implicar em inaceitável
retrocesso aos tempos da primeira codificação civil.
Impõe-se, portanto, como já havia sido adiantado, a conclusão no
sentido de que o juiz poderá, em cada caso concreto que lhe for apresentado,
controlar o conteúdo negocial escolhido pelos sujeitos envolvidos, cotejando-o
com o conteúdo que resulta da conduta imposta pela boa-fé e, em caso de
conflito inconciliável entre ambos, fazendo prevalecer este último.
Aliás, em nosso ordenamento jurídico, essa prevalência do
comportamento obediente à boa-fé sobre o comportamento estipulado pela
vontade das partes, que só pode ser feita se ao juiz se reconhecer o poder de
controlar o conteúdo negocial, pode ser encontrada em várias disposições
legais, como por exemplo os artigos 9º e 468, ambos da Consolidação das Leis
222
do Trabalho, e os artigos 39 e 51, ambos do Código de Defesa do
Consumidor.
Mencionamos, acima, que a necessidade de intervenção do
Estado, com a imposição de regras de observância obrigatória, foi observada
com clareza, pela primeira vez, no Direito do Trabalho. E no parágrafo
anterior, ao apontarmos alguns dispositivos legais que exemplificam essa
intervenção esteada na boa-fé, mencionamos a norma legal que é básica para a
regência dos contratos de trabalho, ao lado da que o é para as relações de
consumo, sendo certo que tal direcionamento não se deu por mera
coincidência. Vejamos o porquê dessa ocorrência localizada, pois a
identificação de tal motivo nos conduzirá a algumas importantes conclusões.
Ensina-nos a história que, nos primórdios da Revolução
Industrial, as grandes cidades européias atraíram milhares de pessoas, que
abandonaram o campo para se candidatar às supostas possibilidades de
empregos que surgiriam nas novas fábricas, implantadas a partir do uso em
larga escala da mecanização e da máquina a vapor.
O problema foi que a máquina a vapor permitiu que o trabalho de
muitos passasse a ser feito por uma única pessoa, que poderia mesmo ser uma
mulher ou uma criança, eis que o comando da máquina não exigia grande
força física. Com isso, para cada vaga de trabalho havia centenas de
candidatos, sendo que às mulheres e às crianças era pago um salário muito
menor do que aos homens adultos.
A partir desses dados torna-se fácil concluir que os donos das
fábricas, ao contratar seus trabalhadores, podiam livremente estipular, em cada
contrato individual, todas as cláusulas que bem entendessem, pois a disputa
por uma vaga era tão grande que sempre haveria algum trabalhador disposto a
223
ser contratado naquelas condições, por mais degradantes e abusivas que se
mostrassem.
Convém recordar que, nessa época, ou seja, no primeiro quartel
do século XIX, o Código Civil francês, como já mencionamos linhas atrás, no
auge do liberalismo individualista, entendia que era justo tudo o que fosse
livremente contratado pelos sujeitos envolvidos. Logo, pouco importava quão
degradantes fossem as condições contratualmente impostas em cada caso, pois
se a outra parte as havia aceitado, era porque entendia que as mesmas eram
justas e adequadas.
Assim, foi inevitável que em cada contrato individual houvesse a
estipulação de cláusulas completamente absurdas e abusivas, que eram
impostas pelo dono da fábrica e “livremente” aceitas pelo trabalhador, uma
vez que a igualdade entre as partes contratantes era tão-somente no sentido
formal, e não substancial, eis que uma delas era muito mais forte e a outra
muito mais fraca, economicamente, e portanto não havia liberdade ao
contratar, mas sim opressão, pois era o dono dos meios da produção quem
impunha a sua vontade, restando ao outro contratante, tão-somente, aceitá-la
ou ficar sem trabalho.
Esse abuso perpetrado pelos donos das fábricas, como se disse,
ocorria em cada um dos contratos individualmente celebrados. No entanto, em
virtude do grande volume de contratos que passaram a ser celebrados, face à
proliferação das mais diversas indústrias, esse abuso, que levava milhares e
milhares de trabalhadores a uma situação degradante, acabou chamando a
atenção de intelectuais, como Marx e Engels, que passaram a solicitar que o
Estado interviesse nessas relações, impondo limites à vontade dos
contratantes, limites esses que deveriam ser inalcançáveis pela vontade dos
contratantes.
224
Além disso, o grande número de trabalhadores que enfrentavam
as mesmas agruras, e que estavam todos sufocados pela mesma e absoluta
miséria, acabou favorecendo o surgimento de agitações sociais, com as lutas
de classes que sacudiram fortemente a Europa, principalmente na segunda
metade do século XIX, e diante de todo esse quadro a intervenção do Estado
foi conseguida à força, e acabou tendo que ser feita, impondo-se
paulatinamente aos contratantes algumas regras mínimas de comportamento,
que teriam que ser obrigatoriamente observadas na celebração e na execução
dos contratos celebrados entre os trabalhadores e os donos das fábricas. Essas
restrições que passaram a ser impostas, como se sabe, acabaram por dar
origem a um novo ramo do Direito, o Direito do Trabalho.
Nesse ponto, convém realçar que a questão da necessidade de
intervenção do Estado, de modo a impor regras comportamentais que se
sobrepõem às vontades das partes, foi detectada, inicialmente, nas relações de
trabalho, em virtude do grande volume que surgiu em relação a uma mesma
situação, além dos terremotos sociais já mencionados. No entanto, o problema
surgia em cada um dos contratos, e não apenas no conjunto de contratos.
Em outras palavras, a necessidade de serem impostas regras
comportamentais – que, como vimos, quando não são impostas explicitamente
pela lei, o são pela boa-fé – foi verificada em relação a cada contrato
individualmente considerado, e o conjunto de contratos, em grande volume,
apenas serviu para despertar a atenção do direito para o problema. Essa
observação já nos permite adiantar que as regras comportamentais impostas
pela boa-fé, com a possibilidade de controle do juiz sobre o conteúdo do
contrato, surgem em todos os negócios jurídicos, e não apenas naqueles que se
notabilizam pela repetição em larga escala.
225
Essa mesma situação pôde ser observada, mais recentemente, nas
relações de consumo, nas quais o problema também chamou a atenção em
virtude do grande volume em que tais relações ocorrem. Com efeito, há muito
tempo que se sabe que o fornecedor de produtos ou serviços, em regra, é quem
impõe as regras dos contratos, o que muitas vezes tem o efeito de conduzir a
abusos.
Mas foi a partir do fenômeno da globalização, quando as grandes
companhias multinacionais se espalharam por todo o mundo, que o grande
volume de negócios onde um dos contratantes fixava as cláusulas contratuais e
oferecia o contrato a milhões de pessoas, às quais só cabia aceitá-las ou não
contratar, que esses negócios começaram a chamar a atenção para os
inaceitáveis abusos que vinham sendo cometidos. Surge, mais uma vez, a
necessidade de forte intervenção do Estado nas relações de consumo, o que
acabou por dar origem a um outro ramo do direito, agora o Direito do
Consumidor, que por suas origens semelhantes é tão intervencionista e
protetor quanto o Direito do Trabalho.
No entanto, mais uma vez se destaca que, se por um lado o
problema despertou a atenção em virtude da acentuada multiplicação dos
contratos abrangentes de relações de consumo, por outro, esse mesmo
problema vinha surgindo nas relações individuais, não dependendo, portanto,
para que fosse necessária a intervenção do Estado, de ser situação que se
repetia em milhões de contratos.
O que se pode concluir, portanto, é que a necessidade de controle
do conteúdo dos contratos, para ver se os mesmos estão adequados não apenas
às normas legais explícitas e específicas, mas também às normas que
decorrem da concretização, em cada caso, do dever genérico de boa-fé, opera
226
em todos os contratos, e não apenas naqueles que se destacam pela repetição
de milhares ou mesmo milhões de situações idênticas.
Essa constatação se tornou muito clara com a edição do nosso
recente Código Civil, que em várias passagens trouxe a previsão explícita de
que devem ser impostos aos sujeitos de um negócio jurídico comportamentos
que se liguem aos deveres de lealdade, de proteção, de informação, etc., ou
seja, que se liguem, em síntese apertada, aos deveres laterais que são dirigidos
a partir da necessidade de uma conduta de boa-fé.
Com efeito, veja-se que o Código Civil, por exemplo, referindose aos contratos em geral, de modo explícito impôs a adoção de alguns
comportamentos que são de observância obrigatória, não podendo ser
afastados pelas vontades dos sujeitos, como no caso dos artigos 423 e 424. O
primeiro determina que, nos contratos de adesão, onde a parte que estipula as
condições contratuais é a que tem o poder de impô-las à outra, as cláusulas
ambíguas ou contraditórias sejam interpretadas em favor do aderente. E o
segundo determina que, nesses mesmos contratos, serão nulas as cláusulas que
estabeleçam a renúncia antecipada do aderente a direito resultante da natureza
do negócio.
Trata-se de determinações explícitas, portanto, de condutas que,
acaso não estivessem expressas, poderiam ser enquadradas nos deveres
laterais de informação (ou seja, o que redigiu o contrato tem o dever de tornar
claras para o aderente as cláusulas que o integram) e no de proteção (o
contratante responsável pela redação das cláusulas contratuais não pode fazêlo de modo a causar prejuízos ao outro, através da renúncia prévia a direitos
que, normalmente, devem acompanhar o contrato que está sendo celebrado).
E outros exemplos específicos ainda poderiam ser apontados,
como no caso do artigo 413, do mesmo Código Civil, que impõe às obrigações
227
em geral, independentemente do que tenham convencionado os sujeitos das
mesmas, o dever de redução eqüitativa da cláusula penal, na hipótese da
prestação ter sido parcialmente cumprida com utilidade para o credor, não
podendo essa determinação ser afastada por força da convenção. Tem-se aqui,
como se percebe, aplicação específica do dever de lealdade, que impede que
uma das partes possa obter vantagem exagerada, a partir de um desequilíbrio
entre as prestações.
E, ainda, de um modo genérico, diante da evidente
impossibilidade de serem previstas de modo específico todas as situações
comportamentais adequadas ao comportamento de boa-fé, trouxe o Código
Civil, no artigo 422, a previsão de que os contratantes, tanto na conclusão
quanto na execução de um contrato, deverão sempre ter suas condutas
pautadas pelo respeito ao princípio da boa-fé, como já havíamos comentado
anteriormente, sendo certo que tal comportamento de boa-fé, nos casos onde
houver lacuna legal, será concretizado pelo operador do direito, que fará a
adaptação em função das circunstâncias da hipótese concreta.
Assim, por exemplo, como aplicação desse dever genérico de
comportamento consoante as regras decorrentes da boa-fé, pode-se apontar
que não é dado a um dos contratantes aproveitar-se de uma circunstância
fática, ligada ao contrato, para auferir lucros exagerados e desproporcionais,
ao mesmo tempo em que impõe à outra parte prejuízos exorbitantes, em clara
e nítida desproporção entre as prestações.
Não foi por outra razão, aliás, que o Código Civil, em relação às
obrigações em geral, previu expressamente a possibilidade de intervenção
judicial para reequilibrar as prestações, quando fatos supervenientes e
imprevisíveis tiverem causado manifesta desproporção entre elas (art. 317),
sendo tal previsão legal também tornada explícita em relação aos contratos,
228
por isso que o artigo 478 expressamente prevê a possibilidade de resolução
contratual quando uma das prestações, por acontecimentos extraordinários e
imprevisíveis, tiver se tornado excessivamente onerosa, com extrema
vantagem para a outra, podendo contudo ser evitada a resolução se o outro
contratante se oferecer para reequilibrar as prestações.
Vimos, até este ponto, que ocorre um desdobramento das
obrigações em uma operação complexa, vale dizer, em um negócio jurídico
que não é formado apenas pelas prestações centrais (principais), mas por
inúmeros deveres secundários (ou acessórios) que se concatenam e caminham
sempre no sentido de se atingir, no final, o cumprimento adequado das
prestações principais. Vimos, ainda, que esses deveres acessórios estão
intimamente ligados à boa-fé, não pelo fato desta ser a fonte daqueles, mas em
virtude da boa-fé funcionar como diretriz para a identificação, em cada caso
concreto e em cada momento, de quais são esses deveres e qual o seu
conteúdo.
Assim, a boa-fé, para fins de concretização do conteúdo dos
deveres acessórios, pode ser descrita como a orientação que considera
adequados, em cada caso, os comportamentos ligados direta ou indiretamente
à persecução das prestações principais da obrigação, ou seja, estão conforme a
boa-fé – e devem ser por isso adotados pelos sujeitos – todos os
comportamentos cuja finalidade imediata seja o cumprimento das prestações
centrais ou que, pelo menos, tenham tal objetivo de modo mediato, vale dizer,
sejam necessários para possibilitar o cumprimento de tais prestações da forma
mais adequada, ou seja, do modo menos gravoso para o devedor e com o
maior aproveitamento possível para o credor.
De tudo quanto se viu, pode-se concluir que a violação dos
deveres laterais, na realidade, implica em violação dos comportamentos que
229
são indicados, no caso concreto, a partir da boa-fé, ou seja, essa violação dos
deveres acessórios ocorre quando o sujeito de um negócio jurídico adota
conduta que se mostra em descompasso com aquela que era indicada pela boafé por ser a mais consentânea com a consecução da finalidade do negócio
jurídico. Logo, em última análise, o descumprimento de deveres laterais
implica em descumprimento da conduta de boa-fé, uma vez que é a partir
desta que se identifica e se reconhece o conteúdo de cada um daqueles.
Algumas dessas situações de violação da boa-fé, contudo, por se
mostrarem mais freqüentes e de maior repercussão concreta nos negócios
jurídicos, passaram a ser estudadas de modo específico, por sempre ocorrerem
com um padrão definido, identificado a partir de um comportamento típico e
específico do sujeito, e que vem a entrar em choque com o comportamento
que havia sido previsto a partir da concretização do dever genérico de boa-fé.
No próximo capítulo, portanto, passaremos ao exame de cada um desses
comportamentos típicos, que violam o dever de comportamento conforme os
parâmetros traçados a partir da boa-fé.
1.9. As conseqüências jurídicas da proteção conforme o princípio da boa-fé.
De início, convém esclarecer que fazer incidir o princípio da boafé não significa a mesma coisa que reprimir o desatendimento a esse mesmo
princípio, desde logo adiantando que essa diferença se mostrará essencial para
o adequado cotejo entre o venire contra factum proprium e o tu quoque, como
veremos adiante.
Assim, caminhando em busca dessa diferença enunciada no
parágrafo anterior, observe-se que em muitos casos poderá ocorrer de um dos
sujeitos comportar-se em desacordo com a esperada cooperação, criando
230
obstáculos injustificados, por exemplo, a que o outro possa obter a satisfação
dos seus interesses que buscava atender a partir do negócio jurídico, e nesse
caso a atuação do juiz deverá ser no sentido de reprimir essa conduta
inadequada, que desatende à solidariedade social, sendo que essa repressão
poderá se concretizar por vários modos, como veremos logo adiante, neste
mesmo item.
No entanto, em muitos casos também poderá ocorrer que uma
pessoa tenha se comportado de boa-fé, conduzindo-se conforme as justas e
legítimas expectativas criadas a partir das circunstâncias peculiares ao
negócio, sendo que, posteriormente, essas expectativas foram frustradas por
motivos estranhos à outra parte, uma vez que esta, em nenhum momento,
adotou comportamento que pudesse ser apontado como contrário à boa-fé. Em
outras palavras, um dos sujeitos agiu de boa-fé, e essa boa-fé poderá ser digna
de proteção, independentemente do fato de não ter havido má-fé por parte do
outro sujeito.
Essa seria a hipótese, por exemplo, da conversão do negócio
jurídico nulo em um outro negócio, cujos requisitos de validade estão
atendidos, e que também se mostra adequado para o atendimento aos objetivos
do negócio jurídico inicialmente entabulado entre as partes (veja-se, retro, o
item 1.6).
Seria o caso, ainda, da pessoa que, sem saber da existência da
incapacidade, celebrou negócio com sujeito que, por deficiência mental, não
tem discernimento para praticar os atos da vida civil (incapaz absoluto), mas
que não estava interditada, sendo que tal negócio foi celebrado em condições
consideradas normais, dentro dos valores normalmente praticados no mercado
para os negócios daquela espécie.
231
Nessa situação, descrita no parágrafo anterior, a boa-fé do sujeito,
que agiu sem ter conhecimento e sem ter meios de descobrir a incapacidade do
outro, poderá ser protegida, reconhecendo-se efeitos ao contrato, e, no entanto,
é evidente que não se pode falar em má-fé do absolutamente incapaz, ou seja,
protege-se a boa-fé de um, mas sem que isso implique, necessariamente, em
reprimir a má-fé do outro co-partícipe. Essa questão voltará a ser abordada,
em mais detalhes, mais à frente.
A hipótese, contudo, que nos parece mais clara, no sentido de
proteção à boa-fé de um sujeito independentemente de não ter havido má-fé
por parte do outro, é a que se relaciona ao erro (defeito do negócio jurídico),
para cuja configuração o atual Código Civil, ao contrário do que fazia o
anterior, passou a exigir o requisito da recognoscibilidade. Com efeito, veja-se
que o artigo 138, do Código Civil brasileiro, expressamente indica que o
negócio jurídico será anulável em virtude do “erro substancial que poderia
ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do
negócio”.
A primeira observação a ser feita, sobre o referido artigo, para
que possamos prosseguir na sua análise em relação à boa-fé, diz respeito a
quem seria essa “pessoa de diligência normal”, se aquele que declarou sua
vontade em virtude do erro, ou se o outro sujeito, com quem negociou o que
incidiu em erro.
Assim, por exemplo, suponha-se que A e B celebraram contrato
de compra e venda, tendo A adquirido de B um objeto dourado, que acreditava
ser de ouro. A, portanto, participou do negócio em virtude de erro substancial,
referente a qualidade essencial da coisa adquirida. A questão inicial que se nos
apresenta, pois, refere-se a saber se a “pessoa de diligência normal”, a que se
232
refere o artigo 138, seria A, que emitiu a vontade defeituosa, ou B, pessoa com
quem A negociou e para quem foi dirigida a vontade deste.
Parece-nos muito claro que tal pessoa só pode ser B, a quem a
vontade de A foi dirigida. Ora, se a norma legal estivesse querendo se referir
ao sujeito A, estaria dizendo que haveria o erro substancial, e por isso o
negócio seria anulável, ainda quando o mesmo decorresse da negligência do
declarante, ou seja, uma pessoa normal teria percebido que a coisa não era de
ouro, e sim dourada. A, no entanto, não foi diligente e por isso não percebeu o
que deveria ser óbvio para qualquer pessoa normal, e mesmo assim teria a sua
negligência aquinhoada com a possibilidade de desfazimento do negócio.
É evidente que tal interpretação, mencionada ad argumentandum
no parágrafo anterior, conduz a conclusão absurda, resultando em séria
ameaça à segurança dos negócios jurídicos, e por isso deve ser de logo
descartada. Logo, o único sentido que se mostra possível para a norma é o de
se entender que a lei pretendeu se referir a B, ou seja, à pessoa para quem A
dirigiu a sua declaração de vontade. Assim, se o erro de A foi tal que B, com
um mínimo de atenção e diligência, poderia ter percebido que a declaração de
vontade era defeituosa (esteada no erro), ou seja, se B poderia ter reconhecido
o erro (requisito da recognoscibilidade), neste caso, e somente neste caso, é
que o negócio jurídico será anulável.
Pode-se verificar, portanto, contrario sensu, que apesar de A ter
incidido em erro, ao declarar sua vontade, se B não tinha condições de
perceber esse mesmo erro, o negócio será por isso mantido, para a proteção da
boa-fé de B, que tem a justa expectativa dessa manutenção, pois apesar de sua
diligência normal nada percebeu que pudesse macular esse mesmo negócio.
Nesse sentido, “vê-se bem que o legislador de 2002 optou pela proteção do
contratante que negocia com o que errou. Prestigiou a doutrina da
233
confiança” 241 (no exemplo acima, a confiança de B em que o negócio jurídico
foi validamente celebrado e que por isso será cumprido)
Vejamos um exemplo mais detalhado, de ocorrência prática um
tanto quanto improvável, mas que nos parece eficaz para ajudar na melhor
compreensão do tema.
Suponha-se que B é um vendedor de bijuterias em uma feira livre,
que funciona apenas aos domingos, em uma praça da cidade, e expôs à venda
uma pulseira dourada, no valor de R$ 80,00, sendo que uma pulseira idêntica,
se feita de ouro, custaria em torno de R$ 2.000,00. A, visitando a feira, resolve
comprar essa pulseira exposta, acreditando que a mesma é de ouro, e, não
tendo dinheiro consigo no momento, pede que B a reserve, informando que
retornará em algumas horas e que pretende pagar por ela R$ 90,00, para
compensar a reserva feita, e efetivamente retorna e a venda é realizada.
Ora, pelo preço oferecido, que se mostra bastante próximo àquele
que estava sendo inicialmente pedido por B, este não tem como saber que A
acredita que a pulseira seja feita de ouro, pois se o fosse o preço seria muito
superior, em patamar completamente distinto. Nesse caso, apesar do erro de
A, o negócio será mantido, em proteção à boa-fé do vendedor, em cujo
procedimento está implícita a confiança em sua manutenção, pois é
claramente legítima a expectativa de B nessa mesma manutenção. Faltaria, aí,
portanto, o requisito da recognoscibilidade, para que o negócio pudesse ser
anulado em virtude do erro de A.
241
Paulo Gustavo Gonet Branco, Em torno dos vícios do negócio jurídico – A propósito do erro de fato
e do erro de direito. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives Gandra da
Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, p. 140. E esclarece o
autor, na mesma obra e local, que o relatório da Comissão Revisora do projeto que deu origem ao Código
Civil confirma expressamente o propósito do legislador de proteger a boa-fé daquele que não tinha como
suspeitar do erro do outro com quem contratou, o que se verifica na justificativa da recusa à Emenda nº 176.
234
No mesmo exemplo, contudo, suponha-se que A, ao pedir que
reservasse a pulseira, informasse que pretendia retornar e pagar pela mesma a
quantia de R$ 1.800,00. Em tal hipótese, como resulta evidente, B teria todas
as condições de perceber com facilidade que A estava manifestando sua
vontade com esteio em erro, pois o disparate entre o valor da pulseira e o
preço oferecido seria tão grande que jamais poderia passar despercebido a
qualquer pessoa de diligência normal. Nesse caso, portanto, o negócio seria
anulável em virtude do erro substancial de A, eis que se verificou o requisito
da recognoscibilidade (por B), e portanto não se poderia falar em proteção à
boa-fé deste, uma vez que tal boa-fé não pode ser detectada a partir da conduta
do vendedor.
Analisamos, até aqui, além do conceito e do fundamento
constitucional do princípio da boa-fé em si mesmo, diversas situações
genéricas de desobediência ao mesmo, inclusive quando tal princípio se
manifesta, nas relações obrigacionais, sob a forma de variados deveres
acessórios. E vimos, em tais situações, as conseqüências possíveis desse
mesmo desatendimento.
Neste ponto da nossa pesquisa, tornamos a fazer essa mesma
análise, acerca das conseqüências do desatendimento ao princípio da boa-fé
(ou da simples aplicação do princípio, em proteção ao sujeito de boa-fé), só
que agora buscando uma sistematização do assunto.
Começamos pela observação no sentido de que a infração ao
princípio da boa-fé não resulta, em geral, na nulidade do negócio jurídico onde
isso se deu, pois proteger a boa-fé de um dos sujeitos significa fazer com que
sejam satisfeitas as expectativas geradas a partir do negócio jurídico, e não a
sua frustração de uma vez por todas, o que ocorreria com a nulidade do
negócio.
235
Aliás, muito pelo contrário, como veremos de modo minucioso,
mais à frente, a proteção à boa-fé de um dos sujeitos pode mesmo resultar – e
muitas vezes resulta – na superação de uma nulidade do negócio jurídico, de
modo a que venham a ser produzidos os efeitos normais, como se esse negócio
fosse válido, de modo tal que sejam atendidas as expectativas do sujeito.
Com efeito, em virtude da desobediência ao princípio da boa-fé,
como já vimos anteriormente, as conseqüências podem ser de diversas ordens,
tais como a anulação de uma cláusula contratual que se mostre abusiva, a
modificação de uma cláusula que esteja provocando grave desequilíbrio entre
as partes, a imposição do dever de reparar os danos causados em virtude da
falta de cooperação, a imposição do dever de prestar as informações
necessárias, etc.
Antes de prosseguirmos, contudo, convém alertar que, na
realidade, o máximo que se pode fazer, além de realçar que a atuação do
princípio da boa-fé não se constitui em causa de nulidade dos negócios
jurídicos, é a indicação e a análise das conseqüências mais comuns do
descumprimento do princípio da boa-fé, assim como qual seria o melhor modo
de intervenção com o escopo de proteção a essa mesma boa-fé, sendo, no
entanto, impossível uma sistematização capaz de traçar as linhas mestras para
todas as hipóteses possíveis de ocorrência em situações concretas.
Essa impossibilidade, como nos parece evidente, resulta do fato
de que o princípio da boa-fé, como já examinamos anteriormente (veja-se,
retro, o item 1.1), funciona como o instrumento de uma justiça caso a caso, ou
seja, cuja concretização do conteúdo só pode ser feita na análise das
circunstâncias do caso concreto, em função das quais o juiz deverá aferir qual
o conteúdo do princípio para aquela hipótese em particular.
236
Ora, se o conteúdo exato do princípio da boa-fé, para fins de sua
aplicação concreta, só poderá ser determinado depois de serem examinadas e
sopesadas as peculiaridades de cada situação, e se com essa atuação ao caso
concreto o que se busca é, precisamente, corrigir os desvios decorrentes do
desatendimento ao princípio, é evidente que o modo de fazer atuar o princípio
da boa-fé (e, portanto, as conseqüências jurídicas dessa atuação) só poderá ser
aferido também no caso concreto que se encontra sob exame.
Além disso, é certo que, em determinadas situações, o
desatendimento ao princípio da boa-fé poderá trazer conseqüências em outras
áreas do direito, como por exemplo na esfera penal. Assim, por exemplo,
suponha-se que uma pessoa que vive em união estável adquiriu, a título
oneroso, na constância da mesma, um imóvel, que foi registrado
exclusivamente em seu nome. Se esse companheiro aliena o imóvel para
terceiro, deverá informar ao adquirente sobre o seu estado civil, para evitar o
prejuízo à companheira e mesmo uma possível argüição, por parte desta, da
anulabilidade do negócio. Tem-se aí, portanto, o dever acessório de
informação.
No entanto, essa falta de informação, no caso hipotético
apresentado, poderá, em tese, ser considerado como estando incluso no crime
tipificado no artigo 299, do Código Penal brasileiro, que se refere, dentre
outros tipos, à omissão, em documento público ou particular, de declaração
que dele deveria constar 242.
Por razões óbvias, contudo, decorrentes do objetivo do presente
trabalho, limitar-nos-emos ao exame das conseqüências jurídicas situadas na
esfera civil, deixando as conseqüências penais para os estudiosos do assunto.
242
O exemplo é de Nicolau Eládio Bassalo Crispino, A união estável e a situação jurídica dos negócios
entre companheiros e terceiros, pp. 252-253.
237
Vejamos, então, em seguida, as hipóteses mais freqüentes de
conseqüências jurídicas possíveis, face ao descumprimento do multicitado
princípio da boa-fé, buscando apresentar exemplos de cada uma delas.
a) declaração de invalidade de uma cláusula contratual específica.
Em algumas situações concretas, o que se verifica é que uma das
cláusulas negociais confere a uma das partes um poder tão grande, em relação
ao negócio jurídico, que esse sujeito adquire a possibilidade de impor
livremente a sua vontade ao outro, o que pode transformar em abusiva a
mencionada cláusula. O negócio, uma vez desconsiderado esse item abusivo, é
perfeitamente válido. Nessas condições, nada justificaria que se considerasse
inválido todo o ato volitivo, por isso que se mostra suficiente que apenas a
cláusula em questão seja retirada do mesmo.
Suponha-se que em um contrato de abertura de crédito, celebrado
entre um comerciante e um banco, este, depois de ter liberado algumas
parcelas, de modo súbito e injustificado, resolve não liberar mais um único
centavo e, além disso, exigir o imediato pagamento de todos os valores já
liberados, uma vez que existia cláusula contratual que lhe permitia agir dessa
forma 243.
Ora, parece evidente que, apesar da existência da referida
cláusula, esse comportamento de um dos sujeitos do negócio (o banco, no
caso), surpreendendo o outro e podendo causar-lhe graves prejuízos, viola o
dever de se conduzir conforme a boa-fé, por ter sido brusca e sem aviso prévio
a ruptura do crédito e a exigência do pagamento, e por essa razão a cláusula
243
O exemplo é mencionado por Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de
droit français, allemand et japonais, p. 338, n° 1201.
238
poderá ser declarada judicialmente inválida, fixando o juiz um prazo para que
o banco possa fazer tais exigências.
Cabe recordar que o Código de Defesa do Consumidor, de modo
expresso, fulminou com a nulidade as cláusulas que se mostrem abusivas, em
desfavor do consumidor, como se pode observar na regra que se encontra
insculpida nos artigos 51 e seguintes do referido Código, dentre elas inserindo
explicitamente aquelas que se mostrem incompatíveis com a boa-fé (art. 51,
IV). Além disso, observe-se, ainda, que poderia surgir, também, no exemplo
acima, a obrigação de reparar os danos porventura sofridos pelo comerciante,
em decorrência do brusco e não avisado rompimento.
Vejamos um outro exemplo, este ligado do Direito do Trabalho, e
no qual também poderia ser declarada a invalidade de uma cláusula contratual
específica.
Suponha-se que, ao ser contratado um empregado, por
empregador que mantém estabelecimentos em várias cidades do Brasil, do
contrato constou, expressamente, que o mesmo poderia ser transferido pelo
empregador, unilateralmente, a qualquer momento, para qualquer desses
estabelecimentos, desde que houvesse necessidade do serviço, a justificar essa
transferência. Essa possibilidade de transferência unilateral, é importante que
se ressalte, quando prevista implícita ou expressamente no contrato e no caso
de haver necessidade do serviço, é expressamente admitida pelo artigo 469, §
2°, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
No entanto, durante vários e longos anos, o empregado
permaneceu trabalhando e residindo sempre naquela mesma cidade na qual foi
admitido, sendo que na mesma já adquiriu imóvel, casou-se, matriculou os
filhos na escola, associou-se a alguns clubes locais, etc. Enfim, depois de
vários anos, o empregado já construiu toda a sua vida social nessa cidade onde
239
foi contratado e onde sempre trabalhou. Decorridos quinze ou vinte anos, vem
o empregador a pretender exercer a cláusula que permite a transferência,
determinando ao empregado que se apresente, dali a alguns dias, em uma
outra cidade, em um outro Estado da Federação.
Será válida essa determinação de transferência, feita pelo
empregador ao empregado? Apesar da existência da cláusula contratual
expressa, parece-nos que claramente a resposta negativa se impõe, uma vez
que tal determinação viola o princípio da boa-fé, eis que o longo tempo
decorrido, desde a contratação, já havia feito surgir no empregado a legítima
expectativa de que não precisaria ser transferido para outra localidade, e a
determinação, por isso, quebra a confiança que justificadamente havia surgido
no trabalhador. Trata-se, na hipótese, de um caso particular de venire contra
factum proprium, que por suas características se enquadra dentro da assim
denominada suppressio (veja-se, adiante, o item 2.5).
Não é demais observar que, ao apreciar as circunstâncias
específicas do caso concreto, para aferir se um determinado comportamento
viola ou não o princípio da boa-fé, um elemento que se apresenta como de
fundamental importância é precisamente o tempo já decorrido, ou seja, quanto
maior for o tempo durante o qual a parte se comportou de uma determinada
maneira (no caso, não exercendo o direito de transferir o empregado), mais
facilmente poderá ser considerado como abusiva (por violar a boa-fé) a
mudança de comportamento (o exercício desse mesmo direito). Veja-se, mais
adiante, no item 2.3.1, explicação mais minuciosa sobre essa questão do
tempo decorrido.
No caso concreto, portanto, parece-nos que ao juiz, ao ser
provocado pelo empregado, não restará outra opção, a não ser declarar a
240
invalidade da cláusula constante do contrato laboral e determinando que o
empregador se abstenha de insistir na transferência do seu empregado.
a.1) modificação eqüitativa de uma cláusula contratual.
Vimos, acima, a hipótese na qual o juiz poderia, simplesmente,
invalidar uma cláusula contratual, e, portanto, desconsiderá-la, ao buscar a
solução para o caso concreto. Poderia ocorrer, no entanto, de se tratar de
cláusula necessária, e que por essa razão não pode ser simplesmente eliminada
do negócio, mas cujo quantitativo se apresenta visivelmente abusivo. Em tal
situação, parece evidente que o juiz não poderá desconsiderar a mencionada
cláusula, mas poderá reduzir esse quantitativo, de modo a torná-lo mais
adequado às circunstâncias do caso concreto. Vejamos um exemplo.
Suponha-se que em uma pequena cidade, na qual existem apenas
três médicos-cirurgiões, uma pessoa sente-se mal e necessita de uma urgente
intervenção cirúrgica. Nessa ocasião, dois dos cirurgiões estão ausentes da
cidade, e o deslocamento do paciente para alguma outra cidade vizinha não se
mostra seguro, em virtude do precioso tempo que seria perdido e também em
virtude do desconforto físico da viagem.
Não tendo outra opção, o doente procura o único cirurgião que se
encontra presente na cidade, sendo que este, para realizar a cirurgia, cobra
honorários exorbitantes, em valor várias vezes superior ao que normalmente
seria cobrado para aquele tipo específico de intervenção cirúrgica. Novamente
por não ter opção, diante da urgência de sua situação, o doente concorda com
o valor cobrado, sendo firmado contrato nesse sentido, e desde logo adiantado
o pagamento no todo ou em parte.
241
Posteriormente, contudo, depois de realizada a cirurgia, o
paciente decide questionar judicialmente (como autor ou ao contestar ação de
cobrança movida pelo médico, tanto faz) a cláusula referente ao valor dos
honorários médicos, alegando que a mesma foi extorsiva, tendo o profissional
se valido da urgência da situação para pleitear honorários em valor exorbitante
e irreal.
O juiz, examinando as circunstâncias do caso concreto, conclui
que, de fato, o valor cobrado foi exorbitante, não podendo ser aplicada aquela
cláusula contratual para forçar o paciente a pagar a abusiva quantia. Ora, é
evidente que, em tal caso, não poderá o juiz simplesmente invalidar e
desconsiderar a cláusula contratual, pois é certo que o médico-cirurgião, tendo
prestado o serviço ao qual se comprometeu, deverá ser por ele remunerado,
com o pagamento dos honorários devidos.
Nesse caso, portanto, a intervenção judicial não consistirá na pura
e simples eliminação da cláusula contratada, mas na sua adequação à realidade
fática do caso concreto, vale dizer, com a sua redução proporcional e
eqüitativa, para um valor que possa ser considerado como normal e adequado
para aquela espécie de cirurgia. Ou seja, mantém-se a cláusula contratual, mas
adapta-se o quantitativo inadequado, para que melhor se harmonize com a
situação do caso concreto.
Não é demais observar que o caso acima narrado nada mais é do
que a hipótese de estado de perigo, prevista no artigo 156, do Código Civil
brasileiro, sendo que, no caso, não é possível anular o negócio em virtude do
vício apresentado, uma vez que o médico já havia cumprido a sua prestação,
cuja devolução se mostra impossível. Logo, deverá o juiz se valer do artigo
182, do mesmo Código, para estipular qual seria a adequada retribuição a ser
paga ao médico prestador do serviço.
242
b) determinação para que o sujeito adote um certo comportamento: imposição
de obrigação de fazer.
A boa-fé, como já vimos (veja-se, retro, o item 1.6.1), tem
assento constitucional, fundando-se no princípio da solidariedade social, que
se apresenta como um dos objetivos fundamentais da nossa República
(Constituição Federal, art. 3°, I), e essa solidariedade impõe, dentre outros
comportamentos, o dever de cooperação entre os sujeitos de um negócio
jurídico, significando, por exemplo, que cada um deles deve não apenas
abster-se de colocar obstáculos para que o outro possa cumprir suas
prestações, mas, ainda mais do que isso, deverá cada um deles agir de modo a
possibilitar esse mesmo cumprimento.
Logo, em muitos casos a atuação da boa-fé poderá implicar
exatamente na determinação para que o sujeito adote esse comportamento
específico, que no caso concreto possa se mostrar capaz de facilitar ou
possibilitar à outra parte o cumprimento de suas prestações.
Suponha-se, por exemplo, que em um contrato de compra e
venda, no qual o comprador é um comerciante e o vendedor é o fabricante de
um determinado produto alimentício, houve a descrição detalhada sobre as
condições nas quais esse produto deveria ser entregue, sendo descrito, por
exemplo, que cada embalagem individual deveria conter quinhentos gramas
do mesmo, e que em cada caixa deveria haver vinte dessas embalagens.
O fabricante, no entanto, remete ao comprador o produto em
caixas que contêm, cada uma, doze embalagens de quinhentos gramas. O
comprador, imediatamente, devolve a mercadoria e requer a resolução do
contrato. O vendedor, contudo, oferece ao comprador uma nova e imediata
243
remessa, desta vez com o pleno atendimento das condições pactuadas, ou seja,
em caixas de vinte embalagens, mas o comprador persiste no seu propósito de
desfazer o contrato.
Em tal situação, salvo a ocorrência de circunstâncias especiais,
que poderiam justificar a recusa por parte do comprador, parece-nos que este
estará descumprindo o seu dever de cooperação, ao recusar o recebimento do
produto que esteja dentro das condições especificadas.
Assim, por exemplo, é possível que ao comprador só interessasse
o fornecimento da mercadoria até uma certa data, para que pudesse atender a
sua clientela, e por isso estaria justificada a recusa de uma nova remessa. Não
havendo, contudo, qualquer justificativa para tal recusa, parece-nos que a
mesma se afigura como abusiva, e por essa razão poderá ser judicialmente
imposta a aceitação, por parte do adquirente, rejeitando-se o pedido de
resolução contratual.
E essa obrigação de fazer, muitas vezes, aparece sob a forma de
prestação de alguma informação, podendo ser, por exemplo, a confecção e
entrega 244 de um documento do qual o outro sujeito necessita.
Suponha-se, por exemplo, que um determinado empresário
pretende montar um “cyber café”, estabelecimento no qual existem dezenas de
computadores, todos ligados à rede mundial de computadores (internet) e
interligados entre si, de modo a permitir que os clientes possam tanto ter
acesso à internet quanto participar de jogos, uns com os outros, com jogadores
individuais ou participantes de equipes.
244
Não é demais recordar a lição do mestre Washington de Barros, no sentido de que, quando a
obrigação consiste na entrega de alguma coisa, mas para que possa entregá-la, primeiro precisará
confeccioná-la, então a obrigação, tecnicamente, é de fazer, e não de dar. Cf. Washington de Barros Monteiro,
Curso de Direito Civil, v. 4, p. 87.
244
Como o negócio requer um alto investimento, face à grande soma
necessária para a reforma e adaptação do imóvel, aquisição dos computadores
e outros equipamentos, conexão com a rede mundial, etc, o empresário
pleiteia, junto a um banco, a obtenção de um empréstimo. O banco, contudo,
dentre a documentação exigida, pede que o empresário apresente o projeto de
reforma do prédio, bem como um relatório da fase em que essa mesma
reforma se encontra; pede, ainda, o projeto referente à instalação dos
computadores.
O empresário, para poder atender às exigências do banco, solicita
tais documentos aos responsáveis por ambos os projetos, de engenharia e de
instalações técnicas dos equipamentos de informática, que injustificadamente
não os fornecem, levando o banco a negar a concessão do empréstimo.
Poderia esse empresário, pela via judicial, dentre outras medidas possíveis
(por exemplo, a reparação dos danos sofridos), buscar obter ordem para que os
documentos necessários, solicitados pelo banco, sejam imediatamente
fornecidos.
b.1) rescisão contratual justificada.
No item acima, observamos que uma das medidas possíveis, na
proteção à boa-fé do sujeito, é a imposição de uma obrigação de fazer, ou seja,
a imposição de que seja adotado um comportamento específico, pelo outro
envolvido no negócio jurídico. Ocorre que, em algumas situações, essa
obrigação de fazer se apresenta como personalíssima, só podendo ser
cumprida, pois, pelo devedor, e sua imposição não pode ser admitida em
virtude de outros princípios e direitos fundamentais, também merecedores de
245
proteção, como seria o caso da prestação de fazer que se liga aos próprios
direitos da personalidade do devedor.
Em tal situação, a única solução possível será permitir que o outro
sujeito, aquele cuja boa-fé está sendo protegida, possa considerar rescindido,
por justa causa, o negócio entre ambos firmado, sendo essa rescisão
acompanhada ou não do dever de reparação dos danos.
Esse seria o caso, por exemplo, no qual a obrigação de fazer a ser
imposta, como medida de proteção à boa-fé, fosse uma prestação pessoal de
serviços, como é o caso da prestação principal do empregado, em um contrato
de trabalho. Em tal caso, como essa prestação se liga ao próprio corpo, à força
física do empregado, e só por ele poderia ser cumprida, é evidente que não
será possível a sua imposição forçada, não restando outro meio que não seja a
permissão ao empregador para que considere o contrato rompido por justa
causa imputável ao empregado.
Considere-se uma situação na qual o empregado, trabalhando há
longos anos para a mesma empresa, foi sendo paulatinamente qualificado para
que pudesse ocupar cargos mais elevados, de maior remuneração e também de
maior responsabilidade, dentro do organograma da empresa. Assim, ao longo
dos anos, o empregado participou de vários cursos, recebeu orientações e
ensinamentos práticos no próprio local de trabalho, exerceu substituições
eventuais, nas ausências dos titulares desses cargos mencionados, etc.
Um certo dia, contudo, surgindo uma vaga em um determinado
cargo, para o qual o empregado já se encontra plenamente habilitado, o
empregador pretende nomeá-lo, para que passe a ocupar tal cargo de modo
definitivo. O empregado, no entanto, sem apresentar qualquer justificativa,
simplesmente recusa a promoção, frustrando a legítima expectativa do
empregador, que ao longo de vários anos investiu na formação e no
246
treinamento desse empregado com o intuito de vê-lo ocupar, na empresa,
cargos de maior responsabilidade.
Essa frustração da expectativa, levada a termo pelo empregado,
segundo nos parece, viola o princípio da boa-fé, infringindo os deveres de
solidariedade e de cooperação que devem dirigir as relações entre as partes
contratantes e quebrando a confiança que se havia formado no empregador 245.
No entanto, é evidente que a repressão à má-fé do empregado (e a proteção à
boa-fé do empregador), em tal caso, não poderá ser dada pela imposição, ao
empregado, da aceitação do novo cargo, pois tal medida equivaleria a imporlhe um trabalho físico forçado, medida cuja imposição manu militari não pode
ser aceita.
A única solução viável, ao que nos parece, seria permitir ao
empregador o rompimento do contrato de modo justificado, face ao
comportamento reprovável do empregado 246. E acrescente-se que, face aos
princípios peculiares do Direito do Trabalho, dentre os quais o da proteção e o
da atribuição dos riscos da atividade ao empregador, não seria possível
condenar-se o empregado ao pagamento de qualquer indenização ao
245
Nesse sentido a lição de Délio Maranhão e Luiz Inácio B. Carvalho, que ao tratar do tema (recusa à
promoção, pelo empregado), ensinam que “a recusa somente se justificará por motivos ponderosos. O
empregado participa de uma organização econômica e, ao fazer o contrato do qual decorre essa
participação, tomando conhecimento da possibilidade de acesso, com isto, tacitamente, concorda. Interessa,
também, ao empregador a promoção do empregado, por lhe interessar, logicamente, a melhoria qualitativa
do seu quadro de pessoal. O empregado que foge À responsabilidade de cargo de maior importância, sendo,
está claro, normal o acesso em relação à função exercida, frustra a justa expectativa do empregador, que o
levou a contratá-lo”. Délio Maranhão e Luiz Inácio B. Carvalho, Direito do Trabalho, p. 227.
246
Embora não mencionando expressamente a possibilidade de ruptura justificada do contrato, pelo
empregador, também Orlando Gomes aponta que não poderia o empregado, injustificadamente, recusar-se a
aceitar a promoção que não lhe ofereça qualquer risco ou desvantagem. Cf. Orlando Gomes e Élson
Gottschalk, Curso de Direito do Trabalho , p. 375. no mesmo sentido a lição de Maurício Godinho Delgado,
para quem “constitui obrigação de o empregado aceitar a promoção, quando configuradas as situações
prefixadas no regulamento empresarial. É bem verdade que se pode admitir a validade da recusa obreira,
desde que com justificativa contratual efetivamente ponderável”. Cf. Maurício Godinho Delgado, Curso de
Direito do Trabalho, p. 1.019.
247
empregador, limitando-se a solução, tão-somente, à ruptura justificada do
contrato, como já foi mencionado.
b.2) determinação de manutenção do contrato.
Vimos, no subitem anterior, hipótese na qual a solução mais
adequada se mostrava como sendo a possibilidade de rompimento justificado
do contrato. Em outras situações, no entanto, nas quais não esbarra o juiz no
mesmo problema acima mencionado, ou seja, nas quais não se verifica a
impossibilidade de imposição de uma determinada prestação ao sujeito, é
possível que a solução a ser alvitrada seja exatamente a inversa, ou seja, no
sentido de determinar aos sujeitos que o contrato seja mantido, impedindo que
um dos contratantes possa exercer seu direito de rompê-lo sem causa
justificada.
Não é demais recordar que os contratos podem ser extintos,
dentre outros modos, pela resilição, ou seja, em virtude da vontade de um ou
de ambos os contratantes. Nos contratos que não sejam de trato sucessivo,
assim como naqueles que o são, mas que têm prazo determinado, em regra a
resilição só poderá ocorrer de modo bilateral, caracterizando a figura do
distrato.
Nos contratos de execução continuada, contudo, cujo prazo de
duração seja indeterminado, é tranqüila a aceitação da possibilidade de
resilição unilateral247, desde que mediante concessão de aviso prévio
(denúncia) à outra parte, sendo este o sentido do que se encontra disposto no
247
No mesmo sentido a opinião de Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative
de droit français, allemand et japonais, p. 350, n° 1238.
248
artigo 473, do Código Civil, quando se refere aos casos nos quais a lei
implicitamente admite a resilição unilateral.
No entanto, esse direito que tem o contratante de proceder à
denúncia unilateral e injustificada do contrato, a toda evidência, não é e nem
pode ser considerado como absoluto, o que aliás fica muito claro pelo simples
fato de que a norma legal acima mencionada exige que seja concedido um
aviso prévio, acerca da ruptura do contrato.
Em outras palavras, ainda que se reconheça o direito de resilição
unilateral, nessa hipótese onde não foi previsto qualquer termo para o
contrato, é certo que a ruptura contratual não pode ser feita de modo brusco e
abrupto, sob pena de se tolerar o abuso do direito e de se permitir que a parte
contratualmente mais fraca fique à inteira mercê da mais forte.
Dessas afirmações já se pode constatar que o direito de resilição
unilateral do contrato, nos casos em que é admitido, pode ser – e é – limitado
em virtude do princípio da boa-fé, por isso que se exige a concessão do aviso
prévio. No entanto, se em algumas situações a concessão do aviso prévio já se
mostra suficiente para a proteção à boa-fé do contratante, por outro lado, é
certo que, em algumas hipóteses, isso não se mostrará o bastante, sendo
necessário, para que tal proteção se mostre efetiva, que o contrato venha a ser
mantido por mais algum tempo, simplesmente “suspendendo-se”, de modo
temporário, o direito de resilição do mesmo pelo contratante.
Essa situação ocorreria, por exemplo, na hipótese referida no
parágrafo único, do artigo 473, do Código Civil, vale dizer, na situação onde
um dos contratantes, para que fosse possível cumprir o contrato, precisou
realizar investimentos consideráveis. Nesse caso, se ainda não decorreu o
tempo suficiente para a recuperação do investimento feito, a denúncia do
contrato (e, portanto, a sua resilição) só produzirá efeitos depois que tiver
249
transcorrido esse tempo suficiente. Em tal situação, poderá o contratante
prejudicado (o que efetuou os investimentos consideráveis) recorrer ao
judiciário, pleiteando que seja imposta ao outro a manutenção do contrato, até
que tenha fluído o tempo necessário, conforme o caso concreto, para que o seu
investimento possa ser recuperado.
Veja-se que se trata, de modo claríssimo, da aplicação do
princípio da boa-fé, pois é certo que o contratante autor dos investimentos só
os efetuou porque contava em recuperá-los, com o passar do tempo, na
exploração do negócio. Logo, se ao outro sujeito fosse permitida a ruptura
imediata (ou após a fluência de um curto aviso prévio), estaria sendo frustrada
essa legítima expectativa gerada no investidor, restando pois desprotegida a
confiança do sujeito, sendo evidente que a proteção adequada dessa confiança,
no caso, é precisamente a determinação no sentido de que o contrato venha a
ser mantido por mais algum tempo.
Convém acrescentar, ainda, que o caput do artigo 473, ao se
referir à necessidade de “denúncia notificada à outra parte”, para fins de
resilição unilateral, não menciona o prazo da mesma, ou seja, não esclarece
qual é a antecedência que deve ser observada, por ocasião do aviso prévio de
que o contrato será em breve rompido. Mas é evidente, contudo, que isso não
significa que o denunciante poderá valer-se de qualquer prazo, por menor que
seja, para comunicar sua intenção de romper unilateralmente o negócio.
Na realidade, quando as partes contratantes, na elaboração do
contrato, silenciam sobre o prazo do aviso prévio, em caso de resilição
unilateral, isso significa que a disposição do referido caput do artigo 473 adere
ao contrato, passando a valer como se fosse uma cláusula do mesmo. Logo,
essa mencionada cláusula, ao ser interpretada, deverá sê-lo na conformidade
250
do que dispõe o artigo 113, também do Código Civil, ou seja, deverá ser
interpretada conforme a boa-fé e os usos do lugar.
Dessa forma, conforme o caso concreto, a denúncia deve ser feita
em um prazo que se mostre razoável para que o outro contratante não venha a
sofrer prejuízos consideráveis, ou seja, para que tenha tempo de se preparar
para a ruptura, minimizando as suas eventuais perdas, e é certo que o tempo
necessário para que isso possa ser feito dependerá das circunstâncias que
acompanham o caso, tais como a natureza jurídica do contrato, o vulto
econômico do mesmo, a maior ou menor estrutura organizacional dos
envolvidos, etc.
E, por último, na realidade se pode apontar que mesmo o
parágrafo único, do artigo 473, nada mais é do que uma situação peculiar
dessa interpretação conforme a boa-fé, caracterizando-se pelo fato de ter
havido investimentos de alto valor e por não ter ainda decorrido um tempo
razoável para a recuperação dos mesmos, e por essa razão a denúncia terá que
ser feita com um prazo bastante longo, precisamente para permitir que o outro
contratante consiga minimizar os seus prejuízos, pelo menos recuperando o
seu investimento.
c) condenação ao pagamento de uma indenização.
Na realidade, nas situações examinadas nas duas alíneas
anteriores, as soluções alvitradas poderão ser também acompanhadas com a
imposição, a um dos sujeitos, de ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo
outro. A indenização pura e simples, desacompanhada de outras medidas
capazes de proteção à boa-fé, só se mostrará como adequada nos casos em que
251
não for possível a adoção de outras medidas mais eficientes e aptas à proteção
do sujeito.
Contudo, deve-se alertar para um importante aspecto: logo ao
iniciarmos o presente item, esclarecemos a diferença entre a proteção à boa-fé
e a violação do princípio da boa-fé, eis que, em muitos casos, a atuação do juiz
buscará proteger a boa-fé de um dos sujeitos envolvidos no negócio, mas sem
que isso signifique, necessariamente, que o outro sujeito tenha infringido o
princípio da boa-fé (remetemos o leitor à leitura dos primeiros cinco
parágrafos do presente item, para mais detalhadas explicações).
Ocorre que, para que seja cabível a imposição do dever de
indenizar, é indispensável que tenha ocorrido a infração ao princípio da boafé, ou seja, se apenas se tratar de proteger a boa-fé de um dos sujeitos, mas
sem que o outro tenha violado o multicitado princípio, não deverá ser imposta
indenização alguma. Em outras palavras, um dos sujeitos será condenado a
ressarcir os prejuízos unicamente se atuou de modo a infringir o princípio da
boa-fé, ou seja, se atuou de má-fé, não cabendo tal condenação apenas como
simples meio de proteção à boa-fé do outro.
Assim, por exemplo, na hipótese acima figurada, da pessoa que,
estando de boa-fé, celebrou contrato com o absolutamente incapaz, já vimos
que a intervenção judicial não tratará de reprimir o comportamento do
incapaz, mas sim de atribuir efeitos ao negócio jurídico, de modo a proteger a
boa-fé do que com o incapaz negociou. Ora, mesmo que essa pessoa de boa-fé
tenha sofrido prejuízos, parece-nos evidente que o incapaz não será condenado
a indenizá-los, exatamente pelo fato de que não se cogita de sua atuação ter
violado o princípio da boa-fé.
Não é demais lembrar que a reparação dos danos só se mostra
cabível em virtude de uma atuação ou omissão capaz de causar dano a alguém
252
ou de violar direito de outrem, como se observa nos artigos 186 e 187, ambos
do Código Civil. Nas hipóteses que estamos examinando, portanto, a
imposição do dever de indenizar só será possível quando houver uma atuação
ou omissão de um dos sujeitos, que tenha violado o princípio da boa-fé e
causado dano a alguém. Fora dessa situação, não será cabível indenização
alguma.
d) consideração dos efeitos jurídicos do negócio, embora este seja nulo.
Em outras hipóteses, ainda, a proteção à boa-fé funciona como
elemento de superação da nulidade do negócio jurídico, ou seja, com o escopo
explícito de protegê-la, torna-se possível considerar que um determinado
negócio, embora nulo, possa produzir seus efeitos normais, como se fosse
válido.
Esse seria o caso, por exemplo, onde a nulidade decorresse de um
vício formal, sendo que tal vício tivesse sido provocado por um dos sujeitos
do negócio, sendo que esse mesmo sujeito foi quem veio, posteriormente, a
pleitear a declaração de nulidade absoluta, em função da invalidade a que ele
mesmo deu causa.
Seria a hipótese, também, daquele que negociou com o
absolutamente incapaz, sem saber (e sem ter condições de descobrir) que se
tratava de incapaz absoluto, sendo que o negócio foi celebrado em condições
que podem ser consideradas como normais, para os negócios daquela espécie
e segundo as circunstâncias do caso concreto (veja-se, adiante, o item 2.3.2.2,
onde esse negócio celebrado pelo incapaz absoluto é examinado em seus
pormenores).
253
Em alguns casos, em proteção à boa-fé, a própria lei cuida de
manter os efeitos do negócio jurídico. Seria o caso, por exemplo248, da
sucessão causa mortis, na qual o juiz homologou a partilha em favor do
herdeiro aparente que já estava com a posse do bem, sendo que esse herdeiro,
algum tempo depois, vende esse bem a um terceiro. Posteriormente, um outro
herdeiro ajuíza ação de exclusão por indignidade, e o alienante do bem vem a
ser declarado indigno, e, portanto, despido da condição de herdeiro. Veja-se
que, em relação ao indigno, a exclusão retroage, fazendo com que tenha que
devolver ao monte todos os bens que recebeu.
No entanto, em relação ao terceiro que estava de boa-fé, e que em
função da aparência de que estava negociando o bem com o herdeiro, seu
legítimo proprietário, firmou a confiança na legitimidade da sua aquisição, ou
seja, criou a justa expectativa de que estava adquirindo válida e regularmente
esse mesmo bem, os efeitos do negócio serão mantidos, ou seja, a aquisição
será considerada válida, e o herdeiro aparente, agora excluído por indignidade,
deverá devolver ao monte o valor que recebeu, pois o bem em si mesmo
permanecerá com o adquirente, como se encontra expresso no artigo 1.817, do
nosso Código Civil.
De qualquer modo, essa possibilidade de superação da nulidade
do negócio jurídico, em se tratando de tema ligado ao objeto principal da
presente pesquisa, será novamente abordada, em maiores minúcias, mais à
frente, motivo pelo qual, no presente item, limitamo-nos a dar notícia sobre a
mesma.
d.1) consideração de efeitos típicos do contrato, ainda que contrato não exista.
