AO CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Pedido de Providências nº 000543/2013-50
Manifestação Referente à Ações Afirmativas no Ministério Público
Ilustres Conselheiros,
A despeito de nunca ter adotado a segregação como política oficial, o Brasil ainda
enfrenta uma realidade de profunda desigualdade entre grupos étnico-raciais. A questão da
população negra é ilustrativa desse cenário, uma vez que os negros estão excluídos das esferas
de poder, tanto social quanto econômico. As instituições essenciais para a Justiça se constituem
em espaço ainda muito homogêneo e as ações afirmativas são medidas necessárias para
pluralizá-las.
De acordo com os dados do último relatório censitário do IBGE, a população
brasileira é composta em sua maioria, 50,7%, por negros e pardos. Além de ser de maioria
negra, a população brasileira também é formada em sua maioria por mulheres – são quase 4
milhões a mais de mulheres do que homens no Brasil.
A população brasileira distribui-se em uma pirâmide social e racial em que a
população branca está no topo da concentração de renda ao passo que a população negra está
na base da pobreza e, portanto, da exclusão social. Os dados mostram que os negros são mais
de 82,3 % entre os mais pobres e somente 16,3% entre os mais ricos1.
Em nossa sociedade, o acesso ao ensino superior é uma forma importante de
ascensão social. Há dez anos o país adota políticas de ações afirmativas para o ingresso em
universidades com fins de reparar desigualdades históricas e reduzir a marginalização social.
Ainda que o processo tenha se iniciado de forma tímida, hoje presenciamos mais diversidade e
1
Síntese de Indicadores Sociais, IBGE, 2012
1
pluralidade nas instituições de ensino brasileiras, no entanto essas mudanças ainda não
alcançaram as carreiras socialmente representativas.
Em país de maioria negra, o que causa perplexidade é não haver estranhamento na
ausência de representação da diversidade brasileira nos espaços de poder. O Relatório de
Desenvolvimento da ONU aponta que no Brasil “quanto mais se avança rumo ao topo das
hierarquias de poder, mais a sociedade brasileira se torna branca”2.
Há estudos que mostram que os negros estão sobrerrepresentados nos nichos
profissionais menos valorizados (construção civil, comércio ambulante e setor de serviços), ao
passo que estão sub-representados em ocupações mais valorizadas pela sociedade (comércio
não-ambulante, profissões liberais, ramo de serviços auxiliares de atividades econômicas).
Essa desigualdade tem também uma dimensão política e está presente nos espaços
de poder onde são tomadas decisões sobre os bens coletivos. No Congresso Nacional, por
exemplo, em 2006, os negros eram 8,9% do total de deputados federais, e nenhum deputado
foi identificado como indígena. Em 2007, 6,2% dos senadores eram negros e nenhuma
senadora era negra3.
Essa nefasta sub-representação também é presente nas instituições essenciais para
o sistema de justiça, “todos os dados utilizados [...] para traçar um perfil das profissões jurídicas
no Brasil indicam que, em termos de cor da pele, os juristas compõem uma parcela da
população “desconcertantemente branca”4.
Pesquisa do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas
das Relações Raciais (LAESER), do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) mostra que os pardos e pretos correspondem a apenas 22,7% dos juristas e
advogados do funcionalismo público5.
2
Relatório de Desenvolvimento Humano - Brasil 2005. Racismo, pobreza e violência. Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento, p. 52.
3
Relatório Anual das Desigualdades Raciais 2007-2008. Org: Marcelo Paixão e Luiz M. Carvano. Rio de Janeiro:
Garamond, 2008, p.148.
4
Frederico Normanha Ribeiro de Almeida. A nobreza togada: as elites jurídicas e a política de justiça no Brasil.
Tese de doutorado apresentada na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2010, p. 211.
5
Disponível em: http://arquivo.geledes.org.br/areas-de-atuacao/mercado-de-trabalho/24483-negros-sao-30do-funcionalismo-diz-pesquisa
2
Isso acontece, em grande parte, por conta do modelo de processo seletivo dessas
carreiras. Ainda que feito de uma maneira a evitar privilégios e escolhas pessoais, a forma como
hoje se realiza o ingresso na carreira do Ministério Público tem produzido o resultado perverso
de favorecer um mesmo perfil de candidatos que, em geral, são aqueles que não passaram pelas
piores condições de exclusão e desigualdade. A dedicação necessária para aprovação nesses
concursos exige um tempo do qual as pessoas que precisam garantir sua renda, muitas vezes,
não dispõem. Além disso, o estudo depende quase sempre do acompanhamento de um curso
preparatório, o qual notoriamente de tem um alto custo financeiro. Deste modo, acaba
medindo mais investimento financeiro do que acúmulo de conhecimento.
A introdução de ações afirmativas no Ministério Público contempla duas propostas
de democratização do sistema de justiça. Além de tornar o próprio processo seletivo para a
carreira mais democrático, a adoção de tais medidas possibilita um recrutamento plural de
profissionais detentores de experiências diversificadas, o que se apresenta como solução para
diversificar a carreira e com isso ampliar o horizonte interpretativo social dos promotores.
O Ministério Público foi eleito pela Constituição como uma das instituições
essenciais à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa do regime democrático e
dos interesses da coletividade. Esse importante papel no sistema de justiça brasileiro, também
exige uma grande responsabilidade, que é defender a sociedade. No entanto, como o Ministério
Público pode compreender as necessidades de uma sociedade diversa e heterogênea como a
nossa se sua composição não equivale à essa realidade?
Como o Ministério Público pode representar a sociedade juridicamente, se sua