248
41.
O exemplo é de Vitor Frederico Kümpel, A teoria da aparência no novo Código Civil brasileiro, p.
254
Vimos, no item 1.8, supra, que, em algumas situações, é até
mesmo possível que não tenha havido uma declaração da vontade, mas que
apesar disso serão produzidos efeitos jurídicos idênticos aos de um contrato,
ainda que contrato não tenha havido, em virtude da aplicação do princípio da
boa-fé.
Seria o caso, narrado no local mencionado, do furto de um carro
deixado por um cliente em um estacionamento oferecido gratuitamente pelo
banco. Ainda que se entenda que não houve contrato de depósito, entre o
cliente e o banco e em relação ao carro, mesmo assim terá havido, em virtude
desse contato social entre ambos, uma relação contratual de fato, ou seja, um
comportamento social típico, que por si só já é capaz de gerar o dever
acessório de proteção à pessoa e aos bens (no caso, o carro) do cliente, e por
isso o banco responderá pelos prejuízos, por não ter se desincumbido
adequadamente desse dever de proteção.
Como se vê, portanto, ainda que se entenda que não houve
contrato, tal discussão se torna supérflua, pois os efeitos jurídicos que serão
produzidos, no que se refere aos deveres acessórios, serão idênticos aos de um
contrato, e por isso, para efeitos práticos, não se vislumbra diferença entre o
enquadramento contratual ou aquiliano do dever de proteção, nesse caso
específico.
255
2. Violações típicas da boa-fé.
2.1. Considerações gerais.
O objetivo precípuo do presente estudo, como desde o início já o
dissemos, é o exame dos elementos característicos e das conseqüências da
chamada teoria dos atos próprios (venire contra factum proprium), fazendo
dela um cotejo com outros institutos assemelhados, todos eles tendo em
comum o fato de que se constituem em violações dos comportamentos que, a
partir do exame à luz da boa-fé, seriam aqueles esperados para o caso concreto
que está sendo apreciado.
Tendo em vista tal objetivo, e levando em conta precisamente o
fato de que a boa-fé é o elemento que se mostra como fator de ligação entre os
diversos institutos a serem cotejados, foi que começamos nossa análise a partir
de algumas digressões sobre a boa-fé, traçando um rápido panorama sobre a
evolução da mesma, desde a bona fides dos romanos, com caráter subjetivo,
até chegarmos à boa-fé como uma norma de conduta, de caráter objetivo, que
impõe aos sujeitos a observância dos deveres colaterais, consistindo estes na
adoção de um comportamento que se mostre adequado e necessário ao
atingimento do resultado final esperado para o negócio.
No presente capítulo, continuaremos a analisar essas violações
dos comportamentos apurados como sendo os adequados para cada caso
concreto, mas agora o enfoque principal deixa de ser na boa-fé em si mesma249
249
Mas não se pode perder de vista que, na realidade, essa divisão da matéria “conforme padrões” é,
acima de tudo, para mais fácil compreensão do tema e grupamento das soluções de situações que se mostrem
similares umas às outras, pois na realidade continua-se a tratar da própria boa-fé, eis que as situações dela
derivadas, a toda evidência, não perdem suas características, ou seja, continuam a ter os mesmos efeitos e o
mesmo alcance do princípio geral da boa-fé. Nesse sentido, pode-se dizer que “las consecuencias o las
derivaciones inmediatas del principio general de la buena fe, construidas doctrinal o jurisprudencialmente,
256
e passa a se concentrar nas violações, que são reunidas conforme alguns
padrões que se manifestam com maior freqüência, nos negócios jurídicos, e
que receberam denominações específicas da doutrina. Esse é o caso do próprio
venire contra factum proprium, que de modo extremamente sintético pode ser
descrito como sendo a infração do dever de coerência, que se manifesta como
um subproduto do dever de lealdade, conforme veremos adiante.
Nosso exame, contudo, começará pela figura mais ampla do
abuso do direito, que na realidade se constitui em instituto de maior
generalidade, e por isso capaz de abranger diversas outras violações de caráter
mais restrito (inclusive o venire), também configuradas a partir de
comportamentos-tipos. Com efeito, e desde logo adiantando o tema do
subitem seguinte, pode-se observar que as legislações em geral definem o
abuso do direito como uma violação dos limites impostos pela boa-fé, ou seja,
trata-se de uma desobediência genérica à conduta aferida a partir da boa-fé.
Dentro dessa descrição genérica, contudo, enquadram-se outras, que têm
características mais específicas e bem definidas, e que também implicam em
violação dos limites impostos pela boa-fé, inclusive o venire contra factum
proprium.
Antes de nos lançarmos na análise dessas figuras mencionadas,
que se constituem em violações específicas do comportamento que deveria ser
adotado, conforme as imposições decorrentes da boa-fé, mais algumas
observações, de cunho geral, se fazem indispensáveis.
en torno a particulares situaciones de intereses, de carácter típico, tienen el mismo valor y el mismo alcance
que el principio general de que dimanan y en que inmediatamente se fundan”. Cf. DÍEZ-PICAZO, La
doctrina de los propios actos, pp. 139-140, apud José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, p.
38. Aliás, é exatamente por essa razão, ou seja, porque continua a se tratar de análise do princípio da boa-fé,
que logo em seguida veremos, nesse mesmo item referente às violações típicas da boa-fé, os institutos
jurídicos nos quais são agrupadas essas violações, tais como o venire contra factum proprium, o abuso do
direito, a exceptio doli, etc.
257
Em primeiro lugar, como bem observa DÍEZ-PICAZO250, a
norma que ordena que se tenha um comportamento conforme os ditames da
boa-fé é um princípio geral do direito, e por essa razão tem o caráter de fonte
secundária do Direito, ou seja, dentre outras funções servindo como elemento
de integração das lacunas da lei. Desse modo, não havendo norma especial
que se mostre adequada para a solução daquele caso concreto que se encontra
em exame, tal princípio deve ser aplicado para a solução do litígio.
Em segundo lugar, convém recordar que a boa-fé pode se
apresentar sob as mais diversas modalidades, em cada um dos casos concretos,
sendo certo que a divisão precisa entre os diversos deveres acessórios só existe
mesmo para fins didáticos, pois é muito comum que, em uma situação real,
um determinado dever acessório esteja abrangendo um outro, como logo em
seguida exemplificaremos.
De um modo genérico e abrangente, há quem prefira apontar que
o comportamento que viola o princípio da boa-fé é aquele que se apresenta
como desleal, qualquer que seja o modo pelo qual essa deslealdade se
concretize, sendo que o que de fato vai interessar é que as conseqüências, para
a outra parte, sejam bastante graves. Nesse sentido a lição de Béatrice
Jaluzot 251.
Além disso, como mencionamos brevemente, acima, não existe
uma separação rígida, clara e perfeitamente delineada, entre os diversos
deveres colaterais, por isso que tal separação apenas cumpre finalidade
didática. Comentamos, retro, por exemplo, separadamente, sobre os deveres
acessórios de proteção e de informação (item 1.8). Muitas situações podem
250
DÍEZ -PICAZO, La doctrina de los propios actos, p. 39, apud José Luis de Los Mozos, El Principio
de La Buena Fe, p. 38.
251
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 89, n° 325.
258
ocorrer, no entanto, em que a informação deve ser prestada, por um dos
sujeitos ao outro, sob pena de sérios danos à pessoa ou ao patrimônio.
Seria o caso, por exemplo, das informações necessárias para o
manuseio seguro de uma máquina que funciona sob pressão, informações
essas sem as quais há o sério risco até mesmo de forte e grave explosão. Ora,
como determinar se, em tal caso, estamos diante do dever acessório de
informação ou do dever de proteção? Simplesmente não é possível esse
enquadramento preciso, pois a situação apresenta traços que permitem
classificá-la tanto em um quanto em outro dos dois deveres acessórios, que no
caso se mesclam de modo inseparável.
De qualquer modo, por outro lado se percebe que o que se mostra
mais do que suficiente é que se possa identificar se houve ou não, no caso,
situação na qual se poderá apontar que foi violado o princípio da boa-fé. Uma
vez identificada tal violação, haverá de se mostrar completamente irrelevante,
para qualquer finalidade prática que seja, determinar-se se o dever lateral
violado foi o de proteção ou o de informação.
2.2. O abuso do direito.
Antes do exame do instituto em si mesmo, tracemos algumas
breves considerações sobre a denominação do mesmo. O problema é que
encontramos, com alguma freqüência, no texto de alguns ilustres autores, a
referência ao “abuso de direito”252, o que, com todo o respeito devido a tão
252
Dentre outros: Renan Lotufo, Código Civil Comentado – v. 1, p. 187 e ss.; Cristiano Chaves de
Farias, Direito Civil – Teoria Geral, p. 468; Sílvio Venosa, Direito Civil – Parte Geral, p. 492; J. Franklin
Alves Felipe e Geraldo Magela Alves, O Novo Código Civil Anotado, p. 44; Maria Helena Diniz, Curso de
Direito Civil Brasileiro – v. 1, p. 462. Esta última e ilustre autora, inclusive, usa indistintamente as expressões
“abuso do direito” e “abuso de direito”, ambas na p. 462, da obra citada. Com a mesma imprecisão
259
eminentes juristas, não se mostra adequado, eis que mais correto se mostraria
falar em “abuso do direito”.
Com efeito, como veremos em detalhes, logo em seguida, a figura
do abuso do direito se relaciona, invariavelmente, com um direito subjetivo,
que ao ser exercido por seu legítimo titular, ultrapassa certos limites (um dos
quais é a boa-fé, daí o nosso interesse no tema). Poder-se-ia falar, portanto, de
modo mais completo, em “abuso no exercício do direito”, por parte de seu
titular. Em outras palavras, quando se usa a expressão “abuso do direito”, fica
claro que se trata de um direito (subjetivo) que foi exercido de modo irregular,
por seu titular.
Por outro lado, a expressão “abuso de direito” pode causar a
(falsa) impressão de que se trata de um abuso que integra o direito, ou seja,
um abuso que é tolerado e regido pelo direito, o que a toda evidência se
mostraria uma expressão contraditória em si mesma, pois se o comportamento
se mostrar abusivo, é evidente que não estará dentro do campo protegido pelo
direito, será por este rejeitado, e não regido.
Mesmo em linguagem corriqueira, do quotidiano, quando se fala
que alguma coisa é de direito, quer-se sempre significar que tal coisa está
amparada pelo direito, encontra respaldo nas normas jurídicas. Assim, por
exemplo, quando A tem um crédito contra B, já vencido, e resolve cobrá -lo, é
comum que A diga algo como “é de direito que eu cobre o que B me deve”, e,
quem quer que o ouça, imediatamente compreenderá que A pretendeu dizer
que a cobrança que pretende fazer está amparada pelas normas jurídicas.
Da mesma forma, quando se comenta, em relação a um
trabalhador, que “é de direito que receba o pagamento dos dias que
terminológica, usando as duas expressões, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Novo Curso de
Direito Civil – Parte Geral, v. 1, p. 467.
260
trabalhou”, o sentido, facilmente captado por qualquer ouvinte, é que o direito
dá amparo a que esse trabalhador receba o pagamento que lhe é devido,
referente aos dias em que efetivamente trabalhou.
Por último, embora infinitas situações pudessem ser ainda
mencionadas, tome-se, à guisa de comparação, como um derradeiro exemplo,
a expressão “Instituto de direito”, na qual fica fácil de perceber que se está a
referir a um instituto, seja ele qual for, que é regido e protegido pelas normas
jurídicas, o que não ocorre com o abuso, que por isso não pode ser de direito,
mas sim do direito.
Não foi sem razão, portanto, que o ilustre Pontes de Miranda253
anotou que “a expressão ‘abuso de direito’ é incorreta. Existe ‘estado de fato’
e ‘estado de direito’; porém, não ‘abuso de fato’ ou ‘abuso de direito’. Abusase de algum direito, do direito que se tem. Leis falam de ‘abuso de direito’,
expressão que aparece em certos juristas desatentos à terminologia científica
e indiferentes à sua exatidão. ‘Abuso do direito’, ou abuso do exercício do
direito é que é. Recebemo-la dos livros franceses e, lá, só se usa ‘abus du
droit’.”.
No mesmo sentido a lição de Rizzatto Nunes254, que aponta ser
correta a expressão abuso do direito, e não abuso de direito. E o mesmo se
pode apontar, ainda, em relação à obra clássica de Pedro Baptista Martins 255,
que desde o título já se vale da expressão correta.
E nem se argumente, em sentido contrário, que a própria lei usa a
expressão “abuso de direito” (Código de Processo Civil, art. 273, II), pois é
certo que nem mesmo a lei poderá passar por cima das barreiras lingüísticas
para transformar em certo o errado. A expressão usada pelo texto legal, abuso
253
254
255
Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, t. I, arts. 1°-45, pp. 382-383.
Luiz Antônio Rizzatto Nunes, Manual de Introdução ao estudo do direito, p. 144.
Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, passim.
261
de direito, apenas significa que o legislador também deve se juntar às fileiras
dos muitos que usam com erronia a expressão. Aliás, nosso legislador nunca
serviu como parâmetro para aferição do apuro técnico, e tanto é assim que
esse mesmo legislador pátrio, na Lei de Greve (Lei nº 7.783/89), já se refere
ao abuso do direito, em franca contradição consigo mesmo.
Ainda em relação à denominação dessa figura, convém uma
segunda observação. É que a boa-fé, como já vimos, em sua função essencial
de critério limitador, impõe limites não apenas em relação ao exercício dos
direitos, mas também quanto ao cumprimento de deveres e, de modo ainda
mais amplo, em relação a todas as condutas capazes de gerar conseqüências
jurídicas (veja-se, retro, o item 1.8). Cabe, então, indagar o porquê de apenas
se fazer referência ao exercício dos direitos, silenciando-se sobre essa questão
dos deveres e sobre as demais condutas do sujeito.
Na realidade, essa denominação restrita, que não corresponde à
realidade mais ampla do papel limitador da boa-fé, decorre de circunstâncias
históricas 256. O que ocorreu foi que, no século XIX, o liberalismo e o
individualismo foram elevados à máxima potência pelo Direito, o que fez com
que os direitos subjetivos fossem considerados quase que como sendo
absolutos, ou, pelo menos, com uma amplitude muito grande, o que levou a
excessos claramente inaceitáveis no exercício de tais direitos, mostrando a
necessidade de que fossem impostos alguns limites.
Nesse sentido, pode-se dizer, com Alvino Lima257, que com a
teoria do abuso do direito foi modelado um novo conceito de dir eito subjetivo,
que buscou exatamente se contrapor à noção clássica, vale dizer, buscou-se a
revisão de um conceito já secular, que se baseava no individualismo e no
256
257
Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, pp. 219-220.
Alvino Lima, Culpa e Risco, pp. 215-216.
262
absolutismo dos direitos258. Contra tal noção de direitos subjetivos absolutos,
veio a ser construída a idéia de que existe uma missão social do direito.
Dessa forma, como veremos logo em seguida, ainda no presente
item, os tribunais começaram a tratar do tema a partir da análise, nos casos
concretos que lhes eram apresentados, de situações nas quais se verificava que
o titular de um direito o havia exercido de um modo inaceitável, e embora não
lhe fosse negado o direito em questão, era-lhe negado exercê-lo daquele
modo, e por isso a decisão era desfavorável ao próprio titular do direito.
Assim, foi tão-somente pelo fato da necessidade de limitações ter sido
constatada em situações referentes ao exercício de direitos que essa figura
recebeu denominação restritiva, abrangente de apenas um dos seus vários
aspectos.
Além disso, convém alertar que, embora a figura do abuso do
direito encontre o seu campo primordial de atuação no domínio das relações
contratuais 259, na realidade a mesma é aplicável a todos os direitos subjetivos,
inclusive em relação ao exercício do direito de ação. Com efeito, como ensina
Pedro Baptista Martins 260,
“o exercício da demanda não é um direito absoluto, pois que se acha,
também, condicionado a um motivo legítimo. Quem recorre às vias judiciais
deve ter um direito a reintegrar, um interesse legítimo a proteger, ou pelo
menos, como se dá nas ações declaratórias, uma razão séria para invocar a
tutela jurídica. Por isso, a parte que intenta ação vexatória incorre em
responsabilidade, porque abusa de seu direito. E esse abuso pode verificarse também no exercício da defesa...”.
258
O dogma do absolutismo dos direitos subjetivos, explica Josserand, foi reforçada, em França, a patir
da Revolução Francesa, notadamente com a Declaração dos Direitos do Homem, pois o direito revolucionário
estava impregnado de um individualismo intenso, pois considerava o homem como um fim em si mesmo,
mais do que como um elemento integrante da comunidade; como um indivíduo, mais do que como a célula
primeira da sociedade. Cf. Louis Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, v. I, p. 118, n° 161.
259
Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, p. 5.
260
Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, p. 71.
263
No mesmo sentido a opinião de Cléber Lúcio de Almeida 261, Juiz
do Trabalho das Minas Gerais, que ensina que o exercício do direito de ação
tem como pressuposto a necessidade de proteção jurídica, como se encontra
insculpido no art. 3º, do Código de Processo Civil brasileiro. Logo, se a
efetiva proteção jurídica não for o objetivo daquele que busca o Judiciário,
estará configurado o abuso do direito de ação, uma vez que tal direito, de
modo claro e inegável, estará sendo exercido com desvio de sua finalidade.
Um outro esclarecimento, que deve ser trazido desde logo, é o
que se refere ao foco a ser dado no presente item deste estudo. É que a teoria
do abuso do direito causou o surgimento de duas correntes doutrinárias
opostas, uma que o abordou sob o aspecto subjetivo, e outra que o considerou
sob o ponto de vista objetivo.
Para os adeptos da primeira corrente, o abuso do direito ocorre
quando o seu respectivo titular exercita seu direito sem que tenha necessidade
de fazê-lo, apenas movido pela intenção de prejudicar; para a segunda, no
entanto, para que se configure o abuso, é suficiente que ocorra o exercício
anormal do direito, ou seja, que não esteja de acordo com sua finalidade
econômica ou com sua função social262.
No entanto – e este é o esclarecimento a ser dado –, no presente
trabalho apenas examinaremos a figura do abuso do direito sob o prisma
objetivo, ou seja, considerando-se a a finalidade econômica e social do direito
subjetivo, pois foi essa a posição adotada de modo claro e expresso pelo nosso
Código Civil, em seu artigo 187, embora não se possa deixar de observar que
ainda existem resquícios, em nosso Diploma Civil, da teoria subjetiva, como
261
Cléber Lúcio de Almeida, Abuso do Direito no processo do trabalho, p. 37.
Francisco Amaral, Os Atos Ilícitos. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e
Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof.
Miguel Reale, p. 161.
262
264
ocorre em relação ao artigo 1.228, § 2º, sobre o qual teceremos alguns
comentários adiante.
Feitas essas pequenas ressalvas, prossigamos.
A questão do abuso do direito foi tratada, no Código Civil pátrio,
no artigo 187, o qual estabelece que também comete ato ilícito o titular de um
direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Expressamente,
como se vê, nosso Código Civil indicou como ilícito o exercício abusivo do
direito, ao lado do ato ilícito previsto no artigo anterior (art. 186). E esclareçase que o artigo 186 trata do ato intrinsecamente ilícito, ou seja, ilícito em si
mesmo, por violar seus limites internos, enquanto o artigo 187 se refere ao ato
extrinsecamente ilícito, ou seja, que o é por ter violado seus limites
externos263.
Como se vê, a idéia que se destaca como básica é a de que os
direitos subjetivos têm limites ao seu exercício 264, limites esses que podem ser
263
A distinção é feita por Josserand, que ensina que “le refus de contracter peut revêtir plus qu’un
caractère abusif; il peut se présenter à nous comme un acte illégal, intrinsèquement illicite”. Cf. Louis
Josserand, L’Esprit des Droits et de leur Reativité – Théorie dite de l’Abus des Droits, p. 127.
264
Nesse sentido, ensinam Diez-Picazo e Antonio Gullon que “Definido el derecho subjetivo como una
situación de poder que el ordenamiento jurídico atribuye o concede a la persona como un cauce de
realización de legítimos intereses y fines dignos de la tutela jurídica, resulta evidente que este poder tiene que
estar de algún modo limitado, pues sin límites sería la justificación de la absoluta arbitrariedad”. Cf. Luis
Diez-Picazo y Antonio Gullon, Sistema de Derecho Civil – v. 1 – Introdución – Derecho de La persona –
Negocio Jurídico, p. 517. No mesmo sentido, ainda, a lição de Béatrice Jaluzot, para quem “La conséquence
juridique essentielle qu’entraîne l’abus de droit et qui donne tout son sens à l’institution est la limitation des
droits subjectifs... La notion d’abus de droit ne peut resteur cohérente que si l’on respecte l’idée générale qui
la gouverne: elle permet au juge de contrôler l’exercise des droits subjectifs”. Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne
foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 406, n°s 1418 e 1420. Mas
a autora, na mesma obra (p. 408, n° 1426), faz interessante observação, no sentido de que a figura do abuso
do direito, quando coloca limites ao exercício do direito subjetivo de uma pessoa, ao mesmo tempo faz nascer
um novo direito para a outra. Assim, por exemplo, quando se proíbe a um dos contratantes o exercício do
direito de resilir unilateralmente o contrato, ao mesmo tempo se está dando ao outro o direito de ver o
contrato prosseguir. Nesse mesmo sentido é a lição de Menezes Cordeiro, que ao colocar em cotejo as figuras
da suppressio e da surrectio, na demonstração de que aquela é a conseqüência, o subproduto desta, ensina que
“quando, porém, o beneficiário incorra numa vantagem específica e autônoma, há, para ele, um direito
subjetivo novo: ocorre um fenômeno de surrectio. Paralelamente, sendo esse direito novo um direito relativo,
adstringe-se a contraparte a um dever. Da mesma forma, o titular-exercente pode, por força das regras que
vedam o abuso do direito, ver um direito seu de tal forma coarctado pela restrição ou, simplesmente,
265
impostos não apenas pela boa-fé, mas por parâmetros outros, como os bons
costumes e a finalidade econômica ou social. A boa-fé e os bons costumes não
estão vinculados a cada direito subjetivo, sendo de natureza genérica, face ao
seu conteúdo normativo, enquanto a finalidade econômica ou social, a toda
evidência, está diretamente ligada ao direito de que se trata.
Para Louis Josserand 265, os direitos subjetivos são produtos
sociais, concedidos pela sociedade, mas que não nos são atribuídos
abstratamente e para que os usemos de modo discricionário, pois cada um
deles tem uma razão de ser e está animado de um certo espírito, que não pode
ser desconsiderado por seu titular, e sempre que tais direitos são exercidos,
devemos nos conformar a esse espírito e permanecer dentro das linhas em que
o direito foi instituído, pois caso contrário estaríamos desviando o direito de
sua destinação, ou seja, estaríamos cometendo abuso capaz de nos atribuir a
correspondente responsabilidade.
Em relação à finalidade econômica e social do direito subjetivo,
já em 1960 ensinava Alvino Lima 266 que, além dos limites objetivos, que são
fixados pela lei, os direitos subjetivos também possuem limites de ordem
teleológica ou social, e que a teoria do abuso do direito nada mais é do que a
manifestação concreta dessas idéias. Dizia o mestre que, em vez do direitoincompatibilizado com um novo direito surgido na esfera da contraparte beneficiária, que caiba falar de uma
verdadeira extinção”. Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 826.
Mas é de se observar que o ilustre autor português inverte os termos da equação, vale dizer, aponta que
primeiro surge o direito da contraparte, e a partir daí é que os direitos do sujeito que se mostrarem
incompatíveis com esse direito recém-surgido poderão sofrer redução ou mesmo ser extintos. A questão será
retomada no item 2.5, quando examinarmos as figuras da suppressio e da surrectio, e para lá remetemos o
leitor.
265
Louis Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, v. II, p. 224, n° 224. “Les droits subjectifs,
produits sociaux, concédés par la société, ne nous sont pas attribués abstraitement et pour que nous en usions
discrétionnairement, ‘ad nutum’; chacun d’eux a sa raison d’être, sa mission à accomplir; chacun d’eux est
animé d’un certain esprit qu’il n’appartient pas à son titulaire de méconnaitre ou de travestir; lorsque nous
les exerçons, nous devons nous conformer à cet esprit et demeurer dans la ligne de l’institution; sans quoi,
nous détornerions le droit de sa destination, nous en abuserions, nous commettrions une faute de nature à
engager notre responsabilité”.
266
Alvino Lima, Culpa e Risco, p. 217.
266
poder, como prerrogativa soberana concedida ao seu titular, o que se tem é o
direito-função, concedido à pessoa para que possa auferir todos os proveitos
que a lei lhe confere, mas desde que o faça sem ofender aos interesses da
comunhão social267.
Complementa essa idéia a lição de Francisco Amaral268, segundo
a qual deve-se entender como fim econômico ou social “a função instrumental
própria de cada direito subjetivo”, sendo essa função instrumental que
justifica que esse mesmo direito tenha sido atribuído ao seu titular e que
condiciona o seu exercício. Em outras palavras, ainda na lição do ilustre
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, essa concepção parte da
idéia de que os direitos subjetivos são atribuídos para que sirvam de
instrumento à realização de interesses, e por isso só podem ser exercidos em
atenção a essa instrumentalidade, sob pena de se configurar o abuso.
Pode-se ainda acrescentar, a partir do artigo 187, supra transcrito,
que a boa-fé referida no mesmo, claramente, é a boa-fé objetiva, ou seja, a
boa-fé norma comportamental. Com efeito, o que se vê no texto legal é que o
abuso não decorre da intenção que moveu o titular do direito ao exercê-lo, mas
do exercício em si mesmo, ou seja, a norma legal apanhou o comportamento
do titular do direito, impondo-lhe que, por ocasião do seu exercício, adote
conduta que esteja situada dentro dos limites impostos pelos diversos fatores
mencionados, dentre os quais a boa-fé. Não é demais recordar que uma das
267
No mesmo sentido é o entendimento de Antônio Chaves, para quem “os direitos subjetivos, produtos
concedidos, pela sociedade, não nos são atribuídos abstratamente, e para que deles usemos
discricionariamente, ad nutum; cada um deles tem sua razão de ser, sua missão a cumprir, cada um deles é
animado de um certo espírito, que seu titular não pode desconhecer ou disfarçar. Quando exercemos,
devemos conformar-nos com esse espírito e permanecer na linha da intuição, sem o que desviaríamos o
direito do seu destino, abusaríamos dele, cometeríamos uma falta de natureza e comprometeríamos nossa
responsabilidade”. Cf. Antônio Chaves, Responsabilidade Pré Contratual, p. 124.
268
Francisco Amaral, Os Atos Ilícitos. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e
Martins Filho, Ives Gandra da Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof.
Miguel Reale, p. 162.
267
funções essenciais da boa-fé é exatamente servir como critério limitador do
exercício dos direitos (veja-se, acima, o item 1.8).
E ainda convém que se observe que, em se tratando de limites
impostos a direitos subjetivos, além dos que se encontram previstos no
dispositivo legal mencionado (art. 187, Código Civil brasileiro), a toda
evidência também existem outros limites, trazidos pelas normas que criam
cada um desses direitos subjetivos. Para que se chegue a tal conclusão, basta
que se recorde que os direitos subjetivos nada mais são do que uma liberdade
de atuação que a lei confere ao sujeito, para que possa auferir vantagens, mas
que o faz desde logo impondo limites, ou seja, a própria norma legal que
reconhece ao sujeito a faculdade de agir (facultas agendi) já o faz dizendo
quais são os limites dentro dos quais deve se dar essa mesma atuação 269.
Como didaticamente esclarece Delia Rubio 270, a respeito dessa
temática da limitação dos direitos subjetivos, a mesma pode ocorrer por
diversos caminhos, como as restrições concretas referentes a cada espécie de
direito (seria o caso, por exemplo, das restrições à propriedade em virtude das
relações de vizinhança), as restrições administrativas quanto ao exercício de
269
Nesse sentido, referindo-se precisamente aos limites impostos aos direitos subjetivos, esclarecem
Diez-Picazo e Antonio Gullon que “¿Cuáles son estos límites a que debe someterse o entenderse sometido el
derecho subjetivo? Hay, en primer lugar, unos límites a los que se puede llamar ‘naturales’, toda vez que
derivan de la natureza propia de cada derecho y de la manera como es configurado de acuerdo con la
función económica o social que a través de él se trata de realizar. El derecho aparece definido en la ley en
virtud de esta naturaleza y la definición legal implica ya el establecimiento de sus linderos o confines...Al
lado de los límites que hasta ahora hemos mencionado, es posible encontrar unos límites genéricos
aplicables a todos los derechos, y que se fundamentan en la idea misma de lo que el derecho sea y de la
finalidad para cual es concedido o atribuido al particular. Estos límites genéricos o institucionales se apoyan
sobre estas bases: 1ª. El ejercicio del derecho debe hacerse conforme a las convicciones éticas imperantes en
la comunidad. 2ª El ejercicio de un derecho debe ajustarse a la finalidad económica o social para la cual ha
sido concedido o atribuido al titular. La primera consideración lleva a la exigencia de que el ejercicio de un
derecho subjetivo se ajuste a los dictados de la buena fe. La segunda impone la prohibición del abuso del
derecho. Cf. Luis Diez-Picazo y Antonio Gullon, Sistema de Derecho Civil – v. 1 – Introdución – Derecho de
La persona – Negocio Jurídico, pp. 517-519.
270
Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 222.
268
certas atividades, ou as restrições municipais quanto ao direito de construir, e
assim por diante.
Tratando sobre o tema, diz Pietro Perlingieri271 que a noção do
abuso do direito não se exaure na configuração dos limites de cada poder,
devendo-se ainda observar a correlação à mais ampla função da situação
global, da qual esse mesmo poder é expressão, sendo por isso possível
apresentar uma grande variedade de comportamentos em relação a cada
situação e à sua concreta função.
À guisa de exemplo do que foi dito nos três parágrafos anteriores,
sobre essa diversidade de limites possíveis, veja-se que o proprietário de um
terreno, quando vai exercer seu direito subjetivo de construir nesse seu
imóvel, sofre, dentre outras, duas restrições: a) não poderá abrir janela a
menos de metro e meio da linha divisória; b) não poderá erguer alta coluna,
próxima à linha divisória, que não tenha qualquer outra finalidade além de
impedir a iluminação e a ventilação da construção existente no terreno
vizinho.
A primeira restrição é inerente ao direito subjetivo de construir,
ou seja, nasce junto com ele, faz parte de sua gênese, pois já consta do proprio
texto legal que o reconheceu. A segunda, no entanto, não está mencionada na
origem genética desse direito, mas decorre da previsão genérica do artigo 187,
ou seja, decorre da consideração sobre a abusividade do modo como está
sendo exercido o direito de construir.
Assim, pode-se facilmente concluir que cada direito subjetivo
encontra duas ordens de limitações, uma que faz parte da sua gênese, ou seja,
o direito já nasceu enquadrado dentro de limites previstos na própria lei que o
271
Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional (trad. Maria
Cristina De Cicco), p. 122.
269
criou, e outra que se encaixa na questão dos parâmetros vistos acima, que
servem para demarcar o campo onde termina o exercício regular e onde
começa o exercício abusivo do direito.
Mas deve-se observar que, quando são ultrapassados os limites
previstos na própria lei que criou o direito subjetivo, o que se tem,
tecnicamente, não é o abuso do direito, mas uma ilegalidade. A explicação se
faz necessária porque é muito comum que se encontre, em decisões judiciais, a
referência ao abuso do direito, quando na verdade o que se tem é a pura e
simples violação da norma legal explícita, a ilegalidade manifesta. Assim, por
exemplo, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que
PROCESSO CIVIL - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO - CABIMENTO ART. 535 CPC. EMBARGOS PROTELATÓRIOS - MULTA (CPC, ART.
538).
- Não pode ser conhecido recurso que sob o rótulo de embargos
declaratórios, pretende substituir a decisão recorrida por outra. Se não há
contradição ou omissão a suprir, os embargos declaratórios merecem
rejeição.
- O abuso do direito ao recurso, contribuindo para inviabilizar, pelo excesso
de trabalho, o Superior Tribunal de Justiça, presta um desserviço ao ideal de
Justiça rápida e segura.
- Se os embargos declaratórios envolvem intuito protelatório, aplica-se a
multa cominada pelo Art. 538, Parágrafo Único, do CPC.272
Na ementa acima, como se vê, tratou-se da apresentação de
Embargos Declaratórios de cunho procrastinatório, situação que já se encontra
expressamente prevista no Código de Processo Civil, nos artigos 535 e
seguintes, tanto em relação aos contornos precisos de cabimento do recurso
em questão (art. 535) quanto em relação às conseqüências jurídicas quando
tais contornos são ignorados, com o cabimento da multa respectiva (CPC, art.
272
EDcl no AgRg no REsp 164648/MG; Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Recurso
Especial 1998/0011629-0, 1ª T. Ac. unânime. Relator Min. Humberto Gomes de Barros, j. 03/08/1999, p. DJ
13.09.1999, p. 42.
270
538, parágrafo único). Logo, parece-nos que se mostra completamente
desnecessário o recurso à figura do abuso do direito. Por outro lado, somos
forçados a reconhecer que, no caso, não se vislumbra qualquer conseqüência
jurídica em decorrência de se ter feito a referência à figura do abuso, em vez
de simplesmente ser apontada a infração à norma legal. Tratou-se, portanto, de
simples reforço lingüístico.
Antes de prosseguirmos, importante observação se mostra
necessária. É que, como acabamos de ver, os limites dos direitos subjetivos,
cuja transposição implica na figura do abuso do direito, estão sempre ligados
às finalidades desse mesmo direito, ou seja, à “causa” em virtude da qual esse
direito foi atribuído ao seu titular. Por essa razão, ensina Josserand 273 que
existem alguns poucos direitos que não são motivados, ou seja, não possuem
uma causa específica (“não causais”), pois em si mesmos contêm sua própria
finalidade, e por isso escapam à disciplina do abuso do direito, tendo caráter
absoluto, e por isso seus titulares podem exercê-los para todos os fins, para
qualquer que seja o objetivo, ainda que malicioso, sem riscos de serem
responsabilizados por isso.
Como exemplos de tais direitos que seriam absolutos, aponta o
respeitado jurista francês, como exemplos, o direito dos ascendentes de não
autorizarem o casamento do seu descendente menor, o direito do ascendente
de deserdar os seus filhos, nos casos legais, o do co-proprietário, de requerer a
partilha dos bens indivisos, etc.
Cometeremos, neste ponto, a enorme imprudência de discordar de
tão ilustre e conhecido autor, pois nos parece que mesmo tais direitos são
passíveis de incidência na figura do abuso, mesmo porque não existe, no nosso
entendimento, direito que possa ser livremente usado com objetivo malicioso.
273
Louis Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, v. I, p. 120, n° 164.
271
É verdade, desde logo se adianta que com isso concordamos, que seus titulares
não poderão ser civilmente responsabilizados, em caso de exercício
inadequado, o que por si só não significa que não possa haver abuso, mas tãosomente quer dizer que, nesses casos, o combate ao abuso poderá ser feito
através do desfazimento judicial da situação criada em virtude do exercício
abusivo.
Assim, por exemplo, suponha-se que os pais decidiram não
autorizar o casamento do seu descendente menor apenas com o intuito de não
vê-lo emancipar-se, passando a partir daí a gerir o seu próprio patrimônio.
Ora, é evidente que o filho menor, em tal caso, poderá sempre recorrer ao juiz
para obter o suprimento judicial à autorização negada, de modo a contornar
essa negativa despropositada dos seus próprios pais, como aliás se encontra
expresso no artigo 1.519, do nosso Código Civil, que explicitamente se refere
à negativa injusta da autorização. Da mesma forma, se um dos condôminos
requer a súbita divisão do bem comum, apenas com a finalidade de atrapalhar
o negócio que estava sendo entabulado por outro condômino, em relação à sua
quota ideal, causando-lhe grave prejuízo, parece-nos que este último poderá
requerer ao juiz que a indivisão seja mantida por mais algum tempo (desde
que seja breve), até a conclusão do negócio em curso.
Prossigamos.
A expressão “abuso do direito” foi cunhada pelo jurista belga
Laurent274, em 1883, após estudar uma série de decisões das cortes francesas,
ainda no século XIX, nas quais era reconhecido o direito do réu, mas apesar
disso o mesmo era condenado, por ter exercido esse direito de um modo tido
por irregular. Assim, por exemplo, um determinado proprietário resolveu
274
Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand
et japonais, p. 427, n° 1489.
272
construir, em seu terreno, uma falsa chaminé, que para nada lhe serviria, mas
tão-somente tinha a finalidade de vedar a claridade em uma janela do imóvel
vizinho. Entendeu o tribunal que construir era um direito do proprietário, mas
fazê-lo naquelas condições equivalia a exercer de modo irregular esse mesmo
direito.
A figura do abuso do direito, como hoje o conhecemos, não
encontra suas raízes históricas no direito romano. É que os romanos, com o
seu senso eminentemente prático, não buscavam teorizações genéricas, com
conceitos que se mostrassem aplicáveis a todos os temas jurídicos. Muito pelo
contrário, o que se via no direito romano era a adoção de soluções jurídicas
específicas para cada tipo de situação, ou seja, institutos localizados, válidos
apenas para os casos que apresentassem em comum uma determinada
característica.
É possível encontrarmos semelhanças do abuso do direito com
alguns institutos isolados do direito romano, tais como a aemulatio, a exceptio
doli e as relações de vizinhança 275, mas nenhum desses, repete-se, foi marcado
por uma generalização que lhes permitisse atingir todo o campo das relações
sociais reguladas pelo direito, vale dizer, nenhum desses institutos poderia ser
considerado como sendo um limite genérico, válido para todos os direitos
subjetivos.
A aemulatio era o exercício de um direito que não trazia qualquer
utilidade para o seu titular, e apenas era impulsionado pela intenção de causar
prejuízo a outrem, ou seja, era de cunho marcadamente subjetivo, centrandose no aspecto psicológico da intenção do agente 276. Os atos de emulação
275
Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 673.
Não se pode deixar de observar que há autores que vêem nessa “intenção de prejudicar” (animus
nocendi) o critério mais antigo para a identificação do abuso do direito, sendo evocado pela doutrina e pela
jurisprudência dos mais diversos países. Nesse sentido, por exemplo, é a opinião de Béatrice Jaluzot, La
276
273
tiveram grande repercussão nas relações de vizinhança, constituindo-se em
importante limitação ao direito de propriedade, não sendo despiciendo
recordar que o nosso Código Civil, ainda hoje, ao tratar do direito de
propriedade, de modo expresso proibiu os atos de emulação 277, como se vê no
artigo 1.228, § 2º, que se refere aos atos que não tragam ao proprietário
qualquer comodidade ou utilidade e que sejam animados pela intenção de
prejudicar outrem278.
A exceptio doli, no direito romano, correspondia às atuais
exceções substanciais, ou seja, uma defesa indireta alegada pelo réu, na qual
não se negava o mérito do direito invocado pelo autor, mas apontavam-se
razões de outra ordem para obstaculizá-lo. Essas razões tinham um conteúdo
substantivo, isto é, diziam respeito à própria substância do comportamento do
autor, que havia agido de modo doloso. Essa figura, que ainda hoje encontra
grande aplicação prática, foi absorvida pela figura mais ampla do abuso do
direito, e por isso não costuma ser mencionada expressamente, nas diversas
decisões dos tribunais onde se pode identificá-la.
bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et japonais, p. 413, n° 1447. O
que nos parece oportuno esclarecer é que os contornos do abuso do direito, como hoje é conhecido, são
completamente distintos da figura da aemulatio, e foi por isso que mencionamos, acima, que as origens da
figura não se encontram no direito romano, precisamente por serem diferentes as características dos institutos
que eram encontrados neste. E tanto é assim que a própria Béatrice Jaluzot reconhece, na mesma obra, pouco
mais à frente, que a intenção de prejudicar é um critério que se mostrou insuficiente, e que hoje é rejeitado
pela maior parte dos sistemas jurídicos (p. 414, n° 1450).
277
Na realidade, o Diploma Civil apenas repete posição que ainda se mostra bastante influente entre
nós, uma vez que, como bem aponta Cristiano de Sousa Zanetti, Responsabilidade pela ruptura das
negociações no direito civil brasileiro, p. 108, “o recurso à boa-fé para fundamentar o abuso do direito não
pode ser encontrado na tradição brasileira que, muito apegada ao direito francês, sempre procurou
caracterizar o instituto com arrimo na teoria dos atos emulativos...”.
278
Embora, como apontamos acima, existam nítidas diferenças entre a aemulatio romana e a figura
atual do abuso do direito, não se pode deixar de observar que a opinião dos juristas medievais, sobre a
ilicitude dos atos de emulação – notadamente no direito de vizinhança – se constituiu em precedente imediato
e importante da teoria do abuso do direito, pois trouxe a lume a tese da necessidade de limitação do exercício
dos direitos subjetivos conforme os limites decorrentes de sua própria finalidade social e econômica, sendo,
pois, o primeiro passo para a superação da concepção absolutista do direito subjetivo. Cf. Francisco Amaral,
Os Atos Ilícitos. In: Franciulli Netto, Domingos; Mendes, Gilmar Ferreira e Martins Filho, Ives Gandra da
Silva (Coord.). O Novo Código Civil – Estudos em Homenagem ao Prof. Miguel Reale, pp. 160-161.
274
Assim, por exemplo, figure-se a hipótese na qual uma empresa
construtora, depois de ter oferecido ao público em geral a aquisição das
unidades autônomas de um condomínio edilício recém-construído, e vindo a
celebrar diversos compromissos de compra e venda em relação a tais
unidades, contrai uma dívida e oferece em garantia hipotecária o terreno onde
foi erguido o condomínio e as construções nele feitas.
O credor, embora tendo conhecimento de que vários dos
promitentes compradores já estão ocupando as unidades autônomas,
comparece ao registro imobiliário e verifica que não foram registrados os
compromissos de venda e compra, e por essa razão aceita a garantia
hipotecária, vindo a registrar sua hipoteca no Cartório do Registro Imobiliário.
Essa situação acima descrita, que é de ocorrência prática
corriqueira, atribui ao credor hipotecário, em caso de não pagamento da
dívida, a possibilidade de excutir o imóvel hipotecado, inclusive em relação
àquelas unidades autônomas que já estão ocupadas pelos promitentes
compradores cujos compromissos não foram registrados?
Um exame formal da situação, tão-somente à letra do texto legal,
levaria à resposta positiva, pois a hipoteca, sendo direito real, adere ao imóvel
e atribui ao seu titular, o credor, a preferência sobre qualquer outro direito
subjetivo (exceto os direitos reais registrados há mais tempo, o que no caso
não existe), permitindo-lhe, pois, levar o imóvel à venda e ter preferência, no
pagamento, sobre todos os demais credores, como se vê no artigo 1.422, do
Código Civil.
No entanto, nessa mesma situação acima hipotetizada, são
inúmeras as decisões do Superior Tribunal de Justiça nas quais se reconheceu
que o mutuante, sendo notório que várias das unidades autônomas já haviam
sido negociadas com os promitentes compradores (e estavam sendo por eles
275
ocupadas) antes mesmo da constituição da hipoteca, não poderia fazer com
que seu direito de credor hipotecário viesse a prevalecer sobre os direitos dos
possuidores dos imóveis, promitentes compradores, ainda que tais direitos não
fossem reais, mas meramente pessoais, eis que não havia sido feito o registro.
Sobre o tema, em relação à posição do STJ, já escrevemos, alhures, que
“
E também decidiu a Corte Superior, na mesma linha indicada no
parágrafo anterior, que quando é celebrado o contrato de financiamento da
construtora, é a instituição financeira que deve buscar se inteirar das
condições do imóvel, verificando se os mesmos já foram alienados ao
público (pois a isso de destinam) e se o preço já foi parcial ou totalmente
pago pelos adquirentes, que são terceiros de boa-fé 279 . Não fazendo tal
verificação, terá procedido a instituição financeira de modo negligente, não
podendo pois argüir que os compromissos de compra e venda não estavam
registrados 280 ”. 281
É possível identificar em tais decisões, como se vê, a exceptio
doli, pois o credor, sabendo (ou devendo saber) desde logo que as unidades
autônomas já haviam sido negociadas com terceiros, que por elas já estavam
pagando, agiu com dolo ao recebê-las como parte de sua garantia, que apenas
se poderia estender às unidades que ainda não houvessem sido prometidas aos
adquirentes. Logo, a defesa dos promitentes compradores não poderá negar os
direitos do credor hipotecário, que estão expressamente previstos na lei, mas
deverá impor-lhes o obstáculo do comportamento doloso, a exceptio doli.
No entanto, dentro do aspecto histórico que no momento nos
interessa, o que se verifica é que a exceptio doli, embora possa facilmente
receber uma generalização que lhe confira aplicabilidade em áreas diversas do
279
STJ, 4ª Turma, Ac. unânime, REsp 287774/DF, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, j. 15.02.01,
DJ 02.04.01, p. 302.
280
STJ, 4ª Turma, Ac. unânime, REsp 329968/DF, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, j.
09.10.01, DJ 04.02.02, p. 394.
281
Aldemiro Rezende Dantas Júnior, Comentários ao Código Civil, v. XIII (Coord. Arruda Alvim e
Thereza Alvim), p. 521, comentário ao artigo 1.473.
276
direito, entre os romanos era usada em situações específicas, de modo
casuístico, e portanto não pode ser apontada como sendo a origem do abuso do
direito, que se constitui limitação genérica aos direitos subjetivos. De qualquer
modo, em relação ao instituto da exceptio doli, dele falaremos em maiores
detalhes, adiante, para que possa ser cotejado com a figura do venire contra
factum proprium.
E quanto às relações de vizinhança, finalmente, é certo que aqui
se tem um grande foco de concentração de situações onde o comportamento
de um dos vizinhos influirá negativamente na órbita dos outros, o que a cada
dia mais se agrava pelo fato de que as pessoas moram cada vez mais
concentradas, cada vez mais próximas umas das outras, face à grande
proliferação dos condomínios em edificações. Trata-se de campo fértil,
portanto, para o surgimento do abuso do direito.
No entanto, não se pode deixar de observar que as relações de
vizinhança, ao contrário do que ocorre com a aemulatio e com a exceptio doli,
não se constituem em um instituto jurídico propriamente dito, mas tãosomente em um âmbito de convívio social, para o qual o ordenamento jurídico
destinou inúmeras regras, como podemos ver nos artigos 1.277 a 1.313, do
Código Civil, lembrando ainda que diversas outras normas expressas também
interferem nessas relações, impondo-lhes limites, como é o caso, por exemplo,
dos “regulamentos administrativos”, expressamente indicados pelo artigo
1.299 do mesmo Código.
Nessas condições, cabe recordar o que já dissemos acima, no
sentido de que a violação dos limites impostos pela lei não deve ser
enquadrada como sendo caso de abuso do direito, mas sim de manifesta
ilegalidade. Logo, no campo das relações de vizinhança, pelo fato de
existirem, em grande quantidade, essas normas que se inserem na limitação
277
genética dos direitos subjetivos dos vizinhos, torna-se restrito o cabimento do
abuso do direito, uma vez que este não se confunde com a violação das
referidas normas, embora sua ocorrência seja possível, em relação às situações
de vizinhança para as quais não haja sido feita a expressa limitação pela lei.
De todo modo, mais uma vez em relação ao aspecto histórico, é
certo que no direito romano as relações de vizinhança traziam uma série de
limitações aos comportamentos dos vizinhos – como até hoje o fazem –, mas
que apenas o faziam para aquelas hipóteses específicas e casuísticas, não
tendo qualquer caráter de generalidade de aplicação. Também não se encontra
aí, portanto, a origem histórica do abuso do direito. É importante, contudo,
continuarmos nossa investigação, inclusive para que se possa aferir se a figura
do abuso do direito que se encontra no artigo 187, do nosso Código Civil, é a
mesma que foi assim batizada por Laurent, no estudo da jurisprudência
francesa.
O Código Civil francês não trouxe qualquer dispositivo legal que
possa ser entendido como a positivação, em França, do abuso do direito. É
certo que o referido Código trouxe inúmeras limitações aos direitos subjetivos,
mas já vimos que tais limitações não se confundem com o abuso do direito,
que se refere a limites de outra ordem. Em outras palavras, é evidente que o
Código de Napoleão, ao criar direitos subjetivos, o fez prevendo limites, como
sói ocorrer com todos os direitos subjetivos, que são sempre limitados, mas
sendo que tais limites, que se integram à gênese de cada direito, e por isso são
específicos para o mesmo, não são idênticos aos do abuso do direito, que são
genéricos, e com eles não se confundem.
O abuso do direito, portanto, surge como construção dos próprios
tribunais franceses, que não puderam se valer de textos legais, eis que estes
simplesmente não existiam, e nem da recepção do direito romano, que não
278
apresentava qualquer instituto a partir do qual tivesse havido a generalização
das características do instituto, como vimos. Surge, contudo, sem que
houvesse uma fundamentação muito clara, ora esteando-se na necessidade de
respeitar os direitos alheios, ora na desconsideração da finalidade prevista pela
lei, na criação do direito, e ora havendo mesmo quem negasse a possibilidade
de existência do abuso do direito, sob o argumento que pode ser assim
sintetizado: se é abuso, está fora do direito, e se é direito, não é abuso.
Veio de Planiol282 a negativa mais contundente, apontando o
mestre que as doutrinas que insistiam em afirmar que o uso de um direito
poderia se transformar em um abuso e constituir uma falta, estavam
inteiramente esteadas em uma linguagem insuficientemente estudada, pois a
fórmula “uso abusivo dos direitos” seria uma logomaquia, porque quando se
usa de um direito, o ato é necessariamente lícito; e quando tal ato é ilícito, é
porque já foi ultrapassado o campo do direito, e o titular agiu sem direito,
naquilo que a Lei Aquilia chamava de injúria.
Josserand 283, contudo, no nosso entendimento com ampla
vantagem, respondeu a essas críticas de Planiol, apontando que a contradição
e a logomaquia por ele apontadas não existem, e para afastá-las é suficiente
que se recorde que a palavra “direito” possui dois sentidos completamente
282
Marcel Planiol, Traité Élémentaire de Droit Civil, t. II, p. 282, n° 871. “Les jurisconsultes et les
législateurs modernes ont au contrairie une tendance à considérer l’usage d’un droit comme pouvant devenir
un abus, et par suite constituer une faute. Ils parlent volontiers de l’usage abusif des droits... Cette nouvelle
doctrine repose tout entière sur un language innsuffisamment étudié; sa formule ‘usage abusif des droits’est
une logomachie, car si j’use de mon droit, mon acte est licite; et quand il est illicite, c’est que je dépasse mon
droit et que j’agis sans droit, ‘injuria’, comme disait la loi Aquilia ”.
283
Louis Josserand, Cours de Droit Civil Positif Français, v. II, p. 231, n° 436. “Cependant, cette
contradiction et cette logomachie n’existent point; pour les faire se dissiper il suffit de se rappeler que le mot
‘droit’ a deux sens très différents; tantôt il designe l’ensemble de la règle sociale, la ‘juricité’, et tantôt il
s’applique à un droit subjective, isolément envisagé. C’est dans cette seconde acception seulment, qu’il peut
être question d’abus. Il y a droit et droit; l’acte abusif est celui qui, accompli en vertu d’un droit subjectif
dont les limites ont été respectées, est cependant contrairie au droit envisagé dans sons ensemble; on peut
avoir pour soi tel droit déterminé et avoir cependant contre soi le droit tout entier; c’est à cette situation que
correspondent l’adage summum jus summa injuria et la théorie de l’abus.
279
diferentes, tanto servindo para designar o conjunto de regras sociais, quanto
para indicar um determinado direito subjetivo, isoladamente considerado. E é
só nessa segunda acepção que se pode questionar o abuso. O ato abusivo seria
aquele ligado a um direito subjetivo cujos limites internos foram respeitados,
mas que se mostra contrário ao direito enquanto conjunto de regras. O titular
pode ter por si o direito determinado, e contra si todo o conjunto em que
consiste o direito.
Essas observações servem para destacar que, no seu nascimento,
nos tribunais franceses, o abuso do direito não era uma conseqüência de uma
conduta exigida pela boa-fé, ou pelo menos não havia qualquer associação
feita pela doutrina entre o comportamento abusivo e a boa-fé.
Da França, a figura do abuso do direito foi recebida na Alemanha,
e inclusive incluída expressamente no Código Civil alemão, ao contrário do
que ocorreu no país de onde se originou. No entanto, a inclusão no BGB foi
feita em uma regra tímida, o que se explica pelo fato de que esse Código,
sendo elaborado depois que os tribunais franceses já haviam se defrontado
com diversas situações que levaram ao surgimento da figura do abuso do
direito, aproveitou para inserir várias limitações aos direitos subjetivos na
própria norma que os criava, notadamente nas relações de vizinhança, o que
tornava menos necessário o recurso à figura do abuso do direito284.
284
Mas há outras diferenças significativas no modo como o abuso do direito é visto na França e na
Alemanha. Assim, por exemplo, observe-se que os direitos contratuais podem ser provenientes diretamente
das vontades das partes contratantes, ou seja, sua fonte é a autonomia privada, ou podem ser provenientes da
lei, apresentando-se como disposições previstas pelo legislador para aquele tipo específico de contrato. Em
relação à primeira categoria de direitos, ou seja, aqueles que provêm da vontade das partes, não há qualquer
divergência quanto à sua limitação pela figura do abuso do direito. No entanto, em relação à segunda, vale
dizer, aqueles que têm origem diretamente na lei, enquanto a jurisprudência alemã não vê qualquer obstáculo
à sua limitação em virtude do abuso do direito, os juízes franceses entendem que essa limitação não é
possível, pois os direitos cuja origem se encontra diretamente na lei não estariam sujeitos aos limites
decorrentes da figura do abuso do direito. Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude
comparative de droit français, allemand et japonais, p. 410, n° 1434. Veja-se que essa questão apresenta
grande interesse prático, o que pode ser facilmente demonstrado com o cotejo de dois dispositivos do Código
Civil brasileiro: a) o artigo 575, do referido Código, prevê que o locatário, se não restituir a coisa ao término
280
Dessa forma, a figura do abuso do direito chegou ao Código Civil
alemão no artigo 226, segundo o qual “o exercício de um direito é
inadmissível se ele tiver por fim, somente, causar um dano a outrem” 285. Temse aí, como se vê, uma norma de cunho objetivo, pois não há qualquer
referência à intenção ou à culpa do titular do direito subjetivo, mas sim à
característica do direito em si mesmo, que foi exercido com o objetivo de
causar dano a outrem. Mas a maior vantagem foi o fato de tal dispositivo ter
sido incluído na Parte Geral do Código Civil, o que o desvinculou das relações
de vizinhança ou de qualquer outro ramo específico do direito, permitindo sua
invocação, portanto, para todo o direito privado.
do contrato, apesar de notificado pelo locador, pagará o aluguel que este vier a arbitrar, mas o parágrafo único
esclarece que, se esse valor arbitrado para o aluguel for manifestamente excessivo, o juiz poderá reduzi-lo,
embora sem perder de vista o seu caráter de penalidade; b) no artigo 582, por sua vez, referente ao contrato de
comodato, prevê o Código Civil que o comodatário constituído em mora pagará, até restituir o bem, o aluguel
que for arbitrado pelo comodante, sem que seja feita qualquer ressalva quanto ao valor arbitrado de modo
excessivo. A questão que se coloca, portanto, é a de se saber se o comodante, ao exercer seu direito,
diretamente decorrente da lei, de fixar o valor do aluguel, estará limitado pela figura do abuso do direito ou
se, ao contrário, poderá exercê-lo livremente, sem qualquer restrição, uma vez que quando o legislador quis
impor limites, o fez de modo claro, como se vê no artigo 575, referente ao contrato de locação. Segundo a
visão da jurisprudência francesa, em se tratando de direito cuja fonte direta é a lei, não se aplica a figura do
abuso do direito; conforme a jurisprudência alemã, contudo, o controle judicial se mostra cabível, podendo o
juiz reduzir o valor arbitrado de modo manifestamente excessivo, por se caracterizar a figura do abuso do
direito. Entre nós, as opiniões doutrinárias são divididas. Para Caio Mário da Silva Pereira, por exemplo, o
aluguel deverá ser pago na quantia fixada pelo comodante, “mesmo que em cifra exageradamente elevada,
pois não se trata de retribuição correlativa da utilidade, mas de uma pena a que se sujeita o contratante
moroso” (Instituições de Direito Civil, v. III, p. 238). Na lição de Paulo Nader, contudo, embora a lei não
sinalize qualquer parâmetro para o aluguel, este “deverá corresponder ao valor da época e do lugar, não se
justificando uma cifra elevada” (Curso de Direito Civil – Contratos, p. 347). De nossa parte, pensamos que
ambos estão equivocados. Em relação à opinião de Caio Mário, o fato de não se tratar de retribuição, mas sim
de uma penalidade, claramente não se mostra suficiente para que se entenda que o comodante pode fixar
livremente o valor, ainda que em quantia exageradamente elevada, e tanto assim que o Código Civil, alguns
artigos antes (art. 575, parágrafo único), refere -se à redução do valor manifestamente excessivo, mas sem
perder de vista que se trata de uma penalidade, ou seja, aponta de modo claro para a conciliação entre as duas
figuras, a da penalidade e a da vedação ao abuso do direito. E quanto à lição de Paulo Nader, basta que se
observe que, se for fixado o valor correspondente ao aluguel da coisa, naquela época e lugar, estará
simplesmente sendo arbitrada uma retribuição, transformando-se de modo forçado o comodato em aluguel e
perdendo-se de vista o caráter de penalidade. Pensamos, portanto, que Caio Mário está equivocado por
admitir a fixação de valor exageradamente elevado, enquanto Paulo Nader está equivocado por admitir a
fixação de valor muito baixo, insuficiente para funcionar como retribuição e penalidade. Assim, o que nos
parece é que o valor deverá ser sempre moderadamente (e não exageradamente) superior ao do que
corresponderia ao aluguel da coisa, ou seja, deverá ser um valor tal que, simultaneamente: a) implique em
uma retribuição pelo uso da coisa; b) imponha ao comodatário moroso uma penalidade; c) não seja tão
elevado ao ponto de caracterizar o abuso do direito.
285
Tradução de Souza Diniz, Código Civil Alemão.
281
No entanto, a regra trazida pelo BGB apresentou um grave e
evidente inconveniente, que foi o de fazer menção ao exercício do direito cujo
fim somente tem o objetivo de infringir dano a outrem, e por isso não satisfez
às necessidades da vida social, pois é certo que, quase sempre, é possível
encontrar mais de um objetivo possível para o mesmo exercício de um direito,
e se tal ocorrer, a dicção expressa do Código alemão impede que o
comportamento possa ser caracterizado como sendo abusivo.
Caracterizada tal insuficiência, começaram os alemães a buscar
fundamentos mais adequados para a caracterização do abuso do direito, e em
um primeiro momento buscaram socorro no artigo 826, do próprio Código
Civil, segundo o qual “quem, de um modo atentatório contra os bons
costumes, causar, dolosamente um dano a um outro, estará obrigado, para
com o outro, à indenização do dano” 286. A idéia, declaradamente, era a de
complementar as deficiências do artigo 226 287. Passa-se, então, a considerar
como elemento central do abuso do direito a figura dos bons costumes.
Contornou-se, assim, o problema do “escopo único”, que tanto
dificultou a utilização do artigo 226. No entanto, outros três problemas
surgiram, de igual ou maior gravidade. Em primeiro lugar, o artigo 826 exigia
que tivesse havido atuação dolosa, o que impedia que também fossem
considerados abusivos atos onde houvesse negligência ou imprudência, ou nos
quais não houvesse meios de demonstrar o dolo do agente.
Em segundo lugar, a solução legal era dirigida para a indenização
do dano, e não para a cessação do abuso, sendo certo que, muitas vezes,
interessa muito mais à vítima que o abuso termine do que a indenização do
prejuízo. Ou seja, a solução mais adequada, em grande parte dos casos, seria a
286
287
Tradução de Souza Diniz, Código Civil Alemão.
Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 693.
282
de estipular um comportamento a ser seguido pelo sujeito, mas a solução do
texto legal sempre apontava para a solução das perdas e danos, caso a conduta
adequada não tivesse sido adotada.
Por último, havia a imprecisão conceitual sobre o que se deveria
entender por “bons costumes”, uma vez que não estava preenchido o conteúdo
do mesmo pelo direito, mostrando-se por isso indispensável o recurso a
elementos metajurídicos, providência essa que não era – e não é – bem vista
pelos juristas alemães, sempre notabilizados pelo pragmatismo.
Assim, também o artigo 826, embora tenha servido de base para a
solução de inúmeros casos concretos, veio a se mostrar insuficiente para a
largueza da vida real, pois diversas hipóteses, nas quais havia comportamento
claramente inadmissível, ficaram de fora do seu alcance, em virtude dos
problemas acima relatados. Continuou a busca, portanto, por uma outra norma
legal que se mostrasse mais adequada, e que veio a ser encontrada no artigo
242, do BGB, segundo o qual “o devedor está obrigado a executar a
prestação como a boa-fé, em atenção aos usos e costumes, o exige”288.
O artigo 242, portanto, apresentava algumas vantagens bastante
óbvias, podendo-se apontar, em primeiro lugar, o fato de ser esteado em uma
regra aberta, capaz de abarcar uma grande generalidade de situações, em vez
de ficar limitada a uma situação específica. Além disso, não traçava
considerações subjetivas em relação ao agente, não se preocupando em buscar
se o comportamento do mesmo havia sido doloso ou culposo ou qual teria sido
a intenção do agente ou o escopo do ato. Por último, a solução alvitrada pelo
texto legal passava pela imposição, ao sujeito, de uma conduta adequada para
o caso concreto, conforme os ditames da boa-fé e os costumes referentes
àquele tipo de negócio.
288
Tradução de Souza Diniz, Código Civil Alemão.
283
E assim foi que, dos bons costumes, passou-se a considerar a boafé como o elemento central para a determinação dos limites que, uma vez
ultrapassados, estaria caracterizado o abuso do direito. Béatrice Jaluzot289
resume essa evolução da seguinte forma:
“Progressivamente, a jurisprudência alemã veio a vincular a doutrina do
abuso do direito à boa-fé, mais exatamente ao artigo 242 do BGB... em
concorrência com a boa-fé, era a noção de violação dos bons costumes, do
artigo 138 do BGB, que também oferecia um fundamento adequado.
Contudo, a questão foi delineada pela jurisprudência do Tribunal do Império
em uma série de decisões tomadas durante a segunda guerra mundial, e a
partir daí a Corte federal se apoiou na boa- fé do artigo 242. As razões dessa
vinculação foram que só a noção de boa-fé era capaz de abranger todos os
casos nos quais a jurisprudência havia aplicado o abuso do direito: enquanto
não podia ser aplicado o artigo 226, em razão de sua condição muito estreita,
a intenção de prejudicar, e que o artigo 826 não abrangia todos os casos,
particularmente aqueles de abuso do direito simplesmente objetivo e sem
culpa, e também porque nem todo abuso do direito é uma violação dos bons
costumes, o artigo 242 foi considerado como o único fundamento jurídico
para a interdição do abuso do direito, na medida em que limita o exercício
dos direitos” (tradução livre).
E é certo que essa evolução viria a influenciar, posteriormente, a
recepção, pelo Código Civil brasileiro (e vários outros, pelo mundo afora), das
idéias alemães sobre o abuso do direito, ainda que, curiosamente, nada conste
sobre as mesmas no Código Civil alemão (pelo menos, não com a clareza dos
289
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 432, n°s 1503 e 1504. “Progressivement la jurisprudence allemande en est venue à rattacher la
doctrine de l’abus de droit à la bonne foi, plus exactment au § 242 BGB... En concurrence avec la bonne foi
venait la notion de contravention aux bonnes moeurs du § 138 BGB qui offrait elle aussi um fondement
adéquat. Cependant, la question a été tranchée par la jurisprudence du Tribunal d’Empire dans une série de
décisions rendues durant la seconde guerre mondiale et la Cour fédérale s’appuie depuis lors sur la bonne foi
et le § 242. Les raisons de ce rattachement sont que seule la notion de bonne foi était à même d’embrasser
tous les cas dans lesquels la jurisprudence avait appliqué l’abus de droit: alors qu’il ne pouvait être question
du § 226 en raison de sa condition trop étroite, l’intention de nuire, et que le § 826 n’embrasse pas tous les
cas, en particulier ceux d’un abus de droit simplement objectif et sans faute, et aussi parce que tout abus de
droit n’est pas une violation des bonnes moeurs, le § 242 a été considere comme seul fondement juridique
pour l’interdiction de l’abus de droit, en t ant que limite à l’exercice des droits”.
284
outros Códigos Civis, como é o caso do art. 187, do Código brasileiro).
Vejamos como se deu essa recepção.
Cabe observar, de início, que o nosso Código Civil anterior, de
1916, não se referia expressamente ao abuso do direito, apenas trazendo
disposição, no artigo 160, I, segundo a qual não se constituía em ato ilícito
aquele que se apresentava como o exercício regular de um direito. A partir
dessa disposição legal, extraiu a nossa doutrina 290 a conclusão de que,
contrario sensu, o exercício irregular desse mesmo direito, que seria o abuso
do direito, constituiria ato ilícito.
Adotou o nosso Código Civil antigo, portanto, a mesma falta de
clareza do Código Civil suíço, cujo artigo 2º, segunda parte, dispõe que “O
abuso evidente de um direito não encontra proteção legal” 291. Com efeito,
facilmente se percebe que em ambos os códigos faltou a apresentação de
qualquer parâmetro, que pudesse permitir ao juiz, no caso concreto, a aferição
segura sobre se teria ou não havido o abuso, uma vez que não houve sequer
uma pista sobre quais seriam as características para a identificação do mesmo.
O Código Civil pátrio se limitou a mencionar o exercício irregular, enquanto
o suíço apenas se referiu à figura do abuso do direito, ambos se mostrando
incompletos, portanto.
Necessário, neste ponto, um deslocamento até a Grécia, País onde
vigorou, em todo o século XIX e nos primeiros quarenta anos do século XX, o
Corpus Iuris Civilis, recebido dos romanos. Ocorre que a doutrina alemã,
como já vimos linhas atrás, foi dominada, no século XIX, pela chamada
Escola Histórica, que havia tomado como ponto de partida, para o estudo do
Direito Civil o direito romano, mas cuidando de mesclá-lo com os valores
290
Nesse sentido, por todos, veja-se a lapidar obra de Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o
Ato Ilícito, p. 92.
291
Tradução de Souza Diniz, Código Civil suíço.
285
culturais atualizados do povo alemão. Por essa razão, a doutrina alemã teve
enorme influência no Direito Civil grego, uma vez que serviu de base para que
os gregos absorvessem o direito romano adaptado para os tempos atuais.
Em 1946, finalmente, os gregos adotaram o seu próprio Código
Civil, sendo evidente que a elaboração do mesmo foi fortemente influenciada
pela doutrina originária da Alemanha, que já havia sido recebida pela forma
descrita no parágrafo anterior, e por isso o Código Civil alemão foi o ponto de
referência do Código Civil grego. Só que, na década de 40, em pleno século
XX, a doutrina alemã, como vimos retro, já havia interpretado e modificado o
conteúdo do Código Civil alemão, e por isso os gregos se utilizaram não
apenas do texto original do BGB, mas o fizeram considerando as
interpretações doutrinárias e jurisprudenciais, referentes às dificuldades que
haviam surgido na prática e que a doutrina e a jurisprudência já haviam
superado.
Ora, vimos há pouco que os alemães, em relação à figura do
abuso do direito, haviam passado, sucessivamente, do ato que só pudesse ter o
objetivo de causar dano a outrem (art. 226) para os bons costumes (art. 826) e
a boa-fé (art. 242), e nesta última fase se encontrava o direito alemão
(impondo os limites do abuso do direito com base nos bons costumes e na
boa-fé) quando foi elaborado o Código grego, que ainda buscou, no projeto do
Código Civil italiano, a referência à finalidade social e econômica do
direito292. Desse modo, o artigo 281, do Código Civil grego, estabeleceu que
“o exercício é proibido quando exceda manifestamente os limites impostos
pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo escopo social ou econômico do
direito”.
292
Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 715.
286
Em 1966 entrou em vigor a segunda codificação civil portuguesa,
que recebeu, em seu artigo 334, o artigo 281 do Código Civil grego. Com
efeito, lê-se no artigo 334, do Código Civil luso, que “é ilegítimo o exercício
de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos
pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse
direito”, recebendo de modo muito claro e nítido a influência do mencionado
dispositivo do Código Civil grego.
O artigo 187, do Código Civil brasileiro, por sua vez, foi
claramente inspirado no artigo 334 do Código Civil português, inclusive com
a classificação do ato abusivo como ato ilícito (ilegítimo). Em doutrina,
convém que se alerte, discute-se se o abuso do direito é ou não ato ilícito. Para
nós, no entanto, a discussão se mostra estéril, pois cabe à lei definir quais são
os limites da licitude, e a norma legal foi expressa em mencionar que o abuso
do direito ultrapassa tais limites, devendo pois ser considerado como ato
ilícito. De ato ilícito, então, se trata, e passaremos ao largo da referida
polêmica, por falta de interesse para o presente trabalho.
Também o Código Civil argentino, adotando a mesma linha de
conceituação, aponta em seu artigo 1.071 que “la ley no ampara el ejercicio
abusivo de los derechos. Se considerará tal al que contraríe los fines que
aquélla tuvo em mira al reconocerlos o al que exceda los límites impuestos
por la buena fe, la moral y las buenas costumbres”.
O que se verifica é que, de modo concreto, a identificação do
abuso do direito, no nosso Código Civil e no argentino, adotou o critério da
função social do direito, ou seja, estará caracterizado o abuso do direito toda
vez que um determinado direito tiver sido desviado de sua função social, uma
vez que os direitos subjetivos existem essencialmente, dentro de um interesse
social, e não apenas dentro do interesse de seus titulares, e por essa razão o
287
seu exercício deve ser limitado pelo interesse social a que devem servir 293. É
interessante notar que muda por completo o enfoque dos direitos subjetivos,
que deixam de ser vistos sob o prisma de sua estrutura e passam a ser
considerados sob a ótica de sua função, vale dizer, tais direitos são
funcionalizados aos valores eleitos pelo ordenamento294.
Na verdade, o que se pode constatar é que, uma vez revelada pela
doutrina alemã a íntima ligação entre a boa-fé e a figura do abuso do direito,
os Códigos Civis em geral se valeram da primeira para poder apresentar um
conceito para o segundo, ou seja, para caracterizar o abuso do direito em
função da boa-fé, sendo que aquele começa a partir do ponto em que cessam
as condutas admissíveis, pois estas se encontram no domínio da boa-fé, e além
delas já se adentra pelo campo do abuso do direito.
Usando interessante descrição feita pela doutrina 295, pode-se dizer
que, representando-se o caminho de um certo comportamento jurídico, ambas
as figuras, a boa-fé e o abuso do direito, encontram-se no mesmo ponto limite.
Contudo, antes desse ponto têm-se os comportamentos pautados pela boa-fé,
que se faz presente em todo o setor das condutas admissíveis, enquanto que,
além desse mesmo ponto, tem-se a presença do abuso em todo o trajeto, sendo
ultrapassado o limite dos comportamentos aceitáveis pelo Direito.
Só a título de melhor esclarecimento do que já foi visto
anteriormente, e aproveitando essa mesma figura utilizada no parágrafo
anterior, veja-se que a boa-fé não se limita a esse ponto mencionado, além do
qual se terá o abuso do direito, mas está presente em todo o caminho
percorrido até que seja atingido tal ponto, ou seja, estará presente em todos os
293
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 418, n° 1461.
294
Gustavo Tepedino, Temas de Direito Civil, p. 9, nota de rodapé nº 8.
295
Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 223.
288
comportamentos adotados pelo sujeito do negócio jurídico. É por isso que
comentamos, por exemplo (veja-se, retro, o item 1.8), que a boa-fé permeia
não apenas o momento da celebração ou o da execução do contrato, mas
também os momentos que o antecedem e aqueles que se seguem à sua
extinção296.
Na realidade, contudo, como bem esclarece Menezes Cordeiro 297,
o abuso do direito representa um gênero, que toma por base as condutas
situadas além das que são ditadas pela boa-fé, e que é formado por diversas
espécies, todas elas tendo suporte na boa-fé, mas cada uma tendo suas próprias
peculiaridades, e para a solução dos casos reais não é na figura do abuso do
direito que se encontram as soluções, mas nessas espécies que com ele têm em
comum a ordenação pela boa-fé. O abuso do direito, portanto, sob essa ótica,
apenas serve como ponto de referência para que sejam reunidas de modo
sistemático essas espécies, cujo estudo faremos em seguida, examinando de
modo mais detalhado, contudo, a figura do venire contra factum proprium,
que nos servirá de parâmetro para a comparação com as demais espécies
ligadas ao abuso do direito.
2.2.1. A exceptio doli.
Ensina Menezes Cordeiro 298 que a exceção, em Direito
substantivo, é a situaçao na qual a pessoa que se encontra adstrita a um dever
pode, licitamente, recusar a efetivação da pretensão correspondente. Na lição
de Ovídio da Silva, vemos que a exceção é uma defesa indireta apresentada
296
Nesse sentido, mas especificamente em relação à figura do abuso do direito, ensina Pedro Baptista
Martins que “o abuso do direito pode manifestar-se em qualquer de suas fases: pré-contratual, contratual e
pós-contratual”. Cf. Pedro Baptista Martins, O Abuso do Direito e o Ato Ilícito, p. 38.
297
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 706.
298
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 719.
289
pelo réu, sendo assim classificada porque não tem por finalidade negar a
existência do direito do autor. Muito pelo contrário, quando o réu se defende
argüindo exceção substancial, está reconhecendo que tal direito existe, mas ao
mesmo tempo está apontando que o pedido deve ser julgado improcedente, em
virtude da existência de algum elemento extrínseco que pode ser oposto ao
autor, impedindo, modificando ou mesmo extinguindo a eficácia do seu
direito299.
A exceptio doli, ou exceção de dolo, portanto, significa, como o
próprio nome indica, uma defesa indireta, da qual o réu poderá se valer para
repelir a pretensão do autor, embora sem negar-lhe o direito, tendo por suporte
o fato de que tal direito foi exercido de modo doloso, tendo havido
comportamento que implicou em violação da boa-fé, por parte do seu titular.
No caso da exceção de dolo, o “elemento extrínseco” que poderá ser oposto
contra o autor consistirá no dolo deste, ou seja, a pretensão do autor será
repelida sob o argumento de que o mesmo agiu de modo doloso. Representa,
de certo modo, “a proteção de um direito contrário ao exercitado pelo autor
e, em tal sentido, um instrumento de flexível proteção da eqüidade e da boafé” 300.
Dito em outras palavras, a exceptio doli foi um meio processual
genérico de defesa, criado pelos romanos para obstaculizar as ações que se
fundavam no dolo do autor, sendo depois ampliada para abranger qualquer
atuação que se mostrasse iníqua ou contrária à bona fides, o que levou a
apresentar conteúdo difuso, capaz de abranger um grande número de
hipóteses, cujo ponto em comum é precisamente a presença do dolo do autor,
299
300
Ovídio A. Baptista da Silva, Curso de Processo Civil, v. 1: Processo de Conhecimento, p. 319.
Alfonso de Cossío y Corral, El dolo en el derecho civil, p. 210.
290
em algum momento de sua atuação301, sendo certo, contudo, como veremos
logo em seguida, que essa indefinição conceitual acabou por levar ao
abandono dessa exceptio.
Em sua origem, no Direito romano, a exceção de dolo cumpria
um duplo papel, dividindo-se em exceptio doli praeteriti (ou specialis) e
exceptio dolis praesentis (ou generalis). A primeira, exceptio doli specialis,
era apontada pelo réu quando o dolo do autor havia ocorrido no momento em
que a relação jurídica material se formara, ou seja, em um momento anterior à
ação (em momento pretérito). A segunda, exceptio doli generalis, por sua vez,
indicava o dolo em que havia ocorrido o autor no momento em que se deu a
discussão da causa (ou seja, no momento presente, em relação à ação) 302.
Sem maiores investigações pode-se concluir que a exceptio doli
specialis perdeu a sua finalidade, a partir do surgimento da figura dos vícios
da vontade, na formação do negócio jurídico. Com efeito, em se tratando de
dolo de um dos sujeitos, no momento mesmo em que se deu o surgimento da
relação material, ou seja, no momento em que ocorreu o negócio jurídico,
parece evidente que essa espécie de exceptio foi absorvida pela figura do dolo,
de um modo geral, podendo esse surgir, também, sob a forma de dolo de
aproveitamento, no caso específico do estado de perigo. Restou apenas,
portanto, a figura da exceptio dolis generalis.
Na realidade, a exceptio doli foi usada, notadamente pela
jurisprudência alemã, para abranger situações diversificadas, às quais não se
conseguia dar uma unidade sistemática, e acabou se transformando em mero
sinônimo de resistência a um direito cujo titular agiu em desconformidade
com a boa-fé. Tal idéia, como se vê, é por demais ampla, pois não se esclarece
301
Anderson Schreiber, A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela da confiança e venire
contra factum proprium, pp. 169-172.
302
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 722.
291
de modo preciso em que consistiria essa violação da boa-fé, ou seja, qual o
parâmetro a ser considerado para aferir essa atuação desconforme.
Como explica Béatrice Jaluzot 303, enquanto nos tribunais
franceses a jurisprudência referente à boa-fé se esteava no abuso do direito, na
Alemanha, ao contrário, o fundamento primeiro era a exceptio doli generalis.
O grande desenvolvimento da jurisprudência nesses dois países levou à
aproximação das duas teorias, mas sendo que o instituto do Direito romano
não garantia os fundamentos teóricos suficientes para as decisões, e mesmo se
tratava de uma qualificação inadequada, pois em muitos casos a presença da
exceptio era reconhecida sem que tivesse havido um comportmento doloso, ou
seja, um comportamento conscientemente ilícito, ou mesmo que nem se
tratasse de uma exceção, que as partes pudessem relevar, mas sim de um
obstáculo jurídico que o juiz poderia considerar ex officio.
E nem se diga, como pretenderam alguns doutrinadores de
escol304, sustentar que mediante o recurso à exceptio doli não se buscaria
sancionar uma conduta culposa, mas sim evitar-se um resultado imoral e
injusto, o que se apresentaria como uma situação objetiva, e não de cunho
subjetivo. Em palavras mais claras, a exceção de dolo teria um fundamento de
natureza objetiva, situado fora da intenção do agente. Data venia, pretender
falar-se em dolo fora do âmbito das intenções, significa das duas uma: ou se
trata de mero jogo de palavras, ou, então, trata-se de qualquer outra coisa, mas
não de exceção de dolo, sob pena de termos um absurdo similar ao do abuso
do direito sem o exercício de um direito.
303
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 428, n° 1492.
304
Alfonso de Cossío y Corral, El dolo en el derecho civil, pp. 243-244. O ilustre autor espanhol aponta
que buscar para a exceção de dolo um fundamento objetivo, que esteja fora da intenção do agente, pode
parecer contraditório (p. 244). Na verdade, não parece contraditório, é amplamente contraditório.
292
Por essa razão, há quem aponte que a exceptio doli foi atingida
pelo desinteresse da doutrina e da jurisprudência 305, importando mais pelo
relevante papel histórico que desempenhou, enquanto se tentava fincar as
fundações de normas esteadas na boa-fé, uma vez que hoje encontra maior
aplicação a análise de violações mais específicas e mais precisamente
delimitadas da boa-fé, e que por isso encontram aplicação concreta de modo
mais científico, em vez de, como ocorria com a exceptio doli, apenas servir de
reforço lingüístico para decisões já anteriormente tomadas, em casos de
violação da boa-fé.
De modo semelhante, aponta Jaluzot306 que os autores começaram
a descrever as duas teorias, a exceptio doli e o abuso do direito, como sendo
duas aparições paralelas, que se identificavam reciprocamente em sua
essência, e com isso as duas teorias foram progressivamente sendo
assimiladas, o que acabou por resultar na substituição progressiva da
terminologia usada na Alemanha, ou seja, os juristas alemães descartaram a
expressão latina e passaram a usar a tradução literal da noção francesa do
abuso do direito.
E também os tribunais alemães passaram a invocar a teoria
francesa, para justificar suas decisões, chegando a apontar de modo expresso
que o abuso do direito, que fora desenvolvido a partir da exceptio doli
generalis e da figura correspondente no direito francês, era reconhecido de um
modo geral. E a terminologia latina começa a ser abandonada.
Na realidade, desde a entrada em vigor do Código Civil alemão,
em 1900, a aplicabilidade da exceptio doli já havia sofrido um baque, eis que o
BGB simplesmente não tratou da mesma, o que desde logo levou a doutrina a
305
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 741.
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, pp. 428-429, n°s 1493 e 1494.
306
293
discutir acerca da sua sobrevivência no direito germânico. Apesar desse
silêncio, principalmente em virtude de sua tradição, a jurisprudência alemã
continuou a fazer referência à exceptio, mesmo após a entrada em vigor do
Código Civil, pois se este, por um lado, não a mencionou, por outro, também
não a afastou. Só que a exceptio se apresentava muito ampla, muito fluida, e a
doutrina começa a apontar que os casos onde a mesma era invocada, em sua
maioria, nada mais eram do que hipóteses de interpretação da lei, e não,
verdadeiramente, hipótese da exceptio307, o que conduziu à sua absorção pela
figura do abuso do direito, acima mencionada.
Os tribunais que continuavam a fazer referência à exceptio doli
generalis, na realidade, valiam-se da valoração dos problemas concretos à luz
das normas legais que constavam do Código Civil alemão, notadamente as que
se referiam à boa-fé e aos bons costumes e, depois de atingida a solução,
faziam uma referência à exceptio, como reforço dos argumentos expendidos.
Ou seja, usava-se um conceito central, codificado, para atender às situações
periféricas da vida real, e depois se mencionava a exceptio doli, que apenas
servia como reforço lingüístico. Não havia, portanto, a preocupação de
deduzir da própria figura da exceptio as soluções possíveis para cada situação
concreta308.
Por todas essas razões, as referências à exceptio doli generalis
começaram a rarear na jurisprudência. Desse modo, tendo a figura
desaparecido dos tribunais, sobreveio também, como conseqüência, a escassez
doutrinária, pois deixou-se de pesquisar o tema porque o mesmo não era mais
visto em debate nos tribunais, em casos concretos. De fato, atualmente, há
pouca ou quase nenhuma referência doutrinária ao instituto da exceptio doli,
307
308
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 723-730.
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 733.
294
decorrendo principalmente, como já comentamos, supra, da mesma ter sido
fundida com a figura do abuso do direito, sendo esta que é mencionada em
situações nas quais se mostra dificil a sistematização do desrespeito à boa-fé,
sem a preocupação de reconhecimento da exceptio doli.
A exceptio doli, de fato, é figura de amplitude e generalidade
significativas, e por isso a sua topologia adequada é aqui, como um subitem
do abuso do direito. De qualquer modo, no aspecto que nos interessava, que
era o de um cotejo com a figura do venire contra factum proprium, já
podemos apontar com facilidade a crucial diferença entre ambas, consistente
no fato de que a exceptio doli pressupõe, como é evidente, o dolo do sujeito,
exigência essa que não se encontra no venire, como passaremos a examinar
logo em seguida.
2.3. O venire contra factum proprium.
2.3.1. Considerações gerais.
A expressão venire contra factum proprium, que poderia ser
vertida para o vernáculo em tradução que se apresentaria em algo do tipo “vir
contra seus próprios atos”, ou “comportar-se contra seus próprios atos”, pode
ser apontada, em uma primeira aproximação, como sendo abrangente das
hipóteses nas quais uma mesma pessoa, em momentos distintos, adota dois
comportamentos, sendo que o segundo deles surpreende o outro sujeito, por
ser completamente diferente daquilo que se poderia razoavelmente esperar, em
virtude do primeiro.
Em outras palavras, há uma contradição entre os dois
comportamentos, pois a partir da análise do primeiro havia surgido a legítima
295
expectativa de que outra seria a conduta a ser adotada por ocasião do segundo.
Nas palavras de Béatrice Jaluzot 309, todo comportamento será contrário à boafé se for qualificado como contraditório, o que ocorre quando se mostra
contrário a um comportamento anterior da mesma pessoa.
O primeiro comportamento, portanto, é o “factum proprium”, e o
segundo, é o “venire”. Quando os dois são contraditórios, ou seja, quando o
venire (segundo comportamento) se mostra contrário ao factum proprium, é
que poderá ser caracterizada a figura do venire contra factum proprium,
dependendo ainda, contudo, da presença de outros elementos, como veremos
em seguida.
A proibição do venire310, como facilmente se pode identificar,
refere-se à proteção da boa-fé 311, ou melhor, refere-se à necessidade de que
cada um dos sujeitos de um negócio jurídico adote conduta que seja
consentânea com a boa-fé, o que, em última análise, como já vimos, retro,
significa que cada um desses sujeitos deverá respeitar os deveres laterais que
surgem em todos os negócios jurídicos, e que são impostos exatamente em
função da necessidade de observância da boa-fé. E qual seria esse dever
acessório, a ser observado, e cuja inobservância estaria a caracterizar o venire?
309
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, p. 89, n° 326. “Tout comportement sera contraire à la bonne foi s’il est qualifié de contradictoire
c’est-à-dire s’il est contraire à um comportement antérieur de la même personne”. (Tradução livre).
310
Mas desde logo observando que por vezes, levando em conta outros valores, a própria lei permite,
expressamente, esse comportamento contraditório, ou seja, nem sempre é proibido o venire contra factum
proprium. Assim, por exemplo, os pais, tutores ou curadores que já se manifestaram no sentido de conceder a
autorização para o casamento do menor púbere, podem revogá-la enquanto não se der a celebração do
matrimônio (Código Civil, art. 1.518), ou seja, podem adotar um segundo comportamento que é exatamente o
oposto do primeiro, tendo força para desfazê-lo. Da mesma forma, a autorização dada pelos pais, para que seu
filho seja adotada, pode ser revogada enquanto não tiver sido publicada a sentença que constitui a adoção (art.
1.621, § 2º). E outros exemplos poderiam ser citados, como veremos adiante.
311
No entanto, convém ressaltar que essa ligação tão estreita entre a boa-fé e o venire contra factum
proprium não se mostra assim tão pacífica, sendo contestada por autores de nomeada. Nesse sentido, por
exemplo, José Luis de Los Mozos, após afirmar que não há dúvidas acerca da relação entre atos próprios e
boa-fé, alerta que na especial conduta contraditória que informa a doutrina dos atos próprios, intervêm outros
ingredientes, que não decorrem da simples aplicação da boa-fé, e que por essa razão não se pode reconduzir
essa matéria (a doutrina dos atos próprios) a qualquer dos tipos de boa-fé, objetiva ou subjetiva, por mais que
se pretenda fazer generalizações. Cf. José Luis de Los Mozos, El principio de la buena fe, pp. 183-184.
296
Se tomássemos como embasamento apenas este começo de
abordagem do tema, poderíamos ser tentados a mencionar um dever lateral de
coerência, uma vez que o venire contra factum proprium, conforme acabamos
de mencionar, abrange as situações onde há comportamentos contraditórios,
ou seja, nas quais não há coerência entre os dois comportamentos adotados,
em momentos distintos, em relação ao mesmo negócio jurídico e pelo mesmo
sujeito. Ou, em vez de um “dever de coerência”, poderíamos optar por um
mais claro e significativo “dever de não ser contraditório”.
Tais denominações, no entanto, haveriam de se mostrar tão
precipitadas quanto inverídicas, uma vez que não estariam espelhando o
aspecto que se revela como sendo o verdadeiro eixo de sustentação do venire.
Com efeito, como veremos em maiores detalhes, logo à frente,
em muitas ocasiões a falta de coerência do sujeito não é proibida e nem gera
conseqüências jurídicas quando vem a ser constatada. Dito de outra forma,
nem toda incoerência comportamental pode ser descrita como sendo caso de
venire, ou seja, nem toda conduta que venha a se revelar contraditória com
uma conduta anterior pode ser descrita como sendo hipótese de venire contra
factum proprium.
À guisa de rápido exemplo pode-se apontar a hipótese daquele
que envia, a pessoa ausente, proposta de contrato. É certo que esse proponente
poderá se retratar, enquanto a proposta não tiver chegado ao conhecimento
daquele a quem se destinava, ou se ambas, a proposta e a retratação, chegarem
juntas a esse mesmo destinatário.
Veja-se que o segundo comportamento, ou seja, a retratação, é
nitidamente contraditório em relação ao primeiro, a proposta, e tanto assim
que o desfaz por completo. E, no entanto, essa incoerência não é proibida e
nem vai gerar qualquer conseqüência jurídica, simplesmente prevalecendo a
297
retratação sobre a proposta, ou seja, prevalecendo o segundo comportamento
sobre o primeiro, eis que os dois são incompatíveis entre si, e portanto não
haveria como fazer-lhes a conciliação.
Logo, fica assim demonstrado que a referência a um eventual
dever de coerência (ou dever de não ser contraditório), na realidade, em
termos científicos, não significa absolutamente nada, eis que não permite
identificar o fenômeno sob estudo, por abordar apenas um invólucro maior, no
qual estão inseridas diversas outras espécies de violações da coerência. Não
serve, portanto, como paradigma para a busca que estamos a empreender.
A questão que se apresenta como sendo de nuclear importância,
portanto, é a identificação precisa dessa espécie de coerência ou, por outras
palavras, a apuração de quais são as situações nas quais a incoerência (a
contradição) não poderá ser tolerada.
Em relação ao tema, desde cedo adiantamos o que será
demonstrado logo adiante: a incoerência que se caracteriza como venire é tãosomente aquela que destrói a confiança que havia surgido na outra parte, ou
seja, a partir do primeiro comportamento adotado por um dos sujeitos, o outro
passou a acreditar (a confiar) que em um segundo momento a conduta a ser
adotada seria no mesmo sentido da primeira, seria coerente com ela, e essa
crença vem a ser destruída pelo comportamento que se choca com o anterior.
Para que se chegue a tal conclusão, convém recordar o que já
vimos, retro (item 1.9), no sentido de que não se está buscando,
primordialmente, a repressão à má-fé de um dos sujeitos, mas sim a proteção à
boa-fé do outro. Ora, a questão da coerência é ligada à pessoa do sujeito cuja
atuação não será admitida, enquanto a confiança se refere ao outro sujeito,
cuja boa-fé se busca proteger. Em outras palavras, se a idéia central fosse a
repressão à incoerência, isso equivaleria à busca da punição à má-fé.
298
O que se buscará, portanto, é proteger a confiança do outro
sujeito, pois aí se estará voltando o foco para a proteção à boa-fé, e não para a
punição à má-fé. Pode-se dizer, portanto, que o venire contra factum proprium
tem como foco um elemento externo à pessoa que adota os dois
comportamentos que se mostram incoerentes, sendo tal elemento externo a
confiança que se formou no outro sujeito. A incoerência em si mesma,
portanto, se mostra irrelevante, apenas interessando as suas conseqüências
quanto ao outro sujeito, vale dizer, se houve ou não o surgimento da
confiança.
No dizer de Béatrice Jaluzot 312, um comportamento contraditório
será abusivo (e, portanto, não será tolerado) quando um elemento de confiança
havia surgido na outra pessoa, ou quando as circunstâncias particulares do
caso concreto fazem com que o exercício de um direito se apresente como
sendo desleal, sendo certo que o elemento temporal se apresenta como um
argumento de peso (embora não seja o único) para essa caracterização. Assim,
mais claramente será caracterizado o comportamento contraditório como
abusivo se a parte, durante longo tempo, se comportou de uma certa forma, e
subitamente mudou o seu comportamento.
Poderia ser enquadrada a proibição do venire dentro do dever de
lealdade, que por nós já foi examinado, mas ainda assim o espectro ficaria
muito amplo, pois é de um aspecto específico da lealdade que se trata, ou seja,
de não frustrar a confiança que foi criada no outro agente do negócio jurídico.
O que efetivamente se mostra mais adequado, portanto, é o falar-se em
proteção à confiança.
312
Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand et
japonais, pp. 89-90, n°s 327 e 328.
299
E é importante destacar que o repúdio ao venire contra factum
proprium nada tem a ver com a questão do pacta sunt servanda, e sim com a
aparência, com o fato exterior (o comportamento inicialmente adotado) que
fez surgir a interior confiança por parte do outro sujeito 313. Se no caso
concreto se mostra razoável supor que dessa aparência resultou a formação da
confiança, no íntimo do outro sujeito, então a sua quebra será inadmissível,
sendo atraídas as regras do instituto em exame.
Neste ponto abriremos breve parêntese para alargar e
fundamentar a afirmação feita nos parágrafos imediatamente anteriores, no
sentido de que o comportamento contraditório será caracterizado como
abusivo. É que a figura do venire contra factum proprium, de fato, enquadrase na figura mais ampla do abuso do direito, ou seja, este constitui o gênero
mais amplo, enquanto o venire se apresenta como uma de suas espécies, ou
seja, como uma das situações de ocorrência concreta do abuso, o que pode ser
facilmente demonstrado.
Para tanto, basta que se observe que o abuso do direito, em
simplificada explicação, pode ser descrito como o exercício do direito de
modo contrário à boa-fé ou às suas finalidades social e econômica, como já
vimos. Ora, é evidente que a ocorrência do venire, quebrando a confiança que
foi despertada na outra parte, não apenas viola a boa-fé, mas além disso ainda
agride as finalidades do direito subjetivo, pois é claro que, diante dos
princípios da dignidade humana e da solidariedade social, não se poderia
conceber que um determinado direito subjetivo, qualquer que seja tal direito,
pudesse ter sido criado com a finalidade de frustrar as expectativas
legitimamente criadas pela contraparte. Logo, se frustrar as expectativas não
era a finalidade, mas apesar disso a frustração ocorreu, pode-se afirmar que foi
313
Vitor Frederico Kümpel, A teoria da aparência no novo Código Civil brasileiro, p. 44.
300
desatendida a finalidade para a qual o direito subjetivo havia sido reconhecido
à parte.
Assim, é fácil de concluir que toda ocorrência do venire contra
factum proprium, traduzindo uma agressão à boa-fé e um desvio da finalidade
para a qual o direito subjetivo havia sido reconhecido ao seu titular, poderá
sempre ser enquadrada como um caso de abuso do direito. Apenas se
complementa essa afirmação observando-se que, esse caso particular de
abuso, por ter características próprias e bem definidas, e por se tratar de
situação de ocorrência concreta freqüente, passa a ser estudado em separado,
por suas próprias características, que se destacam dentro da figura mais ampla
do abuso do direito, embora seja um caso peculiar deste.
Encerrando essas observações iniciais, convém realçar um
importante aspecto, que muitas vezes passa despercebido, quando se
examinam as questões ligadas à boa-fé, e para o qual já havíamos chamado a
atenção, poucas linhas atrás. É que, em verdade, a proibição do venire contra
factum proprium, muito mais do que destinada à proibição da conduta de máfé, na realidade destina-se, precipuamente, à proteção da confiança (rectius:
proteção da boa-fé), e essa diferença gera importantes conseqüências práticas,
conforme veremos mais adiante.
Assim, por exemplo, se um dos sujeitos não se comporta
conforme os ditames da boa-fé objetiva, assumindo comportamento
claramente contraditórios, mas o primeiro desses comportamentos, por alguma
razão, não havia feito surgir a confiança no espírito do outro sujeito, não se
terá aí hipótese de venire, pois o que de fato interessaria seria a quebra da
confiança, para caracterizá-lo, e não a simples contradição que poderia tê-la
quebrado, mas que na realidade não o fez.
301
2.3.2. Elementos característicos.
Comecemos observando que não há, no nosso ordenamento
jurídico, qualquer regra que possa ser apontada com uma proibição geral de
que um sujeito adote comportamentos contraditórios entre si, e por isso não é
possível a análise minuciosa de um dispositivo legal específico, a partir do
qual possam ser extraídas as características que ora buscamos.
Na realidade, pode-se mesmo apontar que nos ordenamentos
jurídicos em geral não se costuma encontrar uma regra que, de modo genérico,
proíba a adoção de comportamentos contraditórios. No entanto, como veremos
logo em seguida, há no nosso ordenamento jurídico (e nos ordenamentos em
geral) diversas disposições legais, a partir das quais se pode apreender a idéia
da proibição de comportamentos contraditórios, atendidos alguns outros
requisitos.
Vimos, reiteradas vezes, que o venire contra factum proprium
consiste em um comportamento que viola o dever de portar-se conforme os
ditames da boa-fé. Vimos, em um segundo momento, que o venire se insere na
figura do abuso do direito. A boa-fé objetiva e o abuso do direito, portanto,
podem mostrar-se como pontos de partida para o exame do instituto em
estudo, mesmo porque ambos têm em seu favor a vantagem da positivação
expressa, como já vimos, estando a boa-fé prevista no artigo 422 e o abuso do
direito (também com menção à boa-fé) no artigo 187, ambos do Código Civil
brasileiro.
No entanto, é evidente que nenhuma dessas duas vinculações,
com o abuso do direito e com a boa-fé, tem precisão terminológica suficiente
para que, a partir delas, possam ser apontadas as características do venire. E é
fácil de se chegar à conclusão dessa insuficiência, uma vez que tanto a
302
conduta de boa-fé quanto o abuso do direito são expressões por demais
amplas, como já examinamos, que comportam diversas hipóteses, cada uma
delas com suas próprias e diversas características, e das quais o venire é
apenas uma.
Apesar de insuficiente, por si só, para a identificação do venire
contra factum proprium, é evidente que essa inserção do mesmo nos vastos
domínios da boa-fé (e apenas vamos nos referir a esta, uma vez que a violação
da boa-fé já se insere na figura do abuso do direito) já funciona como uma
primeira orientação para a nossa busca. Sabemos, a partir daí, que o venire
consiste em uma conduta que viola a boa-fé, ou seja, que infringe algum dos
deveres colaterais que da boa-fé decorrem. Resta-nos identificar qual é esse
dever, o que faremos logo em seguida.
Além disso, também sabemos que o venire, por definição,
consiste em um comportamento que se mostra contraditório com um outro
comportamento anterior, do mesmo sujeito. Nessas condições, é mais do que
evidente que a primeira exigência a ser apontada, de modo amplo, para que se
possa reconhecer a ocorrência do venire, é a existência de dois
comportamentos, de um mesmo sujeito, que entre si são contraditórios, de um
modo tal que essa contradição viola pelo menos um dos deveres acessórios
que decorrem da boa-fé.
Essa idéia inicial sobre o venire contra factum proprium, como
dissemos acima, pode ser apreendida a partir de várias disposições positivadas
no nosso ordenamento jurídico. Examinemos algumas dessas disposições,
antes de uma análise mais minuciosa e detalhada dos elementos que podem
caracterizar o venire, desde logo observando, no entanto, que nessas situações
expressamente retratadas pelo Código Civil o operador não poderá se valer da
figura do venire contra factum proprium, uma vez que existe disposição
303
normativa própria para a espécie, e em tais condições, como, de modo breve,
já vimos anteriormente, não faria qualquer sentido que se buscasse a solução
supletiva da figura do venire.
Portanto, faremos referência aos dispositivos legais apenas para
que, a partir deles, possamos tentar extrair os elementos necessários à
caracterização do venire contra factum proprium, mas nas situações neles
retratadas não se deverá recorrer a esse instituto. Essa questão do não uso da
figura do venire quando existe norma legal expressa para a questão, será vista
em detalhes logo adiante, no próximo subitem.
a) em relação à formação dos contratos, dispõe o artigo 427, do
Código Civil, que a proposta vincula o proponente, salvo natureza ou
circunstâncias especiais do negócio. No entanto, esclarece logo em seguida o
mesmo Diploma Civil, no artigo 428, IV, que não haverá essa vinculação
quando a proposta tiver sido enviada por correspondência e, antes dela, ou
pelo menos simultaneamente com ela, chegar ao conhecimento da outra parte
a retratação do proponente.
Duas situações distintas são enfocadas pelo Código Civil, como
se vê nos dois dispositivos legais supramencionados. Na primeira, o
destinatário da proposta já tomou conhecimento desta, e por isso não mais se
admite a retratação. Na segunda, no entanto, o destinatário ainda não havia
tomado ciência dos termos da proposta, e neste caso o proponente será
admitido a se retratar. O que essas duas situações têm em comum e o que têm
de diferente? Vejamos.
Em comum, ambas as disposições legais apresentam como
integrantes de seu conteúdo dois comportamentos que se mostram
contraditórios entre si. Com efeito, nas duas situações enfocadas a norma legal
304
trata, em primeiro lugar, da proposta de contrato e, em segundo, da retratação
referente a essa mesma proposta. Ou seja, o primeiro comportamento do
sujeito, tratado pela norma, é a apresentação de uma oferta, tendo em vista a
celebração de um contrato; o segundo, contraditório em relação ao primeiro, é
exatamente o oposto deste. No entanto, em um dos casos o comportamento
contraditório é proibido, enquanto no outro é expressamente admitido, sendo
certo que essa diferença de soluções decorre da diferença entre as duas
situações, a ser vista em seguida.
A diferença é bastante simples de ser identificada. É que, no
primeiro caso, como o outro sujeito, destinatário da oferta, dela já tomou
conhecimento, já se formou, em seu íntimo, a expectativa de celebrar o
contrato, e portanto o legislador resolveu proibir o proponente de frustrar essa
mesma expectativa, legitimamente formada. No segundo, no entanto, a
proposta ainda não havia chegado ao conhecimento do destinatário, e por esta
razão ainda não havia surgido no mesmo a expectativa de celebrar o contrato,
e por isso o comportamento contraditório foi admitido, eis que nenhuma
expectativa será por ele frustrada.
E essa conclusão pode ser ainda reforçada se observarmos que,
mesmo nos casos em que a proposta já havia chegado ao conhecimento do
destinatário, ainda assim poderá ser admitido o comportamento contraditório
do proponente, consistente na retratação, desde que a oferta tenha sido
formulada em termos ou em circunstâncias tais que não permitam o
surgimento da expectativa em relação ao destinatário (art. 427, 2ª parte). Seria
o caso, por exemplo, da proposta formulada de modo condicional ou com a
ressalva de que ainda dependeria de uma confirmação da existência em
estoque ou de algum outro fator, mas sempre de modo a deixar claro que o
proponente ainda não estava definitivamente vinculado aos seus termos.
305
Esse primeiro dispositivo observado mostra, de modo muito
claro, um aspecto relevantíssimo no estudo do venire contra factum proprium,
ao qual já havíamos nos referido, que é o fato de que nem toda incoerência ou
contradição de comportamentos é proibida, mas tão-somente se proíbe aquela
capaz de repercutir na esfera jurídica alheia, mediante a frustração das
expectativas legitimamente geradas. Essa abordagem será aprofundada por
ocasião do exame dos elementos caracterizadores do venire, no subitem
próximo.
E, ainda mais, pode-se desde logo também apontar que, mesmo
em relação aos comportamentos que se mostram capazes de repercussão na
esfera jurídica alheia, criando expectativas acerca do desfecho de um negócio
jurídico, ainda assim nem toda contradição é rejeitada pelo ordenamento
jurídico, vale dizer, nem todo comportamento contraditório será caracterizado
como venire inadmissível.
Tomemos, para mais fácil análise, o seguinte exemplo: uma
pessoa, mediante testamento público, nomeou A e B como seus herdeiros.
Veja-se que a disposição testamentária, se vier a ser cumprida, repercutirá na
esfera jurídica dos herdeiros testamentários. Além disso, em se tratando de
testamento público, A e B logo tomaram conhecimento de tais disposições, e
por isso ambos têm a expectativa de receber uma quota do patrimônio, quando
vier a ser aberta a sucessão do de cujus. Apesar disso, o testador, a qualquer
instante, poderá mudar de idéia e revogar todas as disposições patrimoniais
contidas em seu testamento anterior, para isso bastando que elabore um novo
testamento, nos termos do artigo 1.969, do Código Civil.
Nesse caso, como se vê, houve um primeiro comportamento (a
nomeação dos herdeiros testamentários) que veio a ser contraditado pelo
segundo (o desfazimento dessa mesma nomeação), afetando a esfera jurídica
306
alheia e frustrando as expectativas dos possíveis herdeiros, que subitamente
deixaram de sê-lo, em virtude da revogação do testamento. E apesar disso
tudo, a lei expressamente permite essa contradição, que em hipótese nenhuma
poderá ser caracterizada como venire contra factum proprium.
O problema, como veremos adiante (veja-se, infra, o item
2.3.2.2), é que se assim não fosse, vale dizer, se não houvesse a tolerância em
relação a determinadas contradições, todo o comportamento humano posterior,
em relação a um certo negócio jurídico, seria desde logo previsível, ou seja,
após ter sido adotado um primeiro comportamento, os demais já poderiam ser
previamente descritos, caso não se admitisse a hipótese de contradição
alguma. E a permissão normativa para a atuação humana se esgotaria logo na
primeira conduta, pois as demais apenas se apresentariam como uma simples e
previsível conseqüência da mesma.
Na realidade, o legislador sopesa os elementos envolvidos na
situação específica de comportamentos contraditórios, e em alguns casos
conclui que permitir a contradição é menos nocivo à harmonia do sistema
jurídico do que proibi-la. Em outras situações, no entanto, considerados os
elementos e os valores envolvidos na situação concreta, o legislador decide
proibi-la. Aproveitemos esse mesmo exemplo do testamento para tratarmos
dessa segunda hipótese, ou seja, quando o legislador, em virtude dos valores e
dos elementos do caso concreto, opta por proibir a contradição entre as
condutas.
Suponha-se que, no mesmo testamento onde A e B foram
nomeados como herdeiros, o testador também reconheceu C como sendo seu
filho, havido fora do casamento. Em relação ao reconhecimento do filho,
como se sabe, o testamento não poderá ser revogado, tendo o nosso Código
Civil cuidado de proibi-lo até mesmo em dois dispositivos diferentes, como se
307
vê nos artigos 1.609 e 1.610. Veja-se, portanto, que em relação ao mesmo
negócio jurídico, uma parte admite a contradição, ou seja, a nomeação dos
herdeiros pelo testador, enquanto a outra, a que se refere ao reconhecimento
da filiação, não a admite.
Nessas condições, é fácil de se perceber que a diferença entre as
soluções passa pelos valores envolvidos em cada uma das situações. No
primeiro caso, de um lado tem-se a autonomia da vontade do testador e, do
outro, as atribuições patrimoniais por ele feitas, e o legislador optou por
preservar a autonomia da vontade, por isso que, mesmo depois de ter sido feita
uma primeira atribuição, poderá o testador, a qualquer tempo, optar por
modificá-la, não precisando de qualquer justificação para fazê-lo, sendo
suficiente a sua vontade livre.
Na segunda hipótese, contudo, embora de um lado esteja presente
a autonomia da vontade (no sentido de que o testador poderia não ter feito o
reconhecimento do filho no testamento, e optou livremente por fazê-lo), do
outro está um valor maior, que em última análise é o da própria dignidade da
pessoa humana, que envolve o direito à filiação, ao reconhecimento de sua
origem familiar. Assim, ponderados tais valores em conflito, adequadamente
concluiu o legislador que a dignidade do filho reconhecido não poderia ficar
flutuando ao sabor das mudanças de humor do testador, e por isso vetou a
possibilidade da contradição.
Além do mais, não se pode deixar de mencionar que, no caso do
reconhecimento do filho, ao contrário do que ocorre quanto à atribuição de um
quinhão hereditário ao herdeiro testamentário, o que se está fazendo é o
reconhecimento de que um fato efetivamente ocorreu. Ora, em relação à
veracidade de um fato, é possível apenas uma escolha binomial: ou o fato é
verdadeiro, ou o fato não é verdadeiro. Assim, a partir do momento em que o
308
testador disse que o fato é verdadeiro, não mais será admitido a se desdizer,
sem qualquer justificativa.
Essas questões, como já mencionamos acima, serão discutidas em
maiores detalhes no item seguinte, mas desde logo já servem para antecipar as
enormes dificuldades que se tem em obter uma conceituação precisa para o
venire contra factum proprium, uma vez que as particularidades de cada
hipótese concreta conduzem a soluções diferentes para situações que, a uma
primeira vista, apresentam os mesmos elementos formadores.
b) no Direito de Família, ao tratar da separação judicial litigiosa,
dispõe o artigo 1.572, do Código Civil, que qualquer dos cônjuges poderá
propor a respectiva ação, imputando ao outro qualquer ato que importe grave
violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum.
Assim, por exemplo, no caso de adultério (art. 1.573, I), o cônjuge inocente
pode, imediatamente, repudiar a vida em comum com o outro e propor a ação
mencionada.
No entanto, da simples leitura do artigo 1.572 se verifica que o
elemento fundamental, para que seja possível a obtenção da separação judicial
litigiosa, é que a vida em comum tenha se tornado insuportável, o que vem a
ser ratificado no parágrafo único do artigo 1.573, que permite ao juiz o
acolhimento de outros fatos, não previstos expressamente na lei, mas que
tornem evidente a impossibilidade da vida em comum. Logo, contrario sensu
da disposição legal comentada, se a vida em comum não se tornou
insuportável, não deverá ser deferido o pedido de separação judicial litigiosa.
Dessa forma, suponha-se que, mesmo após a descoberta do
adultério, o outro cônjuge resolveu continuar a conviver com o adúltero. Se,
algum tempo depois, o cônjuge inocente decidir separar-se do adúltero, poderá
309
fazê-lo de modo consensual ou em virtude de alguma outra conduta culposa de
seu cônjuge, mas não em virtude daquele adultério, cuja descoberta não
impediu que ambos continuassem a vida em comum, ou seja, não a
impossibilitou.
Veja-se que, no fundo, o que o legislador fez foi proibir que o
cônjuge inocente adotasse comportamento contraditório. Com efeito, se após
ter descoberto o adultério (ou qualquer outra grave violação dos deveres do
casamento) o primeiro comportamento do cônjuge foi uma abstenção, ou seja,
absteve-se de tomar qualquer providência para a ruptura litigiosa da sociedade
conjugal, não lhe será permitido que, posteriormente, venha a adotar um
segundo comportamento, contraditório em relação ao primeiro, que seria a
propositura da ação de separação judicial, mesmo porque a primeira abstenção
fez surgir no cônjuge infrator a expectativa de que seria possível, apesar da
descoberta de sua infração, a continuidade da vida conjugal.
O mesmo desenvolvimento, feito nos parágrafos anteriores,
poderia ser apresentado também para a anulação do casamento em virtude de
erro essencial de um dos cônjuges, ao consentir, sobre a pessoa do outro (arts.
1.556 e 1.557). Com efeito, nos diversos incisos do artigo 1.557 encontra-se
muito clara a idéia de que não basta o erro sobre a pessoa do cônjuge, sendo
ainda indispensável que em virtude da descoberta do mesmo a vida em
comum se torne insuportável.
Logo, se após a descoberta do erro o cônjuge enganado continua a
coabitar com o outro (salvo nos casos de doença física ou mental), esse seu
primeiro comportamento, tolerando a convivência em comum, não lhe
permitirá que, posteriormente, venha a ajuizar a ação de anulação do
casamento em virtude desse mesmo erro, uma vez que esse segundo
310
comportamento se apresenta como sendo claramente contraditório, em relação
ao primeiro.
Aproveitam-se os dispositivos acima mencionados para observar,
como será exposto de modo mais minucioso algumas linhas à frente, que os
comportamentos contraditórios podem ser omissivos ou comissivos, ou seja,
tanto o primeiro quanto o segundo dos comportamentos podem consistir em
uma ação ou em uma omissão, um fazer ou um não fazer, sendo tal aspecto
irrelevante para a caracterização do venire, desde que fique clara a
contradição, além dos outros elementos que serão examinados.
c) ao estabelecer as disposições gerais acerca dos negócios
jurídicos, dispõe o Código Civil, no artigo 111, que o silêncio implicará em
anuência quando as circunstâncias ou os usos autorizarem que assim se
entenda, e não for necessária a declaração de vontade expressa. O silêncio que
autoriza a que se entenda que o mesmo implica em uma declaração de
vontade, ou seja, implica em anuência, é o chamado silêncio qualificado (pelas
circunstâncias especiais).
Logo, não é qualquer silêncio, diante de uma declaração de
vontade, que implicará em concordância com essa mesma declaração. Assim,
por exemplo, se A apresenta a B uma proposta de contratar, se este último
nada responder, seu silêncio não poderá ser compreendido como sendo uma
aceitação da proposta que lhe foi dirigida.
Essa situação, há até poucos anos, era muito comum entre nós:
algumas empresas, notadamente administradoras de cartões de crédito,
enviavam seus produtos com a observação de que, caso o destinatário não os
desejasse, deveria telefonar para um determinado número e informar que não
tinha a intenção de contratar. Caso o destinatário não se manifestasse, a
311
empresa considerava o contrato perfeito, e passava a enviar as faturas ao
“cliente”314. Na realidade, essa falta de manifestação do cliente, esse silêncio,
não pode ser interpretada como concordância com o aperfeiçoamento do
contrato.
Em circunstâncias especiais, aí sim é que o silêncio poderá ser
entendido como manifestação da vontade. Seria o caso, por exemplo, de dois
sujeitos que já mantêm entre si um longo histórico negocial, da seguinte
forma: um deles, sendo fabricante de enfeites natalinos, todos os anos, em
meados de outubro, independentemente de pedido, envia para o outro, que é
comerciante, um lote com diversos enfeites. O comerciante recebe esses
enfeites, coloca-os à venda em sua loja e, no final do mês de dezembro, envia
ao fabricante o pagamento referente aos mesmos. Esse negócio, com essas
mesmas condições, já se repete há vários anos.
Em um certo ano, contudo, o comerciante decidiu mudar de ramo,
passando a vender outros produtos, e não mais pretende comercializar enfeites
de natal em sua loja. Em meados de outubro, no entanto, o fabricante, sem
saber do que estava acontecendo, envia para o outro, como vem fazendo há
vários anos, os enfeites. O comerciante, ao recebê-los, não se manifesta, não
dizendo que os aceita e nem que os rejeita. Neste caso específico, o silêncio do
comerciante implicará em anuência com o negócio, que se aperfeiçoará com
essa declaração silenciosa da vontade.
A diferença entre as duas hipóteses, por óbvio, reside no fato de
que, na primeira, não havia qualquer razão para que a administradora de
cartões de crédito pudesse criar a expectativa de que o contrato seria
efetivamente celebrado, e por isso o silêncio não pôde ser entendido como
314
Essa prática, ao que parece, hoje foi abandonada, pois formou-se de modo unânime a opinião acerca
de sua abusividade.
312
sendo concordância com a proposta. Na segunda, no entanto, o histórico dos
negócios que vinham se repetindo há longo tempo entre as partes fez com que
o silêncio do comerciante fosse interpretado pelo fabricante como sendo uma
declaração da vontade, e por isso criou nesse fabricante a legítima expectativa
de que o negócio, como ocorria todos os anos, estava aperfeiçoado.
Em outras palavras, em uma das situações o silêncio de um dos
sujeitos (aqui entendido como falta de rejeição explícita) não serviu para a
criação de qualquer expectativa, em relação ao outro, e por isso, se esse
silêncio vier a ser posteriormente rompido (mediante a rejeição explícita do
aperfeiçoamento do contrato), esse comportamento contraditório não estará
violando qualquer expectativa, e por isso será tolerado. Na outra situação,
contudo, esse mesmo silêncio (falta de rejeição explícita) fez com que
surgisse, no espírito do outro envolvido, a certeza de que o contrato estaria
firmado, sendo que a rejeição posterior estaria quebrando essa certeza sobre o
aperfeiçoamento da avença, e por isso não será permitida, por se constituir
essa contradição em exercício do direito de um modo que não se admite.
Hipótese interessante, positivada em nosso ordenamento apenas a
partir da vigência do atual Código Civil, e que engloba o silêncio nas duas
situações acima examinadas, ou seja, sem que possa ser considerado como
manifestação da vontade e podendo ser feita tal consideração, é a que se refere
à assunção de dívida.
Com efeito, em relação ao instituto da assunção de dívida, para
que a mesma se aperfeiçoe, conforme exigência que é apresentada de modo
explícito, no artigo 299, do Código Civil, é indispensável o consentimento
expresso do credor. Logo, se é exigida a declaração de vontade expressa do
credor, é evidente que se deve concluir que o silêncio deste, ao ser notificado
313
para dizer se concorda com a transferência da dívida para um outro devedor,
não pode ser interpretado como anuência.
Essa conclusão, mencionada no parágrafo anterior, e que já
poderia ser obtida a partir do artigo 111, que como vimos afasta a
possibilidade de se interpretar o silêncio como concordância, nos casos em
que a lei exige manifestação expressa da vontade, foi ainda repetida no
parágrafo único, do artigo 299, que de modo claro estabeleceu que, caso o
credor venha a ser notificado pelo devedor, ou pelo que pretende assumir o
lugar deste, para dizer se concorda ou não com a assunção, o silêncio deverá
ser interpretado como recusa.
Em outras palavras, se o credor simplesmente não se manifestar
acerca da notificação, isso não o impedirá de, mais tarde, alegar que a
transferência da dívida é ineficaz, em relação a ele, credor, uma vez que não
manifestou o seu assentimento em relação à mesma. Isto acontece porque o
simples envio da notificação, sem qualquer indicação sobre qual poderá ser a
resposta do credor, não permite aos notificantes que venham a concluir pela
possibilidade de que tal concordância seja dada, ou seja, não permite que se
crie a expectativa do aperfeiçoamento da transferência da dívida para o novo
devedor.
Logo, se a qualquer momento o credor vier a romper o seu
silêncio, manifestando-se expressamente pela rejeição da assunção, não se
poderá apontar, aí, o comportamento contraditório (silêncio-manifestação)
capaz de caracterizar o venire contra factum proprium, uma vez que não
houve a frustração de qualquer expectativa gerada no outro sujeito.
No entanto, nessa mesma hipótese de assunção de dívida,
suponha-se que esta se encontra garantida pela hipoteca que recai sobre um
imóvel do devedor, e que esse sujeito que pretende assumir a dívida e passar a
314
ser o novo devedor é o comprador desse imóvel hipotecado. Nesta situação, o
adquirente notifica o credor sobre a assunção, para que diga se concorda ou
não com a mesma. Neste caso, contudo, diferentemente do anterior, o silêncio
do credor, caso este não se manifeste em 30 dias, implicará em concordância
do mesmo com a transferência do débito (art. 303).
A diferença, entre essas duas variantes da assunção de dívida, é
que no primeiro caso a pessoa do devedor é essencial para o cumprimento da
obrigação, uma vez que, caso não haja o pagamento voluntário, será o
patrimônio do próprio devedor que irá servir para que o credor possa exigir o
pagamento forçado. Logo, a mudança da pessoa do devedor pode conduzir a
uma situação em que o novo devedor seja desprovido de patrimônio, o que vai
causar transtornos ao credor.
No segundo caso, no entanto, existe um bem imóvel que se
encontra vinculado ao cumprimento da obrigação, e por isso, em princípio, a
pessoa do devedor não fará muita diferença para tal cumprimento, uma vez
que o credor será preferencialmente satisfeito com a venda do bem oferecido
em garantia hipotecária, independentemente de quem seja o devedor ou de
quem seja o proprietário do imóvel.
Logo, nesse segundo caso, é bastante razoável que se suponha
que o credor não se oporá à transferência do débito, eis que a mesma em nada
o afetará, e por isso se mostra razoável que, com o silêncio do credor, surja no
adquirente do imóvel hipotecado a legítima expectativa no sentido de que esse
silêncio implica em concordância, e por isso não será permitido ao credor,
posteriormente, insurgir-se contra a assunção, uma vez que tal insurgência,
revelando-se contraditória com o silêncio inicial, estaria frustrando a legítima
expectativa do outro sujeito.
315
Dito de outra forma, e utilizando a terminologia acima
mencionada, pode-se dizer que, no segundo caso, ou seja, quando existe a
garantia hipotecária da dívida, o silêncio do credor estará qualificado pelas
circunstâncias especiais (precisamente a existência da garantia real), e por isso
poderá ser entendido como uma declaração de vontade, como um primeiro
comportamento. Na outra hipótese (quando não há a garantia), contudo, não é
isso o que acontece, ou seja, não há as circunstâncias especiais capazes de
adjetivar o silêncio e transformá-lo em declaração de vontade, e por isso não
se poderá entendê-lo como um fato próprio do credor.
d) situação recentemente positivada em nosso direito, e que serve
para um perfeito contraste entre os comportamentos contraditórios que se
caracterizam como venire contra factum proprium e os comportamentos
contraditórios que se constituem em descumprimento de determinação legal, é
a que diz respeito ao contrato de empreitada, mais especificamente no que se
refere ao aumento da obra sem que tenha havido instruções escritas do dono
da mesma.
No Código Civil de 1916, dispunha o artigo 1246 que, quando o
empreiteiro (arquiteto ou construtor) tivesse aceito a incumbência de executar
uma obra segundo o plano previamente ajustado com o dono da mesma, se
porventura esse mesmo empreiteiro viesse a alterar ou aumentar a obra
pactuada, em relação à planta, sem que para isso tivesse recebido instruções
escritas do outro contratante, não poderia reclamar qualquer complemento no
preço ajustado, ainda que em virtude de tais aumentos ou alterações viessem a
ser majorados os seus gastos com a obra e ainda mesmo que em virtude dessa
alteração a obra se tornasse mais valiosa.
316
Em outras palavras, na hipótese de eventual alteração da obra, em
relação ao plano ajustado anteriormente entre os contratantes, não se
permitiria ao empreiteiro pleitear qualquer pagamento a maior, além de
sujeitá-lo a ter a obra rejeitada, em virtude do descumprimento do contrato,
não lhe socorrendo o argumento de que, em virtude das alterações, a obra teria
ficado melhor, ou mais valiosa, ou mais útil, etc. Tão-somente interessava era
o fato de que a alteração não havia sido autorizada.
No entanto, o que nos casos concretos muitas vezes se verificava,
era que o dono da obra, embora ciente da efetivação das alterações, seja
porque lhe haviam sido comunicadas verbalmente, pelo empreiteiro, ou então
porque costumava acompanhar de perto os trabalhos, comparecendo
freqüentemente ao local, às mesmas não se opunha, uma vez que, de fato,
tornariam o resultado final melhor, mais agradável ou mais valioso do que
aquele que havia sido previamente ajustado.
Posteriormente, no entanto, quando o empreiteiro, por ter
efetuado maiores gastos do que os previstos inicialmente, em virtude das
alterações, ou por ter tido um maior trabalho, pleiteava um acréscimo no
pagamento, o dono da obra recusava-se a pagá-lo, sob a alegação de que não
havia autorizado por escrito a efetivação das alterações, e por essa razão não
estava obrigado ao pagamento de qualquer adicional ao valor inicialmente
convencionado.
Seria o caso, por exemplo, da construção de uma casa em um
amplo terreno, sendo que da planta constavam apenas quartos de dormir, nas
não suítes. O empreiteiro, considerando que havia muito terreno disponível, e
que o material já adquirido se mostrava suficiente, toma a iniciativa de
acrescentar um banheiro a dois dos quartos, transformando-os em suítes. O
dono da construção, que todos os dias visitava a mesma, tomou inequívoco
317
conhecimento da alteração, viu que havia quartos da casa sendo transformados
em suítes, mas nada disse sobre a modificação. Mais tarde, no entanto,
recusou-se a pagar qualquer valor adicional pela mesma, ao argumento de que
não a havia autorizado por escrito.
Veja-se que se tratava, claramente, de venire contra factum
proprium, por parte do dono da obra, conforme os elementos caracterizadores
dessa figura, que veremos logo adiante, no item seguinte: o primeiro
comportamento do dono da obra, o factum proprium, havia consistido em uma
omissão, ou seja, não se opusera a que o empreiteiro efetivasse alterações na
planta convencionada, apesar de ter plena ciência sobre as mesmas, e não o
fizera, obviamente, por serem do seu interesse, uma vez que a obra resultaria,
em virtude de tais alterações, mais valiosa, mais útil ou mais agradável. Essa
omissão levou o empreiteiro a acreditar que o outro contratante tinha interesse
em que as modificações fossem feitas, e por isso continuou a fazê-las, ainda
que não dispondo da autorização formal, por escrito, pois supunha que havia a
autorização tácita.
Mais tarde, no entanto, o segundo comportamento, o venire,
contrariava essa expectativa, pois o dono da obra, em relação ao qual o
empreiteiro acreditara que concordava e aceitava as modificações
introduzidas, simplesmente recusava-se a pagar por elas em virtude do não
atendimento a uma exigência formal, como se nelas não tivesse interesse
algum, em nítido exemplo de comportamento contraditório e inaceitável. Em
outras palavras, o primeiro comportamento fizera surgir uma justificada
expectativa no empreiteiro, em relação ao interesse que o dono da obra teria
em vê-la modificada para melhor, sendo que essa mesma expectativa veio a
ser frustrada pelo segundo dos comportamentos, que violava a conduta
imposta pela boa-fé.
318
O Código Civil de 2002, ao tratar desse mesmo tema, estabeleceu
no artigo 619, de modo semelhante ao que fazia o revogado Código, que não
terá direito a exigir qualquer acréscimo no preço o empreiteiro que, depois de
ter aceito a tarefa de executar uma obra conforme o plano aceito pelo dono da
mesma, venha a introduzir modificações no projeto original, a não ser que tais
alterações tenham resultado de instruções escritas, passadas pelo dono da obra.
Até aí, como se vê, exatamente igual ao que dispunha o Código Civil anterior.
No entanto, o parágrafo único desse mesmo artigo 619, trouxe o
acréscimo de regra que não constava do Diploma Civil antigo, e que teve
precisamente a finalidade de coibir essa atuação de má-fé, que violava a
legítima expectativa do empreiteiro. Com efeito, estabelece o parágrafo único,
do artigo 619, do Código Civil, que mesmo que não tenha havido a
autorização escrita, o dono da obra terá que pagar ao empreiteiro os aumentos
e acréscimos, conforme o que for arbitrado para o caso em questão, se se fez
sempre presente à obra, mediante continuadas visitas, e portanto não havia
como desconhecer as alterações efetuadas, e mesmo assim nunca protestou
contra as mesmas.
Como se vê, preocupou-se o legislador do novel Diploma Civil
em proibir especificamente que o dono da obra pudesse adotar o
comportamento contraditório acima mencionado e dele buscar obter
vantagens, ou seja, uma omissão capaz de gerar legítima expectativa no
empreiteiro, seguida de uma recusa quanto ao pagamento dos acréscimos
decorrentes das alterações feitas na obra.
E é importante realçar que, na verdade, a lei adotou como
parâmetro, tão-somente, a conduta do dono da obra em si mesma, sem se
preocupar com outras considerações como a valorização da obra, se a mesma
se tornou mais bonita, mais agradável, se o dono gostou do resultado final, etc.
319
O que interessa, tão-somente, é se ele se omitiu, e se essa conduta omissiva foi
suficiente para provocar a legítima expectativa do empreiteiro, sendo tal
expectativa frustrada pela subseqüente recusa quanto ao pagamento. Se isso
ocorreu, quaisquer outras considerações se mostram completamente
desnecessárias.
Veja-se, portanto, que aqui se tem um claríssimo exemplo do
contraste acima mencionado: na vigência do Código Civil anterior, se a nítida
injustiça da situação levasse o juiz a decidir, em um caso concreto, que o dono
da obra teria que pagar pelo acréscimo, mesmo que não houvesse a
autorização escrita (e na verdade já era essa a posição da jurisprudência 315),
esse juiz não encontraria apoio em texto legal expresso, e por essa razão teria
que se valer da idéia de violação da conduta conforme os ditames da boa-fé,
vale dizer, teria que se valer, em última análise, do próprio instituto do venire
contra factum proprium.
Na vigência do Código Civil atual, contudo, esse suporte não
mais precisa ser buscado na figura do venire, pois o próprio texto legal já
cuidou, expressamente, de afirmar que a contradição comportamental é
proibida, e que por isso, caso ocorra, será repelida no caso concreto, uma vez
que o dono da obra dela não se poderá valer, tendo que pagar pelos acréscimos
ainda que não tenha manifestado por escrito a sua concordância ou a sua
autorização, mas simplesmente porque se omitiu e com isso gerou legítima
expectativa na outra parte contratante. Não haveria qualquer sentido, portanto,
315
DIREITOS CIVIL E ECONÔMICO. CONTRATO DE EMPREITADA. SUBEMPREITADA.
ALTERAÇÃO DO VALOR DO PREÇO. EXTRAORDINÁRIO. EXECUÇÃO À VISTA DO
SUBEMPREITEIRO QUE INCLUSIVE FISCALIZOU E ACOMPANHOU A OBRA. AUTORIZAÇÃO
TÁCITA. VALIDADE. INTERPRETAÇÃO AO ART. 1.246 DO CÓDIGO CIVIL. DOUTRINA.
RECURSO DESACOLHIDO. Interpretando o art. 1.246 do Código Civil, a doutrina acolhe a tese de que, se
o serviço extraordinário foi executado às claras, inclusive sob a supervisão de prepostos da subempreiteira,
tem-se como pertinente a cobrança dos seus valores, independentemente de autorização por escrito. STJ,
REsp 103715/MG, 4ª. Turma, Ac. unânime. Re l. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. J. 05.10.1999. DJ
288.02.2000, p. 84.
320
na presença desse texto legal expresso, que o juiz buscasse socorro na figura
mais instável e menos precisa da boa-fé.
e) uma última situação, embora não versando diretamente sobre
comportamentos contraditórios proibidos (muito pelo contrário, trata-se de
hipótese na qual a contradição é expressamente admitida), servirá para que
possamos extrair mais algumas observações sobre os elementos que
caracterizam o venire contra factum proprium. Trata-se do instituto da lesão,
defeito do negócio jurídico previsto no artigo 157, do nosso atual Código
Civil, e que se concretiza quando uma pessoa, em virtude de premente
necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente
desproporcional à contraprestação que irá receber.
Concretizada a lesão, a conseqüência, da mesma forma que
ocorre em relação a todos os demais vícios da vontade, é a anulabilidade do
negócio, cuja anulação poderá ser requerida pela parte prejudicada, ou seja,
pela parte que, em virtude de sua situação difícil, concordou em receber
prestação muito inferior à que irá cumprir em favor do outro sujeito. Veja-se,
portanto, que o próprio sujeito que celebrou o negócio mais adiante poderá
requere-lhe a anulação, o que sem sombra de dúvida caracteriza a contradição
entre os dois comportamentos, o primeiro consistente na celebração do
negócio, e o segundo, no pedido de anulação do mesmo.
Suponha-se, por exemplo, que uma pessoa, cujo filho se encontra
gravemente enfermo, necessitando de um tratamento médico urgente,
inclusive com uma delicada e cara intervenção cirúrgica, possui um imóvel
avaliado em R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais). Essa pessoa, para poder
custear o tratamento de saúde do filho que se encontra enfermo, oferece o
321
imóvel à venda, solicitando pelo mesmo o preço da avaliação, ou seja, um
milhão de reais.
Ocorre que, como se sabe, não é muito fácil e nem muito rápido
que se consegue vender um imóvel de tão grande valor. Assim, passado um
mês, o imóvel ainda não foi vendido. O pai e proprietário, preocupado com o
estado de saúde do filho, que estava se agravando, reduz o preço para
novecentos mil reais, mas ainda assim, mais um mês se passa e o imóvel não é
vendido, enquanto mais e mais se deteriora a saúde do filho. E, assim, o preço
vai sendo reduzido mas o imóvel não consegue ser vendido.
Decorridos seis meses, o preço já tendo sido reduzido para
quinhentos mil reais, o imóvel continua em mãos do desesperado pai, que é
então informado pelo médico que a situação do filho, em breve, será
irreversível. O pai, então, oferece o imóvel à venda por cem mil reais, valor
suficiente para que seja pago todo o tratamento de saúde do seu filho, embora
muito abaixo do valor real do imóvel.
Depois dessa redução para apenas dez por cento do valor real, o
imóvel vem a ser rapidamente vendido, permitindo ao pai, finalmente, o
custeio do tratamento de saúde que poderia salvar a vida do filho. Eis aí a
lesão, onde a prestação que um dos sujeitos vai cumprir, qual seja, a entrega
do imóvel, é manifestamente desproporcional à contraprestação que irá
receber, pois enquanto entregará um bem cujo valor é de um milhão de reais,
apenas receberá, como contraprestação, o preço de cem mil reais. Esse vício
da lesão permite que o vendedor, futuramente, venha a buscar o desfazimento
do negócio, em virtude de sua anulabilidade.
No entanto, é fácil de identificar, no caso, a existência de dois
comportamentos contraditórios, adotados pelo mesmo sujeito. No primeiro
deles, o próprio vendedor tomou a iniciativa de oferecer seu bem à venda pelo
322
preço de cem mil reais. No segundo comportamento, no entanto, depois de já
estar aperfeiçoado o contrato de compra e venda, o próprio vendedor toma a
iniciativa de requerer-lhe a decretação da invalidade, por haver enorme
desproporção entre as duas prestações principais. Só que, na hipótese, esse
caso de comportamentos contraditórios é expressamente previsto pela lei, que
permite seja pedida a decretação da anulação (Código Civil, artigo 171, II).
O motivo dessa permissão de comportamentos incompatíveis
entre si, como facilmente se conclui, é que no caso existe uma justificativa
para a contradição, decorrente do fato de que, no primeiro desses
comportamentos, a vontade do sujeito não foi perfeita, mas viciada pelo vício
da lesão. O que se buscará demonstrar, portanto, ao ser requerida a anulação
do negócio, é precisamente esse fato de que a primeira atuação do sujeito não
deve ser considerada, pois contém vício que permite pleitear-lhe a decretação
da invalidade. Ora, uma vez sendo invalidado o primeiro comportamento, não
haverá o fato próprio, ou seja, o segundo comportamento não será
contraditório a coisa alguma, eis que o primeiro foi retirado do mundo
jurídico.
Na realidade, embora o exemplo acima tenha sido referente,
especificamente, ao vício da lesão, de modo mais amplo pode-se apontar que
será admitido o comportamento contraditório sempre que no primeiro dos
comportamentos a vontade do sujeito tiver sido afetada por um dos vícios da
vontade. Assim, por exemplo, na hipótese da assunção de dívida, examinada
na alínea anterior, ainda que o credor tivesse concordado expressamente com a
mesma, poderia posteriormente impugná-la, não ficando livre o antigo
devedor, se este, ao tempo da assunção, era insolvente e o credor o ignorava.
No caso, como se vê, o primeiro comportamento do credor, a concordância
com a assunção, teria sido viciado pela ocorrência do erro ou ignorância, e por
323
isso esse credor poderia, futuramente, impugnar a liberação do devedor antigo,
ainda que tivesse expressamente concordado com a substituição dele pelo
novo devedor.
Ainda de modo semelhante, o artigo 814 do Código Civil
estabelece que as dívidas de jogo não obrigam o pagamento, mas também
dispõe que não se pode recobrar a quantia voluntariamente paga, salvo se foi
ganha por dolo ou se o que perdeu e pagou é menor ou interdito. Assim, a
dívida de jogo é inexigível, mas se foi voluntariamente paga (primeiro
comportamento), não pode o que pagou pleitear a devolução (segundo
comportamento), face à evidente e incontornável contradição entre essas duas
atuações do perdente. No entanto, a existência do dolo (vício da vontade) na
formação da dívida justificaria esse comportamento contraditório.
Aproveitemos o exemplo acima, referente ao pagamento de
dívida de jogo, para ampliarmos ainda um pouco mais a nossa abordagem. É
que o referido artigo 814, na realidade, não faz exceção apenas no caso do
dolo, mas também na hipótese de ser incapaz (menor ou interdito) o que
perdeu e pagou. Como se vê, portanto, tem-se aí, de modo mais amplo, uma
causa de invalidade do primeiro comportamento, o que engloba, é evidente,
também os casos de vício da vontade. Dito, portanto, de modo mais amplo,
podemos afirmar que, em regra, quando ocorrer uma causa de invalidade, em
relação ao primeiro dos comportamentos do sujeito, estará justificada a
contradição, e havendo tal justificativa, é de clareza solar que não se poderá
falar em venire contra factum proprium.
No entanto, desde logo se adiante que, em certos casos, mesmo a
invalidade do primeiro comportamento não será capaz de afastar a
configuração do venire contra factum proprium, como teremos a oportunidade
de examinar mais à frente.
324
A partir dessa primeira abordagem, ainda que de situações
específicas e delimitadas, já puderam ser colhidos – e poderão ser
generalizados – alguns caracteres dos elementos que devem estar presente
para que se possa aferir a presença do venire contra factum proprium, e a
partir de tal constatação podemos agora partir para a análise individualizada e
mais pormenorizada de cada um dos três elementos essenciais que integram o
instituto, ou seja, seccionando-o quanto aos comportamentos, quanto à
contradição em si mesma, e quanto ao dever acessório que está sendo violado.
Comecemos pela análise dos comportamentos.
2.3.2.1. Os comportamentos contraditórios.
a) validade de cada comportamento, individualmente considerado.
Aponte-se,
desde
logo,
que
no venire,
cada
um
dos
comportamentos, quando individualmente considerado, mostra-se válido,
mesmo porque, se não o fosse, não estaríamos na seara do venire contra
factum proprium, mas no puro e simples campo da ilegalidade. O que vem a
se mostrar ilícito, portanto, não é o considerar isolado de qualquer dos dois
comportamentos, mas a conduta do sujeito considerada de modo global, ou
seja, a conduta considerada como o conjunto dos dois comportamentos
mencionados.
Assim, por exemplo, suponha-se que em sua primeira atuação, o
sujeito gerou no outro a expectativa de que lhe venderia um determinado bem,
sendo que, posteriormente, um segundo comportamento desse mesmo sujeito
frustrou essa expectativa que havia sido gerada. Parecem estar presentes, no
325
caso, as características do venire contra factum proprium. No entanto,
suponha-se que esse bem, em relação ao qual surgiu a expectativa da venda,
era um bem público ou pertencente a um terceiro. Nesse caso, não se tratará de
venire, mas sim de um ato ilegal, inválido em si mesmo, sendo desnecessário
que se considere a conduta global para que seja aferida essa ilegalidade.
Interessantes hipóteses concretas, que surgiram e surgem com
grande freqüência em nossos tribunais, e que se enquadram na situação acima
descrita, ou seja, aquela na qual o primeiro comportamento é inválido em si
mesmo, são as que se relacionam com a fiança locatícia e com o oferecimento
do bem imóvel em garantia real hipotecária, e a possibilidade de ser
posteriormente penhorado o imóvel que se constitui em bem de família.
Vejamos essas duas hipóteses.
A Lei nº 8.009/90, ao dispor sobre o bem de família legal,
estabeleceu como regra central a impenhorabilidade do mesmo. No entanto,
essa mesma regra legal cuidou de apresentar, em seu artigo 3º, algumas
dívidas capazes de excepcionar a impenhorabilidade, ou seja, dívidas para
cujo atendimento se mostra permitida a penhora do imóvel, ainda que se trate
de bem de família. Dentre tais exceções, a Lei 8.009/90 incluiu a hipótese de
execução da hipoteca quando o imóvel tivesse sido oferecido como garantia
real pelo próprio casal ou entidade familiar (art. 3º, V), e a Lei nº 8.245/91,
posteriormente, introduziu a exceção referente às obrigações decorrentes de
fiança locatícia (art. 3º, VII).
Suponha-se, portanto, que em um caso concreto, aquele que se
ofereceu como fiador, em um contrato de locação, veio a ter seu único imóvel
residencial (e, portanto, bem de família) penhorado. Ou, então, que o devedor,
tendo oferecido seu único imóvel como garantia real, ao deixar de cumprir a
prestação a que se comprometera, vem a ter esse mesmo imóvel penhorado. O
326
fiador (ou o devedor), em tais condições, deduz embargos de terceiro, esteado
no argumento de que aquele imóvel, por sua qualidade (bem de família), não
pode ser atingido pela apreensão judicial, nos termos do Código de Processo
Civil, art. 1.046, § 2º.
À primeira vista, aparentam estar presentes os elementos que
caracterizam o venire contra factum proprium, ou seja, a existência de dois
comportamentos que se mostram contraditórios entre si, e sendo que o
segundo tem força suficiente para frustrar a expectativa que havia sido criada
pelo primeiro, no sentido de que o bem imóvel em questão poderia ser
utilizado como garantia patrimonial para o pagamento da dívida.
No entanto, de venire não se trata, uma vez que se esbarra no
primeiro dos requisitos, ora em exame, ou seja, não se tem um comportamento
inicial válido, eis que o imóvel que se constitui em bem de família não poderia
ter sido oferecido como garantia real hipotecária, ainda que com tal oferta
tivesse inicialmente concordado o casal ou entidade familiar. Com efeito, após
muita celeuma surgida entre os doutrinadores e mesmo nos tribunais, vieram
as Cortes Superiores a decidir que não é possível a renúncia à garantia de
impenhorabilidade do bem de família, uma vez que o direito à moradia se
constitui em direito fundamental (Constituição Federal, art. 6º), e por isso não
pode ser objeto de renúncia 316.
316
PROCESSUAL CIVIL - EMBARGOS À EXECUÇÃO - COISA JULGADA - TERCEIRO - INEXISTÊNCIA
- ART. 472 CPC - FIANÇA - OUTORGA UXÓRIA - AUSÊNCIA - INEFICÁCIA TOTAL DO ATO FIADOR. BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE. ART. 3º, VII, DA LEI Nº 8.009/90. NÃO
RECEPÇÃO.
I - A coisa julgada incidente sobre o processo de conhecimento e conseqüente embargos opostos por um
cônjuge não pode atingir o outro, quando este não tiver sido parte naqueles processos. (art. 472, do Código de
Processo Civil).
II - A ausência de consentimento da esposa em fiança prestada pelo marido invalida o ato por inteiro. Nula a
garantia, portanto. Certo, ainda, que não se pode limitar o efeito dessa nulidade apenas à meação da mulher.
III - Com respaldo em recente julgado proferido pelo Pretório Excelso, é impenhorável bem de família
pertencente a fiador em contrato de locação, porquanto o art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/90 não foi recepcionado
pelo art. 6º da Constituição Federal (redação dada pela Emenda Constitucional nº 26/2000).
Recurso provido.
327
Ressalte-se, contudo, antes de prosseguirmos, que será possível a
caracterização do venire contra factum proprium, mesmo na hipótese de ter
sido inválido o primeiro negócio jurídico, quando essa invalidade decorre de
vício formal do negócio, mas não tendo havido dolo das partes envolvidas e
nem tendo sido afetada a vontade que cada um declarou para a celebração de
tal negócio. Esta hipótese será retomada adiante, ao tratarmos das situações
onde o sujeito que se comportou de modo contraditório não havia ficado
vinculado em função do seu primeiro comportamento.
b) cada comportamento deve ser uma atuação jurídica, e não simples ato
material.
Além disso, ou seja, além da exigência de validade individual de
cada um dos dois comportamentos, tem-se ainda que cada um deles deve se
constituir em uma atuação jurídica, vale dizer, deve ser capaz de repercutir na
esfera jurídica de alguém, não podendo se falar em venire contra factum
proprium quando se tem a contradição ocorrendo tão-somente entre atos
materiais. Tomemos um exemplo banal, mas que com extrema facilidade
servirá para a demonstração do que acabamos de afirmar. Um transeunte
decide atravessar uma rua. Chegando ao outro lado, no entanto, muda de idéia
e decide atravessar de volta, retornando para o ponto de onde havia saído.
É evidente, em tal exemplo, que se pode apontar a existência de
contradição entre os dois comportamentos adotados pelo transeunte, ou seja, o
atravessar da rua em um sentido e, logo em seguida, no outro. No entanto, não
se consegue vislumbrar, em cada um dos atos praticados, qualquer eficácia
jurídica, e por esse motivo essa contradição se mostra juridicamente
328
irrelevante. Ora, se a contradição não tiver interesse jurídico, é evidente que
não se poderá falar na ocorrência do venire.
Deve-se tomar cuidado, no entanto, com as palavras usadas para a
descrição dessa característica acima enunciada. Com efeito, parece-nos
equivocado o ensinamento de Anderson Schreiber 317, quando sustenta que o
factum proprium não precisa ser “juridicamente relevante”, podendo se
apresentar como um fato “inapto a produzir quaisquer efeitos jurídicos”, ou
seja, um fato que “na maior parte dos casos... é absolutamente desconsiderado
pelo direito positivo”. Em conclusão, diz o ilustre autor, não se exige do
factum proprium que seja juridicamente relevante, mas sim que possa
“repercutir na esfera alheia, gerando legítima confiança”, eis que “não se
pode aceitar como factum proprium aquela conduta que não seja capaz de
repercutir sobre outras pessoas”.
Ora, mas a partir do momento em que o comportamento do
sujeito repercute na esfera alheia, passou a ser juridicamente relevante, ou
seja, passou a ser um fato jurídico, capaz de provocar conseqüências jurídicas
relevantes. Não é demais recordar a clássica lição de Miguel Reale 318, que ao
falar sobre o fato jurídico esclarece que se trata daquele que se trata de todo e
qualquer fato da vida social que venha a corresponder ao modelo de
comportamento previsto na norma de direito, ou seja, é o fato capaz de
provocar conseqüências jurídicas. Logo, se o factum proprium é aquele que
repercute na esfera jurídica alheia, então provoca conseqüências jurídicas, ou
seja, é um fato jurídico, é juridicamente relevante.
Na verdade, no essencial não há qualquer distinção entre a
conclusão alcançada por Anderson Schreiber e a que foi por nós mencionada,
317
Anderson Schreiber, A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela da confiança e venire
contra factum proprium, pp. 129-130.
318
Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, pp. 201-202.
329
poucas linhas acima: o factum proprium deverá, necessaria mente, repercutir
na esfera jurídica alheia. Apenas não nos parece adequado o caminho
percorrido pelo ilustre jurista para tentar explicar como teria chegado a tal
conclusão.
c) o segundo comportamento não pode ser descumprimento de vinculação
decorrente do primeiro.
Ainda em relação aos comportamentos, é necessário que o
segundo não corresponda à violação de uma obrigação decorrente do
primeiro319, ou seja, os dois comportamentos devem ser independentes, sendo
o segundo autônomo em relação ao primeiro. Dito em outras palavras, o
primeiro comportamento (o factum proprium), se isoladamente considerado,
não é vinculante, não vincula o sujeito a um específico e determinado
comportamento posterior. A vinculação surgirá apenas porque, no contexto da
situação, verificou-se o surgimento da confiança no segundo sujeito, e
proteção a esse confiança é que conduzirá à necessidade de que o segundo
comportamento se mostre coerente, rejeitando-se o que seja contraditório (o
venire).
Ora, se do primeiro comportamento já tivese decorrido para o
sujeito a obrigação de se comportar de uma determinada forma, e se tal
obrigação não fosse cumprida, o que se teria seria o inadimplemento de uma
relação obrigacional, e não o venire contra factum proprium, ou seja, o
problema estaria situado no campo do inadimplemento obrigacional, e não no
campo dos comportamentos regidos pela boa-fé.
319
No mesmo sentido a lição de Anderson Schreiber, A Proibição de Comportamento Contraditório –
Tutela da confiança e venire contra factum proprium, pp. 126-127.
330
Assim, por exemplo, suponha-se que A e B celebraram um
contrato de compra e venda, sendo A o vendedor. Desse primeiro
comportamento – a celebração do contrato – decorre uma obrigação, a ser
concretizada em um segundo comportamento, que será o de entregar a coisa
vendida ao comprador. Se A, contudo, no momento em que deveria entregar o
bem a B, não o fizer, é evidente que se terá aí um comportamento
contraditório, mas também o é que não se faz necessário o recurso à figura do
venire, uma vez que, na realidade, o que houve foi o descumprimento de uma
prestação obrigacional. E a solução será dada pela norma específica que trata
do inadimplemento das obrigações, não se deixando ao juiz qualquer campo
para que possa construir uma solução por meio do venire.
Na realidade, ao contrário do que afirma Menezes Cordeiro 320,
não é que em tal hipótese não ocorra o venire contra factum proprium, mas
sim que não há necessidade de se recorrer à figura do mesmo, uma vez que o
venire – como os demais institutos ligados à boa-fé –, como já vimos, tem
caráter apenas complementar, supletivo, atuando tão-somente quando não
existe solução legal específica para aquela situação. No entanto, não se pode
negar que estão presentes todos os elementos necessários à caracterização do
venire, ou seja, do primeiro comportamento (a celebração do contrato) surgiu
para o outro sujeito a legítima expectativa de que o segundo seria a entrega da
coisa, e essa expectativa foi injustificadamente frustrada.
Houve, portanto, a frustração da expectativa criada, e isso nada
mais é do que a violação de um dever lateral oriundo da boa-fé. Não é demais
observar que, quando o artigo 422, do Código Civil, impõe aos contratantes o
dever de observar, na execução do contrato, o princípio da boa-fé, não está se
referindo apenas aos deveres acessórios, mas também, como se mostra
320
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 746.
331
evidente, aos deveres centrais do contrato, mesmo porque é em função destes
últimos que aqueles devem ser observados. Logo, se o não cumprimento de
um dever acessório significa não se comportar conforme os ditames da boa-fé,
o descumprimento dos deveres principais também significa a mesma coisa.
A diferença, que se mostra óbvia, entre as duas hipóteses
mencionadas, é que para o descumprimento dos deveres centrais já existe
previsão legal específica, eis que se trata do próprio descumprimento do
contrato, e por isso não se faz necessário o recurso à figura mais ampla e mais
genérica da violação da boa-fé.
Dito em outras e, esperamos, mais claras palavras, o princípio da
boa-fé, que deve ser observado na conclusão e na execução dos contratos (art.
422), impõe a observância dos deveres laterais, mas também impõe o
cumprimento da prestação em si mesma, ou seja, a observância do dever
principal. Cumprir a prestação pactuada nada mais é do que observar o
princípio da boa-fé. Só que, em relação ao descumprimento dos deveres
laterais a lei nada diz (e nem poderia, pois os mesmos só são aferíveis em
concreto, como já vimos), e por isso se faz necessária a invocação da figura
mais ampla e genérica da boa-fé, enquanto que, em relação à prestação em si
mesma (dever central), houve o tratamento legal específico, por isso que se
mostra desnecessário falar-se, no caso concreto, em violação da boa-fé.
De uma certa forma, portanto, pode-se até mesmo dizer que existe
um certo paralelismo entre o instituto do venire contra factum proprium e o
princípio da obrigatoriedade das convenções (pacta sunt servanda). Com
efeito, em uma certa medida pode-se dizer que ambos vinculam, sendo que a
obrigatoriedade das convenções atua nesse sentido (vinculando o sujeito)
quando o negócio jurídico se aperfeiçoou e dele decorre a vinculação quanto
ao cumprimento da prestação central; o venire, por sua vez, vincula o sujeito
332
precisamente naqueles casos em que, ou não se aperfeiçoou o negócio jurídico
ou, então, do aperfeiçoamento não decorre a vinculação do pacta sunt
servanda. Este, portanto, vincula em alguns negócios jurídicos, enquanto
aquele funcionará como vínculo apenas na falta deste.
Retornando, agora, ao ponto de partida das digressões acima, ou
seja, à classificação jurídica do descumprimento da prestação contratual como
sendo hipótese de venire contra factum proprium, o que podemos observar é
que, no descumprimento da prestação, houve comportamentos contraditórios
entre si, como já vimos acima, e essa contradição implicou na injustificada
frustração de uma expectativa que havia surgido no espírito do outro
contratante. E isso é precisamente o venire, ou seja, a inexecução da prestação
contratual pode ser classificada como hipótese de venire contra factum
proprium, só que uma hipótese que já encontra previsão legal mais precisa e
específica.
No entanto, não se pode deixar de observar que, ainda que de
venire se trate, no caso concreto o juiz, mais do que não deverá, não poderá
valer-se da figura do venire ao buscar a solução, sendo-lhe imposto o recurso à
figura do inadimplemento contratual. É que o venire, como todas as figuras
que decorrem da boa-fé, mostra contornos que em abstrato são imprecisos, e
só podem ser delimitados com precisão em cada caso concreto, o que sempre
deixa alguma margem para a atuação conforme o sentimento de equidade do
juiz, que terá que construir a solução para aquele caso específico, o que pode
servir como amplificador para uma certa insegurança jurídica.
Esclareça-se que não se trata de fazer da segurança jurídica um
valor absoluto, dentro do ordenamento jurídico. Muito pelo contrário, pois se
por um lado é certo que a segurança jurídica é um dos valores que devem ser
considerados, dentro do ordenamento, por outro, também é certo que não é o
333
único. Por essa razão, ocorrem situações onde se faz necessário o aparente
sacrifício da segurança jurídica, para que se possa evitar a concretização de
uma manifesta e inaceitável injustiça 321, e se necessário for, deverá ser
afastada sem maiores cerimônias a norma legal322, que será substituída pelos
321
Não se pode deixar de mencionar, ainda que brevemente, acerca do tema “segurança juridica”, as
certeiras colocações disparadas por Maria Celina Bodin de Moraes, Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura
Civil-Constitucional dos Danos Morais, pp. 59-75, que apresenta uma muito bem elaborada descrição da
passagem do “mundo da segurança”, em que tudo era estável e previsível (em relação ao Direito Civil, a
previsibilidade decorria do fato de estar todo ele contido no Código Civil – a “era dos códigos”), para uma era
de incertezas e de instabilidades, onde a busca da prevenção contra o totalitarismo e as arbitrariedades das
ditaduras levou ao abandono da legalidade estrita, acima da qual foram colocados valores fundamentais, tais
como a dignidade e a solidariedade, que não podem jamais ser ignorados. Isso tem gerado, explica a autora,
uma crise de identidade sem precedentes na aplicação do Direito Civil, uma vez que há profundo
descompasso entre seus conceitos essenciais, formulados no Direito romano, em um contexto completamente
distinto e em nenhuma hipótese harmonizável com o panorama dos dias atuais, e mesmo assim, muitas vezes,
o que se vê é a invocação pura e simples de tais conceitos, para aplicação direta em casos concretos atuais,
com resultados obviamente catastróficos. Essa falta de percepção da mudança do contexto – e, de modo mais
preciso, da mudança dos paradigmas do direito civil – pode ser muito claramente percebida, ao que nos
parece, com todo o respeito devido ao autor, no texto de Flávio Tartuce, A revisão do contrato pelo novo
Código Civil. Crítica e proposta de alteração do art. 317 da Lei 10.406/02. In: Delgado, Mário Luiz e Alves,
Jones Figueirêdo, Novo Código Civil – Questões Controvertidas, pp. 131 e seguintes. Após passar várias
páginas reproduzindo velhos conceitos, tais como autonomia da vontade, força obrigatória dos contratos,
pacta sunt servanda, o contrato tem, entre os contratantes, a mesma força obrigatória que uma lei, etc.,
inclusive mencionando, expressamente a “previsão já no Direito Romano” (p. 132), e a presença de alguns
institutos mencionados “desde a antiguidade” (p. 141), busca o autor concluir (pp. 143 e seguintes) sobre qual
seria o fundamento legal, em nosso direito, da possibilidade de revisão dos contratos, se o artigo 478 ou o
artigo 317, ambos do Código Civil, e acaba por concluir que é o segundo deles, o 317. Ora, data venia, na
realidade nenhum dos dois dispositivos mencionados é o verdadeiro fundamento da possibilidade de revisão
do contrato, pois tal fundamento, na realidade, encontra seu suporte diretamente na tábua axiológica que salta
aos olhos a partir do texto constitucional, notadamente os princípios da dignidade humana e da solidariedade
social, dos quais decorre a imposição do equilíbrio contratual, sob pena de revisão ou mesmo resolução do
contrato. Logo, se fossem retirados do Código Civil os dois dispositivos mencionados, ainda assim não fariam
falta alguma, pois continuaria sendo possível a revisão do contrato onde as prestações, por força de inesperada
alteração das circunstâncias, viessem a apresentar inaceitável desequilíbrio, em extremo desfavor de um dos
contratantes.
322
Ao traçar a diferença entre os princípios fundamentais e o que ele denomina de “normas restritas” (as
regras), aponta Juarez Freitas, A interpretação sistemática do direito, p. 56, que a principal diferença não é a
que se refere à maior generalidade dos princípios, mas sim à sua qualidade argumentativa superior. Por essa
razão, prossegue, havendo colisão, deve-se proceder à interpretação em conformidade com os princípios, sem
que as regras devam preponderar por apresentarem, supostamente, fundamentos definitivos. Tal primazia faz
que, tanto na colisão de princípios quanto no conflito de regras, seja sempre um princípio, e não uma regra,
que deverá ser erigido como preponderante para aquela situação concreta, e arremata dizendo que “jamais
haverá um conflito de regras que não se resolva à luz dos princípios”. Dessarte, hoje nos parecem
completamente inaceitáveis e ultrapassadas as posições que sustentam que os princípios gerais adquirem força
normativa na falta de disposição legal, direta ou indireta, e que por isso o juiz não poderá aplicá-los se isso
“contravir a uma disposição certa de lei” (Vicente Ráo, O Direito e a Vida dos Direitos, pp. 274-275). Na
verdade, é a lei que não poderá ser aplicada quando violar algum dos princípios fundamentais.
334
valores fundamentais eleitos pelo texto constitucional, tais como a dignidade
humana, a solidariedade social, a isonomia, a liberdade, etc323.
Nesse sentido, referindo-se especificamente à questão dessa
possibilidade de afastamento da norma legal que se apresente em choque com
o princípio da boa-fé, são claras e taxativas as palavras de Karl Larenz324, para
quem
“Pero se pregunta si el § 242 [do Código Civil alemão] es solamente uma
norma, que como otros preceptos jurídicos coactivos rige tambiém, como
éstos, junto a todas las demás normas (dispositivas o coactivas) y tiene el
mismo ámbito de aplicación, o si representa un ‘princípio supremo’ del
Derecho de las relaciones obligatorias, de forma que todas las demás normas
han de medirse por él y en cuanto se le opongan han de ser en princípio
pospuestas. La jurisprudencia se ha decidido, hace ya mucho tiempo, por la
segunda posición y conforme a este criterio no es raro que limite la
aplicabilidad de otros preceptos legales cuando ello pueda conducir de algún
modo a un resultado injustificado según la buena fe”.
Na verdade, contudo, esse sacrifício da segurança jurídica é tãosomente aparente, pois não se pode confundir esse valor “segurança” com o
cumprimento literal da norma legal, sem levar em conta a questão dos valores
envolvidos e uma possível injustiça manifesta como o resultado a ser obtido.
Segurança jurídica não é sinônimo de fossilização e de cumprimento estrito e
impensado da norma legal 325.
Na realidade, portanto, o que de fato está ocorrendo, quando se dá
prevalência à boa-fé sobre a aplicação de um texto legal literal e expresso, é
que se está buscando a realização da justiça do caso concreto, e ao serem
sopesadas as circunstâncias e as características desse caso concreto,
323
Maria Celina Bodin de Moraes, Danos à Pessoa Humana – Uma Leitura Civil-Constitucional dos
Danos Morais, pp. 67-68.
324
Karl Larenz, Derecho de obligaciones, v. I, pp. 145-146. Aliás, o próprio título dado pelo ilustre
jurista alemão ao item onde trata desse tema já se mostra bastante esclarecedor: “La buena fe como principio
fundamental de la relación obligatoria” (p. 142).
325
Delia Matilde Ferreira Rubio, La Buena Fe: el principio general em el derecho civil, p. 166.
335
interpretando-se sistematicamente (não nos esqueçamos que a boa-fé também
é uma norma que integra esse mesmo sistema) o texto legal, achou-se por bem
afastar sua aplicação na hipótese em exame. Essa questão da interpretação
sistemática será retomada mais à frente, de modo minucioso (veja-se, adiante,
o item 2.3.3).
Assim, repete-se, não se trata de elevar o valor segurança jurídica
a um patamar tão elevado que possa se tornar inatingível pelos outros valores
também envolvidos. No entanto, é certo que a segurança jurídica não poderá
ser afastada de modo imotivado. Havendo justificativa para o seu sacrifício
(aparente, como vimos), o mesmo deverá ser feito sem maiores hesitações.
Não existindo tal justificativa, no entanto, é certo que se deverá atender ao
valor em questão. No caso em exame, se a própria lei já expusesse solução
satisfatória para o caso a ser decidido pelo juiz, não faria sentido admitir-se
que este pudesse criar soluções outras, sob pena de desnecessário sacrifício da
tão comentada segurança jurídica.
Desse modo, embora seja certo que ao juiz não se pode negar um
espaço onde possa atuar com liberdade, por outro lado esse espaço não pode
fugir daquele que é delimitado pela própria lei, e nos casos onde a lei já dispôs
sobre a solução a ser adotada, não poderá o juiz ignorar o texto legal para a
construção de soluções outras. O que se vê, portanto, é que embora o
descumprimento contratual possa ser juridicamente classificado como
hipótese de venire contra factum proprium, na prática isso de pouco ou nada
servirá, eis que se trata de hipótese de venire onde a solução já foi
previamente fixada pelo legislador, não se deixando margem para a
construção judicial.
c.1) a expectativa sem que tenha havido vinculação.
336
Questão secundária, mas de grande relevância, que deve ser agora
examinada, é a seguinte: dissemos, logo acima, que o primeiro
comportamento não pode ter causado uma vinculação tal que o segundo se
constitua, tão-somente, em um descumprimento de obrigação anteriormente
assumida. A questão que se coloca, então, é a de perquirir como é possível que
um dos sujeitos, não tendo se vinculado ao cumprimento de qualquer
obrigação, ainda assim possa frustrar a expectativa alheia. Em outras palavras,
se não houve a vinculação, não seria de se admitir que, no exercício de sua
autonomia da vontade, o segundo comportamento fosse livre, podendo ser
adotado qualquer comportamento que não seja em si mesmo ilícito?
Na realidade, o que de fato interessa é que tenha havido a
frustração de uma expectativa, sendo que essa inexistência da vinculação pode
decorrer de fatores diversificados, tanto em um contrato nulo quanto em um
contrato válido.
Tome-se a hipótese de um contrato que seja nulo em virtude da
ocorrência de um vício formal, como por exemplo o fato de ter sido celebrado
mediante escrito particular, quando a lei exigia a solenidade da escritura
pública. Depois de celebrado e cumprido o contrato, vem um dos contratantes
a argüir-lhe a nulidade, pleiteando a restituição das coisas ao seu status quo
ante. De fato, isoladamente considerada a questão do desrespeito à exigência
de escritura pública, a nulidade existe, por não ter sido respeitada a
determinação legal quanto à forma, nos termos do art. 166, IV, do Código
Civil.
No entanto, na situação acima descrita, é evidente que esse
contratante, ao requerer o desfazimento dos efeitos de um contrato que por ele
mesmo havia sido livremente celebrado, sem que tenha havido qualquer
337
mácula na formação e na manifestação de sua vontade, estará incidindo em
inadmissível venire contra factum proprium, por isso que esse segundo
comportamento se mostra claramente inconciliável com o primeiro. Uma vez
celebrado – e mesmo cumprido – o contrato, era razoável supor que cada um
dos contratantes contasse com a manutenção da prestação recebido em virtude
do mesmo, e por isso tais prestações deverão ser mantidas, apesar da nulidade
contratual.
E aqui já destacamos, em adiantado, que por efeito do venire
contra factum proprium é possível que determinados dispositivos legais
devam ser relidos ou reinterpretados, de modo a que não ocorram contradições
no sistema jurídico como um todo. Trataremos do tema de modo mais
minucioso, adiante, ao examinarmos as conseqüências jurídicas, em relação ao
negócio, da identificação do comportamento que se constitui em venire contra
factum proprium.
Ainda em relação ao exemplo acima, é evidente que não pode ter
havido dolo por parte do que foi vítima do comportamento contraditório.
Assim, por exemplo, se os contratantes deliberadamente não cumpriram a
formalidade exigida pela lei porque pretendiam furtar-se ao pagamento de um
determinado tributo, por exemplo, é evidente que não poderá alegar que a
contradição comportamental do outro frustrou sua a legítima expectativa, eis
que ninguém será ouvido quando alegar em seu favor a própria torpeza.
Suponha-se, em outro exemplo ligado ao vício de forma, que uma
doação foi feita verbalmente, dizendo o doador ao donatário que estava lhe
dando um presente (situação, como se vê, bastante corriqueira no quotidiano).
Ocorre que esse presente não era um bem de pequeno valor ou não se lhe
seguiu a imediata tradição.
338
Em qualquer desses casos, conforme texto legal expresso, a
doação deve ser feita por escrito, mediante instrumento público ou particular,
como se vê no artigo 541, do Código Civil. Ressalte-se, por óbvio, que no
caso não existe qualquer dolo ou má-fé do donatário, uma vez que é bastante
comum que as pessoas pensem que doações (“presentes”) podem ser feitas
sem maiores formalidades, bastando as vontades de quem doa e de quem
recebe.
Algum tempo depois, contudo, já tendo havido a tradição e
estando a coisa doada em poder do donatário, o doador ajuíza ação na qual
pleiteia a declaração de nulidade do contrato, sob a alegação de vício de
forma. De fato, como já comentamos acima, por não ter sido atendida a
exigência legal quanto à forma a ser adotada, o contrato de doação, neste caso,
mostra-se inválido.
No caso em tela, no entanto, o comportamento do doador implica,
de modo claro, em venire contra factum proprium, por isso que se mostra
completamente inconciliável com sua primeira atitude, ao manifestar de modo
inequívoco o seu animus donandi, ainda que não se tenha valido da
formalidade imposta pela norma legal. Cabe, aqui, a lapidar afirmação de
Pontes de Miranda326, segundo a qual “a ciência jurídica e a técnica jurídica
legislativa foram descobrindo casos em que seria proveitoso amparar o que
confiou, dando-se eficácia a negócios jurídicos, que não na teriam, sem novas
regras jurídicas sobre a boa-fé”.
Nos dois exemplos acima, embora tenha sido gerada a confiança
do outro contratante, no sentido de que poderia aproveitar a prestação que lhe
fora entregue, na realidade não havia uma vinculação do sujeito que veio a se
comportar de modo contraditório, uma vez que o primeiro comportamento
326
Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, V. 1, pp. 192-193.
339
consistiu na celebração de um contrato nulo, e este, como se sabe, não deve
vincular o contratante.
Além das situações acima, nas quais é inválido o negócio jurídico
que foi celebrado com o primeiro dos comportamentos contraditórios, e por
isso não houve vinculação, também é possível que esta não se verifique ainda
mesmo que se trate de negócio jurídico válido. Seria o caso, por exemplo de
uma pessoa que prometesse a outra que faria uma doação em favor desta
última. Posteriormente, no entanto, o contrato de doação não vem a ser
celebrado. Neste caso, opinam os doutrinadores327 que o “promitente
donatário” não pode exigir o cumprimento da promessa, uma vez que a
doação exige que ainda esteja presente, no momento de celebrar o contrato, o
animus donandi.
No entanto, embora não seja exigível o cumprimento da doação
prometida, facilmente se constata que o segundo dos comportamentos
mostrou-se contraditório com o primeiro, e veio a frustrar a expectativa do
outro sujeito, no sentido de receber a liberalidade prometida. Logo, esse
descumprimento da promessa implica em venire contra factum proprium, e
poderá dar origem ao pleito de perdas e danos, por iniciativa do “promitente
donatário” frustrado.
Na realidade, não se pode deixar de observar que essa situação
acima descrita foi expressamente enfocada pelo nosso atual Código Civil. De
fato, ao tratar dos contratos preliminares, dispôs o Código, em seu artigo 464,
que o interessado poderá requerer ao juiz que supra a vontade da parte
inadimplente, que deixou de cumprir a promessa objeto do contrato
327
Por todos, Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, v. III, p. 178, que ensina que “se
o promitente-doador recusasse a prestação, o promitente-donatário teria ação para exigi-la, e, então, ter-seia uma doação coativa, doação por determinação da Justiça, liberalidade por imposição do juiz e ao arrepio
da vontade do doador... nada disto se coaduna com a essência da doação”. Mas a questão desperta alguma
polêmica, entre os doutrinadores, como aponta o ilustre jurista mineiro, na mesma obra e local.
340
preliminar, salvo se a isto se opuser a natureza da obrigação, caso em que a
solução se dará em perdas e danos (art. 465). É precisamente esse o caso da
promessa de doação, ou seja, a natureza da obrigação impede que lhe seja
exigida a execução em espécie, e por isso se transmuda em perdas e danos,
que em última análise estarão sendo referentes à frustração da expectativa
gerada.
Situação que se tem repetido com freqüência, na prática, e que já
comentamos brevemente, linhas atrás (veja-se o item 1.7, na primeira parte
deste estudo), é aquela onde a Administração Pública contrata trabalhador sem
que tenha havido a aprovação prévia do mesmo em concurso público.
Posteriormente,
ao
dispensar
esse
mesmo
trabalhador,
a
própria
Administração Pública sustenta que a contratação do mesmo foi irregular, e
por isso não poderá gerar os efeitos normais de um contrato de trabalho. Como
se vê, há um claríssimo comportamento contraditório, adotado pela
Administração Pública, em relação à sua primeira atuação, que consistiu na
contração em si mesma.
E não é demais recordar, como já vimos em minúcias, supra, que
também à Administração Pública, nas suas relações com os administrados, se
impõe a observância da boa-fé objetiva, como regra de conduta, sendo-lhe
proibido o venire contra factum proprium. E convém recordar, também, que
em virtude do princípio da impessoalidade, que se encontra insculpido no
artigo 37, da Constituição Federal, pouco importa que tenha mudado a pessoa
do administrador, para a caracterização do venire, pois os comportamentos
contraditórios são da Administração Pública, e não do administrador público
que lhes dá concreção.
A observação é feita porque temos visto, no exercício diário das
atividades jurisdicionais, a alegação do administrador de que teria sido o seu
341
antecessor, e não ele, o responsável pela contratação irregular. Na realidade,
em relação ao trabalhador, quem responderá será a Administração Pública que
o contratou, e não a pessoa mesma do administrador. Logo, foi a
Administração Pública (e não o administrador) quem contratou de modo
irregular, e é essa mesma Administração Pública que agora, ao dispensar esse
mesmo trabalhador, pretende escapar dos efeitos jurídicos do contrato sob a
alegação de que o mesmo foi nulo. Caracterizada, portanto, a seqüência de
comportamentos contraditórios, adotados pela mesma pessoa (de direito
público).
Prosseguindo, veja-se que o contrato celebrado nessas condições
acima mencionadas, vale dizer, sem que tenha sido aprovado em concurso
público o servidor contratado, de fato é nulo de pleno direito, pois assim o diz,
de modo expresso, o artigo 37, § 2°, da Constituição Federal. No entanto,
quem deu causa a essa nulidade foi a própria Administração Pública, pois é
para ela, Administração, e não para o trabalhador, que se dirige a norma
insculpida no artigo 37, II, da Lex Mater, que exige a aprovação em certame
público, salvo para os cargos em comissão que tenham sido declarados em lei
como sendo de livre nomeação e exoneração.
Logo, quando a própria Administração Pública, depois de ter
violado a norma que restringia as contratações, e com isso dado causa à
nulidade absoluta do contrato, por vício formal (a não obediência à
formalidade do concurso público), vem, em um momento posterior, a pleitear
o reconhecimento da nulidade, com a conseqüente ausência de efeitos
jurídicos em favor do contratado, tem-se aí um caso muito claro de venire
contra factum proprium328. O Tribunal Superior do Trabalho, embora tenha
328
Na realidade, essa situação se encontra em uma zona limítrofe entre o venire contra factum proprium
e o tu quoque. O problema é que a grande diferença entre ambos se dá pelo enfoque principal: enquanto no
342
repelido a pretensão de que de tal ato não poderia produzir efeitos (Súmula
363), fê-lo de modo tímido, que se tem mostrado claramente insuficiente para
desestimular o primeiro dos comportamentos, ou seja, a contratação irregular,
sem o concurso público prévio 329.
venire o objetivo principal é a tutela da confiança do outro sujeito, ou seja, o objetivo primordial é a proteção
à boa-fé desse sujeito, no tu quoque, como veremos adiante (item 2.4), o escopo principal é a repressão à máfé, e não a proteçao à confiança. Nesse caso da contratação sem concurso, pela administração pública, a
experiência quotidiana tem mostrado que, no mais das vezes, surge no contratado a esperança de que será
mantida sua vinculação com o serviço público, pelo simples fato de que o contratado, em geral pessoa de
pouca qualificação e nenhum estudo, acredita que se o ato de sua contratação foi praticado pelo administrador
público, então o mesmo é lícito e válido. E essa confiança, ao ser protegida mediante o reconhecimento de
efeitos jurídicos do contrato nulo, se apresenta como hipótese de venire. Por outro lado, no entanto, vê-se
claramente a presença, também, da má -fé da administração pública, que na hora de contratar simplesmente
ignora a clareza do texto constitucional, que proíbe a contratação sem concurso público, e futuramente, ao
dispensar o trabalhador, adota posição jurídica diametralmente diversa, ou seja, invocando em seu favor a
norma que ela mesma, administração, descumpriu, e essas características permitem identificar a figura do tu
quoque.
329
O Tribunal de Justiça de Minas Gerais aprovou Acórdão do qual constam as três coisas mencionadas
no texto (Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. 5ª Câmara Cível, Ac. unânime. Apelação Cível nº
000.261.310-7/00. Rel. Desembargadora Maria Elza. Data do Acórdão: 16.05.2002. Publicado no Diário
Oficial do Estado de Minas Gerais em 02.08.2002): a) a atuação da Administração se constitui em venire
contra factum proprium; b) embora nula a contratação, serão produzidos diversos efeitos desse contrato nulo,
e não apenas o pagamento dos salários; c) a Súmula 363, do TST, é inconsistente, por reconhecer que a
inadmissível atuação contraditória da Administração Pública teria força para afastar a produção dos efeitos
jurídicos. Face à clareza e didatismo da referida decisão, pede-se venia para a transcrição de longo trecho da
mesma:
“ Se a nulidade é bastante clara, o mesmo não se pode dizer em relação à amplitude de seus efeitos,
que é objeto de divergência jurisprudencial.
O Tribunal Superior do Trabalho tem jurisprudência firme no sentido de que a decretação da
nulidade tem efeitos retroativos, razão pela qual o servidor contratado com ofensa à Constituição
teria direito apenas a salário, excluídas todas as demais parcelas remuneratórias. Tal entendimento,
utilizado como base pelo magistrado a quo, foi consolidado no enunciado 363 da Súmula do Tribunal
e no item 85 da Orientação Jurisprudencial de sua Subseção I de Dissídios Individuais, que dizem,
respectivamente, o seguinte:
"363. Contrato nulo. Efeitos
A contratação de servidor público, após a Constituição de 1988, sem prévia aprovação em concurso
público, encontra óbice no seu art. 37, II, e § 2º, somente conferindo-lhe direito ao pagamento dos
dias efetivamente trabalhados segundo a contraprestação pactuada."
"85 - Contrato nulo. Efeitos. Devido apenas o equivalente aos salários dos dias trabalhados.
A contratação de servidor público, após a CF/88, sem prévia aprovação em concurso público,
encontra óbice no art. 37, II, da CF/88, sendo nula de pleno direito, não gerando nenhum efeito
trabalhista, salvo quanto ao pagamento do equivalente aos salários dos dias efetivamente
trabalhados."
No entanto, em duas oportunidades, o Superior Tribunal de Justiça, por sua Primeira Turma, se
pronunciou em sentido frontalmente contrário. A primeira foi no Recurso Especial 284.250/GO
(DJU 12-11-2001, p. 128), relator o Ministro Humberto Gomes de Barros, e a segunda foi no
Recurso Especial 326.676/GO (DJU 04-03- 2002, p. 196), relator o Ministro José Delgado, este
último assim ementado, no que interessa:
343
"1. A declaração de nulidade de contrato de trabalho, por inobservância do art. 37, II, da CF/88
(ausência de concurso público), gera efeitos ex nunc, resultando para o empregado o direito ao
recebimento dos salários e dos valores existentes nas contas vinculadas ao FGTS em seu nome.
2. O empregado não concorre diretamente para a prática de ato ilícito cometido pelo empregador,
quando o contrata sem concurso público, afrontando o art. 37, II, da CF.
3. Aplicação do princípio da boa-fé e da primazia da realidade."
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é mais consistente, por ser mais adequada à
concretização do princípio constitucional da moralidade administrativa (art. 37, caput, da
Constituição).
A doutrina e a jurisprudência mais recentes vêm entendendo o princípio da moralidade
administrativa como veiculador do dever de boa-fé para a Administração Pública. É neste sentido o
posicionamento doutrinário de Celso Antônio Bandeira de Mello, ao discorrer sobre o citado
princípio:
"Compreendem-se em seu âmbito, como é evidente, os chamados princípios da lealdade e boa-fé".
(Curso de Direito Administrativo. 12ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 89)
Também é este o posicionamento de José Guilherme Giacomuzzi, autor de preciosa monografia
sobre o tema: "A boa-fé objetiva terá, na tentativa de encontrar o conteúdo dogmá tico do princípio da
moralidade (art. 37 da CF de 1988), a maior relevância. É ela, em suma, que preencherá o espaço objetivo - do princípio, o qual tem por função veiculá -la." (A moralidade administrativa e a boa-fé da
Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 226-227).
O Superior Tribunal de Justiça já aceitou a aplicação da boa-fé no Direito Público, como
conseqüência da consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. É o que se vê
no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 6.183/MG (DJU 18-12-1995, p. 44.573; LEXSTJ
82/90), por sua Quarta Turma, relator o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, que, em seu voto condutor
do acórdão, pontuou o seguinte:
"No direito civil, desde os estudos de Jhering, admite-se que do comportamento adotado pela parte,
antes de celebrado o contrato, pode decorrer efeito obrigacional, gerando a responsabilidade précontratual. O princípio geral da boa-fé veio a realçar e deu suporte jurídico a esse entendimento, pois
as relações humanas devem pautar- se pelo respeito à lealdade.
O que vale para a autonomia privada vale ainda mais para a Administração Pública e para a direção
das empresas cujo capital é predominantemente público, nas suas relações com o cidadão. É
inconcebível que um Estado Democrático, que aspire a realizar a justiça, esteja fundado no princípio
de que o compromisso público assumido pelos seus governantes não tem valor, não tem significado,
não tem eficácia. Especialmente quando a Constituição da República consagra o princípio da
moralidade administrativa".
É contrário à boa-fé permitir que a Administração municipal se aproveite de uma ilegalidade por ela
mesma cometida. É ínsito à boa-fé e à moralidade administrativa proibir o venire contra factum
proprium, ou seja, proibir que quem deu causa, por ato próprio, a uma ilicitude, dela se aproveite.
Neste sentido são os posicionamentos doutrinários de José Guilherme Giacomuzzi (Ob. cit., p. 275) e
Egon Bockmann Moreira, este último no seguinte trecho:
"Do princípio da boa-fé objetiva deriva, quando menos, o seguinte:
(...)
b) proibição do venire contra factum proprium (conduta contraditória, dissonante do anteriormente
assumido, ao qual se havia adaptado a outra parte e que tinha gerado legítimas expectativas)".
(Processo administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 91).
Sobre tal proibição, explica Arruda Alvim:
"O que se diz a esse respeito é que ‘o exercício de um direito constitui inadmissível abuso de
direito, quando o exercício atual do direito não é conciliável com a conduta anterior do autor’. Na
jurisprudência espanhola anotam-se os seguintes entendimentos: a) ‘é jurisprudência estabelecida por
este Supremo Tribunal que aquele que reconheceu a validade de um ato não pode sucessivamente
invocar contra os seus próprios atos’; b) similarmente, o autor espanhol diz que ‘cada um é livre para
determinar-se e atuar livremente em qualquer direção, mas, uma vez realizado o ato, a pessoa não
pode subtrair das conseqüências do ato, que são para ela como que vinculantes’". (Juiz Federal. Lista
Tríplice. Alegada Inobservância do art. 93, II, da Constituição Federal. Revista de Direito
344
Com efeito, o Tribunal Superior do Trabalho, em um primeiro
momento, aprovou a Súmula 363, prevendo que em favor do servidor
contratado sem concurso apenas seria devido o salário dos dias efetivamente
Constitucional e Internacional. Ano 9, nº 36. São Paulo, Revista dos Tribunais, julho-setembro de
2001, p. 291)
Portanto, se o Município réu contratou os autores, pagando-lhes, além do salário, outras parcelas
remuneratórias previstas em lei, gerou nos mesmos legítimas expectativas que não devem ser
frustradas. Não pode o Município, de uma hora para outra, deixar de reconhecer os efeitos pretéritos
de atos por ele praticados, aproveitando-se da situação e violando o princípio da moralidade
administrativa. Tal entendimento já foi acolhido pelo Superior Tribunal de Justiça, no Recurso
Especial 184.487/SP (DJU 03-05-1999, p. 153; RSTJ 120/386), por sua Quarta Turma, relator o
Ministro Ruy Rosado de Aguiar, assim ementado, no que interessa:
"A teoria dos atos próprios impede que a administração pública retorne sobre os próprios passos,
prejudicando os terceiros que confiaram na regularidade do seu procedimento."
Em seu voto condutor do acórdão explicou o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, citando
entendimentos doutrinários, inclusive o de Celso Antônio Bandeira de Mello:
"Sabe-se que o princípio da boa-fé deve ser atendido também pela administração pública, e até com
mais razão por ela, e o seu comportamento nas relações com os cidadãos pode ser controlado pela
teoria dos atos próprios, que não lhe permite voltar sobre os próprios passos, depois de estabelecer
situações em cuja seriedade os cidadãos confiaram. ‘A salvaguarda da boa-fé e a manutenção da
confiança formam a base de todo o tráfego jurídico e em particular de toda a vinculação jurídica
individual. Por isso, não se pode limitá-las às relações obrigacionais, mas aplicá-lo sempre que exista
qualquer vinculação jurídica, ou seja, tanto no Direito Privado, como no Direito Público’ (Karl
Larenz, Derecho de Obligaciones, I/144. Insistindo nesse ponto de vista, Jesus Gonzales Peres, no
seu ‘El principio general de la buena fe em el Derecho Administrativo’, observa que todas as
pessoas, inclusive as de Direito Público, devem pactuar sua conduta de acordo com o princípio da
lealdade, sendo improcedente a pretensão dirigida à anulação por defeitos formais do ato praticado
por quem aceitar o cumprimento da outra parte (pág 82).
Isso porque, como ensinava o mestre Clóvis do Couto e Silva, o primeiro no Brasil a acentuar a
importância do tema e divulgá-lo em seus escritos, a boa-fé objetiva é o princípio orientador do
ordenamento jurídico.
(...)
No caso dos autos, o Município criou todas as condições para que o negócio se realizasse assim
como se realizou, não sendo conforme à boa-fé alegar defeito no parcelamento que ele mesmo
implantou, frustrando a expectativa daqueles que confiaram na regularidade do ato da autoridade
pública. ‘Se o ato nulo ou anulável produziu relação jurídica da qual resultaram prestações do
administrado (pense-se em certos casos de permissão de uso de bem público ou de prestação de
serviço público) e o administrado não concorreu para o vício do ato, estando de boa-fé, a invalidação
do ato não pode resultar em locupletamento da Administração à custa do administrado e causar-lhe
um dano injusto em relação a danos patrimoniais passados. (...) Com efeito, se o ato administrativo
era inválido, isto significa que a Administração ao praticá-lo feriu a ordem jurídica. Assim, ao
invalidar o ato estará, ipso facto, proclamando que fora autora de uma violação da ordem jurídica.
Seria iníquo que o agente violador do Direito, confessando-se tal, se livrasse de quaisquer ônus que
decorreriam do ato e lançasse sobre as costas alheias todas as conseqüências patrimoniais gravosas
que daí decorreriam, locupletando-se, ainda, à custa de quem, não tendo concorrido para o vício, haja
procedido de boa-fé. Acresce que, notoriamente, os atos administrativos gozam de presunção de
legitimidade. Donde, quem atuou arrimado neles, salvo se estava de má-fé (vício que se pode provar,
mas não pressupor liminarmente), tem o direito de esperar que tais atos se revistam de um mínimo de
seriedade. Este mínimo consistente em não serem causas potenciais de fraude ao patrimônio de quem
neles confiou, como, de resto, teria de confiar.’ (Celso Antônio, Boletim de Licitações e Contratos,
Ano XI, nº 4, Abril/1998)."
345
trabalhados, e nada mais: férias, 13° salário, anotação da Carteira de Trabalho
e Previdência Social, FGTS, etc., nada disso seria devido a esse trabalhador.
Posteriormente, com a inclusão do artigo 19-A330, na Lei 8.036, de 11.05.1990
(dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS), foi que o
TST passou a admitir que, além dos salários, também seria devido o FGTS
sobre o mesmo331. De qualquer forma, como se vê, embora essa admissão dos
efeitos do ato nulo já seja uma forma de combater a contradição entre os
comportamentos da Administração Pública, é muito tímida, pois há inúmeros
outros efeitos que também deveriam ser admitidos, e que deixamos de
abordar, no presente estudo, por fugirem ao estreito âmbito de abrangência do
mesmo.
Vimos, acima, a hipótese de ser nula a contratação, por
infringência ao dispositivo constitucional (art. 37, II e § 2°) que exige a prévia
aprovação em concurso público, para que haja a contratação pela
Administração Pública. Vimos, ainda, que quando a Administração,
posteriormente, tenta escapar dos efeitos jurídicos da contratação irregular,
alegando a nulidade a que ela mesma deu causa, tem-se aí hipótese de venire
contra factum proprium, que também à Administração se proíbe, sendo que,
por isso, alguns dos efeitos do contrato de trabalho serão produzidos, ainda
que tal contrato seja nulo, devendo ser pagos ao trabalhador os salários dos
dias efetivamente trabalhados e o FGTS incidente sobre tais salários.
Outra situação que também pode ser relacionada a essa primeira,
é a do empregador que contrata, como empregado, menor de 16 anos, sem que
o seja na qualidade de aprendiz. Lembremos, inicialmente, que o art. 7°,
XXXIII, da Constituição Federal, proíbe qualquer trabalho ao menor de
330
A inclusão do referido artigo foi feita pela Medida Provisória 2.164-1, de 24.08.2001.
A Súmula 363 foi alterada, passando a prever também o cabimento do FGTS, pela Resolução
121/2003, publicada no Diário de Justiça de 21.11.2003.
331
346
dezesseis (16) anos, salvo na qualidade de menor aprendiz, a partir dos
quatorze (14) anos de idade. Logo, se for contratado o menor de 16 anos, por
empregador, tal contrato será nulo de pleno direito, por ter sido descumprida a
idade mínima fixada para a contratação válida de empregado, mas essa
nulidade não poderá ser argüida pelo próprio empregador que lhe deu causa,
sob pena de se configurar o venire contra factum proprium.
Assim, suponha-se que o empregador tenha celebrado essa
contratação ilegal, ou seja, tenha contratado empregado que ainda não
completou a idade mínima de dezesseis anos. Posteriormente, ao dispensar
esse empregado, pretende o empregador, alegando em seu próprio favor a
nulidade da contratação, que desse contrato não decorra qualquer efeito
jurídico, uma vez que o mesmo encontra-se fulminado pela nulidade absoluta.
Ora, é evidente que essa pretensão do empregador irá configurar a atuação
contraditória, o venire contra factum proprium, uma vez que estará alegando a
nulidade a que ele mesmo, empregador, deu causa. E, nessa hipótese, serão
gerados não apenas alguns dos efeitos jurídicos do contrato de trabalho, mas
todos os efeitos de um contrato válido, tais como o aviso prévio, as férias, o
13° salário, o FGTS com a multa de 40%, etc.
Mas qual seria o motivo dessa solução assim tão diferenciada, ou
seja, embora nas duas hipóteses se configure, sem qualquer dúvida, o venire,
na primeira delas (contratação sem concurso) apenas são produzidos uns
poucos efeitos (pagamento dos salários e do FGTS), enquanto na segunda
(contratação de menor de 16 anos) todos os efeitos normais de um contrato
válido serão produzidos? A diferença, na realidade, decorre do fato de que, no
primeiro caso, há patrimônio público em jogo, ou seja, o pagamento das
parcelas trabalhistas seria feito pela Fazenda Pública, o que em última análise
significa que a conta seria paga por toda a sociedade, enquanto que no
347
segundo caso a conta será paga, exclusivamente, pelo empregador que
contratou de modo irregular.
Assim, na primeira hipótese, de um lado se encontra a proteção
ao trabalho humano, e do outro se encontra a proteção ao patrimônio público,
que diz respeito a toda a sociedade, e o Tribunal Superior do Trabalho
entendeu que, no confronto entre ambos, este último é que deveria receber a
maior proteção, apenas sendo devidos os salários e o FGTS para evitar o
enriquecimento sem causa da Administração Pública. Na segunda hipótese,
contudo, de um lado encontra-se a proteção ao trabalho humano (e, por que
não, a proteção ao menor), e do outro se encontra o interesse particular de um
indivíduo, que é o empregador, sendo óbvio que a prevalência deverá ser da
proteção ao trabalho humano332.
De tudo o que foi dito no presente subitem, destacamos o fato de
que a inocorrência da vinculação em nada depende de ter sido válido ou
inválido o negócio jurídico formado a partir do primeiro dos dois
comportamentos do sujeito que serão cotejados, por isso que o venire contra
factum proprium poderá surgir tanto numa quanto noutra hipótese, vale dizer,
tenha sido válido ou inválido tal negócio. Além disso, como veremos em
maiores detalhes, mais à frente, cumpre também realçar que os efeitos do
reconhecimento do venire podem variar, em cada caso concreto, conforme os
demais interesses que se encontrem envolvidos em cada situação concreta.
d) comportamentos podem implicar em uma ação ou em uma omissão.
332
Apenas estamos apontando as razões que têm levado o Tribunal Superior do Trabalho a decidir de
modo tão diferente, em dois casos de nulidade, sendo que em ambos se caracteriza o venire contra factum
proprium, o que não significa, em absoluto, que concordemos com a solução adotada pelo TST. Muito pelo
contrário, em relação ao trabalhador contratado sem concurso parece-nos que errou fragorosamente a Corte
Superior Trabalhista, assistindo total razão ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, como vimos retro, nas
duras críticas tecidas à Súmula 363.
348
Prosseguindo-se na análise desses comportamentos, pode-se em
seguida mencionar que cada um deles poderá se constituir em uma ação ou em
uma omissão, sendo tal fato absolutamente irrelevante, eis que a contradição
não depende especificamente de um comportamento ativo ou passivo para
surgir. Aliás, bastante comum, na prática, é que o primeiro comportamento,
embora sem conter uma vinculação, transmita indícios claros de que o sujeito
irá cumprir um não fazer, ou seja, irá tolerar uma certa situação, a qual não
estaria normalmente obrigado a tolerar, ou irá se abster de praticar um
determinado ato que, em regra, poderia praticar sem qualquer obstáculo. Só
que, posteriormente, vem a atacar a situação que deveria tolerar ou a praticar o
ato de que se deveria abster.
O primeiro comportamento deu origem ao que se costuma chamar
de renúncia tácita, ou seja, causou no outro sujeito a nítida impressão de que o
omisso havia renunciado à prática do ato.
Ou, ao contrário, o primeiro comportamento, ainda que não
vincule o sujeito, transmite a clara idéia de que o mesmo adotará um
determinado comportamento positivo, gerando no outro a expectativa de que
um ato específico será praticado, sendo que isso não ocorre.
O Direito do Trabalho se mostra campo fértil para todos esses
tipos de situações acima mencionadas, e nesse campo trabalhista é que iremos
buscar alguns exemplos, que nos ajudarão a obter uma melhor compreensão
do tema.
Suponha-se que em uma determinada organização empresarial,
ficou vago um certo cargo, para o qual se mostram indispensáveis a
participação em um treinamento específico, que é realizado fora do horário de
trabalho, e a disponibilidade de condução própria. Nessas condições, o
349
empregador designa um de seus empregados para participar desse
treinamento, sem que lhe tenha, contudo, prometido nomeá-lo para a vaga. O
empregado, para quem a nomeação significaria uma ascensão funcional,
inclusive com melhoria do patamar remuneratório, adquire uma motocicleta,
para pagar em prestações, por saber da indispensabilidade de uma condução
própria. O empregado conclui com êxito o treinamento, mas apesar disso o
empregador não o nomeia, sem apresentar qualquer justificativa para isso.
Ora, é certo que o empregador não estava obrigado à nomeação
do empregado, eis que a nada se comprometera, assim como também é certo
que pode nomear quem bem entender para a vaga. No entanto, ao designar
aquele empregado específico para participar do treinamento, deu indícios
claros de que tinha a intenção de nomeá-lo para a vaga que estava aberta. Esse
empregado, portanto, ficou na legítima expectativa de que poderia ser
nomeado, caso obtivesse sucesso no treinamento, e em virtude disso não
apenas investiu seu dinheiro, na compra de um veículo próprio de transporte,
mas além disso investiu seu tempo disponível, para poder habilitar-se à vaga.
Ao exercer o seu poder de nomear outro trabalhador para o cargo,
portanto, o empregador agiu de modo contraditório, ou seja, primeiro deu
sinais claros de que iria praticar um determinado ato (nomear aquele
empregado para o cargo), mas depois comportou-se de modo contrário ao que
se poderia esperar, a partir da análise de seu comportamento anterior (ou seja,
deixou de praticar o ato sobre cuja prática dera indícios). Tem-se aí um caso
claro de venire contra factum proprium, cuja conseqüência, provavelmente,
seria a condenação do empregador a indenizar os danos causados ao
empregado, já que, em princípio, não caberia ao juiz interferir na organização
empresarial e determinar que o empregado em questão é que passasse a ocupar
o cargo disputado.
350
Mostramos, acima, exemplo onde o primeiro comportamento
transmitiu a idéia de que um determinado ato seria praticado, sendo no entanto
que o segundo comportamento consistiu precisamente na abstenção desse ato
que se supunha seria praticado. Vejamos, agora, a hipótese inversa, ou seja,
hipótese na qual o sujeito dá sinais de que não praticará um determinado ato
ou que irá tolerar uma certa situação, mas em seguida vem a praticá-lo ou a
atacar essa mesma situação.
Suponha-se, novamente na esfera das relações de trabalho, que
um empregado, tendo recebido proposta de melhor emprego, resolveu pedir
dispensa, dando imediatamente aviso prévio ao empregador. Este, no entanto,
sabendo que se trata de um bom empregado, produtivo, dedicado, honesto e
leal, decide tentar mantê-lo na empresa e, para tanto, oferece-lhe um aumento
salarial, de modo a igualar a proposta feita pela outra empresa. O empregado,
diante da proposta, decide aceitá-la, rejeitando por isso a outra proposta de
emprego que recebera. Poucos meses depois, contudo, o empregador vem a
dispensá-lo.
Ora, se por um lado não se pode negar que é direito potestativo do
empregador dispensar o empregado, desde que lhe pague todas as parcelas
rescisórias, por outro, não se pode deixar de constatar que, no caso, o primeiro
comportamento do empregador, tentando convencer seu empregado a não
deixar a empresa, inclusive apresentando proposta de majoração salarial,
como forte argumento para o convencimento do trabalhador, transmitiu ao
obreiro sinais claros de que a intenção do empregador era a de se abster da
prática desse ato, ou seja, de não exercer esse direito potestativo de dispensálo.
Nessas condições, quando o empregador praticou o segundo ato,
agiu em clara contradição com o seu comportamento anterior, uma vez que
351
praticou ato em relação ao qual fizera surgir no outro sujeito a justa
expectativa de que se absteria, ou seja, exerceu direito em relação ao qual
havia manifestado sua intenção, ainda que de forma indiciária, no sentido de
que não pretendia exercê-lo.
Ao fazê-lo, esse comportamento contraditório esvaziou a
expectativa legitimamente criada pelo empregado, e por isso tem-se, aí, mais
uma vez, hipótese cristalina de venire contra factum proprium, cuja
conseqüência poderia ser a indenização a ser paga ao empregado, em virtude
da expectativa frustrada e levando ainda em conta o emprego ao qual
renunciou, ou mesmo, conforme a situação, a determinação de reintegração do
empregado ao emprego, com a manutenção no mesmo por um período
razoável, a critério do juiz, para compensar o outro emprego dispensado.
Mas deve-se observar que o empregador, para que se configure o
venire, não prometeu ao empregado que o manteria no emprego, mas apenas
deu indícios de que isso ocorreria. É que, caso tivesse havido a efetiva
promessa de que o empregado não seria dispensado, aí se trataria de
estabilidade no emprego, provisória ou definitiva, com direito à reintegração
sem maiores considerações sobre a expectativa frustrada ou sobre a
contradição entre os dois comportamentos.
Em um caso concreto, no qual tivemos a chance de orientar um
dos envolvidos, um técnico em manutenção de computadores era titular de
uma microempresa, cuja atividade-fim consistia precisamente em prestar
atendimento aos clientes quanto à manutenção de hardwares e softwares. A
folha de clientes da empresa não era muito grande, e por essa razão o titular da
mesma acabou aceitando uma proposta de emprego de uma empresa maior,
para trabalhar como técnico de manutenção de computadores, mas agora na
condição de empregado.
352
Ao ser admitido, contudo, o trabalhador informou ao empregador
que tinha alguns clientes antigos, para os quais já prestava a manutenção há
bastante tempo, e que tinha a intenção de continuar prestando tais serviços,
independentemente de sua prestação de trabalho decorrente da relação de
emprego, apenas tomando o cuidado de fazê-lo em suas horas de folga, após a
jornada de trabalho ou nos finais-de-semana. O dono dessa empresa de maior
porte, empregadora, comentou que, nessas condições, não haveria qualquer
problema em que o empregado continuasse, paralelamente, prestando seus
serviços de assistência técnica na qualidade de autônomo.
Algum tempo depois, no entanto, o empregador determinou ao
empregado que cessasse o atendimento à sua própria clientela, sob pena de
caracterizar a falta grave denominada de concorrência desleal, prevista no art.
482, c, da Consolidação das Leis do Trabalho, e que consiste precisamente na
negociação habitual, por conta própria, em concorrência com a empresa, ou
seja, o empregado atua na mesma área de atuação de seu empregador, e com
isso tem condições de captar a clientela que foi captada por seu empregador à
custa de investimentos na divulgação do negócio.
Em regra, nessa situação acima descrita, de fato o empregador
poderia exigir que seu empregado cessasse a atuação em área que implica em
concorrência direta com a da atividade empresarial, sob pena mesmo de restar
caracterizada a falta grave do empregado, consistente na concorrência desleal.
Nesse caso, no entanto, parece muito claro que essa exigência se constituiria
em venire contra factum proprium, uma vez que o segundo comportamento se
põe de modo oposto ao que se poderia esperar a partir do primeiro, frustrando
a expectativa gerada para o empregado.
Com efeito, percebe-se que o empregador, ao mencionar, no ato
da admissão, que não se opunha a que o empregado pudesse conservar o
353
atendimento à sua própria clientela, ainda que se tratasse de atuação na própria
área onde atuava a empresa empregadora, transmitiu indícios claros de que iria
tolerar aquela situação, ainda que, nas hipóteses normais, não estivesse
obrigado a tolerá-la. No entanto, em um segundo momento, resolveu não mais
tolerar aquela concorrência que contra si desenvolvia o empregado, e ao fazêlo frustrou a expectativa que ele mesmo havia gerado no empregado com o
seu comportamento anterior. Caso de venire, portanto, como se disse acima.
De um modo geral, a doutrina333 e a jurisprudência 334 trabalhistas
se valem da noção do venire – muito embora sem usar a expressão – em um
caso de omissão ligado à justa causa para a dispensa do empregado. Trata-se
da hipótese que em regra é denominada de “perdão tácito”, mas que nada mais
é do que uma hipótese de venire contra factum proprium, onde o primeiro
comportamento consistiu em uma omissão. Suponha-se que um empregado
cometeu uma falta muito grave, que justificaria a imediata ruptura do contrato
pelo empregador. Este, contudo, embora tenha tomado conhecimento do ato
praticado pelo empregado, simplesmente deixa passar o tempo sem adotar
qualquer medida punitiva.
Nesse caso, não mais se admitirá que o empregador, decorrido
longo tempo do momento em que teve ciência da prática do ato faltoso, venha
a punir o empregado com a justa causa. A doutrina e a jurisprudência, como
vimos acima, referem-se à ocorrência do “perdão tácito”, mas na verdade, é
de fácil percepção que se trata de hipótese de venire. Com efeito, o primeiro
comportamento do empregador foi a omissão, por isso que o mesmo se
333
334
Amauri Mascaro Nascimento, Curso de Direito do Trabalho, pp. 698-699.
JUSTA CAUSA. PRINCÍPIO DA IMEDIATIDADE NA APLICAÇÃO DA PENA. A não
observância ao princípio da imediatidade na aplicação da penalidade máxima, ante a ocorrência de falta
reputada grave pelo empregador, atrai a presunção de perdão tácito. A questão não se caracteriza apenas
pelo transcurso do tempo, mas também por qualquer medida adotada pelo empregador reveladora da
inequívoca intenção de manter o empregado em seus quadros. TRT 2ª Região (SP), 4ª T., Acórdão n°
20050455057, unânime. Relator Juiz Paulo Augusto Câmara. J. 12.07.2005, p. DOE SP 22.07.2005.
354
absteve de adotar qualquer medida punitiva, continuando a manter o
empregado em seu ambiente de trabalho. Logo, não poderá esse empregador,
posteriormente, atuar de modo contraditório, dispensando o empregado por
justa causa em virtude desse mesmo fato, em relação ao qual se omitira, uma
vez que a partir dessa omissão foi criada no empregado a justa expectativa de
que não seria dispensado por justa causa.
Deve-se desde logo ressaltar, contudo, dois aspectos que mais à
frente serão examinados de modo detalhado. O primeiro deles é que essa
demora do empregador em punir, primeiro se omitindo de adotar qualquer
punição e depois dispensando por justa causa, não pode ser justificada, pois,
se o for, não se caracterizará o venire, e a dispensa por justa causa será válida
(veja-se, adiante, o item 2.3.2.2). E o segundo é que essa demora injustificada,
de fato, faz surgir no empregado a expectativa de que o mesmo não mais será
dispensado por justa causa, pois transmite-lhe a impressão de que, apesar da
falta, não houve a quebra da fidúcia que é inerente ao contrato de trabalho, e o
surgimento dessa expectativa é essencial à caracterização do venire contra
factum proprium (veja-se, à frente, o item 2.3.2.3).
Na hipótese acima, vimos situação onde a contradição foi
detectada no comportamento do empregador, que, após uma omissão,
pretendeu uma atuação, sendo que esta era contraditória com aquela. Vejamos,
agora, hipótese semelhante, mas sendo que o comportamento contraditório é
do empregado, observando que se trata de questão enfrentada nos tribunais
trabalhistas com enorme freqüência.
A Constituição Federal assegurou à empregada gestante a
proteção contra a dispensa imotivada, desde a confirmação da gravidez até
cinco meses após o parto, sendo que tal proteção é de natureza objetiva, como
já comentamos linhas atrás (item 1.8), ou seja, protege-se a gravidez em si
355
mesma, e não o seu conhecimento por parte do empregador ou mesmo por
parte da empregada. Dito de modo mais claro, a garantia ao emprego será
mantida ainda que, no momento da dispensa da empregada, nem ela mesma
soubesse que estava grávida, sendo irrelevante esse aspecto subjetivo.
Nessas condições, é corriqueiro que uma empregada grávida
venha a ser dispensada no momento em que o empregador (e, por vezes, a
própria empregada) não sabia do estado gravídico. Descoberta a gravidez, a
empregada pode requerer sua reintegração ao emprego, em sede
administrativa ou, se necessário, mediante o ajuizamento de ação trabalhista.
Por outro lado, sabe-se o prazo prescricional, em relação às pretensões do
empregado que sejam resultantes das relações de trabalho, é de dois anos após
o término do contrato, nos termos do artigo 7°, XXIX, da Constituição
Federal.
A empregada, então, deixa transcorrer in albis o período de
gestação, até que seu filho venha a nascer, em nenhum momento informando
ao seu antigo empregador que estava grávida, no momento da dispensa, e nem
ajuizando a reclamatória trabalhista. Após o nascimento de seu filho, a
empregada ainda aguarda mais uns cinco ou seis meses, e só aí ingressa com a
ação trabalhista, deduzindo sua pretensão contra o seu antigo empregador.
Importante observar que, transcorridos os nove meses da gestação e mais os
cinco ou seis meses após o nascimento, ainda não houve a fluência integral do
prazo prescricional, que é de dois anos. Ou seja, a pretensão deduzida pela
empregada ainda não foi fulminada pela prescrição.
Por outro lado, o período de garantia do emprego era de
aproximadamente 14 meses (os nove meses da gestação e mais cinco meses
após o parto), o que significa que tal período, no momento em que a ação foi
ajuizada, já havia se esgotado. Logo, não faria mais sentido que a empregada
356
pleiteasse a sua reintegração ao emprego, pois esta não lhe é mais garantida, e
dessa forma o pedido que vem a ser apresentado, invariavelmente, é o de
pagamento dos salários e demais verbas trabalhistas referentes aos 14 meses
de garantia de emprego.
Ocorre que a garantia constitucional não se refere ao pagamento
dos salários referentes a um período não trabalhado, mas sim à permanência
no emprego por um determinado período. Logo, se a empregada deixou
transcorrer, sem qualquer providência, esse mesmo prazo, esse seu primeiro
comportamento (a omissão, quanto às providências que poderia ter adotado)
parece indicar que a mesma não tem qualquer interesse em retornar ao
trabalho. Por isso, o segundo comportamento – o ajuizamento da ação – se
mostra contraditório, pois foi deduzido pleito que é uma mera decorrência do
direito de retornar ao trabalho, direito esse que foi inviabilizado pela
inatividade de sua própria titular. Pode-se vislumbrar aí, portanto, a ocorrência
do venire contra factum proprium335.
335
Convém observar, contudo, que não é essa a posição do Tribunal Superior do Trabalho, que em
recentes decisões vem admitindo que o fato de já se ter esgotado o prazo de estabilidade, quando do
ajuizamento da ação, não impede que se defira à empregada a indenização do período correspondente.
Pensamos que está equivocada aquela Corte Superior Trabalhista, mas deixamos de enfrentar a polêmica, por
não se constituir a mesma no foco do presente estudo, onde apenas se pretendeu apontar um possível caso de
venire e, por questão de lealdade ao leitor, optou -se por noticiar que a posição contrária é a que predomina no
Tribunal Superior do Trabalho. Assim, por exemplo, no Recurso de Revista RR - 75656/2003-900-02-00,
publicado no DJ - 05/08/2005, 2ª Turma, Ac. unânime, Rel. Min. José Simpliciano Fontes de F. Fernandes,
cuja ementa ficou assim redigida:
FGTS. VERBA INDENIZATÓRIA. O empregador não pode se eximir de cumprir a obrigação de
pagar o FGTS e multa, se único responsável pela dispensa indevida da Reclamante, pois detentora de
estabilidade gestante, e devidos no caso de cumprimento do contrato de trabalho regularmente.
Recurso não conhecido. ESTABILIDADE. DEMORA NO AJUIZAMENTO DA AÇÃO.
CONSEQÜÊNCIAS. A demora no ajuizamento da ação não importa renúncia de direito, pois devida
a indenização no caso de o período estabilitário já ter se exaurido (Súmula 244, II, do TST). Recurso
de Revista conhecido e não provido.
E no voto desse mesmo Acórdão ficou anotado que:
....................
2 - ESTABILIDADE. DEMORA NO AJUIZAMENTO DA AÇÃO. CONSEQÜÊNCIAS
a) Conhecimento
O Tribunal Regional analisou a questão no julgamento dos Embargos Declaratórios da Reclamada.
Concluiu: “A reclamante propôs a ação dentro do biênio constitucional, em que é pleno o seu direito
357
Mas veja-se que estamos nos referindo à hipótese na qual o
período de garantia de emprego se escoou diante de omissão absoluta da
empregada, daí a contradição. É evidente que completamente diversa seria a
situação se a empregada tivesse desde logo requerido a sua reintegração, em
sede administrativa, mas não fosse atendida pelo empregador. Ou, então, a
hipótese na qual a empregada tivesse ajuizado sua ação, que foi contestada
pelo empregador, sendo que o trânsito em julgado da decisão que mandou
reintegrá-la só veio a ocorrer após o transcurso integral do prazo de garantia
do emprego. Em tais casos não haveria comportamento contraditório algum,
mesmo porque nem ao menos houve qualquer omissão da empregada.
Essa hipótese, na realidade, da empregada que deixa transcorrer
in albis o período de sua estabilidade, para só depois apresentar reclamação,
mais se aproxima da figura da suppressio, e por isso será explorada um pouco
mais, quando nos debruçarmos sobre tal instituto.
de ação. A alegação de que a propositura tardia da ação afastaria o direito à estabilidade é
impertinente” (fl. 329). A Reclamada defende a tese de que o ajuizamento tardio da presente
reclamação afasta a pretensão da Reclamante. Transcreve arestos para o cotejo de teses. Os arestos
de fl. 337 autorizam o conhecimento do Recurso, pois trazem tese no sentido de que a demora no
ajuizamento da ação importaria na renúncia da garantia do emprego. Conheço, por divergência
jurisprudencial.
b) Mérito
O artigo 10, II, “b”, do ADCT assegura à gestante, estabilidade no emprego desde a confirmação da
gravidez até cinco meses após o parto. A dispensa realizada em confronto com a referida norma, é
nula, sendo necessária a reintegração da empregada no emprego ou, no caso de exaurido o período
estabilitário, o pagamento dos salários correspondentes ao período. Esse o entendimento pacificado
pelo Tribunal Superior do Trabalho, conforme dispõe a Súmula 244, II: “Gestante. Estabilidade
provisória. (incorporadas as Orientações Jurisprudenciais nºs 88 e 196 da SDI-1) - Res. 129/2005 DJ 20.04.05 I - O desconhecimento do estado gravídico pelo empregador não afasta o direito ao
pagamento da indenização decorrente da estabilidade. (art. 10, II, "b" do ADCT). (ex-OJ nº 88 - DJ
16.04.2004) II - A garantia de emprego à gestante só autoriza a reintegração se esta se der durante o
período de estabilidade. Do contrário, a garantia restringe-se aos salários e demais direitos
correspondentes ao período de estabilidade. (ex-Súmula nº 244 - Res. 121/2003, DJ 21.11.2003) III Não há direito da empregada gestante à estabilidade provisória na hipótese de admissão mediante
contrato de experiência, visto que a extinção da relação de emprego, em face do término do prazo,
não constitui dispensa arbitrária ou sem justa causa. (ex-OJ nº 196 - Inserida em 08.11.2000)” Assim,
o fato da reclamação ter sido ajuizada após o período estabilitário, não prejudica a Autora, pois
devidos os salários e demais direitos relativos ao período estabilitário.
358
Há uma outra situação que é de grande importância no Direito do
Trabalho, mas que também pode interessar ao campo do Direito
Administrativo, e cuja freqüência com que se verifica na prática justifica que
façamos, aqui, a sua minuciosa abordagem. Trata-se de situação que pode ser
desdobrada em duas hipóteses, na primeira das quais o empregado é enviado,
pelo empregador, para fazer um curso no exterior (ou mesmo dentro do
Brasil), para aperfeiçoamento no serviço ou para que possa começar a operar
com um equipamento específico, sendo esse treinamento de vários meses de
duração, com todas as despesas pagas pela empresa e com a manutenção do
pagamento normal do salário.
Encerrado o curso, no entanto, pouco depois do empregado ter
retornado ao seu trabalho normal, o mesmo vem a ser dispensado pelo
empregador, sem que para isso tenha dado qualquer causa justificadora dessa
brusca ruptura do contrato de trabalho.
Qualquer das partes contratantes, em um contrato de trabalho por
prazo indeterminado, empregado e empregador, como já mencionamos acima,
tem o direito potestativo de romper esse mesmo contrato (salvo nas hipóteses
de estabilidade, onde o empregador perde tal direito), bastando que avise
previamente ao outro contratante. Neste caso específico, no entanto, o
exercício de tal direito por parte do empregador se constitui em inadmissível
quebra de coerência, que vem a frustrar expectativa legitimamente surgida,
caracterizando-se portanto o venire.
Com efeito, fácil é de se perceber que o empregador, ao enviar
seu empregado para participar de um curso no exterior, fazendo alto
investimento financeiro nesse aprimoramento do trabalhador, fez com que este
último acreditasse que, no regresso, teria o seu emprego assegurado. Com
efeito, é bastante razoável que se suponha que quando uma empresa investe
359
altas somas na formação e aperfeiçoamento de um funcionário, fá-lo por
pretender contar com tal empregado em seus quadros, e não por ter a intenção
de dispensá-lo. Logo, a dispensa imotivada desse mesmo empregado se
caracteriza em comportamento contraditório inadmissível.
E é de se ver que o empregado, em virtude da expectativa de que
seria mantido em seu emprego, também fez investimentos de ordem pessoal,
concordando em ficar longe da família e longe de seu centro habitual de
ocupações e de convivência social, para poder participar do treinamento que
lhe permitiria um melhor aproveitamento nos quadros da empresa. Logo, essa
expectativa frustrada deverá ser reparada mediante o pagamento de
indenização ou pela reinserção desse empregado nos quadros da empresa,
conforme se mostrar mais conveniente no caso concreto.
Nessa primeira hipótese, acima exemplificada, o interesse maior,
presente no primeiro comportamento, era o do empregador, que pretendia que
seu empregado recebesse um treinamento voltado para aperfeiçoá-lo no
desempenho de suas tarefas. Mas também é corriqueira a situação na qual o
interesse principal é do empregado ou, pelo menos, de ambos, empregado e
empregador, conjuntamente.
É o que se dá, por exemplo, quando um empregado de uma
empresa (ou um servidor público) é liberado de suas funções, sem prejuízo do
salário (ou dos vencimentos), para poder participar de um curso de natureza
científica, como mestrado, doutorado ou pós-doutorado. Veja-se que o
empregador (ou a Administração Pública) não terá um benefício direto, pois o
empregado não estará sendo treinado especificamente para um melhor
desempenho no serviço.
No entanto, é evidente que esse tomador dos serviços, seja ele um
empregador particular ou seja a Administração Pública, tem a expectativa de
360
que, no retorno do trabalhador, estando este com um melhor embasamento
científico, será possível um ganho na produtividade ou na qualidade dos
serviços. E essa confiança na obtenção de um melhor desempenho, como é
bastante intuitivo, engloba a idéia de que o empregado (ou servidor), após o
retorno às atividades, deverá prestar seus trabalhos para aquele mesmo
tomador que lhe custeou os estudos.
Muitas vezes, no entanto, tão logo retorna ao trabalho, esse
empregado ou servidor público, agora com uma formação científica mais
sólida, recebe uma proposta de um outro emprego, com melhor salário (pois o
novo empregador nada desembolsou para essa sua melhor formação), e se
despede do emprego ou pede exoneração do serviço público. Nesse caso, foi o
empregado que exerceu de modo inadmissível seu direito potestativo de
romper o contrato, incidindo em venire contra factum proprium.
Com efeito, quando o empregado pediu afastamento para poder
estudar, custeado pelo empregador, surgiu neste a expectativa de que obteria
retorno, uma vez que o empregado retornaria ao trabalho com uma maior
qualificação, ainda que o curso para o qual se afastara não fosse diretamente
ligado às atividades inerentes a sua função na empresa. Ao pedir demissão,
após a conclusão com êxito desse mesmo curso, o empregado frustrou as
expectativas legitimamente criadas pelo empregador, e por isso deverá reparar
os prejuízos causados.
Tais situações, na prática, geralmente envolvem um aditivo
contratual, no qual se prevê que o empregado, em troca do custeio dos seus
estudos, a ser feito pelo empregador, se compromete a não pedir demissão
durante um determinado prazo, que se mostre razoável para que o empregador
possa recuperar seu investimento, sob pena de ter que indenizar o empregador.
Discute-se, em Direito do Trabalho, se é válido ou não esse tipo de cláusula.
361
Penso não haver qualquer dúvida sobre a validade da mesma, pois nada mais
faz do que preservar a conduta de boa-fé das partes contratantes.
O que não é válido, isso sim, é a previsão contratual da qual
conste, simplesmente, que o empregado não poderá pedir dispensa, durante
um determinado tempo, pois é direito fundamental o exercício livre de
qualquer trabalho ou profissão (CF, art. 7º, XIII), não se podendo forçar a
manutenção do vínculo do trabalhador a um determinado contrato (CF, 7º,
XX), notadamente quando se observa que, no contrato de trabalho, a prestação
a ser fornecida pelo empregado diz respeito, diretamente, à sua própria
dignidade, pois é a sua força física, óbvia e indissoluvelmente ligada à sua
pessoa, que estará sendo colocada à disposição do empregador. E exatamente
esse mesmo raciocínio pode ser desenvolvido quanto à relação entre o
servidor público e a Administração Pública.
Só que não é disso que se trata, mas sim da indenização a ser
paga pelo empregado ao empregador. O empregado, portanto, não poderá ser
forçado a manter-se vinculado ao contrato, dele podendo se desvencilhar a
qualquer tempo. No entanto, se essa for a sua opção, deverá arcar com as
conseqüências da mesma, inclusive o pagamento da indenização ao seu
empregador. Em outras palavras, o empregado sempre terá a liberdade de
escolher entre continuar prestando seus trabalhos àquele mesmo empregador,
durante um tempo razoável, ou então indenizá-lo em virtude do investimento
frustrado.
Na realidade, parece-me que mesmo que não houvesse qualquer
cláusula contratual prevendo a mencionada indenização, ainda assim a mesma
seria devida, pelo empregado ao empregador. É que a hipótese, nitidamente,
como já vimos, é de venire contra factum proprium, ou seja, de um
comportamento contraditório que frustra expectativa legítima, e por isso
362
deverá indenizar essa frustração. A única diferença é que, quando existe a
cláusula contratual (e na prática ela sempre existe), a questão será resolvida
mediante o recurso à previsão legal já existente, e que se refere ao
inadimplemento das obrigações, como já vimos linhas atrás. E, não existindo
tal cláusula, deverá o sujeito prejudicado (no caso, o empregador) valer-se da
figura do venire, para buscar o ressarcimento dos seus prejuízos.
e) O segundo comportamento deve piorar a situação do outro sujeito.
Por último, em relação aos comportamentos contraditórios, podese observar – embora a observação seja tão óbvia que possa parecer
tautológica – que a caracterização do venire contra factum proprium se dará
tão-somente quando, entre os dois comportamentos contraditórios, o segundo,
em relação ao primeiro, estiver piorando a situação do outro sujeito, aquele no
qual se formou a expectativa acerca de um negócio jurídico. Se o segundo
melhorar a situação do outro sujeito, é evidente que não se poderá falar em
venire.
Com efeito, a idéia que se encontra subjacente ao instituto do
venire – e, de modo geral, a todos os institutos decorrentes da boa-fé como
norma de conduta – é a proteção de um sujeito que, em virtude de um primeiro
comportamento de um outro (o factum proprium), criou uma legítima
expectativa, em relação a um determinado negócio jurídico. Logo, para se
protegê-lo é que não se admite o comportamento contraditório, ou seja, um
segundo comportamento (o venire) que venha a frustrar a expectativa
razoavelmente gerada a partir do primeiro.
Assim, se o que se quer impedir é que o venire (a segunda
conduta) venha a frustrar a confiança que o outro sujeito depositou no
363
negócio, parece evidente que se pode concluir que o que não se admitirá é que
essa segunda conduta venha a impedir que se mantenha ou concretize aquele
negócio que se esperava, criando uma situação nova que se mostra
desfavorável a esse sujeito a quem se pretende proteger.
Mas se, ao contrário, o segundo comportamento, ao se mostrar
contraditório com o primeiro, melhora a situação do outro sujeito, ou seja,
torna-lhe mais favorável a situação jurídica que era esperada a partir da
primeira conduta, é claro que não se terá aí a ocorrência do venire contra
factum proprium. Se não fosse assim, o instituto criado para proteger o sujeito
estaria sendo invocado para prejudicá-lo, o que a toda evidência se mostra
inaceitável.
A título de exemplo, para mais fácil compreensão do que acima
se disse, examinemos alguns fatos ocorridos em uma situação concreta, na
qual houve um claríssimo comportamento contraditório, mas de modo tal que
o segundo comportamento favoreceu o outro sujeito, e por isso, sem qualquer
dúvida, foi considerado como válido.
No caso em questão, um determinado empregado, que gozava de
estabilidade decenal, ou seja, aquela que, antes da vigência da atual
Constituição Federal336, era assegurada a todos os empregados que, não sendo
optantes do FGTS, tivessem pelo menos dez anos de serviço na mesma
empresa, teria supostamente cometido uma falta grave, especificamente a de
desídia (em outras palavras, o empregado teria sido negligente), motivo pelo
336
A estabilidade decenal, prevista no artigo 492 da CLT, é incompatível com o regime do FGTS.
Assim, até 1966, data em que foi instituído o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (Lei n° 5.107/66),
todos os empregados adquiriam essa mencionada estabilidade, tão logo completassem dez anos de serviço na
empresa. A partir da instituição, como a adesão ao FGTS dependia de opção do trabalhador, os empregados
optantes deixaram de adquirir a estabilidade, ao completar dez anos de serviço, sendo a mesma mantida, no
entanto, para os não-optantes do regime. A partir da Constituição Federal de 1988, no entanto, todos os
empregados passaram a ser, obrigatoriamente, vinculados ao regime do FGTS, e por isso todos os contratos
de trabalho celebrados após 05.10.1988 se tornaram incompatíveis com a aquisição da estabilidade prevista
no artigo 492, da CLT.
364
qual o empregador resolveu dispensá-lo por justa causa. Com tal finalidade, o
empregador ajuizou inquérito para apuração de falta grave 337.
No entanto, no curso desse processo judicial para apuração da
suposta desídia do empregado, o empregador, no caso um grande banco,
enviou para esse empregado supostamente desidioso o comunicado de que o
mesmo estava sendo promovido por merecimento. Ora, é evidente que a
imputação de conduta desidiosa (negligente) ao empregado é absolutamente
incompatível com a promoção por merecimento, pois não há como se admitir
que o empregado, se realmente fosse negligente, pudesse ser merecedor da
ascensão funcional. Logo, o segundo comportamento do empregador (a
promoção) mostrou-se contraditório, em relação ao primeiro (a dispensa por
desídia).
Só que essa contradição, no caso, ocorreu de um modo tal que
veio a melhorar a situação jurídica do outro sujeito (o empregado), ou seja,
veio a retirá-lo de uma situação em que estava sendo acusado de negligente
para uma outra, na qual foi apontado como merecedor de promoção, e
portanto esse venire, ou seja, esse segundo comportamento contraditório,
mostra-se plenamente admissível, não se podendo falar na ocorrência do
venire contra factum proprium.
Não é demais lembrar que a figura do venire contra factum
proprium foi criada para conferir proteção ao sujeito que poderia ser afetado
pelos comportamentos contraditórios (no caso apontado, o empregado), pois
em virtude destes poderia ter frustradas suas expectativas que foram válida e
razoavelmente criadas. Logo, não haveria o menor sentido em que se
337
O empregado estável, esclareça-se, só pode ter o seu contrato resolvido por iniciativa do empregador
se vier a cometer falta grave, devidamente reconhecida em processo judicial (o inquérito), pois apenas a
decisão judicial transitada em julgado é que terá força para resolver o contrato, nos termos do artigo 494, da
CLT.
365
invocasse essa mesma figura do venire contra factum proprium em desfavor
daquela pessoa a quem se deseja proteger, vale dizer, seria ilógico que se
apontasse a contradição entre as condutas para manter o primeiro dos
comportamentos (a dispensa por desídia), afastando-se os efeitos do segundo
(o reconhecimento do mérito do empregado).
2.3.2.2. A contradição.
Examinado o primeiro dos elementos que devem estar presentes,
para que se caracterize o venire contra factum proprium, passemos agora ao
exame do segundo desses elementos, ou seja, a contradição em si mesma.
Uma primeira observação, que na verdade ressalta de alguns dos
dispositivos legais que já examinamos, é que a contradição verificada entre os
comportamentos do sujeito deve ser injustificada. Assim, por exemplo, se a
contradição foi aferida no cotejo de um comportamento atual com um anterior,
sendo que neste (o primeiro comportamento) se tratou de situação na qual era
inexigível que o sujeito se comportasse de outra forma, não se terá
concretizado o venire, pois a contradição, no caso, está justificada.
E é interessante ressaltar que essa ocorrência da inexigibilidade
de conduta diversa, capaz de justificar a contradição e impedir que se
caracterize o venire, vai se manifestar, sempre, em relação ao primeiro dos
comportamentos, pois o segundo servirá exatamente para o desfazimento do
primeiro. À guisa de exemplo, podemos nos reportar ao caso da lesão, previsto
no artigo 157, do Código Civil brasileiro.
No exemplo que examinamos, linhas atrás, um pai, precisando
custear o tratamento de saúde que o filho necessita com a máxima urgência,
oferece à venda, por cem mil reais (R$ 100.000,00), um imóvel de sua
366
propriedade, cujo valor real é de um milhão de reais (R$ 1.000.000,00). Mais
tarde, no entanto, esse pai, vendedor, busca a anulação do negócio, face à
manifesta desproporção entre a prestação que recebeu e a que entregou.
Como se percebe, na situação acima descrita há uma evidente
contradição entre os dois comportamentos, aquele no qual foi pactuada a
venda e aquele no qual se pleiteou o desfazimento dessa mesma venda. No
entanto, no caso não se verifica o venire contra factum proprium, uma vez
que, por ocasião do primeiro comportamento, o vendedor não agiu de forma
verdadeiramente livre, mas o fez pressionado pela urgência das circunstâncias,
eis que precisava arcar com as despesas do tratamento.
Destaque-se, contudo, que a inexigibilidade de conduta diversa
não é a única justificativa possível para a contradição, capaz de afastar a figura
do venire. Basta que reexaminemos a figura da assunção de dívida, por nós já
abordada, retro. O credor, mesmo tendo concordado com a substituição do
devedor por outro, poderá buscar a responsabilidade do antigo devedor se o
novo era insolvente, ao tempo da assunção, e ele, credor, não o sabia (art. 299,
parte final). Veja-se que não se pode falar, na hipótese, de inexigibilidade de
conduta diversa, pois o credor poderia, no primeiro comportamento, ter
adotado uma outra conduta, não concordando com a assunção.
O que ocorre, portanto, nessa situação retratada no artigo 299, do
Código Civil, como já havíamos comentado linhas atrás, é que se verifica a
ocorrência do erro ou ignorância do credor, ou seja, há um vício da vontade, e
este é capaz de justificar a contradição, afastando a caracterização do venire
contra factum proprium. O que as duas situações têm em comum, portanto, é
o fato de que, em ambas, no primeiro comportamento, a vontade do sujeito
não foi verdadeiramente livre, mas viciada pelas circunstâncias, quer pela
urgência por elas imposta, quer por desconhecê-las.
367
Em uma primeira aproximação, na tentativa de sistematizar essa
questão da justificativa da contradição, portanto, podemos dizer que estaria a
mesma justificada, afastando a caracterização do venire, sempre que se
apurasse que, no primeiro dos comportamentos, não se tratou de um ato da
vontade livre, ou seja, houve algum vício na vontade do sujeito. Se bem
observarmos, essa afirmação acaba por se confundir com o requisito de que
tenha sido válido cada um dos comportamentos contraditórios (veja-se, retro,
o item 2.3.2.1, a), pois se tivesse havido o vício da vontade, o primeiro
comportamento teria sido inválido, o que em regra, como já vimos, afasta a
ocorrência do venire.
O problema é que essa falta da vontade livre, no primeiro dos
comportamentos, não se mostra como suficiente para justificar a contradição,
por isso que haverá situações em que, mesmo não tendo havido vontade livre
na primeira das duas atuações (ou omissões), ainda assim poderá ser
caracterizada a ocorrência do venire. Por outro lado, há hipóteses nas quais
não houve qualquer vício da vontade, no primeiro comportamento (ou seja, a
vontade do sujeito estava livre de defeitos), e mesmo assim a contradição
poderá ser justificada. Vejamos.
Suponha-se que um determinado bem, que havia sido avaliado
por um perito em duzentos mil reais (R$ 200.000,00), foi vendido por seu
proprietário, sendo o preço ajustado em cento e noventa e cinco mil reais (R$
195.000,00). O comprador, até o momento da celebração do contrato, nem ao
menos conhecia o vendedor. Posteriormente, no entanto, constata-se que o
vendedor, em virtude de deficiência mental, é pessoa absolutamente incapaz,
não tendo o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil,
sendo que a perícia médica, no processo de interdição, constata que esse
368
estado já existia no momento em que foi celebrado o contrato de compra e
venda acima mencionado.
Desse modo, tendo em vista a incapacidade absoluta do vendedor,
este, devidamente representado por seu curador, ajuíza ação de nulidade, para
desfazer o negócio de compra e venda. Em tal caso, poderá o comprador
alegar a ocorrência do venire contra factum proprium, ou seja, poderá ele
apontar que o comportamento do vendedor (embora representado, no segundo
momento), sendo contraditório com o primeiro, se apresenta como capaz de
frustrar sua boa-fé? Não temos dúvidas em afirmar que sim: o comprador
poderá opor, à pretensão de desfazimento do contrato, sua boa-fé e a legítima
expectativa que do negócio havia surgido, apesar da inexistência de previsão
legal, em nosso Código Civil, ao contrário do que ocorre em algumas
legislações alienígenas.
Com efeito, em vários outros Códigos Civis (Código Civil
francês, art. 503338; Código Civil italiano, art. 428339; Código Civil português,
arts. 150 c/c art. 257340), existe a previsão explícita de que os atos anteriores à
338
Art. 503. Les actes antérieurs pourront être annulés si la cause qui a déterminé l’ouverture de la
tutelle existait notoirement à l’époque où ils ont été faits.
339
Art. 428. ATTI COMPIUTI DA PERSONA INCAPACE D’INTENDERE O DI VOLERE. – Gli atti
compiuti da persona che, sebbene non interdetta, si provi essere stata per qualsiasi causa, anche transitoria,
incapace d’intendere o di volere al momento in cui gli atti sono stati compiuti, possono essere annullati su
instanza della persona medesima o dei suoi eredi o aventi causa, se ne risulta un grave pregiudizio
all’autore.
L’annullamento dei contratti non può essere pronunziato se non quando, per il pregiudizio che sia
derivato o possa derivare alla persona incapace d’intendere o di volere o per la qualità del contratto o
altrimenti, risulta la malafede dell’altro contraente. (grifei)
................
A necessidade de que tenha havido má -fé, por parte do outro contratante, para que o contrato possa
ser anulado, atende à exigência de tutela da confiança da contraparte. De fato, quando a outra parte tem
conhecimento do estado psíquico do sujeito, não houve confiança em relação à validade do contrato, e por
isso será possível a anulação. Mas essa possibilidade não existirá, ao contrário, se o outro contraente, não
conhecendo o estado de incapacidade, adquiriu confiança sobre a validade do contrato. Nesse caso, a
exigência de tutela da confiança prevalece sobre a exigência de tutela do incapaz, e o contrato permanecerá
válido. Cf. F. del Giudice (Coord.), Codice Civile spiegato Articolo per Articolo, v. 1, p. 273, nota 4 ao artigo
428.
340
ARTIGO 150º (Actos anteriores à publicidade da acção).
369
sentença de interdição (no caso do Código português, a observação se refere
aos atos anteriores à propositura da ação, e não à sentença de interdição)
também poderão ser anulados em virtude da incapacidade, se esta já existia,
mas desde que fosse notória ou existissem razões para que fosse conhecida
pela outra parte. Contrario sensu, portanto, esses atos deverão ser mantidos,
ainda que a loucura já existisse, mas se a mesma não era notória e nem havia
qualquer razão para que a outra parte dela tivesse conhecimento, uma vez que
o negócio se realizou nas condições normais para os negócios daquela espécie.
No nosso ordenamento, no entanto, não existe norma legal
semelhante, e por essa razão seria possível apontar-se que o negócio praticado
pelo amental seria sempre nulo, pouco importanto se já existe ou não a
sentença de interdição. Ocorre que, como aponta Sílvio Rodrigues341, “tal
solução é demasiado severa para com os terceiros de boa-fé que com ele
negociaram, ignorando sua condição de demente. De modo que numerosos
julgados têm aplicado, entre nós, aquela solução encontradiça alhures,
segundo a qual o ato praticado pelo psicopata não interditado valerá se a
outra parte estava de boa-fé, ignorando a doença mental que o afetava”.
E prossegue o mestre, na mesma obra e local342, e ainda
comentando sobre o tema, dizendo que
“A meu ver tal solução não destoa da lei. O interesse geral, representado
pelo anseio de infundir segurança aos negócios jurídicos, impõe que se
prestigie a boa- fé. Dessa maneira, devem prevalecer os negócios praticados
341
342
Aos negócios celebrados pelo incapaz antes de anunciada a proposição da acção é aplicável o
disposto acerca da incapacidade acidental.
ARTIGO 257º (Incapacidade acidental).
1. A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente
incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que
o facto seja notório ou conhecido do declaratório.
2. O facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar.
Sílvio Rodrigues, Direito Civil, v. 1: Parte Geral, p. 49.
Sílvio Rodrigues, Direito Civil, v. 1: Parte Geral, pp. 49-50.
370
pelo amental não interditado, quando a pessoa que com ele contratou
ignorava e carecia de elementos para verificar que se tratava de um alienado.
Entretanto, se a alienação era notória; se o outro contratante dela tinha
conhecimento; se podia, com alguma diligência, apurar a condição de
incapaz; ou, ainda, se da própria estrutura do negócio ressaltava que seu
proponente não estava em seu juízo perfeito, então o negócio não pode ter
validade, pois a idéia de proteção à boa-fé não mais ocorre”.
No entanto, veja-se que no presente exemplo, no que diz respeito
à vontade, a situação mostra-se ainda mais grave do que nos exemplos
anteriores. Com efeito, nas situações anteriormente abordadas (a do pai que
vendia o imóvel por um décimo do seu valor e a do credor que concordava
com a assunção da dívida sem saber do estado de insolvência do novo
devedor), havia um vício da vontade, o que significa que pelo menos havia
uma vontade, embora viciada (no primeiro caso, pela lesão, e, no segundo,
pelo erro). No caso do amental, no entanto, ora figurado, simplesmente não há
vontade alguma, por isso que se trata de pessoa absolutamente incapaz,
privada por completo de seu discernimento.
Apesar disso, ou seja, apesar de ser mais grave o defeito da
vontade, conforme as diferenças apontadas no parágrafo anterior, ainda assim
pensamos que, no caso da venda do imóvel pelo incapaz absoluto, o negócio
deverá ser mantido, rejeitando-se a pretensão de que seja declarada a nulidade
do mesmo, uma vez que tal nulidade teria o efeito de frustrar a boa-fé do
comprador, e é precisamente em homenagem e proteção a essa boa-fé que o
contrato, no caso, não poderá ser anulado, inobstante se trate de nulidade
absoluta.
Vejamos, agora, a hipótese inversa, ou seja, aquela na qual houve
a contradição (pelo menos aparentemente), não se verificou qualquer vício da
vontade no primeiro dos comportamentos do sujeito, e mesmo assim a
contradição poderá ser considerada como justificada.
371
Vimos, no subitem anterior (veja-se, retro, 2.3.2.1), que no caso
do empregado ter cometido falta grave, a demora do empregador na adoção de
medidas punitivas, mesmo já tendo ciência da ocorrência do ato faltoso, se
caracterizará como caso de venire contra factum proprium (denominado pela
doutrina especializada de “perdão tácito”), e o empregador não mais poderá
punir o seu empregado, posteriormente, em virtude desse mesmo fato. No
entanto, suponha-se que o empregador, após ter tomado conhecimento da
prática do ato pelo seu empregado, não adotou de imediato qualquer medida
punitiva, mas não o fez porque decidiu apurar minuciosamente o ocorrido,
inclusive com a abertura de chance de ampla defesa para o empregado.
Ora, em tal situação, dependendo do maior ou menor porte e da
complexidade da estrutura organizacional da empresa empregadora, é possível
que essa apuração demore alguns meses, e portanto a demora na aplicação da
punição não poderia caracterizar o venire, eis que estaria justificada pelo fato
do empregador ter sido cauteloso, não dispensando o empregado sem a prévia
e completa apuração dos fatos.
Nesse mesmo sentido, a jurisprudência 343 dos nossos tribunais
trabalhistas, embora sem fazer qualquer referência ao venire contra factum
proprium (ainda que para afastá-lo), é tranqüila em admitir que a estrutura
complexa de uma empresa, na qual existam diversos níveis hierárquicos e uma
rígida descrição, feita pelo regulamento da empresa, sobre os procedimentos a
343
EMENTA: JUSTA CAUSA. IMEDIATIDADE. PERDÃO TÁCITO. Diante da complexidade do
sistema financeiro em geral, bem como do número de correntistas envolvidos em trama de monta
articulada por empregado bancário, claro que a empresa necessita de um tempo para realizar todo o
levantamento das operações irregulares imputadas aotrabalhador. Assim, tem-se que o lapso de 4 meses,
havido entre a ciência da infração e a efetivação da rescisão é razoável, justificando-se pela cautela em se
apurar melhor as evidências e, ainda, pela necessidade das providências administrativas centralizadas em
empresa de grande porte e de complexa administração, não havendo falar em perdão tácito ou decadência
do direito de punir, nem em inobservânica de imediatidade, posto que não é ela sinônimo de
automaticidade irrefletida. TRT 3ª Região (MG), Processo n° 01105-2001-080-03-00, 8ª T., Ac. unânime,
Rel. Juiz Paulo Maurício Ribeiro Pires. J. 07.08.2002, p. DJMG 22.08.2002, pág. 17.
372
serem adotados para a apuração de atos faltosos do empregado, justifica que a
aplicação da punição se dê de modo mais demorado do que ocorreria em uma
empresa de estrutura simplificada. Em outras palavras, portanto, justifica a
aparente contradição.
Como se vê, portanto, voltando ao que mencionamos linhas atrás,
o simples fato da vontade não ser efetivamente livre, ou seja, de ser viciada,
não é suficiente para justificar a contradição e ter o efeito de afastar a
caracterização do venire; por outro lado, o fato de ter sido livre a vontade não
impede que possa ser justificada a contradição. Há, portanto, mais um fator a
ser considerado, e que é o que poderíamos denominar de “normalidade do
negócio”. Em outras palavras, o vício da vontade, em si mesmo, não é o
aspecto mais relevante, para que se considere a contradição como sendo
justificada, e com isso se afaste a ocorrência do venire.
O que de fato interessa é perquirir se o negócio jurídico foi ou
não celebrado dentro das condições de normalidade, para aquele tipo de
negócio. Se o foi, então é legítima a expectativa do outro sujeito, no sentido de
que o negócio deva ser mantido. Em caso contrário, vale dizer, se as condições
do negócio claramente se mostram inadequadas para aquele tipo de situação,
ainda que o outro sujeito não tenha conhecimento de qualquer defeito relativo
à vontade, ainda assim não poderá alegar que em virtude desse negócio
formou-se em seu íntimo a expectativa de sua manutenção.
Em confirmação dessas observações, dentre os três exemplos
acima, trazidos a exame, veja-se que, no caso do incapaz absoluto, apesar de
tal incapacidade, nada há de anormal no negócio, pois a coisa vendida havia
sido avaliada em duzentos mil reais, e o valor venal foi de cento e noventa e
cinco mil reais, sendo certo que é bastante comum e razoável que haja uma
ligeira flutuação no preço, para mais ou para menos, quando cotejado com o
373
valor da avaliação previamente feita. E é precisamente por ter o primeiro dos
comportamentos (a celebração do negócio) apresentado todos os traços de
normalidade, ou seja, por ter sido contratado nas mesmas condições em que
normalmente seriam celebrados os contratos, nessa mesma situação, foi que
surgiu no outro sujeito a expectativa que impedirá o desfazimento contratual.
Nos outros dois exemplos, no entanto, diferente é a situação, pois
tanto no caso da lesão quanto no caso da concordância com a assunção de
dívida, é de se observar que o sujeito, no primeiro dos seus comportamentos,
agiu de um modo que não seria o normal para aquele tipo de situação. No caso
da lesão, as condições do negócio são claramente inadequadas, não se
podendo considerar como normal que um imóvel cujo valor situa-se em torno
de um milhão de reais venha a ser vendido pelo preço de cem mil reais.
E veja-se que, mesmo que o comprador não saiba do problema de
saúde do filho do vendedor (na verdade, se soubesse, não seria hipótese de
lesão, mas de estado de perigo), ainda assim, qualquer pessoa mediana saberia
identificar que o valor da venda se mostra completamente irreal, sendo tão
grande a desproporção entre as prestações que não poderá esse comprador
pretender-se opor ao desfazimento do negócio sob a alegação de que havia
legitimamente acreditado que o mesmo não apresentava nada de anormal e por
isso deveria ser mantido. Esse padrão de normalidade, como é evidente, só
pode ser aferido em cada circunstância concreta, e não depende do
conhecimento (ou da falta dele) por parte do comprador.
No terceiro dos exemplos, ou seja, no caso da assunção de dívida,
pode-se com facilidade chegar à mesma conclusão acima, ou seja, o primeiro
dos comportamentos do credor, ao concordar com a assunção da dívida pelo
novo devedor, fugiu do comportamento que poderia ser considerado como
normal. Com efeito, parece evidente que o credor, se soubesse da situação de
374
insolvência do novo devedor, que lhe foi apresentado pelo antigo, não teria
concordado com a substituição. Logo, a concordância fugiu ao que se poderia
considerar como normal, pois a normalidade, ao contrário, seria exatamente a
não concordância.
E também aí, nesse caso do erro ocorrido no assentimento
referente à assunção de dívida, pode-se mais uma vez observar que se mostra
absolutamente irrelevante o fato do antigo devedor de nada saber sobre o
estado de insolvência do novo, pois ainda assim aquele poderá ser
responsabilizado pelo credor, que dele poderá exigir o pagamento da
obrigação. É que o antigo devedor tinha o dever de ter investigado a situação
patrimonial do devedor por quem se pretende fazer substituir. Se não o fez, foi
negligente; se o fez e descobriu a situação ruinosa do novo devedor, e sobre
ela silenciou, então agiu com dolo. E se diligenciou para averiguar essa
situação patrimonial do novo devedor, mas sobre a mesma nada descobriu, de
qualquer forma agiu com culpa in eligendo, e continuará a ser responsável.
Após essas observações, podemos tentar formular uma primeira
conclusão sobre as características da contradição em si mesma, ou seja, no
sentido de que a mesma, para que se possa caracterizar o venire contra factum
proprium, deve ser injustificada. O que se pode concluir, a partir da análise até
aqui feita, é que será justificada a contradição, e por isso não se poderá argüir
a ocorrência do venire contra factum proprium, quando o defeito no primeiro
comportamento disser respeito à declaração de vontade, sendo que em virtude
desse defeito essa declaração não ocorreu dentro dos padrões de normalidade
dos negócios da espécie, e por isso poderia – e mesmo deveria – ter sido
detectada a falha pelo outro sujeito, impedindo a formação da legítima
expectativa.
375
Quando,
ao
contrário,
apesar
do
defeito
no
primeiro
comportamento dizer respeito à declaração de vontade, essa declaração levou
a que o negócio fosse celebrado dentro das condições normais, assim
entendidas aquelas que se poderia esperar para os negócios daquele tipo, neste
caso a contradição não se justifica, uma vez que a falha detectada no primeiro
comportamento não impediu que fosse criada no outro sujeito a legítima
expectativa da correção e da adequação do negócio, e este, por tal razão,
deverá ser mantido, sendo o vício, no caso, irrelevante.
Convém observar, neste ponto, que a extrema dificuldade em se
chegar a uma conclusão sobre as características dessa contradição,
especificamente na apuração dos casos em que a mesma pode ser considerada
como justificada, e por isso capaz de afastar o reconhecimento da ocorrência
do venire, é inerente às características da própria figura em exame. Ora, o
venire contra factum proprium, como já vimos reiteradas vezes, está
enquadrado no espectro mais amplo da violação dos deveres acessórios que
decorrem da boa-fé como norma de conduta, ou seja, da boa-fé objetiva.
Portanto, se a boa-fé em si mesma, em seu aspecto objetivo, não
pode ser conceituada de um modo único, que seja amplo o bastante para
abarcar, em um conceito teórico, todas as ocorrências práticas possíveis, uma
vez que suas características sempre dependerão das circunstâncias do caso
concreto, parece bastante evidente que também as situações capazes de serem
identificadas como sendo de violação dessa mesma boa-fé, seja em virtude da
contradição ou de qualquer outro motivo, também não poderão ser
enquadradas em uma conceituação única, capaz de abarcar e permitir
aprioristicamente a identificação de todas as situações concretas.
Essas colocações vêm com a finalidade de se alertar que, em
verdade, no máximo se consegue alcançar uma aproximação de um conceito
376
amplo – e foi a esse resultado que chegamos acima –, que possa permitir a
identificação do maior número de casos possíveis, mas sem perder de vista
que a riqueza de situações da vida quotidiana sempre poderá trazer nuances
que surpreendam e afastem o cabimento do conceito elaborado. Em outras
palavras, sempre haverá situações que, não tendo embora as características
apontadas acima, poderão ser identificadas como sendo de contradição que, no
caso, se mostra amplamente justificada. Ou, ao contrário, situações que,
embora apresentando os caracteres acima identificados, no caso concreto não
afastarão a caracterização do venire contra factum proprium.
Assim, por exemplo, dentro dessas inúmeras variantes que podem
ocorrer em cada caso concreto, pode-se apontar que se o vício, em vez de ser
referente à capacidade do agente, dissesse respeito à forma, neste caso, como
já examinamos (veja-se, retro, o item 2.3.2.1, c.1), a desobediência à previsão
legal sobre a forma não afeta a correspondência entre a vontade real do agente
e aquela que foi efetivamente externada, e por essa razão pode-se apontar que
o vício de forma, em regra, não afeta as condições normais do contrato, por
isso que tal vício, no que se refere a obstaculizar a ocorrência do venire contra
factum proprium, se mostrará completamente irrelevante.
Continuando o exame da contradição que se mostra capaz de
marcar a conduta do sujeito como venire contra factum proprium, pode-se em
seguida apontar que não é todo e qualquer comportamento contraditório que
dá origem ao venire, independentemente de ser ou não justificada a
contradição. Ora, basta que se observe que se toda e qualquer contradição
fosse proibida, assim que uma pessoa tomasse uma posição, em relação a um
certo e determinado negócio, a partir daí já estaria irremediavelmente
vinculada, e todos os seus comportamentos posteriores, referentes a esse
377
mesmo negócio, já seriam previamente conhecidos, face à proibição absoluta
de que viessem a ser contraditados.
Se fosse admissível tamanha rigidez, nessa hipótese, como
acertadamente aponta Menezes Cordeiro344, “as permissões normativas
esgotar-se-iam no primeiro exercício e todo o relacionamento social
converter-se-ia num edifício rígido de deveres irrecusáveis”, ou seja, a partir
de um primeiro comportamento, qualquer que fosse ele, a pessoa acabaria
vinculada, de modo que todos os seus comportamentos posteriores tivessem
que mostrar absoluta coerência, o que se mostraria contra a natureza humana e
mesmo contra a própria natureza do Direit o, sendo por isso uma idéia
inconcebível e inaceitável.
Assim, a contradição deverá sempre se verificar entre
comportamentos humanos que, no caso concreto, possam ser considerados
como juridicamente relevantes. Tal afirmação, contudo, longe de por fim à
questão, suscita uma outra e evidente pergunta, sobre quais os critérios para
que um determinado comportamento possa ser considerado juridicamente
relevante em relação a um determinado caso concreto.
É certo que a maior ou menor relevância de um determinado fato
jurídico, no que se refere a um negócio jurídico específico, estará sempre a
depender do ângulo que se queira examinar, desse mesmo negócio. Assim, por
exemplo, se o que se pretende examinar é se houve ou não a ocorrência da
prescrição, o fato essencial a ser examinado é o transcurso do tempo, sendo o
que se mostra de maior relevância jurídica. Em relação à ocorrência dessa
prescrição, em regra se mostrará irrelevante perquirir se uma obrigação é
portável ou quesível.
344
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 751.
378
No entanto, caso se pretenda examinar se o devedor, que não
procurou o credor para efetuar o pagamento, está ou não em mora, se dará
exatamente o inverso da situação acima descrita, ou seja, agora é o decurso do
tempo que se mostrará juridicamente irrelevante, enquanto que a
caracterização da obrigação como sendo quesível ou portável se mostrará
como o fator de maior relevância jurídica.
Da mesma forma, pode-se apontar que, para fins de
caracterização da fraude contra credores, em caso de perdão de dívida, oferta
de garantia, ou de transmissão gratuita de bens, quando tais atos sejam
praticados por devedor insolvente ou que, em virtude deles, seja levado ao
estado de insolvência, mostra-se absolutamente irrelevante perquirir se o
devedor perdoado, o credor que recebeu a garantia ou o adquirente dos bens,
ou o próprio devedor insolvente, sabiam ou não do estado de insolvência, pois
em qualquer dos casos estará caracterizada a fraude e poderão os credores
quirografários, prejudicados pelo desfalque do patrimônio do devedor, buscar
a anulação do negócio jurídico.
No entanto, quando o que se quer é examinar se o alienante de um
determinado bem, em contrato comutativo, apenas restituirá o preço recebido,
em caso de vício redibitório, ou se, ao contrário, além do preço também
responderá pelas perdas e danos sofridas pelo adquirente, nesse caso já se
mostrará essencial examinar se o alienante sabia ou não da existência do
defeito oculto, capaz de tornar a coisa imprestável para o seu uso normal ou
reduzir-lhe de modo acentuado o valor. E mesmo a ciência do adquirente se
mostra relevante, pois se sabia do vicio, então nem ao menos se trata de vício
redibitório.
Pois bem, todas essas comparações acima foram apenas para
realçar que o que se mostra juridicamente relevante, em cada análise de um
379
negócio jurídico, depende da finalidade que se pretende obter com a análise
em questão. No caso específico que estamos examinando, o que se pretende é
a identificação de quais os comportamentos humanos que se mostram
relevantes para fins de, identificada a contradição entre eles, ser também
identificada a ocorrência do venire contra factum proprium. Em relação a tal
finalidade, é fácil de se perceber que o comportamento juridicamente
relevante será tão-somente aquele que, nas circunstâncias do caso concreto,
mostrou-se capaz de causar, no outro sujeito, a expectativa de que o negócio
seria celebrado ou mantido.
Além disso, pode-se ainda acrescentar que essa possibilidade de
que seja formada a expectativa, quanto ao negócio jurídico, deve ser aferida
em relação ao sujeito mediano, normal, e não em relação àquela pessoa que se
mostra demasiadamente crédula. Em outras palavras, o comportamento
mencionado deve ser suficiente para gerar a legítima expectativa em pessoa
mediana, não servindo como referência a pessoa que, sem qualquer análise
crítica, cria essa expectativa a partir de qualquer situação ainda que as
circunstâncias desta indiquem que seja muito pouco provável que venha a se
confirmar o negócio jurídico.
Ora, se o “grau de credulidade” tivesse que ser levado em conta,
para fins de verificação da ocorrência do venire contra factum proprium, aí já
não teríamos mais a análise de comportamentos contraditórios, mas sim o
exame do maior ou menor grau de percepção do outro sujeito, e duas situações
idênticas, com exatamente as mesmas características, poderiam ou não se
caracterizar como venire, conforme fosse maior ou menor esse grau, o que
teria o evidente efeito de aumentar de modo indesejado a insegurança dos
negócios jurídicos e, principalmente, a insegurança na aferição do que deve
380
ser, em cada caso, a conduta conforme a boa-fé, que deixaria de ter análise
objetiva.
Como fecho do presente subitem, convém que se aponte que essa
convivência de casos onde a contradição entre os comportamentos não é
tolerada, fazendo com que se caracterize o venire, com situações nas quais a
contradição encontra-se justificada (e mesmo expressamente admitida pela
norma legal), e por isso não há que se falar em ocorrência do venire contra
factum proprium, não quebra a harmonia do sistema jurídico, mas apenas lhe
confere maleabilidade e amplitude suficientes para que a partir dele se possa
fazer o enfrentamento de situações diversificadas.
Ora, já examinamos, por diversas vezes, que a boa-fé, enquanto
regra de conduta, não poderá jamais ser enclausurada em um conceito teórico
previamente formulado de modo completo e acabado, pois sempre serão
necessários e indispensáveis a avaliação e o enquadramento conforme as
circunstâncias do caso concreto. Logo, no examinar dessas circunstâncias
serão enfocadas tanto as hipóteses nas quais a contradição será admitida
quanto aquelas nas quais a contradição será considerada como comportamento
inadmissível. E isso, repete-se, não rompe a harmonia do sistema, mas apenas
o deixa aberto, para ser completado pelo operador do direito na análise das
circunstâncias de cada caso concreto.
2.3.2.3. O dever acessório que está sendo violado.
Examinamos,
até
aqui,
cada
um
dos
comportamentos
contraditórios do sujeito, assim como a própria contradição, buscando extrair
os sinais característicos desses elementos, de modo a detectar quando a sua
presença será indicativa da ocorrência do venire contra factum proprium.
381
Nessa análise, repetidas vezes mencionamos que a contradição entre as duas
condutas do sujeito caracterizará o venire todas as vezes em que for violado
um dever acessório, decorrente da necessidade de que os sujeitos, em um
negócio jurídico, adotem conduta compatível com os ditames da boa-fé. Neste
item, portanto, nosso exame incidirá precisamente sobre esse dever acessório,
cuja violação se mostra indispensável à configuração do venire.
É certo que o venire pode ser descrito com o auxílio à fórmula
mais ampla de aplicação da boa-fé, ou seja, pode-se dizer, com acerto, que o
comportamento que de modo inadmissível afronta a conduta anterior do
sujeito, é inadmissível exatamente porque se constitui em um procedimento
que se mostra contrário à boa-fé. Só que também é certo que essa descrição se
mostra por demais imprecisa, não permitindo um critério sequer razoável para
a identificação do venire.
O problema é que a boa-fé, como já examinamos na primeira
parte do presente estudo, é demasiadamente ampla, dela decorrendo inúmeros
deveres acessórios, cuja violação pode ser caracterizada de diversas formas,
nem sempre se constituindo em venire, sendo certo que o Direito, enquanto
ciência, não se compraz com essa imprecisão terminológica, ou seja, com o
uso de termos que abrangem muito mais do que aquilo que com eles se
pretende descrever. Logo, não é aceitável que se pretenda descrever o venire
contra factum proprium, simplesmente, como sendo uma “violação da boafé”, uma vez que dentro dessa mesma expressão “violação da boa-fé” outros
institutos também estão contidos.
Na realidade, jamais se pode perder de vista um balizamento que
se mostra essencial para o cientista do direito, que é a permanente necessidade
382
de busca da precisão terminológica. Assim, como ensina Bobbio 345, mostra-se
completamente inadmissível essa ambigüidade de expressões, uma vez que o
jurista – ou, de modo mais amplo, qualquer cientista, ao examinar seu ramo
das Ciências – necessariamente terá que iniciar o exame do instituto em foco
com a determinação do significado das palavras que passam a fazer parte da
proposição normativa a ser examinada, devendo tal significado ser mantido de
modo uniforme, até o final da pesquisa, sob pena de se tornar incompreensível
o resultado obtido.
A idéia, portanto, é que em tal análise terminológica venha a ser
fixado o conjunto de regras que estabelecem o uso de determinada palavra, ou
seja, deverá ser fixado o conceito correspondente a essa palavra. E não é
despiciendo observar que é essa definição precisa que marca de modo claro a
diferença entre um termo científico e um não científico: o primeiro
corresponde a um conceito exatamente definido, com significação precisa,
enquanto o segundo é usado de diversos modos.
O jurista, enquanto cientista, com seu trabalho intelectual, tende à
construção de termos definidos com exatidão, sendo certo que não há qualquer
rigor científico quando se procede, com indiferença ao emprego de um ou
outro termo para expressar o mesmo instituto jurídico ou, ao contrário, quando
se usa um único termo que é capaz de abranger diversos institutos jurídicos,
cada um com suas próprias características.
Por outro lado, é evidente – e não se pode deixar de reconhecê-lo
– que nem sempre se mostra fácil essa busca de determinação da terminologia
precisa, e é exatamente em virtude dessa dificuldade que muitas vezes nos
deparamos com estudos que optam pelo caminho mais fácil da imprecisa
345
Norberto Bobbio, Teoria della scienza giuridica, passim.
383
generalização terminológica, renunciando à busca de perseguir o rigor para
um termo ou grupo de termos.
Nesse sentido, especificamente em relação ao venire contra
factum proprium, assiste ampla razão a Menezes Cordeiro 346 quando afirma
que se tornou comum, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, a afirmação
genérica de que o venire é aplicação da boa-fé. Ou, então, a também genérica
afirmação de que o assumir de comportamentos contraditórios viola a regra da
observância da boa-fé. O problema é que essa falta de rigor terminológico
abala todo o sistema, tendo o indesejado efeito localizado de tornar muito
vaga – e, por isso, insegura – a justificação científica do venire.
Trazendo o enfoque para o nosso trabalho, podemos então afirmar
que a conceituação do venire apenas com base na violação genérica da boa-fé,
ao lado de se mostrar inútil para a identificação do instituto, não se mostra
capaz de dar esteio à justificação científica do mesmo. Faz-se necessária,
portanto, a apuração mais precisa e cirúrgica sobre qual é o aspecto da boa-fé
que está sendo violado. De modo mais claro, necessário se mostra que
identifiquemos, dentre os diversos deveres laterais que derivam da boa-fé,
qual é o que está sendo violado pela contradição dos comportamentos, de
modo a caracterizar a ocorrência do venire contra factum proprium.
Ao examinarmos a questão dos comportamentos contraditórios
(item 2.3.2.1, supra), por várias vezes mencionamos que estaria caracterizado
o venire contra factum proprium quando, em virtude do primeiro
comportamento, o outro sujeito tivesse legitimamente criado a expectativa de
que o negócio seria celebrado ou mantido, sendo que essa expectativa veio a
ser frustrada pelo segundo dos comportamentos. Logo, de modo amplo, podese apontar que o venire se liga ao dever que o sujeito tem de não frustrar a
346
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 752.
384
expectativa que, em virtude do seu comportamento, foi criada pelo outro
sujeito.
Esse dever de não frustrar a expectativa para cuja criação se
contribuiu, a partir de uma primeira conduta, como facilmente se percebe,
pode ser inserido no dever acessório de lealdade. Só que esse contexto – dever
de lealdade – ainda se encontra mais amplo do que o desejado, sendo
necessário que façamos delimitação ainda mais precisa.
Com efeito, já verificamos, ao examinarmos os deveres laterais
das obrigações, que o dever de lealdade pode se manifestar de diversas
formas: dever de não abandonar injustificadamente as negociações, dever de
não fazer concorrência desleal com o outro sujeito (tanto no caso do
empregado quanto no caso de alienação de um fundo de comércio), dever de
prestar assistência, mesmo após a extinção do contrato em virtude do
cumprimento, etc.
Dessa forma, como já havíamos comentado superficialmente,
linhas atrás, de modo mais específico, dentro do dever acessório de lealdade, a
violação do mesmo que se mostra capaz de caracterizar o venire é aquela que
viola a confiança de uma das partes de que o negócio seria concluído ou
mantido em determinadas condições, confiança essa que se formou de modo
legítimo, em um dos sujeitos, por ser a conclusão ou a manutenção das
condições a conseqüência natural do anterior comportamento do outro
agente347.
Mas veja-se que essa ligação específica do venire contra factum
proprium com a quebra da confiança, deixando-se de lado o enquadramento
do mesmo no instituto mais amplo da boa-fé, é relativamente recente, tendo
347
De Los Mozos explica que a confiança tem sua origem em um dos aspctos da fides romana, mais
especificamente a fidelidade, que se apresenta como um fundamento natural das relações humanas, dela
derivando a confiança. José Luis de Los Mozos, El Principio de La Buena Fe, pp. 22.
385
sua origem nos estudos da doutrina alemã, já na segunda metade do século
XX, mais especificamente nos estudos desenvolvidos por Canaris, conforme
noticia Menezes Cordeiro348, esclarecendo o ilustre jurista português, contudo,
que é possível a ocorrência de casos de venire nos quais não se tenha uma
situação clara de violação da confiança 349.
Temos, portanto, que haverá a caracterização do venire contra
factum proprium sempre que um sujeito, comportando-se em contradição com
o seu próprio comportamento anterior, frustrar a confiança que em virtude
deste havia feito surgir no outro envolvido no negócio. Veja-se que essa
delimitação mais precisa, saindo-se do campo amplo da frustração à boa-fé,
para o campo mais claramente delimitado da quebra da confiança, torna mais
clara e confiável a identificação do venire, pois fornece parâmetro mais
preciso, e por isso mesmo mais capaz de emprestar consistência e segurança à
identificação do venire em situações concretas, afastando ou pelo menos
reduzindo a margem de subjetividade do julgador.
Vejamos um exemplo, para o mais fácil entendimento dessas
colocações acima. Vimos, retro (veja-se o item 2.3.2.1), exemplo no qual o
empregador, embora ciente de que o seu empregado havia cometido falta
grave, nada fez, abstendo-se de adotar qualquer medida punitiva em desfavor
348
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 742.
Idem, ob. cit., p. 755, nota n° 413. O jurista se refere à situação onde uma pessoa, perante o tribunal
arbitral, argüiu que a competência seria do tribunal comum; posteriormente, perante o tribunal comum, argüiu
que havia sido firmado compromisso arbitral, e portanto a demanda deveria ser remetida para o juízo arbitral.
Mas esclarece o mestre que essa situação só pode ser enquadrada como sendo hipótese de venire contra
factum proprium se a este for dado um sentido amplo. Perante o nosso direito positivo, contudo, se por um
lado é certo que tal comportamento violaria o dever de proceder com lealdade e boa-fé, expressamente
imposto no artigo 14, II, do Código de Processo Civil, por outro lado, não nos parece que se concretize, aí, a
figura do venire, mas sim a figura da litigância de má -fé, expressamente prevista no artigo 17, IV, do Código
de Processo Civil, por estar a parte opondo resistência injustificada ao andamento do processo. Podemos
apontar, no nosso direito positivo, situação semelhante à do exemplo mencionado por Menezes Cordeiro, e
que se encontra expressamente vedada pela norma legal: trata-se da hipótese prevista no artigo 806, do
Decreto-Lei n° 5.452, de 1° de maio de 1943 (Consolidação das Leis do Trabalho), que de modo explícito
proíbe à parte a argüição de conflito de competência (conflito “de jurisdição”, na dicção legal), quando já
houver oposto na causa a exceção de incompetência.
349
386
do mesmo. Ora, é pacífica a doutrina trabalhista ao afirmar que a fidúcia, ou
seja, o elemento confiança, do empregador em relação ao empregado, é
indispensável à manutenção do contrato de trabalho, e tanto assim que as
hipóteses de justa causa são descritas pela doutrina como sendo casos nos
quais o empregado agiu de modo a quebrar tal fidúcia.
Assim, quando o empregador tomou conhecimento do ato faltoso,
praticado pelo seu empregado, poderia ter sido quebrada essa fidúcia, se a
falta foi grave o bastante para quebrá-la. No entanto, se o empregador, mesmo
após tal descoberta, manteve o empregado no mesmo posto de trabalho, ou
seja, se manteve intocado o contrato, tal comportamento leva a crer que a
fidúcia não foi afetada, apesar da falta cometida, pois se tivesse sido, não faria
sentido que o contrato de trabalho fosse mantido sem um de seus elementos
naturais.
Logo, essa omissão do empregador, que se constituiu no primeiro
comportamento do mesmo, foi suficiente para gerar no empregado a confiança
de que seu contrato será mantido, ou seja, de que em virtude daquela falta
específica o mesmo não será desfeito por justa causa, e por isso não será
admissível que esse empregador, posteriormente, venha a agir de modo a
frustrar essa confiança, vale dizer, venha a se valer daquela falta grave, em
relação à qual nada fizera, para depois dispensar o empregado por justa causa,
quando este já tinha razões para acreditar que isso não mais ocorreria.
No entanto, se o falar-se em “confiança” mostra-se adequado para
a solução de um problema, qual seja o de maior precisão e segurança na
identificação dos casos de venire, por outro lado, vem a gerar um outro
obstáculo, que precisa ser desde logo superado, sob pena de emperrar todo o
estudo do tema.
387
O problema é que até agora centramos nosso estudo na questão da
boa-fé enquanto norma de conduta, ou seja, a boa-fé objetiva, imune a
aspectos subjetivos como culpa, dolo, intenção, etc. Ora, nessas condições,
como se poderá fazer para identificar a confiança, uma vez que esta se forma
no íntimo do sujeito, ou seja, tem contornos nítida e predominantemente
subjetivos? Não estaria essa busca de um elemento subjetivo subvertendo toda
a estrutura doutrinária referente à boa-fé enquanto fonte dos deveres
acessórios dos negócios jurídicos, ou seja, não se estaria a subjetivar um
instituto que, para a finalidade do presente estudo, só interessa no seu aspecto
objetivo?
Na realidade, essa dificuldade é apenas aparente. Em primeiro
lugar, pode-se com tranqüilidade apontar que não há subversão de coisa
alguma, pois a análise objetiva da boa-fé é feita em relação ao sujeito que atua
de modo contraditório, em seus dois comportamentos, e não em relação ao
outro sujeito, no qual se forma a confiança. Dito de outro modo, o aspecto
objetivo deve ser aferido no sentido de que, uma vez verificada a contradição
do segundo comportamento, em relação ao primeiro, pouco importa se o
sujeito que agiu dessa forma incoerente sabia da contradição, se a provocou
intencionalmente ou pelo menos por sua culpa, etc. Todos esses detalhes são
absolutamente irrelevantes, pois só o que interessa é que a contradição em si
mesma tenha existido.
Logo, podemos apontar que a objetividade da avaliação se refere
ao agente dos comportamentos contraditórios, em relação ao qual serão
desconsiderados os fatores de subjetivação, e não em relação ao agente
confiante, vale dizer, aquele no qual foi criada a confiança como decorrência
da conduta original do outro.
388
Em segundo lugar, pode-se também mencionar que, embora de
fato haja a subjetivação, em relação ao “agente confiante”, nessa aferição do
surgimento ou não da confiança, é possível aproximá-la de uma análise
objetiva. Procede-se a essa aproximação de diversas formas. Assim, por
exemplo, em vez de serem consideradas as características específicas do
confiante, seu grau de instrução, sua crença religiosa, sua maior ou menor
idade, etc., deve-se buscar fazer a análise em relação a uma pessoa mediana da
sociedade. Em outras palavras, o que se deve perquirir é se, naquelas mesmas
condições, seria razoável que uma pessoa normal, de inteligência mediana,
acreditasse (confiasse), a partir do comportamento do outro sujeito, que o
negócio seria celebrado ou mantido naquelas condições.
Veja-se que, a não ser assim, seria praticamente impossível a
aferição do surgimento – ou não – da confiança, pois teriam que ser levados
em conta fatores que se mostram quase como impenetráveis, tais como a
maior ou menor fé religiosa do confiante, a existência de uma intuição mais
apurada do que a média, o grau de credibilidade no que é dito pelas demais
pessoas, etc. O juiz, portanto, em um caso concreto, deve ignorar essas
características pessoais que nos diferenciam uns dos outros, considerando um
sujeito médio, comum.
No exemplo apresentado acima, onde o empregador, embora
ciente do grave ato faltoso cometido por seu empregado, não adotou qualquer
medida punitiva, qualquer pessoa mediana, que estivesse no lugar do
empregado, naquelas mesmas condições, ou seja, vendo o tempo passar sem
que contra ele fosse adotada qualquer providência, justificadamente
acreditaria que o empregador, apesar de conhecer a falta, decidira não aplicar
ao empregado qualquer punição. Essa é a confiança capaz de assinalar a
389
ocorrência do venire contra factum proprium, aferida conforme os padrões
médios da sociedade, vale dizer, conforme os padrões de normalidade.
Nessa mesma linha de raciocínio, no exemplo que vimos acima
(veja-se o item 2.3.2., b) na hipótese de separação judicial litigiosa com esteio
no adultério ou em outra grave violação dos deveres do matrimonio, se mesmo
após descoberta essa grave violação, o cônjuge inocente continua a conviver
com o culpado, é de se imaginar que tal convivência ainda é possível, ou seja,
que não se tornou impossível a vida em comum. Assim, dessa manutenção da
vida em comum surge no cônjuge culpado, assim como surgiria em qualquer
pessoa mediana, nos padrões de normalidade, a justa expectativa de que não
haverá a ruptura da sociedade conjugal em virtude da atribuição de culpa, uma
vez que tal ruptura pressupõe a impossibilidade da vida em comum, e no caso
aparenta não haver tal impossibilidade.
Dessarte, qualquer pessoa normal teria a confiança de que ainda
será mantida a vida em comunhão, e por ter gerado essa confiança na
manutenção dessa situação, ao concordar com a persistência da vida em
comum mesmo após a descoberta da grave violação dos deveres conjugais, o
cônjuge inocente não mais poderá, futuramente, valer-se dessa mesma
violação para estear a separação litigiosa. Poderá separar-se de modo
consensual ou com esteio em outra ocorrência que também se configure como
grave violação dos deveres conjugais, mas não mais nesse fato que, mesmo
depois de descoberto, não o afastou da vida em comum com o outro.
Além disso, e também com forte traço de objetivação, em relação
ao aspecto subjetivo da confiança, mostra-se importante o comportamento do
“confiante”, adotado posteriormente ao primeiro dos comportamentos do
sujeito que agiu de modo contraditório. Assim, se o primeiro dos
comportamentos de um dos sujeitos (o factum proprium) faria com que um
390
sujeito médio acreditasse que o contrato seria fechado, e depois do mesmo o
outro sujeito (o confiante) passou a efetuar despesas que não precisaria
realizar, caso não fosse aperfeiçoada a avença, tem-se aí fortíssimo indício de
que efetivamente houve o surgimento da confiança.
Suponha-se, à guisa de exemplo, que as negociações diziam
respeito à venda de um carro, e o vendedor se comportou de tal modo que
levou o comprador a acreditar que o contrato seria efetivamente celebrado. O
comportamento do vendedor foi de tal modo que qualquer pessoa normal
acreditaria que de fato o pacto se aperfeiçoaria. O comprador, logo após essa
conduta inicial do vendedor, mandou ampliar a garagem de sua casa, de modo
a comportar mais um carro, e comprou acessórios automotivos que servem
especificamente para aquele modelo que estava negociando com o vendedor.
Todo esse conjunto de fatores permite uma avaliação esteada em
elementos objetivos, extraídos da conduta de um dos sujeitos, mas de modo a
aferir-lhe uma situação subjetiva, ou seja, se efetivamente houve a formação
da confiança em que o negócio seria fechado.
É que a idéia de inadmissibilidade do venire engloba a questão de
ser inviável, salvo com a ocorrência de prejuízos, que o sujeito confiante
simplesmente retorne à situação anterior, em virtude da não celebração do
contrato ou da não manutenção das condições que esperava. Em outras
palavras, o que se quer impedir é que o confiante, embora possa, material e
juridicamente, retornar à situação anterior, tenha que arcar com os custos de
fazê-lo, se isso decorre de injustificada contradição comportamental do outro
sujeito, por isso que este é que deverá arcar com tais prejuízos.
Mas algumas importantes observações devem ser feitas neste
ponto. A primeira delas é que o surgimento da confiança se mostra
indispensável, para que se possa caracterizar o venire contra factum proprium.
391
Logo, se por qualquer razão não houve a formação da confiança pelo sujeito,
não se caracterizará o venire, pouco importando que uma pessoa normal,
mediana, naquelas circunstâncias teria confiado no fechamento do contrato ou
na manutenção de determinadas condições.
Assim, por exemplo, no caso acima, referente à venda do veículo,
suponha-se que, apesar do vendedor ter se comportado de modo tal que levaria
qualquer pessoa mediana a acreditar que o carro lhe seria efetivamente
vendido, o comprador, por alguma razão, não criou a expectativa de que tal
venda seria realizada, ou seja, não teve no seu íntimo a formação da confiança.
Neste caso, o eventual comportamento contraditório do vendedor,
abandonando injustificadamente as negociações e desistindo da venda, não
seria caracterizado como venire contra factum proprium.
Além disso, essa confiança, ainda que tenha efetivamente surgido
no íntimo do sujeito (o confiante), o que se pôde aferir, em um caso concreto,
por exemplo, em virtude das despesas que esse sujeito realizou em função do
negócio que esperava realizar, se a mesma decorre de excesso de ingenuidade
ou de falta de diligência do confiante, em tais casos não se poderá falar em
venire contra factum proprium.
Nesse sentido foi que mencionamos, reiteradas vezes, o sujeito
normal, mediano, ou seja, o sujeito que cria a expectativa quando a situação se
mostra razoavelmente favorável a que a mesma seja criada, e que além disso
tomou os cuidados necessários, para evitar que fosse ludibriado apenas em
virtude de sua negligência. É que, em algumas situações, a própria lei cuida de
estabelecer alguns requisitos de ordem prática, sendo certo que os mesmos se
constituem em fatos que deverão ser atendidos para que se possa falar em
surgimento da confiança.
392
Assim, suponha-se que dois sujeitos estão negociando a venda de
um imóvel, sendo que o vendedor adotou comportamento tal que se mostrou
suficiente para levar o comprador a acreditar que o negócio seria celebrado, ou
seja, despertou no íntimo do comprador a confiança que se mostra necessária à
caracterização do venire. O vendedor, por exemplo, pediu todos os dados do
comprador para redigir a minuta do contrato, ou para redigir um contrato de
promessa de compra e venda, referente ao imóvel. Posteriormente, no entanto,
o vendedor simplesmente devolveu os documentos do comprador, sem
maiores explicações, informando que o negócio não seria concretizado.
Têm-se aí, aparentemente, todos os elementos necessários à
caracterização do venire contra factum proprium. No entanto, suponha-se,
ainda, que no caso em questão o imóvel não está e nunca esteve registrado em
nome do vendedor, sendo que este não é e nunca foi o proprietário do mesmo,
e nem ao menos está autorizado pelo proprietário a negociar a venda do bem.
Ora, em tal caso, apesar de haver surgido a confiança no comprador, isso
ocorreu em virtude da clara negligência do mesmo, que deixou de adotar um
cuidado básico, indispensável a quem pretende comprar um imóvel, que é a
aferição sobre a propriedade do bem, junto ao registro imobiliário, para
verificar se está tratando com o proprietário ou, pelo menos, com a pessoa
autorizada.
Logo, em tal caso a confiança se formou sem qualquer
embasamento que a justificasse, tratando-se de simples negligência do sujeito,
e por isso não estará caracterizado o venire.
Assim, em relação ao dever lateral que é violado, na
caracterização do venire contra factum proprium, pode-se dizer, em resumo,
que se trata da quebra da confiança que surgiu em um dos sujeitos em virtude
do comportamento primário do outro, mas sendo que essa confiança precisa
393
ter surgido em uma situação na qual qualquer pessoa mediana, naquelas
mesmas condições, também confiaria nas conseqüências jurídicas do negócio
em questão. E, além disso, essa confiança não pode decorrer da ingenuidade
ou do excesso de credulidade do confiante, bem como não pode ser decorrente
de sua negligência, por ter deixado de tomar os cuidados necessários para a
celebração dos negócios jurídicos daquela espécie.
2.3.2.4. Um conceito para o venire contra factum proprium.
A partir desses elementos que caracterizam a ocorrência do venire
contra factum proprium, acima examinados, já se mostra possível buscarmos
um conceito abrangente, capaz de indicar com razoável precisão uma
descrição para o instituto em questão.
Assim, parece-nos que o venire pode ser conceituado como sendo
uma seqüência de dois comportamentos que se mostram contraditórios entre si
e que são independentes um do outro, cada um deles podendo ser omissivo ou
comissivo e sendo capaz de repercutir na esfera jurídica alheia, de modo tal
que o primeiro se mostra suficiente para fazer surgir em pessoa mediana a
confiança de que um determinado negócio jurídico será concluído ou mantido
em determinadas condições, enquanto o segundo vem a frustrar a legítima e
razoável expectativa que havia sido criada no outro sujeito, sem que exista
justificativa fática ou amparo legal que possa justificar a contradição entre os
comportamentos e a conseqüente frustração da expectativa, sendo em tal caso
irrelevante averiguar se houve dolo ou culpa do que agiu de modo
contraditório.
2.3.3. Conseqüências jurídicas do venire contra factum proprium.
394
Vimos, até aqui, como se pode identificar, em uma situação
concreta, a ocorrência do venire contra factum proprium. A etapa seguinte,
portanto, consiste na aferição sobre quais são as conseqüências jurídicas dessa
identificação, ou seja, o que fazer com os negócios jurídicos abrangidos pelo
primeiro e pelo segundo dos comportamentos contraditórios. Esse exame, que
agora se faz especificamente em relação ao venire contra factum proprium, já
foi feito, linhas atrás, em relação às violações da boa-fé em geral (remetemos
o leitor à leitura do item 1.9).
Na realidade, ao longo do desenvolvimento feito nas linhas
anteriores, apontamos diversas soluções diferentes, variando as conseqüências
jurídicas conforme a situação específica de que se tratava. O problema é que
não há possibilidade de se estabelecer uma solução única, devendo o juiz, em
cada caso concreto, buscar a solução que melhor atenda aos interesses da parte
prejudicada e sem que se constitua em ônus excessivo e desnecessário para o
que agiu de modo contraditório, mas, ao mesmo tempo, também sem perder
de vista que, em regra, existem ou podem existir normas de ordem pública,
aplicáveis àquele caso concreto.
É facilmente explicável o motivo da diversidade de soluções. É
que a figura do venire, como já mencionamos diversas vezes, em última e
ampla análise consiste na violação da conduta que era imposta em virtude da
boa-fé, sendo que para a obediência a tal conduta devem ser observados
deveres acessórios, e o venire se caracteriza pelo desrespeito de tais deveres.
Ocorre que a conduta imposta pela boa-fé – e, em conseqüência, os deveres
acessórios – só pode ser aferida na situação concreta, depois de observadas as
peculiaridades de cada caso, não se podendo traçar previamente uma receita
sobre qual seria tal conduta.
395
Ora, se a conduta esperada só pode ser aferida no caso concreto,
então a violação dessa conduta terá conseqüências jurídicas que também só
poderão ser aferidas em cada hipótese concreta, mesmo porque, como se
mostra claro, o significado de “violar a conduta ditada pela boa-fé” não se
mostra uniforme, variando para cada situação. Assim, o comportamento que
em um caso concreto implica em violar a boa-fé objetiva, poderá ser
perfeitamente válido em uma outra situação, e vice-versa. Da mesma forma,
suponha-se que haja duas situações, as duas implicando em comportamentos
que violam a boa-fé enquanto norma de conduta. Como se mostra evidente,
conforme a hipótese que se examina, a violação da boa-fé poderá ser mais
grave ou menos grave, e por isso poderá ser diversa a solução jurídica a ser
adotada para cada uma delas.
Assim, pode-se apontar que o balizamento a ser seguido como
parâmetro, em cada caso concreto, será sempre a proteção da pessoa na qual
surgiu a expectativa, a partir do primeiro comportamento, e cuja confiança
veio a ser posteriormente quebrada, mas o modo pelo qual esse objetivo vai
ser perseguido poderá variar de uma situação para outra. Com efeito, em
algumas situações essa proteção à confiança se dará pela preservação dos
efeitos jurídicos decorrentes do primeiro comportamento. Em outras, no
entanto, essa preservação se mostrará impossível, e a proteção se dará
mediante a estipulação de uma indenização. Em outras hipóteses, ainda, será
necessário, para a proteção, que se afaste a aplicação de norma legal expressa,
e assim por diante.
Mas de qualquer modo deve ser destacado que a idéia básica,
quando se examinam as conseqüências jurídicas do venire contra factum
proprium, não é a manutenção do primeiro comportamento adotado pelo
sujeito, ou dos seus efeitos jurídicos. O que de fato se busca, na realidade, é a
396
proteção da confiança surgida na outra pessoa, que de modo razoavelmente
justificado acreditou que estaria perfeita essa primeira conduta. Agora, essa
preservação da confiança pode se dar de variadas formas, inclusive pela
preservação do primeiro dos comportamentos (ou dos seus efeitos jurídicos),
sendo que não necessariamente isso ocorrerá. Tal preservação, portanto, como
se vê, é meramente eventual, e não se confunde com a finalidade maior da
rejeição do venire.
Uma das possibilidades, que inclusive já foi por nós examinada, é
a de que os efeitos jurídicos da ocorrência do venire consistam no afastamento
das conseqüências da nulidade do negócio jurídico. Veja-se que não é a
nulidade do negócio que estará sendo afastada, mas as suas conseqüências, ou
seja, o negócio jurídico será nulo, nos termos determinados pela norma de
ordem pública, mas essa nulidade, ao contrário do que seria o normal quando
o negócio jurídico é nulo, deverá produzir os efeitos (ou pelo menos alguns
deles) semelhantes aos de um negócio válido.
Essa solução pode ser adotada em relação aos negócios jurídicos
de efeitos continuados, ou seja, aqueles cuja execução e cujos efeitos se
prolonguem no tempo, e a conseqüência jurídica será a produção dos efeitos
em relação aos momentos que antecedem a declaração de nulidade, como
meio de proteger o sujeito confiante, mas com o reconhecimento pleno da
nulidade a partir de então. Em outras palavras, pode-se dizer que, em tal caso,
a nulidade produzirá apenas efeitos ex nunc.
Nessa situação se enquadra, por exemplo, a hipótese do menor de
dezesseis anos, examinada linhas atrás, que foi contratado como empregado,
sendo que o empregador, posteriormente, pretende invocar a nulidade absoluta
da contratação (por infração ao artigo 7°, XXXIII, da Constituição Federal)
em seu próprio favor, para furtar-se aos efeitos trabalhistas do contrato. Nesse
397
caso, será de fato declarada a nulidade absoluta do contrato, pois de fato o é,
mas desse contrato de trabalho deverão decorrer, até o momento dessa
declaração, todos os efeitos de um contrato válido.
Assim, embora nulo o contrato, o empregador deverá pagar ao
menor, ilegalmente contratado como empregado, as parcelas correspondentes
ao aviso prévio, férias mais um terço, décimo terceiro salário, FGTS mais
40%, etc., ou seja, todas as parcelas que teria que pagar se a contratação
tivesse sido válida. Veja-se que com essa solução, neste caso, consegue-se
conciliar a obediência à norma legal, que preceitua a nulidade absoluta da
contratação, com a proteção ao confiante, afastando a vantagem que o outro
sujeito (o empregador) pretendia obter invocando sua própria conduta
irregular.
Outra situação onde poderia ser adotada solução semelhante, e
que também já foi por nós examinada, é a do trabalhador contratado pela
Administração Pública, sem que tenha sido previamente aprovado em
concurso público de provas e títulos. Tal contrato, por força de disposição
constitucional expressa (Constituição Federal, art. 37, § 2°), é nulo de pleno
direito, mas apesar disso produzirá pelo menos alguns dos efeitos que
decorreriam de um contrato validamente celebrado, como por exemplo o
pagamento dos salários dos dias efetivamente trabalhados e o FGTS que sobre
tais salários incide, nos termos da Súmula 363, do Tribunal Superior do
Trabalho.
Não é demais observar que, nos dois exemplos acima
mencionados, verifica-se situação onde o negócio jurídico é nulo de pleno
direito, mas apesar disso são produzidos efeitos jurídicos. No entanto, no
primeiro dos exemplos são produzidos todos os efeitos de um negócio jurídico
válido, enquanto no segundo são produzidos apenas alguns desses mesmos
398
efeitos. A diferença se encontra na qualificação dos interesses que se
encontram contrapostos aos do sujeito confiante. No primeiro caso, trata-se
dos interesses de um particular, o empregador, enquanto no segundo estão os
interesses da Administração Pública, que acabam por envolver o interesse de
toda a sociedade. Para maiores detalhes sobre essa divergência quanto à
intensidade dos efeitos a serem produzidos, remetemos à leitura do item 1.7,
retro, mas o que pode ser aqui destacado é que se aplica o princípio da
proporcionalidade, fazendo-se um balanceamento dos interesses envolvidos e
das conseqüências de se dar prevalência a um ou a outro deles.
Outra solução possível, quando detectada a ocorrência do venire
contra factum proprium, é o puro e simples afastamento da nulidade, ou seja,
apesar do negócio jurídico ter sido celebrado em situação tal que a lei
expressamente o fulmina com a nulidade absoluta, no caso em questão, suas
peculiaridades, resultantes da conjunção do venire com a necessidade de
proteção ao sujeito confiante, recomendam que não se declare a nulidade,
mantendo-se o negócio como se fosse válido.
Essa solução se mostra mais adequada aos negócios de execução
instantânea, ou aqueles em relação aos quais, embora tenha havido uma
dilação no tempo, o contrato já se esgotou por completo, e não seria possível a
aplicação da solução acima alvitrada, ou seja, reconhecer os efeitos já
produzidos mas declarar a nulidade daí para a frente, pelo simples fato de que,
no caso, não existe mais qualquer efeito “daí para a frente”, eis que os efeitos
que eram esperados do contratos já foram todos produzidos, e a discussão, na
verdade, se limita em saber se serão mantidos ou se serão desfeitos.
Nessa situação se enquadra, por exemplo, a hipótese que
examinamos, referente à venda de um imóvel, feita por um vendedor
absolutamente incapaz, em virtude de deficiência mental, mas em condições
399
que seriam as normais para os negócios daquela espécie, inclusive quanto ao
preço ajustado, e sendo ainda que o comprador não conhecia o vendedor e não
tinha qualquer razão para saber sobre sua incapacidade. Constatada a
ocorrência do venire, embora o negócio seja nulo de pleno direito, nesse caso
poderão ser produzidos os efeitos normais da compra e venda, ou seja, será
transferida a propriedade para o comprador.
E a mesma solução também pode ser aplicada em relação ao
negócio jurídico onde houve vício formal, causado pelo próprio sujeito que
depois busca a sua nulidade. Ora, apesar do vício formal, de fato, gerar a
nulidade absoluta do negócio jurídico, nos termos do artigo 166, IV, do
Código Civil, nessa situação, a caracterização do venire leva a que, para
proteção do sujeito confiante, sejam mantidos os efeitos do negócio jurídico,
como se o mesmo tivesse sido válido.
Convém, neste ponto, que façamos um breve desvio do exame
das conseqüências jurídicas da ocorrência do venire contra factum proprium e
da gama de soluções possíveis, quando detectada tal ocorrência. É que nessas
duas primeiras soluções alvitradas, em ambas a solução apontada resulta no
afastamento da incidência de texto legal expresso.
Com efeito, na primeira linha de solução foi preconizado o
abandono das conseqüências da nulidade do negócio jurídico, ou seja, embora
se reconheça tal nulidade, são mantidos os efeitos do negócio, o que parece
contrariar o que se encontra expressamente disposto no artigo 182, do Código
Civil, que determina que as partes sejam devolvidas ao estado anterior, e por
isso inclui o desfazimento dos efeitos.
Na segunda das soluções possíveis que apontamos, por sua vez,
foi indicado o afastamento da nulidade, como se o negócio fosse válido,
apesar de que, em um deles, o agente (o vendedor) era absolutamente incapaz,
400
enquanto no outro havia a desobediência à forma imposta pela lei, por isso que
o afastamento da nulidade, em tais casos, parece infringir o que se encontra
expressamente disposto nos incisos I e IV, ambos do artigo 166 do Código
Civil, e que declaram a nulidade absoluta do negócio jurídico precisamente
nessas hipóteses de incapacidade absoluta do agente e de não atendimento à
forma prevista na lei.
Cabe, por isso, investigar se é possível adotar tais soluções, uma
vez que existem normas expressas dispondo em sentido contrário ao que
ambas parecem indicar. Não seriam essas soluções, portanto, caso de
inaceitável descumprimento da lei? A resposta que se impõe, na realidade, é a
negativa. Ora, é evidente que não se pode pinçar a norma legal que estipula a
nulidade do negócio jurídico quando o agente é absolutamente incapaz ou
quando não foi obedecida a formalidade imposta pela lei (art. 166, do Código
Civil), isolando-a das demais normas que constam do ordenamento jurídico.
Em outras palavras, não é possível a interpretação de um texto legal isolado,
considerado sozinho, em apartado das demais normas que compõem o
sistema.
Logo, o que se deve sempre buscar, como se sabe, é a
interpretação do sistema como um todo, como um conjunto harmônico de
normas jurídicas, não sendo aceitável o exame isolado de apenas uma dessas
normas, destacada do todo. Ora, quando se considera o sistema como um todo,
como já mencionamos linhas atrás (veja-se o item 2.3.2.2), encontramos,
dentro dele, normas que são aparentemente contraditórias entre si, mas que na
verdade podem e devem ser harmonizadas pelo operador do direito, conforme
as peculiaridades de cada situação concreta. No entanto, quando se dá
prevalência a uma dessas normas, por ser essa a solução recomendada pelas
peculiaridades do caso concreto, isso não significa que a outra estará sendo
401
descumprida, mas sim que estará recebendo uma interpretação sistemática,
capaz de harmonizá-la com as demais normas do sistema, e tal interpretação,
no caso, recomenda a sua não aplicabilidade.
Assim, por exemplo, se por um lado encontramos no sistema o
artigo 166, do Código Civil, que estabelece a nulidade absoluta do negócio
jurídico – e, portanto, a sua falta de efeitos jurídicos – quando não foi atendida
a exigência legal quanto à forma, por outro lado, encontramos nesse mesmo
sistema a regra insculpida no artigo 422, do mesmo Código Civil, que se
apresenta como uma necessidade de observação de uma conduta conforme os
ditames da boa-fé.
Desse modo, casos haverá – como nos exemplos apresentados –
nos quais o comportamento do sujeito poderá ser subordinado ao artigo 166 ou
ao artigo 422, sendo que a prevalência de um desses dois dispositivos
provocará o afastamento do outro, por se mostrarem inconciliáveis no caso
concreto. Desse modo, se o negócio for considerado nulo, sendo afastada a
produção das conseqüências jurídicas que lhe seriam naturais, estará sendo
obedecida a regra do artigo 166, mas estará sendo admitido um
comportamento que não se coaduna com os ditames da boa-fé objetiva, ou
seja, estará sendo descumprido o artigo 422. E vice-versa, ou seja, se for
rejeitada a conduta do sujeito que não se coaduna com as regras ditadas pela
boa-fé objetiva, estará sendo obedecido o artigo 422, do Código Civil, mas por
outro lado, estará sendo desatendido o artigo 166, do mesmo diploma legal.
Em qualquer das hipóteses, portanto, caberá ao operador do
direito, nas circunstâncias peculiares a cada um dos casos concretos, verificar
qual dos dois dispositivos deve receber prioridade de aplicação, e qual deles
deve ser afastado. E isso não significará, de modo algum, que um dos
dispositivos esteja sendo violado, mas apenas que, na sua consideração como
402
parte de um sistema, ao ser cotejado com outra norma também aplicável, em
tese, à mesma situação, tal dispositivo não se adequou às características da
hipótese concreta, e por isso não encontra aplicação. Trata-se, em síntese, de
uma solução sistemática para a problemática concreta, e não de uma solução
contra legem.
Prosseguindo nessa busca de soluções possíveis, podemos agora
apontar, em uma terceira linha de raciocínio, que em outros casos, no entanto,
é possível que não seja recomendável a manutenção de qualquer dos efeitos
jurídicos decorrentes do primeiro dos comportamentos, devendo todos ser
desfeitos, em virtude do segundo comportamento, cujo objetivo foi
precisamente o de desfazer os efeitos do primeiro. Nesse caso, portanto, não
se mostrando conveniente a preservação do primeiro comportamento, a
solução poderá ser dada através da indenização dos danos causados ao outro
sujeito, em virtude da quebra da confiança do mesmo. Isso acontece, por
exemplo, em relação aos atos da Administração Pública, quando o segundo
comportamento é ditado por razões de conveniência pública.
Suponha-se, por exemplo, que o governo federal tenha autorizado
a exploração de máquinas de jogos eletrônicos, tais como videopôquer e
outras similares. Uma vez autorizada a exploração, também foi autorizada a
importação e a venda dessas máquinas. Com base nessas medidas tomadas
pela Administração Pública federal, alguns empresários investiram grandes
somas na importação das mencionadas máquinas e na construção de lugares
adequados à sua utilização pelo público pagante em geral.
Poucos meses depois, contudo, diante da grande pressão feita por
alguns setores organizados da sociedade civil, o governo federal volta atrás e
decide proibir não apenas a importação e a venda das máquinas de jogos
eletrônicos, mas também a sua exploração. Ora, é evidente que essa segunda
403
medida, a proibição, mostra-se em absoluta e inconciliável contradição com a
primeira, a autorização para a importação e exploração, e frustra a expectativa
dos empresários que, acreditando na liberação inicialmente feita pelo governo,
investiram grandes somas de dinheiro na compra das máquinas e na
preparação dos lugares onde o público pagante poderia ter acesso às mesmas.
Caracteriza-se, portanto, de modo claro, o venire contra factum proprium.
No entanto, parece também evidente que, em tal caso, a proibição
se deu em virtude da discricionariedade do Administrador Púb lico, que
entendeu que dessa forma estaria melhor atendendo aos interesses da
sociedade como um todo, e por isso não poderão prevalecer os interesses dos
particulares, vale dizer, dos empresários confiantes. Logo, a proibição atingirá,
de imediato, todos os empresários, não se podendo abrir exceção para aqueles
que realizaram investimentos quando ainda estava vigendo a liberação inicial,
caso contrário o interesse público estaria sendo afastado para que prevalecesse
o interesse dos particulares.
Nessa situação, portanto, a melhor solução a ser dada ao caso
concreto não será a preservação do comportamento inicial, ou seja, não será a
manutenção da autorização para a importação e para a exploração das
máquinas, mas sim a condenação do governo federal ao pagamento da
indenização cabível, de modo que se possa proteger os empresários confiantes
através da indenização dos seus prejuízos, e não da preservação do ato
revogado.
Veja-se que no exemplo acima, referente às máquinas de jogos, o
primeiro comportamento foi simplesmente desprezado porque o segundo era o
que melhor atendia à conveniência pública, conforme a apreciação
discricionária da Administração Pública, e por isso a proteção ao outro sujeito,
o confiante, foi resolvida mediante a indenização das perdas e danos. No
404
entanto, é possível que essa mesma solução, ou seja, mediante a indenização
dos prejuízos, venha a ser adotada em virtude da impossibilidade de ser
preservado o primeiro comportamento, e não em virtude da conveniência
pública.
Essa seria a hipótese, por exemplo, do abandono injustificado e
abusivo, por um dos sujeitos, das negociações preliminares, ainda na fase précontratual, depois de ter induzido o outro a acreditar que o contrato seria
efetivamente celebrado, sendo que, logo após o abandono, o sujeito torna
impossível a celebração desse mesmo contrato. Vejamos um exemplo, para
melhor compreensão.
Suponha-se que estavam em curso, entre dois sujeitos, as
negociações referentes à venda de um determinado imóvel, sendo que o
vendedor adotou uma conduta tal que levou o comprador a confiar que o
negócio seria efetivamente celebrado entre eles. O vendedor, por exemplo,
pediu que o comprador desde logo redigisse a minuta do contrato e ambos
combinaram acerca do comparecimento ao Cartório, para a lavratura da
escritura pública. Só que o vendedor desistiu do negócio e recusou-se a
comparecer ao Cartório. Logo em seguida, esse mesmo vendedor alienou, a
título oneroso, o imóvel para outra pessoa, que de nada sabia sobre essas
negociações que haviam sido feitas com o primeiro sujeito, sendo que o
comprador, após ter sido lavrada a escritura pública, providenciou o imediato
registro da mesma junto ao Cartório do Registro Imobiliário.
Nesse caso, é bastante clara a ocorrência do venire contra factum
proprium, pois o vendedor, ao adotar um venire (a desistência injustificada em
relação ao fechamento do negócio) que se mostra inconciliável com seu
factum proprium, quebrou o dever de lealdade, frustrando a confiança que o
comprador havia firmado em relação ao fechamento do negócio. No entanto,
405
ao vender para terceiro de boa-fé esse mesmo imóvel que estava sendo
negociado, o vendedor impossibilitou que se pudesse cogitar da atribuição
judicial de efeitos jurídicos ao primeiro comportamento, ou seja, impediu que
o quase-comprador pudesse buscar judicialmente a conclusão do negócio, e
por isso a solução, forçosamente, se dará mediante a estipulação de uma
indenização em favor do comprador confiante.
Uma quarta linha de solução, que também pode ser adotada, é a
de forçar-se o sujeito que quebrou a confiança à celebração do negócio
jurídico que o outro sujeito, legitimamente, confiava que viria a ser celebrado.
Mas essa solução, como se mostra evidente, só pode ser adotada se não houver
qualquer impossibilidade a impedir esse aperfeiçoamento do negócio, como
ocorreu no exemplo visto no parágrafo anterior, onde um fato superveniente e
incontornável (a alienação para um terceiro) tornou impossível que se
buscasse a concretização do negócio frustrado.
Essa foi a solução (forçar a celebração do negócio) adotada em
um rumoroso caso concreto350, no qual uma grande fábrica de extrato de
tomate, todos os anos, distribuía aos produtores rurais de uma determinada
região, próxima às instalações fabris, sementes de tomate, para que fossem
plantadas, e na época da colheita essa mesma fábrica comprava toda a safra,
pois os tomates eram a matéria-prima usada no seu produto.
Em um determinado ano, contudo, depois de ter distribuído as
sementes, como vinha fazendo em todos os anos, após a colheita da safra, a
fábrica simplesmente recusou-se a comprar a produção dos agricultores,
alegando que havia sido detectada uma redução no consumo, e que por essa
razão precisaria também reduzir a sua produção, não sendo necessária a
aquisição de todos aqueles tomates colhidos.
350
Cf. Judith Martins-Costa, A boa-fé no Direito Privado, pp. 473 e ss.
406
De tal situação, percebe-se com facilidade que o primeiro
comportamento (o factum proprium), ou seja, a distribuição das sementes, foi
contrariado pelo segundo (o venire), a recusa quanto à compra da safra, sendo
certo que a partir da primeira conduta, levando-se em conta, inclusive, o
histórico dos negócios jurídicos celebrados entre a fábrica alimentícia e os
produtores rurais, estes confiaram, justificadamente, que toda a sua produção
seria comprada pela fábrica em questão, e essa confiança foi quebrada, não
tendo os produtores a quem vender todo o tomate colhido. Caracterizado está,
portanto, o venire contra factum proprium.
Não é demais lembrar, no sentido da observação já tantas vezes
feita, que ainda que fosse verdade o motivo alegado pela fábrica, ou seja,
ainda que efetivamente tivesse havido uma retração no consumo, para a
caracterização do venire o que interessa é a conduta em si mesma, e não a sua
motivação. Assim, se a conduta posterior do fabricante de extrato de tomate
veio a se mostrar contraditória, em relação à conduta anterior, sendo que tal
contradição quebrou a confiança gerada, é absolutamente irrelevante o motivo
dessa segunda conduta, pois de qualquer modo estará caracterizado o venire
contra factum proprium.
A solução, em tal caso, que se mostra mais adequada, é a
imposição, ao fabricante do extrato de tomates, da compra de toda a produção.
Mas veja-se que, neste caso, o estabelecimento de uma indenização, a ser paga
pelo fabricante em favor dos produtores rurais, englobando inclusive o lucro
cessante, atenderia de modo adequado a proteção dos mesmos, mas não seria a
melhor das soluções possíveis. Com efeito, como já comentamos linhas atrás,
o que se deve buscar é a proteção que melhor atenda aos interesses do sujeito
confiante, que se viu prejudicado, mas sem que se imponham ônus excessivos
e desnecessários ao outro sujeito.
407
Logo, nessas condições, embora o puro e simples estabelecimento
de uma indenização viesse a satisfazer os prejuízos sofridos pelos produtores,
constituir-se-ia em desnecessário ônus para o fabricante, por isso que a
imposição da conclusão do negócio, ao mesmo tempo em que proveria aos
produtores prejudicados o pagamento que efetivamente esperavam obter com
o negócio da venda dos tomates, permitiria ao fabricante, comprador forçado,
ficar com a produção, para usá-la como e quando melhor lhe conviesse.
Mas é evidente que se a conclusão do negócio se mostrasse
impossível, por fato imputável ao fabricante, nesse caso, como já vimos
poucas linhas atrás, a única solução possível seria efetivamente o
estabelecimento de uma indenização. Seria o caso, por exemplo, de em virtude
da demora na tramitação do processo judicial, ajuizado em face da recusa
injustificada do fabricante em adquirir a produção dos tomates, estes tivessem
apodrecido, sendo agora imprestáveis para qualquer coisa. Neste caso, a
impossibilidade da aquisição dos tomates teria ocorrido em decorrência de
fato atribuível ao fabricante, qual seja a recusa na aquisição dos tomates, e por
isso simplesmente se resolveria mediante indenização.
Uma outra possibilidade de efeitos jurídicos dos comportamentos
inadmissivelmente contraditórios, dentro dessas múltiplas soluções que
estamos examinando, seria a proibição de que o sujeito pudesse buscar
proveito em virtude de situação anteriormente provocada por sua própria
atuação dolosa.
Assim, se a pessoa que se beneficiaria com a implementação de
uma condição, maliciosamente vier a forçar o seu implemento, tal pessoa não
se poderá valer de sua própria malícia, pois a lei determina que, em relação ao
negócio jurídico em questão, a condição seja considerada como se não tivesse
sido implementada. Por outro lado, se a pessoa que seria desfavorecida pelo
408
implemento da condição vier a, de modo malicioso, obstaculizar o seu
implemento, para fins desse negócio jurídico a condição será havida como
implementada. Ambas as hipóteses estão previstas no artigo 129, do Código
Civil.
Veja-se que, nesses casos, atentaria contra a conduta imposta pela
boa-fé que o sujeito, após ter agido dolosamente para provocar uma certa
situação que lhe interessava (o implemento de uma condição ou, ao contrário,
o impedimento de que a mesma fosse implementada), pudesse invocar em seu
favor a sua própria atuação dolosa, e por isso tal hipótese foi taxativamente
rejeitada pela norma legal. Contudo, as situações descritas, referentes à
condição, melhor se encaixam na figura do “Tu quoque”, e por isso serão
examinadas logo adiante, quando fizermos a abordagem desse referido
instituto.
Como se viu, portanto, nos parágrafos anteriores do presente
item, há uma enorme diversidade de soluções possíveis, podendo haver grande
variação de um caso concreto para o outro. E o motivo dessa existência de
uma ampla gama de soluções, em reforço ao que já foi dito anteriormente,
pode ser encontrado no fato de que, em cada situação da vida real e concreta,
não se buscará, como objetivo primordial, a repressão à má-fé de um sujeito,
mas sim a proteção à boa-fé do outro (veja-se, a respeito, o que dissemos logo
no começo do item 1.9), ou seja, o que serve como balizamento e parâmetro
para o juiz é a busca da proteção ao prejudicado, mas ao mesmo tempo sem
que haja prejuízo excessivo e desnecessário para o outro – e, eventualmente,
ainda com atenção para o interesse público porventura envolvido no caso
concreto.
Logo, pode-se com tranqüilidade concluir que a solução a ser
adotada sempre terá que seguir esses vetores acima mencionados, ou seja, a
409
proteção à boa-fé do sujeito como base, e o não prejuízo excessivo para o
outro como complemento. Por isso, é claro que as medidas necessárias ao
atendimento dessas orientações não se mostram uniformes, pois terão que ser
variáveis e adaptáveis aos interesses do beneficiário a serem protegidos em
cada uma situação concreta. Ora, podendo haver uma enorme variedade de
interesses a serem protegidos, é evidente que terá que haver, simetricamente,
uma enorme variedade de medidas de proteção.
2.4. Tu quoque.
A figura em exame está ligada ao mesmo vetor axiológico que
orienta o brocardo segundo o qual ninguém será ouvido quando invocar em
seu favor a sua própria torpeza. De modo mais específico, se um sujeito violou
uma determinada norma jurídica (que pode ser legal ou contratual), não lhe
será possível que, posteriormente, venha a pretender exercer a mesma situação
jurídica que essa norma lhe havia atribuido, pois é intuitivo que fere de morte
a ética que uma pessoa possa desrespeitar um comando normativo e, ao
depois, vir a pretender exigir que terceiros acatem esse mesmo comando por
ela desrespeitado351. Veja-se que haveria evidente incoerência entre esses dois
momentos da atuação do sujeito, o em que ele desrespeitou a norma e o em
que ele pretende que outro venha a cumpri-la.
Tendo em vista essa contradição acima mencionada, o tu quoque,
aparentemente, nada mais seria do que um caso particular de venire contra
factum proprium, que se caracterizaria pelo fato de que a contradição entre o
primeiro e o segundo comportamentos ocorrem da seguinte forma: o factum
proprium consiste numa atuação irregular do sujeito, sendo que o venire se
351
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 837.
410
concretiza no fato de que, posteriormente, esse mesmo sujeito tenta tirar
proveito de sua própria atuação irregular. Aliás, a expressão significa,
literalmente, algo como “até tu”, indicando a supresa pelo fato de que alguém
tente se beneficiar de sua própria irregularidade no agir 352. Há, portanto, uma
incoerência capaz de permitir a aproximação entre esta figura e o venire
contra factum proprium.
De fato, essa semelhança acentuada tem levado alguns autores a
apontar que o venire e o tu quoque mantêm entre si uma relação de gênero e
espécie, ou seja, o tu quoque seria uma subespécie do venire, sendo este o
gênero e aquele a espécie. Nesse sentido as opiniões de Anderson Schreiber353
e Cristiano Chaves de Farias354.
Na realidade, em que pese o alto gabarito dos autores
mencionados, parece-nos que estão ambos equivocados, pois embora as
semelhanças entre os institutos, de fato, existam, é certo que existe diferença
de tal monta que impede essa assimilação de um pelo outro, como veremos
logo adiante, podendo desde logo adiantar que a essência do venire repousa na
proteção à boa-fé, enquanto o cerne do tu quoque se encontra na repressão à
má-fé, diferença que por si só os torna inconfundíveis, embora existam
algumas situações que podem ser enquadradas em qualquer das duas figuras,
352
Cristiano Chaves de Farias, Direito Civil – Teoria Geral, p. 478.
Anderson Schreiber, A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela da confiança e venire
contra factum proprium, pp. 177-178. O ilustre autor, em nota de rodapé, aponta que Menezes Cordeiro
cogita dessa hipótese, ou seja, de que o venire seria o gênero e o tu quoque a espécie, e também da hipótese
contrária, ou seja, de que o tu quoque seria o gênero, e o venire a espécie, vale dizer, este seria um subtipo
daquele (p. 177, nota n° 292). Concessa venia, está equivocado o ilustre autor, uma vez que o festejado jurista
português, embora de fato aponte essa possibilidade de que o venire e o tu quoque estejam um para o outro
como um tipo e seu subtipo (p. 843), fá-lo apenas para fins de contraste com as idéias que sustenta logo em
seguida, na mesma página 843 de sua obra, onde defende que mesmo que se adote uma concepção ampla do
venire (o que aponta não ser recomendável), as especificidades do tu quoque são de tal ordem que não
permitem a integração coerente e produtiva com o venire. A lém disso, aponta o ilustre autor do além-mar que
no tu quoque não se faz necessária uma situação de confiança como a que informa o venire contra factum
proprium. Cf. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 843.
354
Cristiano Chaves de Farias, Direito Civil – Teoria Geral, p. 478.
353
411
uma vez que, simultaneamente, ocorre um comportamento contraditório (o
que permitiria a qualificação como hipótese de venire), ao mesmo tempo em
que a contradição se revela como reprovável e inaceitável má-fé do agente, o
que faz com que seja mais adequado o enquadramento na figura do tu quoque.
De modo mais amplo, pode-se dizer que, em termos jurídicos, o
tu quoque se caracteriza pela mudança de valoração em relação à mesma
situação, ou seja, o sujeito, diante de duas situações idênticas, adota dois
critérios valorativos completamente distintos, ou seja, vale-se da “utilização
de dois pesos e duas medidas” 355. Ou, nas palavras de Menezes Cordeiro, na
figura do tu quoque “a contradição não está no comportamento do titularexercente em si, mas nas bitolas valorativas por ele utilizadas para julgar e
julgar-se” 356.
Veja-se que nessa descrição mais ampla, feita no parágrafo
anterior, enquadra-se perfeita e completamente aquela que foi feita no
parágrafo que dá início a este item, ou seja, no caso da pessoa que
primeiramente se comportou de uma certa forma, em relação a uma norma
jurídica, vale dizer, desconsiderou-a, sendo que, posteriormente, tentou
valorizar essa mesma norma, buscando proteção nas regras que ela contém.
Hipótese na qual, no nosso entender, caracteriza-se a figura do tu
quoque, é aquela na qual o sujeito, maliciosamente, força o implemento da
condição que o favorece ou, ao contrário, impede o implemento da condição
que o desfavorece (CC, art. 129). Vejamos um exemplo. Suponha-se que A
fez em favor de B uma doação com cláusula de reversão, ou seja, com a
355
Antônio Junqueira de Azevedo. Interpretação do contrato pelo exame da vontade contratual. O
comportamento das partes posterior à celebração. Interpretação e efeitos do contrato conforme o princípio da
boa-fé objetiva. Impossibilidade do venire contra factum proprium e de utilização de dois pesos e duas
medidas (tu quoque). Efeitos do contrato e sinalagma. A assunção pelos contratantes de riscos específicos e a
impossibilidade de fugir do “programa contratual” estabelecido. Revista Forense – v. 351, p. 279.
356
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 843.
412
previsão de que se o doador A sobrevivesse ao donatário B, o bem doado
retornaria ao patrimônio do primeiro (CC, art. 547).
Nessas condições, estando A muito doente, prestes a morrer (o
que afastaria a possibilidade de implemento da condição), o filho de A, na
iminência de ver o bem doado definitivamente fora do seu alcance, mata o
donatário B, forçando dolosamente o implemento da condição (o donatário
morreu antes do doador).
Se esse filho de A pretender se beneficiar da situação que ele
mesmo criou, ou seja, pretender que o bem doado retorne ao patrimônio de
seu pai para, logo em seguida, quando este morrer, passar para o seu próprio,
parece-nos que caracterizado estará o tu quoque, ou seja, a busca de autofavorecimento em virtude da própria atuação irregular. E é por essa razão que
o artigo 129, do Código Civil brasileiro, determina expressamente que, nesse
caso, a condição resolúvel será considerada como não tendo sido
implementada.
Nesse mesmo caso de doação com cláusula de reversão, pode-se
ainda supor a situação inversa, ou seja, é o donatário B quem se encontra em
delicada situação de saúde, podendo morrer a qualquer instante, o que
equivalerá ao implemento da condição, com o retorno do bem doado ao
patrimônio do doador A. Para evitar que isso aconteça, o filho de B mata o
doador A, e assim impede que a condição possa vir a ser implementada (o
doador foi quem morreu antes do donatário).
É evidente que, nessa situação descrita no parágrafo anterior, o
filho de B não poderá pretender ser favorecido em virtude da situação que ele
mesmo, dolosamente, provocou com sua atuação ilegal, ou seja, não poderá
pretender receber o bem doado como parte da herança de seu pai, quando este
vier a falecer, e é por isso que o Código Civil, no mesmo artigo 129, manda
413
que, em relação ao filho de B, a condição seja considerada como tendo sido
implementada.
A mesma opinião é sustentada por Menezes Cordeiro que,
comentando o artigo 275 357, do Código Civil português, cuja alínea 2 é
idêntica ao artigo 129 do Código Civil brasileiro, aponta que “no Código Civil
[português], a regra-mãe do tu quoque tem consagrações dispersas múltiplas.
O beneficiário da condição não pode aproveitar-se da sua verificação
quando, contra a boa-fé, a tenha provocado; o prejudicado não pode, da
mesma forma, beneficiar da não verificação quando, contra a boa-fé, a tenha
impedido – art. 275°/2” 358.
E, da mesma forma que ocorre no Código Civil português,
também no Código Civil pátrio podemos encontrar, dispersas, várias situações
que, na realidade, se constituem em aplicação da figura do tu quoque. Só que,
em tais casos, como é evidente, não deverá o operador do direito valer-se da
figura em exame (salvo como eventual reforço argumentativo), uma vez que já
existe disposição legal expressa tratando do tema (veja-se, a respeito, o que
dissemos no item 2.3.2.1.c). Assim, por exemplo, quando o artigo 105, do
Código Civil brasileiro, esclarece que a incapacidade relativa de uma das
partes não poderá ser invocada pela outra, em proveito próprio, nada mais está
fazendo do que aplicar concretamente o tu quoque.
Com efeito, veja-se que se um dos sujeitos, sendo plenamente
capaz, negociou com outro, incapaz relativo, diretamente, ou seja, sem que
tivesse havido a assistência pelo representante legal (e sem que se trate da
357
358
ARTIGO 275º (Verificação e não verificação da condição).
1. A certeza de que a condição se não pode verificar equivale à sua não verificação.
2. Se a verificação da condição for impedida, contra as regras da boa fé, por aquele a quem prejudica,
tem-se por verificada; se for provocada, nos mesmos termos, por aquele a quem aproveita, considera-se
como não verificada.
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 837-838.
414
ocultação maliciosa da idade, prevista no art. 180, do Código Civil), violou a
norma legal que trata dos requisitos de validade do negócio jurídico (artigo
104, do Código Civil). Logo, não poderá posteriormente pretender invocar
essa violação, que por ele mesmo foi cometida, para pretender beneficiar-se
com a anulaçao do negócio viciado, mesmo porque o instituto da incapacidade
tem como finalidade clara a proteção do incapaz, e não a da pessoa que com o
incapaz negociou.
Da mesma forma, quando o nosso Código Civil prevê a
possibilidade de exclusão por indignidade do herdeiro que foi o autor, co-autor
ou partícipe de homicídio doloso contra o de cujus (art. 1.814, I), está dando
aplicação prática à regra do tu quoque, pois não faria o menor sentido, ferindo
frontalmente a ética, que a própria pessoa que contribuiu para a morte do
titular do patrimônio venha a se beneficiar dessa mesma morte, apresentandose como herdeiro do falecido e recolhendo seu quinhão hereditário no
patrimônio que o mesmo deixou. E o mesmo raciocínio, ainda em tema de
exclusão do herdeiro por indignidade, poderia ser apresentado em relação ao
que impediu o de cujus de dispor livremente dos seus bens (art. 1.814, III).
Especificamente em relação aos contratos, facilmente pode-se
imaginar a ocorrência da figura do tu quoque. Imagine-se, por exemplo, que
um dos contratantes deixou de cumprir o seu dever lateral de informação, não
transmitindo ao outro a orientação precisa sobre o lugar onde a coisa devida
teria que ser entregue. Posteriormente, não tendo ocorrido a entrega, pretende
o credor que seja reconhecida a mora do devedor, e receber deste a
indenização correspondente ao inadimplemento contratual. Ora, é evidente
que o contratante que violou de modo significativo a norma contratual não
poderá pretender, ao depois, exigir do outro o cumprimento rigoroso desse
mesmo contrato.
415
Enquadra-se na figura do tu quoque, como é evidente, a chamada
exceção do contrato não cumprido, ou seja, quem não cumpriu a sua
prestação, no contrato sinalagmático, não poderá exigir que a parte contrária
cumpra a sua contraprestação359. No entanto, deve-se ter cuidado com o
alcance de tal afirmação. Começamos por observar que, no parágrafo anterior,
nos reportamos a uma violação qualificada do contrato, ou seja, a uma
violação que se mostre significativa. É que nem toda violação de uma
obrigação, por um dos contratantes, terá o condão de liberar o outro do
cumprimento de sua própria prestação, só ocorrendo tal liberação quando essa
primeira violação tiver afetado a estrutura sinalagmática, ou seja, tiver afetado
o equilíbrio das prestações recíprocas, como bem aponta Menezes Cordeiro 360.
E o ilustre autor português exemplifica, na mesma obra e local
citados, narrando o seguinte caso concreto, apresentado diante dos tribunais
alemães. Os autores firmaram com o réu um contrato, do qual constava que
iriam construir um imóvel residencial, constando do contrato, ainda, a opção
de compra do imóvel, pelos autores. Para fins de experiência, quanto à
moradia no imóvel, os autores poderiam ocupá-lo, como locatários, pelo prazo
de três anos, sendo que o locador poderia rescindir o contrato a qualquer
tempo, se houvesse uma causa que o justificasse. No momento da celebração
do contrato, ajustou-se provisoriamente que os autores pagariam, pela
aquisição, a quantia de 4 mil marcos alemães, sendo o valor definitivo deixado
para fixação posterior, conforme os custos da construção.
359
Antônio Junqueira de Azevedo. Interpretação do contrato pelo exame da vontade contratual. O
comportamento das partes posterior à celebração. Interpretação e efeitos do contrato conforme o princípio da
boa-fé objetiva. Impossibilidade do venire contra factum proprium e de utilização de dois pesos e duas
medidas (tu quoque). Efeitos do contrato e sinalagma. A assunção pelos contratantes de riscos específicos e a
impossibilidade de fugir do “programa contratual” estabelecido. Revista Forense – v. 351, p. 280.
360
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 845.
416
Dois anos depois, o locador (réu) informa aos locatários (autores)
que o valor definitivo, a ser por eles pago, é no valor de 8.253,68 marcos
alemães, sendo que os locatários impugnam tal valor e pedem informações
sobre como o mesmo foi apurado. O locador, sem responder, limita-se a
perguntar se os locatários pagariam a quantia, e agora são os locatários que
não respondem. O locador, então, rescinde o contrato, alegando que os
rendimentos e as possibilidades de crédito dos locatários (dados que eram por
ele conhecidos), não possibilitariam o pagamento da quantia necessária para a
aquisição, e que isso era um fato importante, pois não faria sentido manter-se
uma experiência que se destinava à aquisição do imóvel, se já estava
caracterizado que tal aquisição não teria como ocorrer.
Os locatários, então, ajuízam ação na qual sustentam que o
locador havia descumprido sua obrigação de prestar informações, ao não
esclarecer sobre o modo de apuração do montante a ser pago, e que por isso
não poderia rescindir o contrato em virtude da suposta impossibilidade do
mesmo vir a ser cumprido por eles, o que caracterizaria o tu quoque. O
tribunal, no entanto, considerando como provada a impossibilidade dos
autores adquirirem o referido imóvel, entendeu que, apesar de realmente ter
havido o descumprimento contratual pelo locador, a falta de informação não
chegou a perturbar a estrutura sinalagmática do contrato, pois ainda que
tivesse sido cumprido esse dever de informar, de qualquer modo os locatários
continuariam sem ter meios para a aquisição do prédio. Tais circunstâncias
impediriam a caracterização do tu quoque, sendo tal solução aplaudida por
Menezes Cordeiro 361.
361
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, pp. 845-846.
417
Aproveitando situação descrita por Antônio Junqueira de
Azevedo362, vejamos um outro exemplo. Aponta o ilustre Professor Titular da
Faculdade de Direito da USP que “não tem sentido, como devedor, pagar com
a correção monetária ‘X’ e querer receber, como credor, com a correção
monetária ‘X+1’”. Essa hipótese tem se concretizado com freqüência em
relação às restituições de tributos cobrados indevidamente ou por valor maior
do que o devido. Veja-se que a fazenda pública, ao cobrar os tributos devidos
pelo contribuinte, vem a atualizar-lhes o valor pelo uso da taxa SELIC. No
entanto, quando o contribuinte é que se apresenta como credor, em relação a
tributo que tenha sido indevidamente cobrado, costuma a fazenda pública
sustentar a inaplicabilidade da taxa SELIC, pretendendo fazer a devolução
corrigida por outros índices de atualização, invariavelmente menores do que
os da SELIC. Trata-se, a toda evidência de caso explícito do tu quoque.
O Superior Tribunal de Justiça, pelo menos por algumas de suas
Turmas, tem repelido firmemente essa atuação de má-fé da fazenda pública,
embora não tenha, até o presente momento, feito referência explícita à figura
do tu quoque. E veja-se que, nesses casos, a valoração que a fazenda pública
dá à norma legal, entendendo que os seus créditos devem ser atualizados pela
taxa SELIC, tem levado o Superior Tribunal de Justiça a entender até mesmo
que o pedido de que a restituição seja corrigida pela SELIC se encontra
implícito, ainda que não tenha sido mencionado pelo contribuinte autor, em
sua petição inicial. Com efeito, já decidiu o STJ 363 que:
362
Antônio Junqueira de Azevedo. Interpretação do contrato pelo exame da vontade contratual. O
comportamento das partes posterior à celebração. Interpretação e efeitos do contrato conforme o princípio da
boa-fé objetiva. Impossibilidade do venire contra factum proprium e de utilização de dois pesos e duas
medidas (tu quoque). Efeitos do contrato e sinalagma. A assunção pelos contratantes de riscos específicos e a
impossibilidade de fugir do “programa contratual” estabelecido. Revista Forense – v. 351, p. 280.
363
STJ, 1ª Turma, AgRg no REsp 727.200/PB, Rel. Min. Luiz Fux, Ac. unânime, j. 08.11.2005, p. DJ
18.11.2005, p. 222.
418
TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL.
AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO. PRESCRIÇÃO. TERMO
INICIAL. TESE DOS CINCO MAIS CINCO. LEI COMPLEMENTAR 118,
DE 09 DE FEVEREIRO DE 2005. JURISPRUDÊNCIA DA PRIMEIRA
SEÇÃO. TAXA SELIC.
1. ...
...............................
3. Os valores recolhidos indevidamente devem sofrer a incidência de juros
de mora até a aplicação da TAXA SELIC, ou seja, os juros de mora deverão
ser aplicados no percentual de 1% (um por cento) ao mês, com incidência a
partir do trânsito em julgado da decisão. Todavia, os juros pela taxa SELIC
devem incidir somente a partir de 1º/01/96. Decisão que ainda não transitou
em julgado implica a incidência, apenas, da taxa SELIC .
4. A determinação, na sentença, de incidência da Taxa SELIC sobre os
valores a serem objeto da compensação pleiteada, embora inexistente pedido
expresso da parte autora neste sentido, não implica em julgamento extra
petita, porquanto integra o conteúdo implícito do pedido.
Vejamos uma outra hipótese. Seria o caso, agora, de uma ação
ajuizada perante a Justiça do Trabalho, na qual a empresa ré, ao apresentar sua
resposta, argüiu em preliminar da contestação a incompetência absoluta, em
razão da matéria, da Justiça laboral. A decisão primária, contudo, rejeitou a
preliminar, dando-se o juiz do trabalho por competente para instruir e julgar a
demanda. O Tribunal Regional do Trabalho, no entanto, ao apreciar Recurso
Ordinário que versava sobre outro tema, e não sobre a questão da
competência, ex officio veio a proclamar a incompetência ratione materiae da
Justiça Trabalhista, determinando a remessa dos autos para a Justiça estadual.
No lapso de tempo que medeou entre a sentença do juiz de
primeiro grau e o Acórdão do Tribunal, contudo, o reclamado pesquisou a
jurisprudência e percebeu que as decisões da Justiça do Trabalho, para os
casos similares àquele, eram mais favoráveis aos seus interesses do que as
decisões que vinham sendo proferidas pela Justiça estadual (o que ocorre, por
exemplo, em relação ao quantum das indenizações por dano moral, que têm
sido fixados pela Justiça do Trabalho em valores irrisórios). Por essa razão,
419
contra a decisão do Tribunal Regional, vem o reclamado a interpor recurso de
revista para o Tribunal Superior do Trabalho, pedindo que este declare que a
competência é da Justiça do Trabalho. Eis aí, perfeitamente caracterizada, a
ocorrência do tu quoque.
Com efeito, veja-se que, em um primeiro momento, o reclamado,
ao interpretar a norma legal, valorou-a de uma certa forma, entendendo que da
mesma exsurgia a incompetência ratione materiae daquele ramo especializado
do Judiciário. Posteriormente, no entanto, sem que tenha havido qualquer
alteração legislativa quanto à competência, que pudesse justificar a mudança
na sua posição jurídica, passa a empresa reclamada a valorar a mesma norma
legal de modo inverso, ou seja, adotando exatamente o oposto de sua posição
anteriormente adotada, entendendo agora que da norma se poderia aferir a
competência da Justiça do Trabalho 364.
Observe-se que esses comportamentos da empresa reclamada,
sendo claramente contraditórios, o segundo em relação ao primeiro, podem
levar a que se confunda a situação com a ocorrência do venire, como já
comentamos acima. No entanto, como também já mencionamos, a diferença
entre ambos se mostra tão marcante que acaba por tornar impossível essa
mesma assimilação entre as duas figuras. É que, como já adiantamos algumas
linhas atrás, a essência do venire repousa na proteção à boa-fé, enquanto o
cerne do tu quoque se encontra na repressão à má-fé.
Em outras palavras, as situações que levam a repressão ao venire
contra factum proprium têm por escopo a proteção à boa-fé do outro sujeito,
ou seja, da contraparte, podendo ser assim esquematizada: a) um dos sujeitos
364
Situação semelhante é a descrita por Menezes Cordeiro, referente à parte que, diante do juízo arbitral,
alega a incompetência dos árbitros, requerendo a remessa da questão para apreciação pelos juízes. Perante
estes, contudo, alega em sua defesa a existência de compromisso arbitral. Cf. Antônio Manuel da Rocha e
Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil, p. 852.
420
adotou um primeiro comportamento; b) em virtude desse comportamento,
surgiu no outro uma confiança sobre qual seria o comportamento posterior; c)
esse comportamento posterior, no entanto, veio a contrariar o primeiro, de
modo a ser quebrada a confiança da contraparte; d) a proibição ao venire,
então, terá a finalidade de proteger essa confiança que foi quebrada, e que em
última análise, como já vimos anteriormente, concretiza a proteção à boa-fé.
Veja-se, portanto, que nessa hipótese de atuação do venire o que
se buscou foi proteger a boa-fé daquele que foi surpreendido pela atuação
incoerente e contraditória do outro, e por essa razão, pouco importa, como
também já vimos, se o que agiu de modo contraditório estava ou não de má-fé,
pois o que se está buscando, na repressão ao venire contra factum proprium,
não é a punição da má-fé (que pode nem ao menos ter existido) de um deles,
mas sim a proteção à boa-fé (à confiança) do outro. E não se poderá falar em
venire se não houve, por qualquer razão, o surgimento da confiança, por parte
do outro sujeito.
Na figura do tu quoque, no entanto, não se mostra indispensável o
surgimento dessa mesma confiança na contraparte, pois o que se busca
reprimir é a má-fé, a malícia do sujeito que adotou valorações diferentes para
uma mesma situação jurídica. Assim, no exemplo acima apontado, referente a
uma reclamação trabalhista, para a invocação da figura do tu quoque será
completamente indiferente pesquisar-se se no reclamante havia ou não surgido
a confiança no sentido de que o réu não iria sustentar uma posição diferente da
anteriormente sustentada, vale dizer, se não iria sustentar a competência da
Justiça do Trabalho, pois o que se buscará é a repressão à malícia do réu, e não
a proteção à boa-fé do autor.
E tanto é assim que o tu quoque poderá e deverá ser reprimido ex
officio, antes mesmo de ser intimado o autor sobre as alegações da empresa
421
reclamada, para que sobre elas se manifeste. E, ainda mais, mesmo que o autor
venha a se manifestar no sentido de que concorda com as alegações feitas pela
outra parte, pois também entende que a competência é da Justiça do Trabalho,
deixando claro que não houve qualquer frustração de expectativas ou quebra
de confiança, ainda assim terá ocorrido a figura do tu quoque, e o juiz poderá
atuar ex officio para reprimi-la.
Essa diferença entre as duas figuras, ao que nos parece, afasta
qualquer possibilidade de assimilação ou incorporação de uma delas pela
outra, pois os seus elementos característicos são claramente distintos, eis que
em um (o venire) é indispensável a presença da confiança, que virá a ser
quebrada pela atuação contraditória, enquanto no outro (o tu quoque), não há a
necessidade da presença dessa mesma confiança (embora, eventualmente, ela
possa estar presente). Nesse sentido é que Menezes Cordeiro sustenta que “o
venire contra factum proprium é proibido em homenagem à proteção da
confiança da pessoa que se fiou no factum proprium... Embora no tu quoque
seja de valorar – o que não tem sido feito – a posição da contraparte que
prevarica em segundo lugar, não há que lhe inserir uma situaçao de
confiança similar ou paralela à que informa o vcfp” 365.
Assim, parece-nos demonstrado o que já havíamos afirmado
anteriormente, ou seja, que são inconfundíveis as duas figuras, não sendo
possível que fiquem abrangidas dentro de um mesmo tipo jurídico, ainda que
ambas sejam umbilicalmente ligadas à boa-fé e que em alguns casos
apresentem alguma semelhança mais acentuada.
2.5. Suppressio e surrectio.
365
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 843.
422
A suppressio é a inadmissibilidade do exercício de um direito (ou
seja, a sua supressão, daí a denominação), por ter o seu titular deixado de
exercê-lo durante algum tempo, e, em virtude das circunstâncias da situação
concreta, essa omissão teve o efeito de gerar na contraparte a confiança de que
esse referido direito não mais seria exercido. Como se vê, trata-se, de uma
certa forma, dos efeitos do tempo sobre as relações jurídicas, razão pela qual
se deve tomar redobrado cuidado para evitar a confusão com outras situações
similares, tais como a prescrição e a decadência.
A ligação do instituto com a boa-fé reside no fato de que não é
suficiente, para caracterizá-lo, o simples retardamento no exercício do direito,
sendo além disso indispensável que em virtude dessa delonga tenha surgido no
outro sujeito a confiança, em termos objetivos, de que não mais haveria o seu
exercício, o que significa dizer que o lapso temporal deve vir acompanhado de
outras circunstâncias objetivas, capazes de fazer surgir essa confiança, de
modo tal que o exercício posterior e súbito do direito venha a contrariar a boafé. Trata-se, portanto, da “inadmissibilidade de exercício de um direito por seu
retardamento desleal” 366. Na realidade, como veremos adiante, nem sempre o
resultado será a perda do direito, podendo ser a redução do seu conteúdo.
Essa questão mencionada no parágrafo anterior, no sentido de que
o não exercício do direito, por si só, não se mostra suficiente, sendo necessário
que o mesmo esteja acompanhado de circunstâncias capazes de fazer surgir a
confiança, é essencial para que possamos fazer a separação entre a figura da
suppressio e os outros institutos que também refletem os efeitos da passagem
do tempo sobre os direitos, como a prescrição e a decadência, uma vez que
nestes institutos é suficiente a inatividade do titular do direito pelo transcurso
366
Anderson Schreiber, A Proibição de Comportamento Contraditório – Tutela da confiança e venire
contra factum proprium, p. 178.
423
do tempo previsto de modo específico na lei, sendo irrelevante a presença de
outras circunstâncias que acompanhem essa omissão. Na suppressio, como
aponta Menezes Cordeiro367, “é necessário um determinado período de tempo
sem exercício do direito e que se requer, ainda, indícios objetivos de que esse
direito não mais seria exercido”.
Além disso, contudo, pode-se ainda apontar que no caso da
prescrição e da decadência, em geral, não ocorrem maiores discussões em
relação ao momento exato de sua concretização, uma vez que, como
mencionado logo acima, a lei fixa de modo preciso o momento em que o lapso
temporal se inicia e o tempo que deverá decorrer, até que se dê a sua
consumação. No caso da suppressio, ao contrário, embora se possa
determinar, em regra, o momento preciso em que o direito poderia ter sido
exercido por seu titular, não há a menor possibilidade de se conhecer
previamente qual o tempo que será necessário decorrer até que possa estar
caracterizada a inadmissibilidade desse mesmo exercício pelo seu titular, pois
tal momento só poderá ser aferido em virtude das circunstâncias do caso
concreto, como aliás é a regra geral nos casos de proteção à boa-fé objetiva.
A origem da suppressio é jurisprudencial e relativamente recente,
mais precisamente nos tribunais alemães e suas decisões proferidas logo após
o término da primeira guerra mundial. A guerra, como se sabe, causou
profunda desordem econômica na Alemanha, o que resultou em uma inflação
elevadíssima naquele País.
Nessas condições, em um primeiro momento os tribunais
tedescos passaram a admitir a correção monetária dos créditos, afastando o
princípio do nominalismo, como forma de proteção ao credor. Logo em
seguida se percebeu, contudo, que quando o credor retardava por algum tempo
367
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 810.
424
a exigência do pagamento, isso fazia com que a quantia devida, tendo em vista
a inflação astronômica, fosse corrigida para valores muito elevados, atingindo
montantes que estavam fora do alcance do devedor, e por essa razão passaram
os tribunais a entender que a demora no exercício do direito, sendo causadora
de inaceitável desequilíbrio entre as prestações, se mostrava contrária à boa-fé
enquanto norma de conduta, podendo levar à perda da possibilidade de
exercício tardio do direito368.
Como se vê, o próprio surgimento da figura da suppressio já se
deu de um modo tal que havia as circunstâncias especiais, que quando
acompanhadas do decurso do tempo se mostravam capazes de gerar um
desequilíbrio que afetava a boa-fé negocial.
Por outro lado, parece evidente que se essas circunstâncias que
acompanham o lapso de tempo durante o qual o direito não foi exercido
apontarem em sentido contrário, de suppressio não se poderá mais falar. Dito
de modo mais claro, o retardamento que se mostra capaz de caracterizar a
suppressio é aquele acompanhado de circunstâncias que indiquem que o
direito não mais será exercido. Logo, contrario sensu, se essas circunstâncias
são tais que em virtude delas mesmas foi que o direito não pôde ser exercido,
a toda evidência não se caracterizará a figura da suppressio, pois nesse caso o
não exercício do direito pelo seu titular, durante o lapso temporal, estaria
justificado, por ter havido algum fato que o impediu.
Assim, por exemplo, suponha-se que o titular do direito deixou de
exercê-lo porque se encontrava em estado de coma, impossibilitado de
expressar a sua vontade; ou, então, que o direito não foi exercido porque o seu
titular se encontrava viajando para o exterior, por motivo de serviço público;
ou, ainda, que o titular do direito é militar e integra a força de paz deslocada
368
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 801-802.
425
pelo Brasil para a missão da ONU no Haiti. Ora, em todos esses casos é mais
do que evidente que o não exercício do direito estará plenamente justificado, e
o titular poderá exercê-lo tão logo desapareça essa causa que durante algum
tempo o impediu de fazê-lo, pouco importa se foi mais ou menos longo o
tempo durante o qual houve a abstenção.
De um modo geral, pode-se apontar que as mesmas causas que se
mostram capazes de interromper, impedir ou suspender a fluência do prazo
prescricional (no nosso ordenamento, artigos 197 a 202, do Código Civil),
também se mostram bastantes para justificar o não exercício do direito pelo
seu titular, afastando a possibilidade de caracterização da suppressio. Só que,
a toda evidência, pode-se ainda apontar que, quanto à suppressio, ao contrário
do que ocorre em relação à prescrição, o elenco legal de causas que se opõem
à fluência do prazo não se mostra taxativo, uma vez que o tema se encontra no
campo da boa-fé, onde as circunstâncias capazes de caracterizar a ofensa à
boa-fé (e, por isso, a suppressio) ou capazes de impedir essa caracterização,
jamais estarão contidas na norma legal de modo exaustivo, como já vimos,
sempre havendo a possibilidade de variações em função das circunstâncias do
caso concreto. Disso daremos exemplo adiante.
Do que foi dito até agora, já se torna relativamente simples
perceber que a suppressio nada mais é do que um caso particular de venire
contra factum proprium, caracterizado pelo fato de que o primeiro dos
comportamentos contraditórios sempre se apresentará como sendo uma
omissão (acompanhada de um prazo), ou seja, sempre consistirá na abstenção,
por parte do titular do direito, em relação ao seu exercício, e a contradição
ocorre porque o segundo comportamento se refere ao exercício desse mesmo
direito do qual até então se abstivera, quebrando a confiança que havia surgido
no outro sujeito quanto ao seu não exercício. Não é demais recordar que os
426
comportamentos contraditórios podem consistir tanto em uma ação quanto em
uma omissão, como já vimos em detalhes, retro (veja-se, a respeito, o que
escrevemos no item 2.3.2.1.d).
Mas é conveniente observar que o primeiro comportamento, ou
seja, o factum proprium, não é apenas o momento inicial em que se deu a
omissão, vale dizer, não é tão-somente o momento em que o direito poderia
ter sido exercido, por seu titular, mas não o foi. Na realidade, o factum
proprium consiste no conjunto formado pela omissão e mais o lapso temporal,
pois é apenas a partir de tal conjunto – e não de um momento único – que
poderá surgir na contraparte a confiança, a expectativa de que o direito não
mais será exercido. O factum proprium, portanto, não se apresenta como um
quadro instantâneo, como se fosse uma fotografia, mas sim como uma
sucessão de quadros, sendo mais adequada a sua comparação com um filme.
Além disso, há uma outra particularidade que poderia ser
apontada, e que consiste no fato de que, em relaçao à suppressio, por
definição, sempre haverá, no momento em que se verificou o primeiro
comportamento, a existência de um direito, eis que tal comportamento se trata,
precisamente, do não exercício desse mesmo direito. Em relação ao venire
contra factum proprium, no entanto, não há a necessidade de que tal direito
exista para a sua caracterização. De qualquer modo, essa questão perdeu
interesse a partir do momento em que o próprio venire, de modo geral,
também passou a ser considerado como um modo inadmissível (abusivo) do
exercício de um direito, ou seja, sempre haverá, no venire contra factum
proprium, a questão ligada ao exercício de um direito 369.
Em alguns casos pode-se vislumbrar, em certos dispositivos
legais, a clara influência da figura da suppressio. Assim, por exemplo, dispõe
369
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 809-810.
427
o artigo 1.557, do nosso Código Civil, acerca da posibilidade de anulação do
casamento em virtude de erro essencial sobre a pessoa do cônjuge, sendo que
o prazo decadencial para a propositura da ação é de três anos, contado a partir
da celebração, como se vê no artigo 1.560, III, do mesmo Diploma Civil.
Assim, se um dos cônjuges descobre, logo após o casamento, fato que até
então desconhecia, e que diz respeito à “honra e boa fama” do outro e se
mostra capaz de tornar insuportável a vida em comum, poderá de imediato
propor a ação anulatória, mas é certo que a sua inatividade durante vários
meses, deixando de pleitear a anulação até alguns dias antes da expiração do
prazo decadencial, por si só não acarretará a supressão do direito.
No entanto, se essa inatividade foi acompanhada por uma
circunstância especial, e que no caso descrito consiste no fato de que o
cônjuge que incidiu em erro, mesmo depois da descoberta desse fato que até
então desconhecia, continuou a coabitar com o outro, nesse caso passará a ser
inadmissível o direito de pleitear a anulação do casamento, pois essa
circunstância especial, acompanhada da omissão quanto ao exercício do
direito, mostra-se capaz de gerar no outro cônjuge a confiança de que o direito
não mais será exercido. E é por essa razão que o artigo 1.559, do Código
Civil, de modo expresso estabelece que a coabitação do cônjuge que incidiu
em erro com o outro valida o ato, retirando daquele, portanto, a possibilidade
de obter a sua anulação.
Essa situação descrita, ao que nos parece, reflete de modo claro
uma aplicação prática da suppressio, e, tivesse o legislador, por qualquer
razão, deixado de fazer a ressalva que se encontra no artigo 1.559, referente à
coabitação, ainda assim o direito de obter a anulação do casamento não mais
poderia ser exercido, só que aí por força da suppressio, uma vez que
inexistiria disposição legal expressa. Aliás, não é demais recordar, como já
428
vimos, retro (item 2.3.2.1.c), que os institutos ligados à boa-fé não devem ser
invocados quando existe norma legal expressa tratando sobre o mesmo tema,
pois seus contornos imprecisos podem ser geradores de insegurança jurídica.
Salvo, é evidente, quando a própria norma legal, conduzindo a solução injusta
e inaceitável, deva ser afastada em virtude da prevalência do princípio da boafé.
Dissemos, alguns parágrafos atrás, que não se poderia falar em
suppressio quando houve alguma circunstância especial que, em vez de incutir
na contraparte a confiança de que o direito não mais seria exercido, funcionou
de modo contrário, ou seja, quando foi essa circunstância mesma que impediu
que o titular do direito o exercesse. Dissemos, ainda, que as causas que
impedem, suspendem ou interrompem a prescrição, também impedem que se
possa falar em suppressio, sendo, no entanto, que o elenco legal referente à
prescrição, que em relação a esta se mostra taxativo, é apenas exemplificativo
em relação à suppressio, podendo ocorrer outras circunstâncias especiais, não
previstas na lei, que também se mostrem suficientes para afastar a
possibilidade de ser caracterizada a supressão do direito. Aproveitaremos essa
hipótese de anulação do casamento para exemplificar o que foi dito.
Suponhamos que, após o casamento, um dos cônjuges descobre
que o outro é portador de moléstia grave e transmissível, ou, então, que o
mesmo sofre de doença mental grave, que por sua natureza seja capaz de
tornar insuportável a vida em comum para o cônjuge “enganado”
(terminologia claramente inadequada, empregada pelo Código Civil). Em
qualquer desses casos, estando configurado o erro essencial sobre a pessoa do
cônjuge, nos termos do artigo 1.557, III e IV, do Código Civil brasileiro,
poderá ser requerida a sua anulação, no prazo de três anos, contado a partir da
429
data da celebração do casamento, conforme preceitua o artigo 1.560, III, do
mesmo Diploma Civil.
Em uma situação concreta, no entanto, continuemos a supor, um
dos cônjuges descobriu, uns poucos dias após o casamento, que o outro era
portador da doença mental grave, nas condições acima mencionadas. Só que
esse cônjuge não cuidou de ajuizar desde logo a ação de anulação, só vindo a
fazê-lo quando já eram decorridos dois anos e onze meses da data da
celebração do casamento. O simples retardo no ajuizamento da ação, como já
comentamos reiteradas vezes, não é suficiente para tornar inadmissível o
exercício do direito. No entanto, suponha-se que esse retardo, mais uma vez,
tenha vindo acompanhado da circunstância especial da coabitação entre os
cônjuges, mesmo após a descoberta da doença. Nesse caso, terá ocorrido a
suppressio? A resposta, aqui, ao contrário do exemplo anterior, deve ser
negativa.
Com efeito, veja-se que, nesse exemplo apresentado no parágrafo
acima, existe uma justificativa bastante plausível para que tenha continuado a
coabitação entre os cônjuges, mesmo após a descoberta da doença, pois se
assim não fosse, para não ver afastado (suprimido) o seu direito de requerer a
anulação do casamento, o cônjuge “enganado” se veria obrigado a, desde logo,
abandonar o outro à própria sorte, muitas vezes com conseqüências nefastas,
que poderiam levar ao agravamento de uma situação de saúde já delicada. E é
exatamente porque neste caso existe justificativa para o fato de ainda não ter
sido ajuizada a ação e de ter continuado a coabitação, que o Código Civil, no
artigo 1.559, logo após mencionar que a coabitação valida o casamento, e,
portanto, suprime o direito de obter-lhe a anulação, fez a ressalva para
informar que isso não se aplica nos casos em que o erro essencial consiste na
ignorância de moléstia grave e transmissível ou de doença mental grave.
430
Assim, pensamos que a partir desse último exemplo restam
demonstradas e mais bem explicadas as duas afirmações que haviam sido
feitas, ou seja: a) havendo uma circunstância especial que justifique a demora
no exercício do direito, pelo seu titular, afastada estará a ocorrência da
suppressio; b) as causas que se mostram bastantes para impedir a fluência do
prazo prescricional, também se mostram adequadas para evitar a
caracterização da suppressio, mas além dessas causas que se referem à
prescrição podem ocorrer outras, colhidas das circunstâncias do caso concreto,
e referentes, especificamente, ao afastamento da suppressio.
De qualquer modo, esses exemplos acima, referentes à anulação
do casamento, servem apenas para ilustrar o raciocínio, eis que não se trata,
verdadeiramente, de uma hipótese de suppressio, mas simplesmente de
aplicação da norma legal expressa, como já comentamos umas poucas linhas
atrás. Vejamos agora, portanto, uma situação que não se encontra prevista na
lei, mas na qual a jurisprudência tem reiteradamente se valido do conceito de
suppressio, embora sem fazer menção a essa terminologia e, muitas vezes,
segundo acreditamos, sem ter a menor noção de que está sendo aplicada a
referida figura. Trata-se da hipótese, comum na Justiça do Trabalho, da
ocorrência do (impropriamente) chamado “perdão tácito”, ao qual já nos
referimos ao falar sobre o venire contra factum proprium em geral (veja-se,
retro, o item 2.3.2.1.d), ocasião em que já apontamos que seria um caso de
venire onde o primeiro comportamento consistiria em uma omissão.
Com efeito, figure-se situação na qual o empregado tenha
praticado falta grave, capaz de servir como esteio para que o empregador
promova a resolução do contrato de trabalho por justa causa. Mesmo após ter
descoberto o cometimento dessa falta, no entanto, o empregador quedou-se
inerte, não exercendo durante vários meses o seu direito de resolver o contrato
431
por justa causa. Se, depois desse prazo, resolver exercer esse mesmo direito,
não poderá mais fazê-lo, por ter se caracterizado a ocorrência da suppressio
(“perdao tácito”). Nesse sentido:
JUSTA CAUSA. PRINCÍPIO DA IMEDIATIDADE NA APLICAÇÃO DA
PENA. A não observância ao princípio da imediatidade na aplicação da
penalidade máxima, ante a ocorrência de falta reputada grave pelo
empregador, atrai a presunção de perdão tácito. A questão não se caracteriza
apenas pelo transcurso do tempo, mas também por qualquer medida adotada
pelo empregador reveladora da inequívoca intenção de manter o empregado
em seus quadros. TRT 2ª Região (SP), 4ª T., Acórdão n° 20050455057,
unânime. Relator Juiz Paulo Augusto Câmara. J. 12.07.2005, p. DOE SP
22.07.2005.
Veja-se que a decisão acima revela de modo inequívoco a
presença da suppressio, ainda que sob a alcunha de “perdão tácito”, e tanto é
assim que a ementa transcrita deixa muito claro que não se trata, para a
supressão do direito do empregador de resolver o contrato por justa causa, da
simples inação acompanhada do decurso do tempo, sendo ainda necessário
que tenha havido a adoção de qualquer medida “reveladora da inequívoca
intenção de manter o empregado em seus quadros”, ou seja, qualquer medida
que possa ser considerada como a circunstância especial, que já mencionamos
acima, capaz de incutir no empregado a confiança de que o contrato seria
mantido, ou seja, que o direito de resolvê-lo por justa causa não mais seria
exercido pelo empregador.
E se fosse a hipótese inversa, vale dizer, se fosse o empregador
quem tivesse incorrido em grave descumprimento das obrigações contratuais,
situação na qual o empregado pode exercer o direito de considerar o contrato
resolvido por justa causa do empregador (art. 483, da CLT: “rescisão
indireta”), mas o trabalhador simplesmente se afastou do serviço, ficando um
longo tempo sem exercer seu direito de pleitear a “rescisão indireta” e, depois
432
desse tempo, vindo a fazê-lo, nesse caso também poderia restar caracterizada a
ocorrência da suppressio?
A resposta, aqui, deve ser mais cautelosa, pois se é verdade que,
em alguns casos, a mesma poderá ser positiva, também o é que, em outros,
tendo em vista as circunstâncias especiais da relação jurídica concreta,
notadamente as que se referem à hipossuficiência econômica e ao estado de
subordinação do empregado, essa demora poderá ser justificada, hipótese na
qual já vimos que resta afastada a caracterização da suppressio.
Assim, por exemplo, suponha-se que o empregador tratou o
empregado com rigor excessivo, ou, então, que deixou de pagar-lhe os salários
por período superior a três meses, hipóteses que se constituem em justa causa
do empregador, podendo o empregado considerar o contrato resolvido em
virtude da mesma, conforme dispõe o artigo 483, da CLT (no caso do atraso
dos salários, combinado com o Decreto-Lei n° 368/68). O empregado, diante
de tal situação, simplesmente afasta-se do trabalho, mas não pleiteia o
reconhecimento da rescisão indireta, ou seja, não ajuíza reclamatória para que
lhe sejam pagas as parcelas rescisórias que lhe seriam asseguradas, e que são
as mesmas que seriam devidas em caso de ruptura do contrato por iniciativa
expressa e imotivada do empregador.
Vários meses depois de ter-se afastado do trabalho, mas ainda
dentro do lapso prescricional de dois anos (Constituição Federal, art. 7°,
XXIX), o empregado ajuíza ação, perante a Justiça do Trabalho, na qual
pleiteia o reconhecimento da rescisão indireta e o conseqüente pagamento do
aviso prévio, seguro-desemprego, etc, ou seja, as parcelas que normalmente
decorreriam do reconhecimento dessa rescisão indireta. Nesse caso, o não
exercício do direito durante esse longo tempo caracterizou a ocorrência da
suppressio (“perdão tácito”), retirando do empregado a possibilidade de
433
exercer o direito de ver reconhecida a justa causa do empregador, como
reiteradamente tem entendido a jurisprudência dos tribunais trabalhistas
pátrios 370.
No entanto – e é aí que vem a cautela que acima mencionamos –,
a demora do empregado, no exercício do seu direito de resolver o contrato por
justa causa do empregador, não pode ser examinada do mesmo modo que se
examina a demora deste último, na hipótese inversa, uma vez que o
empregado, além de ser hipossuficiente econômico, ainda se encontra em
estado de subordinação. Logo, mesmo que o empregador venha, ao longo de
vários meses, tratando o empregado com rigor excessivo, ou tratando-o de
modo tal que se repete no tempo a ofensa à honra do trabalhador, o fato deste
optar por continuar a trabalhar, sem adotar qualquer medida em relação ao seu
direito de ver o contrato resolvido por justa causa do patrão, tolerando os
desmandos do empregador que se vêm reiterando e acumulando nesses vários
meses, isso não implicará na suppressio, vale dizer, dessa situação não se
poderá concluir pela inadmissibilidade do empregado vir a exercer, em
momento posterior, seu direito de pleitear a rescisão indireta.
370
JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA DE ANOTAÇÃO DA CTPS. PRINCÍPIO DA IMEDIATIDADE.
1. A justa causa do empregador não se caracteriza quando o empregado retarda a adoção de medida
tendente a rescindir o contrato de trabalho decorrente de ato faltoso (ausência de anotação da Carteira de
Trabalho). 2. Em face do princípio da atualidade ou imediatidade, opera-se o perdão tácito quando,
verificando a ocorrência de um ato faltoso, não atua a parte interessada (empregado ou empregador) de
forma imediata, deixando transcorrer tempo razoável entre o inadimplemento e o momento de promover a
resolução do contrato de trabalho. 3. Recurso de revista de que parcialmente se conhece e a que se nega
provimento. TST, 1ª T, Ac. por maioria, Redator Designado Min. João Orestes Dalazen, RR n° 689442, j.
18.06.03, p. DJ 12.09.03.
PRESCRIÇÃO INDIRETA. LAPSO MUITO GRANDE ENTRE A FALTA COMETIDA PELA
EMPRESA E A PROPOSITURA DA RECLAMATORIA. PERDÃO TÁCITO. Havendo lapso muito
grande entre a falta grave cometida pela empresa, suficiente a ensejar a rescisão indireta, e a propositura
da reclamatoria, ocorre o denominado perdão tácito, absolvendo a demandada dos onus que lhe foram
imputados. Revista patronal conhecida e provida. TST, 3ª T, Ac. unânime, Relator Min. Roberto Della
Manna, RR n° 52105, j. 14.12.92, p. DJ 06.08.93, pág. 15106.
434
Ora, como facilmente se pode imaginar, em um momento de
grave desemprego, como o que atualmente atravessa o nosso País, muitas
vezes a ruptura do contrato, pelo empregado, se mostraria muito mais danosa
do que ter que continuar a suportar os desmandos do patrão, principalmente
quando se trata de empregado de pouca ou nenhuma qualificação técnica,
situação na qual se mostra ainda mais difícil a obtenção de uma nova
colocação no mercado de trabalho. Em tal situação, portanto, estaria
plenamente justificada a demora do empregado, quanto ao exercício do seu
direito, uma vez que preferiu conservar o emprego em virtude da dificuldade
de obtenção de um outro, não podendo ser essa preferência confundida com a
pura e simples supressão do seu direito de resolver o contrato.
Nesse sentido é que se tem posicionado a jurisprudência dos
nossos tribunais, ou seja, diferenciando as hipóteses nas quais o empregado já
se afastou do emprego, ou seja, a relação jurídica já foi rompida (e, portanto,
desapareceu o estado de subordinação), daquelas nas quais o empregado ainda
continua trabalhando, e por isso, continua juridicamente subordinado ao
empregador e dependendo do salário para viver 371.
371
AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. AUSÊNCIA DE
RECOLHIMENTOS DO FGTS. FALTA GRAVE. RESCISÃO INDIRETA DO CONTRATO DE
TRABALHO. VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 5º, II, DA CF E 483, "A", DA CLT. CONTRARIEDADE
AO ENUNCIADO Nº 13. DISSENSO PRETORIANO.
...................................
A simples redação da alínea "d", do art. 483 da CLT não pode encerrar dúvida, a respeito da sua
aplicabilidade irrestrita. Com efeito, em que pese opiniões em contrário, as obrigações contratuais
inadimplidas pelo empregador não podem ser objeto de perdão tácito por parte do empregado, cuja
tolerância se deve, na absoluta maioria dos casos, à sua situação de dependência e hipossuficiência.
Outrossim, não há como conciliar o perdão tácito com a possibilidade de ação judicial reparatória, como
pretendeu o Eg. Regional.
De modo semelhante também ocorre quanto ao dito princípio da continuidade da relação de
emprego, que consiste de construção doutrinária em favor do empregado, não podendo por isso ser
invocado contra ele. Ao empregado é quem cabe exclusivamente decidir sobre se a ruptura pela rescisão
indireta lhe acarreta algum malefício.
................................
Recurso a que se dá provimento para declarar a rescisão indireta do contrato de trabalho,
condenando a Reclamada a pagar ao Reclamante os títulos rescisórios pertinentes à dispensa sem justa
causa.
435
Outro caso de claríssima aplicação da figura da suppressio, ainda
na jurisprudência dos tribunais trabalhistas, foi a recentíssima decisão do
Tribunal Superior do Trabalho 372, em sessão realizada no mês de fevereiro de
2006. Tratou-se de hipótese onde um empregado teve alterado o seu turno de
trabalho, ou seja, trabalhava durante a noite, das 20:00 horas até 01:30h, e foi
subitamente avisado que, a partir do mês seguinte, deveria trabalhar durante o
dia. A alteração do turno de trabalho do empregado, ainda que sendo assim tão
brusca, da noite para o dia, em geral é entendida como parte do poder diretivo
do empregador (jus variandi), para que este possa adequar a força de trabalho
dos seus empregados às necessidades da empresa.
No entanto, no caso concreto, o que se verificou foi que essa
situação do trabalho noturno perdurou durante treze anos consecutivos, sendo
que, ao longo de todo esse tempo, o empregado estruturou toda a sua vida em
função desse seu horário noturno, e durante o dia o mesmo era professor
adjunto de uma instituição de ensino superior, com jornada de quarenta horas,
e ainda cursava o doutorado em Psicologia Social, e por tais razões, a toda
evidência seria severamente prejudicado, caso viesse a ser concretizada a
alteração pretendida pelo empregador.
TST, 2ª Turma, Ac. unânime, Rel. Juiz convocado Samuel Corrêa Leite, RR n° 1126-2002-906-06-00, j.
10.12.03, p. DJ 13.02.04.
RESCISÃO INDIRETA DO CONTRATO DE TRABALHO. PERDÃO TÁ CITO.
INCOMPATIBILIDADE. A lógica do denominado "perdão tácito" não funciona da mesma forma nas
hipóteses de justa causa obreira e de justa causa empresarial. No primeiro caso, o decurso do tempo, aliado
à inércia do empregador, leva à presunção de que a falta porventura praticada tenha sido perdoada,
concretizando-se o princípio protetor que permeia todo o Direito do Trabalho. Já no caso da rescisão
indireta, é inviável pensar que a ausência de insurgência imediata do empregado contra a falta cometida
pelo empregador implique em perdão pelos atos praticados, pois o que prevalece, neste caso, é o direito ao
emprego, com permanência do vínculo que traz o sustento do obreiro e cuja ruptura acarreta, em geral,
mais desvantagens do que a "submissão" aos eventuais desmandos do empregador. Contribui, ainda, para
a inércia do empregado, submissão ao poder de mando do empregador. TRT 3ª Região, 2ª Turma, Ac.
unânime, Rel. Juiz Milton Vasques Thibau de Almeida, RO n° 01148-2004-021-03-00-8, j. 07.06.05, p.
DJ 15.06.05, pág. 09.
372
Tribunal Superior do Trabalho, 2ª T., Ac. unânime, RR 24147/2002-900-04-00.7, Rel. Min. Renato
de Lacerda Paiva, j. 14.02.2006.
436
No caso concreto, portanto, concluiu o Tribunal Superior do
Trabalho, ao nosso ver acertadamente, no sentido de que, tendo havido uma
duração tão longa do trabalho exclusivamente noturno, e tendo o empregado,
claramente, organizado toda a sua vida em função desse mesmo horário, o
direito de permanecer no horário noturno já havia se incorporado ao contrato
de trabalho, não podendo ser agora unilateralmente alterado pelo empregador.
Veja-se que, na situação relatada, o empregador deixou de
exercer seu poder diretivo, em relação à mudança de horário do empregado,
durante treze longos anos. No entanto, a simples falta de exercício do poder
diretivo, por si só, não seria capaz de justificar a supressão do direito do
empregador, sendo necessária, além disso, como já vimos retro, a presença de
algumas circunstâncias especiais, capazes de fazer surgir no empregado a
confiança de que aquela situação estava consolidada, ou seja, de que não mais
seria exercido pelo empregador o direito de alterar o seu turno do trabalho.
Veja-se que o longo tempo decorrido (13 anos), por si só já se
constitui em importante elemento a ser considerado, eis que já analisamos,
linhas atrás (veja-se o item 2.3.1), que uma das circunstâncias que sempre
devem ser consideradas, para se aferir se chegou ou não a se formar a
confiança no espírito do outro sujeito, é precisamente o tempo decorrido entre
os dois comportamentos contraditórios, sendo certo que, quanto maior tiver
sido esse tempo, mais plausível se torna que tal confiança tenha efetivamente
surgido. Veja-se, ainda, o que escrevemos no item 1.9.a.1, acerca de situação
semelhante à do caso ora relatado, e que dizia respeito ao empregador que
pretendia se valer de cláusula contratual para transferir o empregado, depois
de longo tempo trabalhando em uma mesma cidade, onde construíra todas as
suas relações familiares e econômicas.
437
No caso concreto ora enfocado, no entanto, além do longo tempo,
que estando sozinho poderia gerar alguma dúvida, houve ainda a peculiaridade
do empregado ter construído toda uma vida acadêmica e profissional em
paralelo, de modo a compatibilizá-la com o horário noturno no qual prestava o
seu trabalho para aquele empregador. E foi esse conjunto de fatores que, sem
qualquer dúvida, se constituíram na “circunstância especial”, capaz de fazer
surgir no empregado a confiança na permanência daquela situação, ou seja, a
confiança, como já dissemos acima, em que o empregador não iria alterar o
seu horário noturno de trabalho. E foi essa confiança que, em última análise,
veio a ser protegida pela decisão do Tribunal Superior do Trabalho.
Para que possamos prosseguir no exame da suppressio,
necessário é que se nos permita fazer breve observação, a ser logo adiante
mais bem explicitada. É que no caso acima relatado, o que se nota claramente
é que o Tribunal Superior do Trabalho, ao garantir ao empregado a
permanência no horário noturno, cuidou de, para proteger a confiança do
trabalhador, atribuir-lhe um novo direito, ou seja, o de exigir sua permanência
no trabalho noturno. Eis aí a figura da surrectio. Como decorrência lógica
desse direito atribuído ao trabalhador, no entanto, houve o desaparecimento de
um direito do empregador, qual seja, foi suprimido o direito de alterar o
horário de trabalho, após ter passado um longo período sem fazê-lo. Eis,
agora, a figura da suppressio, que surge como uma conseqüência da surrectio.
E é nessa linha de abordagem que daremos seqüência ao nosso estudo.
Prosseguindo, importante observação que deve ser feita, é a que
se refere ao objetivo primordial da suppressio. A questão que se coloca é a de
se saber se a finalidade da suppressio é a de reprimir o comportamento do
titular do direito, que deixou de exercê-lo e, posteriormente, pretendeu
exercer, ou se, ao contrário, o objetivo principal da figura da suppressio é a
438
proteção à boa-fé do outro sujeito. Não temos qualquer dúvida em afirmar que
esta segunda posição é a que se mostra mais adequada, ou seja, a atuação da
suppressio não depende de ter havido dolo ou má-fé do titular do direito, pois
a idéia básica não é a punição desse sujeito, mas sim a proteção do outro, em
virtude da boa-fé objetiva, concretizada no fato de ter surgido a confiança
desse que recebe a proteção.
Na realidade, facilmente se pode demonstrar que o que se tem na
suppressio nada mais é do que a particularização do que acontece com o
venire contra factum proprium em geral, ou seja, não se trata de punir a
atuação dolosa, fraudulenta ou de má-fé de um sujeito, mas sim de proteger a
confiança, ou seja, a legítima expectativa que se formou no outro, e que em
última análise nada mais significa do que a proteção à boa-fé. Ora, basta que
se observe que a repressão ou punição à atuação (ou à falta dela, rectius, à
omissão) já está embutida nas figuras da prescrição e da decadência.
Em outras e mais claras palavras, se o titular do direito deixar de
exercê-lo pelo lapso de tempo previsto na lei, a conseqüência dessa sua inércia
já se encontra prevista expressamente no próprio texto legal, e consistirá,
conforme o caso, na prescrição da pretensão ou na caducidade do direito em si
mesmo. Se a suppressio também tivesse essa mesma finalidade de servir como
punição à omissão, vale dizer, ao comportamento omisso do sujeito que se
apresenta como o titular, neste caso, nada mais seria do que uma prescrição ou
decadência que se apresentaria com um prazo mais reduzido, o que não faria o
menor sentido. Daí, o que remanesce, como objeto da suppressio, é a proteção
à boa-fé da contraparte, ou seja, protege-se a confiança desta em que não
haverá mais o exercício do direito373.
373
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , pp. 801-802.
439
Parece-nos que essa idéia de proteção à confiança, em vez de
repressão a um certo comportamento, já ficou muito clara nas situações
hipotéticas que acima apresentamos. Assim, por exemplo, no caso do
empregado ou do empregador que, podendo romper o contrato em virtude da
justa causa dada pela contraparte, prefere aguardar por longo tempo, sem
tomar qualquer providência, não se pode falar em má-fé ou intenção dolosa
desse sujeito, eis que não se mostra possível apontar que alguém estaria de
má-fé pelo simples fato de ter optado por não exercer um direito seu ao longo
de um certo lapso temporal. Logo, se não se está tratando de puniçao à má-fé,
é porque o que se está buscando é a proteçao à boa-fé.
É evidente que, em determinadas situaçoes concretas, poderão
coincidir a boa-fé da contraparte, a ser protegida como objetivo primário do
instituto da suppressio, e a má-fé ou deslealdade do sujeito que é o titular do
direito e que por longo tempo se absteve de exercê-lo. Foi o que aconteceu,
por exemplo, nos casos narrados acima, na Alemanha do pós-primeira guerra
mundial, onde a inflação em patamares estratosféricos fazia com que o retardo
no exercício do direito, pelo credor, elevasse a quantia devida a valores
astronômicos, no mais das vezes simplesmente impossíveis de serem pagos
pelo devedor. Logo, o credor poderia se valer, de má-fé, desse retardo, como
meio de aumentar o valor que lhe era devido.
No entanto, essa presença da má-fé se mostra eventual, ou seja, se
por um lado é possível que ocorra, por outro, sua presença não se mostra como
requisito indispensável para a caracterização da figura da suppressio, que
mesmo sem ela poderá restar caracterizada, no caso concreto.
Aferido, pois, que o aspecto principal da suppressio não é a
repressão à inércia do titular do direito, mas sim a proteção à boa-fé do outro
sujeito, pode-se então passar a falar da surrectio, ou seja, do surgimento de
440
direitos para a contraparte, essa cuja proteção se constitui no objetivo da
suppressio. Já havíamos comentado (veja-se, retro, o item 2.2, em nota de
rodapé), que quando se colocam limites ao exercício do direito subjetivo de
uma pessoa (e esse limite, em seu estágio mais radical, pode ser a própria
inadmissibilidade do exercício), ao mesmo tempo se faz nascer um novo
direito para a contraparte374.
Assim, e utilizando um dos exemplos vistos acima, quando se
veda ao empregador o exercício do direito de romper o contrato por justa
causa, face ao longo tempo em que demorou em fazê-lo, essa supressão de
direito corresponderá, em relação à contraparte (o empregado), ao surgimento
do direito de se manter trabalhando ou, pelo menos, caso não seja estável e
venha a ser dispensado, o direito de receber todas as verbas trabalhistas
decorrentes da dispensa sem justa causa.
Na hipótese da anulação do casamento, se houve a coabitação
entre os cônjuges, quando ao cônjuge “enganado” se nega o direito de pleitear
a anulação do matrimônio, isso significa que, ao outro, concomitantemente,
foi deferido o direito de manter intacto o casamento (pelo menos em relação à
figura do erro sobre qualidade essencial da pessoa).
Esse fenômeno do surgimento de direitos para a contraparte, ou
seja, para o que está sendo protegido pela figura da suppressio, é que se
denomina de surrectio. Pode-se dizer, portanto, que a surrectio corresponde
ao exame da suppressio sob a ótica da parte cuja confiança está sendo
protegida.
Ocorre que o principal objetivo da suppressio, como vimos, é
precisamente a proteção da boa-fé da contraparte, ou seja, o que está em
374
Cf. Béatrice Jaluzot, La bonne foi dans les contrats: Étude comparative de droit français, allemand
et japonais, p. 408, n° 1426.
441
questão não é apenas a extinção do direito de uma das partes, mas sim a
vantagem conferida à outra, e, por essa razão, torna-se possível apresentar o
fenômeno de modo invertido, ou seja, em vez da supressão do direito
(suppressio) ser seguida pelo surgimento de um outro (surrectio), a equação
seria invertida, apontando-se, pois, que à surrectio segue-se a suppressio, vale
dizer, toda vez que tiver surgido para a contraparte um direito, como meio de
proteção à sua confiança, à sua legítima expectativa, esse surgimento será
seguido pela supressão do direito da contraparte que se mostre incompatível
com a nova situação jurídica criada para o beneficiário.
Dessa forma, o que se deve pesquisar, sempre, é a posição do
beneficiário, ou seja, deve-se perquirir se as circunstâncias objetivas do caso
concreto conduziram a que no mesmo se formasse a confiança no seu próprio
direito ou no não exercício, pela outra parte, do direito desta. Nesse sentido é a
precisa lição de Menezes Cordeiro375, para quem
O fenômeno da suppressio, traduzido no desaparecimento de posições
jurídicas que, não sendo exercidas, em certas condições, durante
determinado lapso de tempo, não mais podem sê-lo, sob pena de contrariar a
boa-fé, corresponde a uma forma invertida de apresentar a realidade. A
suppressio é, apenas, o subproduto da formação, na esfera do beneficiário,
seja de um espaço de liberdade onde antes havia adstrição, seja de um direito
incompatível com o do titular preterido, seja, finalmente, de um direito que
vai adstringir outra pessoa por, a esse mesmo beneficiário, se ter permitido
actuar desse modo, em circunstâncias tais que a cessação superveniente da
vantagem atentaria contra a boa-fé. O verdadeiro fenômeno em jogo é o da
surrectio, entendida em sentido amplo. É nesta que devem ser procurados
requisitos... Assim, o beneficiário tem de integrar uma previsão de
confiança, ou seja, deve encontrar-se numa conjuntura tal que,
objetivamente, um sujeito normal acreditaria quer no não exercício
superveniente do direito da contraparte, quer na excelência do seu próprio
direito.
375
Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, Da boa-fé no Direito Civil , p. 824.
442
Pode-se apontar, portanto, que a suppressio e a surrectio, de
modo genérico, encontram fundamento legal no artigo 187, do Código Civil
brasileiro, que ao tratar da figura mais ampla do abuso do direito, permite a
limitação parcial ou mesmo total (neste caso, a extinção) de um direito e,
como já vimos, ao admitir a limitação do direito de um, simultânea e
necessariamente estará admitindo a criação de direito para o outro, e não
necessariamente nessa ordem.
Tomemos,
como
exemplo,
apenas
para
facilitar
o
acompanhamento do raciocínio, uma situação do direito de vizinhança,
embora desde logo lembrando que, em se tratando de situação expressamente
prevista na lei, em rigor não haveria necessidade de se recorrer às figuras do
abuso do direito e nem da suppressio ou da surrectio.
Imagine-se que o proprietário de um terreno, ao pretender edificar
no seu prédio, manda fazer todos os estudos geológicos necessários, de modo
a não causar prejuízo às construções vizinhas. Apesar desse cuidado, quando
começam a ser fixados os tubulões que servirão como fundações, surgem
sérias rachaduras em uma casa da vizinhança. Nesse caso, o proprietário
prejudicado tem o direito de exigir que cessem os danos que estão sendo
causados ao seu próprio imóvel, e que decorrem da construção no prédio
vizinho. Em conseqüência, o proprietário que está construindo sofrerá
limitações no seu direito, ou seja, deverá tomar maiores precauções, para
evitar os referidos danos, além de ter que indenizar os prejuízos que foram ou
vierem a ser sofridos pelo outro.
Nessa hipótese, e é isso o que realmente pretendíamos destacar,
em primeiro lugar se manifesta o direito da contraparte, ou seja, o direito do
proprietário vizinho de não ser prejudicado pela utilização do outro prédio,
vale dizer, pela construção que está em andamento. Uma vez surgido esse
443
direito (surrectio), em seguida deve-se examinar se o direito do outro
proprietário se mostra incompatível com o mesmo e, caso venha a ser revelada
a incompatibilidade, esse direito será suprimido total ou parcialmente (no caso
apresentado, parcialmente), na medida exata em que isso se mostrar necessário
para afastar a incompatibilidade, ou seja, de modo a respeitar o direito surgido
para a contraparte. A seqüência, portanto, como no caso fica muito claro, é a
manifestação primeira da surrectio, para em seguida manifestar-se a
suppressio.
E veja-se que essas colocações servem de confirmação para
afirmação que havíamos feito linhas atrás, neste mesmo item, no sentido de a
extinção do direito, ou seja, a suppressio, não será necessariamente total,
podendo se tratar apenas de uma supressão parcial do mesmo. Com efeito, se
em primeiro lugar ocorre o fenômeno do surgimento do direito da contraparte
(surrectio), e só em seguida é que se verifica a incompatibilidade do direito do
titular que retardou o seu exercício, para fins de eliminá-la pela supressão do
direito, parece evidente que se pode afirmar que a supressão do direito não
ocorre de modo gratuito e desnecessário, mas tão-somente na medida exata em
que isso se fizer necessário para a eliminação da incompatibilidade, ou seja,
para que possa ser preservado o direito recém-criado para o outro sujeito.
Portanto, casos haverá em que a compatibilização só poderá ser
feita pela eliminação total (extinção) do direito que até então não havia sido
exercido, como foi a situação da justa causa do empregado ou a do
empregador, situações por nós examinadas. No entanto, haverá situações onde
poderão ser compatibilizados o direito recém-surgido da contraparte com o
direito até então não exercido, sem que seja necessária a eliminação total
deste, sendo sufieicnete a sua redução, como foi o caso, por exemplo, da
situação de direito de vizinhança, acima descrita.
444
Essa eliminação parcial, também, poderia ser verificada no caso
da empregada gestante que, ao ser dispensada em momento em que nem ela
mesma (e, portanto, muito menos o empregador) sabia de seu estado
gravídico, retarda o pedido de reintegração ao trabalho até o momento em que
essa reintegração não se mostra mais possível, por já ter expirado o prazo de
garantia de emprego previsto na Constituição Federal.
Assim, e lembrando que a Constituição Federal garante à gestante
o direito ao emprego desde a confirmação da gravidez e até cinco meses após
o parto (Constituição Federal, Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, art. 10, II, b), o que se vê, na prática dos tribunais trabalhistas, é
que a empregada, muitas vezes, ao ser dispensada antes mesmo que qualquer
exame tivesse apontado a sua gravidez (embora efetivamente já estivesse
grávida), nada comunica ao empregador, e simplesmente deixa passar os
quatorze meses (nove meses de gestação e mais cinco meses após o parto) de
garantia de emprego.
Depois de escoado esse prazo (embora ainda dentro do lapso
prescricional de dois anos), quando a reintegração ao serviço já se mostra
inviável, por não haver mais a garantia de emprego, a empregada ajuíza
reclamação trabalhista na qual pretende receber os salários desses quatorze
meses que não trabalhou, durante os quais teria a garantia de emprego. Parecenos que se trata de hipótese clara de manifestação do binômio surrectio X
suppressio, pois como já transcorreu o período no qual o direito de
permanecer no serviço estava assegurado, surgiu para o empregador a legítima
expectativa de que a empregada, mesmo que estivesse gestante (coisa que o
empregador, em muitos casos concretos, desconhecia até o momento em que
tomou ciência da ação), não mais exerceria o seu direito de retornar ao
trabalho.
445
Tem-se aí, no nosso entender, a supressão total do direito da
empregada, eis que tal direito se mostra integralmente incompatível com a
proteção à legítima expectativa do empregador376.
376
Observando, contudo, como já fizemos em item anterior (item 2.3.2.1.d, em nota de rodapé), que não
é essa a posição dominante no Tribunal Superior do Trabalho, entendendo aquela Corte Superior Trabalhista
que o retardo no exercício do direito de ação, se ainda dentro do prazo prescricional, não pode ser entendido
como equivalente à perda do direito pela empregada, apenas implicando na conversão do direito de
reintegração em direito de indenização equivalente. Pensamos, como já ficou claro no texto acima, que está
equivocada a posição adotada por aquela Corte Trabalhista, mas neste estudo deixamos de enfrentar a
polêmica, por não se constituir a mesma no foco do mesmo, onde apenas se pretendeu apontar um possível
exemplo de suppressio parcial do direito. No entanto, por questão de lealdade ao leitor, optou-se por noticiar
que a posição contrária é a que predomina no Tribunal Superior do Trabalho, como se vê, por exemplo, no
Recurso de Revista RR - 75656/2003-900-02-00, publicado no DJ - 05/08/2005, 2ª Turma, Ac. unânime, Rel.
Min. José Simpliciano Fontes de F. Fernandes, cuja ementa ficou assim redigida:
FGTS. VERBA INDENIZATÓRIA. O empregador não pode se eximir de cumprir a obrigação de
pagar o FGTS e multa, se único responsável pela dispensa indevida da Reclamante, pois detentora de
estabilidade gestante, e devidos no caso de cumprimento do contrato de trabalho regularmente.
Recurso não conhecido. ESTABILIDADE. DEMORA NO AJUIZAMENTO DA AÇÃO.
CONSEQÜÊNCIAS. A demora no ajuizamento da ação não importa renúncia de direito, pois devida
a indenização no caso de o período estabilitário já ter se exaurido (Súmula 244, II, do TST). Recurso
de Revista conhecido e não provido.
E no voto desse mesmo Acórdão ficou anotado que:
....................
2 - ESTABILIDADE. DEMORA NO AJUIZAMENTO DA AÇÃO. CONSEQÜÊNCIAS
a) Conhecimento
O Tribunal Regional analisou a questão no julgamento dos Embargos Declaratórios da Reclamada.
Concluiu: “A reclamante propôs a ação dentro do biênio constitucional, em que é pleno o seu direito
de ação. A alegação de que a propositura tardia da ação afastaria o direito à estabilidade é
impertinente” (fl. 329). A Reclamada defende a tese de que o ajuizamento tardio da presente
reclamação afasta a pretensão da Reclamante. Transcreve arestos para o cotejo de teses. Os arestos
de fl. 337 autorizam o conhecimento do Recurso, pois trazem tese no sentido de que a demora no
ajuizamento da ação importaria na renúncia da garantia do emprego. Conheço, por divergência
jurisprudencial.
b) Mérito
O artigo 10, II, “b”, do ADCT assegura à gestante, estabilidade no emprego desde a confirmação da
gravidez até cinco meses após o parto. A dispensa realizada em confronto com a referida norma, é
nula, sendo necessária a reintegração da empregada no emprego ou, no caso de exaurido o período
estabilitário, o pagamento dos salários correspondentes ao período. Esse o entendimento pacificado
pelo Tribunal Superior do Trabalho, conforme dispõe a Súmula 244, II: “Gestante. Estabilidade
provisória. (incorporadas as Orientações Jurisprudenciais nºs 88 e 196 da SDI-1) - Res. 129/2005 DJ 20.04.05 I - O desconhecimento do estado gravídico pelo empregador não afasta o direito ao
pagamento da indenização decorrente da estabilidade. (art. 10, II, "b" do ADCT). (ex-OJ nº 88 - DJ
16.04.2004) II - A garantia de emprego à gestante só autoriza a reintegração se esta se der durante o
período de estabilidade. Do contrário, a garantia restringe-se aos salários e demais direitos
correspondentes ao período de estabilidade. (ex-Súmula nº 244 - Res. 121/2003, DJ 21.11.2003) III Não há direito da empregada gestante à estabilidade provisória na hipótese de admissão mediante
contrato de experiência, visto que a extinção da relação de emprego, em face do término do prazo,
não constitui dispensa arbitrária ou sem justa causa. (ex-OJ nº 196 - Inserida em 08.11.2000)” Assim,
o fato da reclamação ter sido ajuizada após o período estabilitário, não prejudica a Autora, pois
devidos os salários e demais direitos relativos ao período estabilitário.
446
No entanto, suponha-se que essa mesma empregada do exemplo
acima tivesse apresentado a sua reclamação trabalhista quando tivessem sido
decorridos três meses após o parto, e, portanto, ainda restariam dois meses de
garantia do emprego. Nesse caso, parece bastante claro que o atendimento à
legítima expectativa do empregador não passaria pela eliminação total do
direito da empregada, sendo suficiente a supressão parcial de tal direito, vale
dizer, a supressão apenas dos meses que, com sua inércia, a mesma deixou
transcorrer in albis, abstendo-se de exercer seu direito, mas reconhecendo-se a
possibilidade de tal exercício de modo parcial, em relação aos dois meses de
garantia de emprego que ainda lhe restam.
De resto, valem para esse contraponto entre suppressio e
surrectio as observações que já foram feitas, retro (item 2.3), acerca do venire
contra factum proprium em geral, haja vista que este, como já demonstramos,
se apresenta como um gênero do qual fazem parte aquelas.
447
Conclusão
A primeira e, possivelmente a mais importante, conclusão a que
se chegou, no presente trabalho, foi a que se refere à natureza principiológica
e ao assento constitucional da boa-fé. Com efeito, vimos no primeiro capítulo
do trabalho, especificamente no item 1.6, que a boa -fé se apresenta como uma
norma de cunho amplo e geral, e por isso pode ser apontada como sendo um
princípio geral do nosso ordenamento.
Além disso, como também examinamos em detalhes, o assento da
boa-fé pode ser encontrado diretamente na Constituição Federal, mais
precisamente no princípio da solidariedade social, que impõe a todos os
integrantes de uma comunidade o dever de cooperação em relação aos demais,
sendo que esse dever se torna mais acentuado e mais perceptível na medida
em que é reduzido o tamanho desse grupamento social, sendo por isso fácil de
se perceber que será muito forte esse dever de cooperação (rectius: dever de
agir de boa-fé) em um grupo pequeno, como é o caso de uma relação
contratual.
Ora, a partir da constatação e da junção desses dois fatos (a boafé é um princípio; esse princípio tem assento constitucional), várias
conseqüências podem ser daí extraídas, e de fato foram exploradas ao longo
do presente trabalho. Tais conseqüências dizem respeito, principalmente, ao
caráter multifuncional da boa-fé, ou seja, ao seu papel múltiplo (interpretação,
integração, limitação, etc).
Veja-se que, sendo um princípio geral, a boa-fé se espalha por
todo o nosso ordenamento, o que por si só já é suficiente para que se conclua
que seu campo de atuação ultrapassa o das relações obriga cionais. Esse
princípio atua, é evidente, como fonte secundária do direito, ou seja,
448
possibilitando a integração nos casos em que não existe norma legal ou
contratual acerca de uma determinada situação surgida ao longo da relação.
No entanto, por sua natureza constitucional, o princípio da boa-fé
não se limita a esse papel integrador, pois na hipótese de haver norma legal ou
contratual, mas a mesma se revelar em choque com o princípio, é este que
deverá prevalecer, ou seja, deverá o operador do direito, sem maiores
delongas, simplesmente afastar a norma legal ou convencional, sobre qualquer
delas dando prevalência ao princípio da boa-fé.
E seria até desnecessário dizer que esse aspecto se revela
importantíssimo, como já realçamos acima, pois a partir daí pode-se concluir
que o princípio da boa-fé serve como instrumento para que o juiz possa
interferir diretamente no conteúdo contratual, não apenas para completá-lo,
mas também alterando uma determinada cláusula, excluindo-a, inserindo uma
outra, etc, mas sempre de modo a garantir o atendimento da proteção à boa-fé.
Pode-se mesmo dizer que a boa-fé, mais do que uma norma, se apresenta
como uma fonte de normas, sendo que estas prevalecem sobre as normas
contratuais e legais, em caso de conflito.
Ainda dentro das conclusões que decorrem dessas duas
constatações acima apontadas, acerca do princípio da boa-fé, e que englobam
o caráter expansionista da mesma, pode-se apontar também o importantíssimo
aspecto de sua aplicação aos campos que se situam além do direito privado,
notadamente o direito processual e o direito público. Com efeito, o que
pudemos observar, notadamente no item 1.7 do presente estudo, é que
inclusive à administração pública se proíbe que “volte sobre os seus próprios
passos”, vale dizer, que possa agir de modo incoerente e contraditório, nos
casos em que tal agir venha a violar o dever de boa-fé.
449
No entanto, como parte dessa mesma conclusão, convém realçar
que, em relação à administração pública, o tratamento ao tema deve ser dado
sob a ótica de parâmetros distintos, próprios das peculiaridades que cercam a
atuação do administrador público.
Com efeito, embora não se discuta que também à administração
pública se impõe a conduta pautada pelas normas comportamentais
decorrentes do princípio da boa-fé, a toda evidência não se pode tratar essa
relação, que de um dos lados apresenta o interesse público, da mesma forma
que se trata uma relação desenvolvida apenas entre particulares, e que por isso
está bipolarizada apenas em função de interesses particulares.
Assim, por exemplo, suponha-se que um segundo comportamento
se mostra contraditório com o primeiro, quebrando a confiança do outro
sujeito, em hipótese de venire contra factum proprium. Suponha-se, ainda, que
em termos materiais esse segundo comportamento poderia ser facilmente
desfeito. Ora, em se tratando de particulares, a solução preferida será
exatamente aquela que determine o desfazimento ou a alteração do segundo
comportamento, preservando a boa-fé (a confiança) do outro sujeito. No
entanto, em se tratando da administração pública, muitas vezes ocorrerá desse
segundo comportamento, ainda que violador da confiança do administrado, e
portanto contrário à boa-fé, ser o que melhor atende às conveniências
públicas, e por essa razão não faria sentido desfazê-lo apenas para que pudesse
ser atendido o interesse particular. A solução preferencial, portanto, em tais
casos, se dará mediante a indenização dos prejuízos sofridos, e não pelo
desfazimento do ato do administrador.
Por outro lado, levando-se em conta que a atuação da
administração pública se dá de modo impessoal e genérico, vale dizer, trata-se
de atuação que, em regra, não se destina a uma pessoa específica, mas ao
450
estabelecimento de regras e condições que vão atender a generalidade (ou pelo
menos um grande número) de jurisdicionados, pode-se concluir que a quebra
da boa-fé, por parte da administração pública, em virtude da adoção de
comportamentos contraditórios, não depende de ter havido uma relação
jurídica específica com um determinado sujeito, podendo decorrer da adoção
de uma postura política ou econômica anterior. Assim, a partir do momento
em que a administração pública adotou uma determinada posição econômica,
com o intuito de incentivar uma certa atividade da produção, por exemplo,
qualquer administrado, embora tal política não se dirigisse a ele,
especificamente, mas sim a toda coletividade, poderá exigir que seja mantida a
coerência, por parte do administrador.
Dessarte, se esse administrado, em função da postura adotada
pelo governo federal, efetuou elevados investimentos em uma determinada
atividade, e, abruptamente, houve uma mudança completa na política
governamental, passando a ser execrada aquela mesma atividade que até então
era incentivada, poderá esse particular insurgir-se contra esse comportamento
contraditório, exigindo, por exemplo, o pagamento de uma indenização, a ser
paga pela administração pública que voltou sobre seus próprios passos.
Da mesma forma, também se mostra importante a conclusão,
ainda referente às duas características da boa-fé acima examinadas, acerca da
sua expansão, também, para o campo do direito processual. E, ainda mais,
essa boa-fé não atinge apenas as partes do processo, mas também diz respeito
a toda e qualquer pessoa que, de uma forma ou de outra, possa ter influência
sobre o correto atendimento dos provimentos judiciais. No caso, contudo, essa
boa-fé processual já se encontra explícita no texto legal, mais precisamente
nos artigos 14 e seguintes, do CPC, e por essa razão em geral não se mostrará
451
necessário o recurso à figura da boa-fé, cujos contornos nem sempre são
precisos ou de fácil identificação.
Aliás, a parte final do parágrafo anterior diz respeito a outra
relevante conclusão que pode ser apontada, que é a que se refere à
desnecessidade de se recorrer à boa-fé nos casos em que existe norma legal
expressa disciplinando de modo adequado o tema, uma vez que não faria
qualquer sentido abandonar-se a norma legal, de contornos mais precisos, para
se buscar o mesmo resultado através do princípio da boa-fé, que sempre se
apresenta com os contornos mais imprecisos, o que poderia acabar por se
constituir em um foco de insegurança jurídica.
Não quer isso dizer, é evidente, que a segurança jurídica se
constitua em um valor absoluto ou que se confunda com a obediência literal
do texto da lei, e tanto assim que acabamos de apontar conclusão no sentido
de que o juiz, para preservar o princípio da boa-fé, poderá afastar a aplicação
de norma legal expressa. No entanto, é evidente que essa adoção de uma
solução de contornos imprecisos, que possa afetar a segurança jurídica, só
deverá ser adotada quando se mostrar indispensável fazê-lo, o que não seria o
caso nas hipóteses em que houvesse norma legal expressa a respeito do tema
(a não ser, como já dissemos acima, que tal norma não se mostrasse adequada
aos ditames da boa-fé).
O desatendimento à boa-fé, por outro lado, nem sempre apresenta
a mesma conseqüência jurídica, ou seja, nem sempre deverá receber a mesma
solução, variando sempre em função das circunstâncias do caso concreto. Tal
conclusão pode ser facilmente obtida quando se observa que a própria boa-fé
se concretiza de maneiras variadas, conforme as circunstâncias de cada
situação concreta. Ora, se a própria boa-fé se apresenta de diversos modos,
parece evidente que se pode concluir que a violação da boa-fé também poderá
452
ocorrer de diversas formas, e, ainda, que as soluções poderão ocorrer de
diversos modos distintos, em função das circunstâncias de cada hipótese onde
a violação da boa-fé vem a se concretizar. Tal afirmação nos permite apontar
que o item 1.9, no primeiro capítulo do presente estudo, apenas apresenta uma
relação meramente exemplificativa, acerca das possíveis conseqüências da
concretização da proteção à boa-fé, limitando-se a apontar as hipóteses de
maior relevância, mas sem qualquer pretensão de esgotar o inesgotável tema.
No que se refere ao capítulo dois, que trata das violações típicas
da boa-fé, convém desde logo realçar o enquadramento da figura do venire
contra factum proprium dentro do campo mais amplo do abuso do direito,
com a óbvia ressalva de que se trata de um caso particular de abuso, vale
dizer, com características próprias, que permitem um exame em separado,
distinto das demais figuras que também se enquadram como casos específicos
de abuso. Além disso, também é importante destacar que, embora nosso
Código Civil não se refira diretamente ao venire, na verdade podemos
encontrar aplicações práticas do mesmo ao longo de todos os seus livros,
inclusive em relação ao direito de família, o que serve para ratificar o caráter
genérico do campo de atuação da boa-fé, nas diversas modalidades em que a
mesma surge nas relações jurídicas.
Vimos que todos os casos de venire contra factum proprium
podem ser decompostos em dois comportamentos e uma contradição. Os dois
comportamentos são os adotados pelo mesmo sujeito, em momentos distintos,
e que se mostram contraditórios entre si, de modo tal que após o (e em virtude
do) primeiro deles já havia se formado, no espírito do outro sujeito, a legítima
expectativa, a confiança de que não seria adotada conduta idêntica àquela do
segundo comportamento. E a contradição é precisamente aquela que se mostra
capaz de frustrar essa confiança que se havia formado no outro sujeito. Com
453
base na identificação desses elementos, pode-se então apontar que o venire, de
um modo geral, estará caracterizado quando, cumulativamente:
a) cada um dos comportamentos, quando individualmente
considerado, seja válido, ou seja, que não se trate de ato intrinsecamente
ilícito; em algumas situações, o primeiro dos comportamentos poderá
ter sido nulo, mas desde que tenha aparência de validade, capaz de fazer
surgir a confiança na contraparte;
b) cada comportamento se constitua em uma atuação jurídica, ou
seja, que se mostre capaz de repercutir na esfera jurídica alheia, do
outro sujeito envolvido no negócio;
c) que o primeiro comportamento não tenha gerado, para o
sujeito, uma vinculação, ou seja, que não haja uma obrigação a ser
cumprida como decorrência do primeiro comportamento, pois caso
contrário se tratará de inadimplemento de obrigação, e não de venire;
d) qualquer dos comportamentos pode consistir tanto em uma
ação quanto em uma omissão;
e) o segundo comportamento, ao se mostrar incoerente com o
primeiro, deve piorar a situação do outro sujeito, em relação ao que este
esperava para a segunda atuação. Em outras palavras, se o segundo
comportamento, apesar de mostrar contradição em relação ao primeiro,
vem a se mostrar mais benéfico para o outro sujeito, não existirá
qualquer razão para que se faça incidir o princípio da boa-fé, pois seria
ilógico que se negasse o benefício ao sujeito sob o argumento de
protegê-lo;
f) por último, a contradição não pode ser justificada, porque, se o
for, não se poderá mais falar em ocorrência de venire.
454
Além disso, importante que se recorde que a finalidade da
vedação dos comportamentos contraditórios, ou seja, a finalidade do venire, é
a proteção da boa-fé do sujeito confiante, e por essa razão acaba por se
mostrar irrelevante perquirir se o que agiu de modo contraditório estava de
má-fé, uma vez que o que se estará buscando não é a punição dessa má-fé de
um, mas sim a proteção à boa-fé do outro. Essa característica se revelou
importante por permitir a distinção precisa entre os casos de venire e o tu
quoque, uma vez que neste último, ao contrário, o objetivo principal é a
repressão à má-fé de um dos sujeitos, e não a proteção à boa-fé do outro. Isso
nos permite concluir que se poderá lançar mão da figura do venire contra
factum proprium, para a proteção da boa-fé de um dos sujeitos, ainda mesmo
nos casos em que o outro não esteja de má-fé, pois a presença desta se mostra
irrelevante, para fins de proteção daquela.
Finalmente, em relação ao binômio suppressio X surrectio,
pudemos concluir que se trata de um caso particular de venire contra factum
proprium. Falamos em binômio porque as duas situações sempre aparecerão
juntas, ou seja, ao surgimento de um direito para um dos sujeitos
corresponderá a supressão do direito de um outro, e que se mostraria capaz de
afetar o direito recém-surgido. E o surgimento de tais conseqüências se dá
precisamente nessa ordem, ou seja, primeiramente surge o direito de um, para
em seguida, como conseqüência, desaparecer o direito do outro de exercer
uma determinada situação jurídica que se mostraria em choque com tal direito.
Dito em outras palavras, no binômio suppressio X surrectio o que
se verifica, em primeiro lugar, é que um dos sujeitos, por ter surgido no seu
espírito a legítima expectativa (a confiança) de que o outro não mais exerceria
um determinado direito, recebe a proteção da boa-fé, no sentido de que o
outro, efetivamente, não mais poderá exercer o direito em relação ao qual, até
455
então, havia se omitido. E como conseqüência dessa proteção à confiança,
desaparece o direito que o outro poderia exercer, mas que até então havia se
omitido. Fácil de se perceber, portanto, que o enfoque se deu na proteção à
boa-fé de um dos sujeitos, e não à repressão à má-fé do outro (mesmo porque
nem ao menos se pode falar em má-fé, por não ter sido exercido um direito), e
daí o enquadramento como um caso peculiar de venire, como já havíamos
inicialmente apontado.
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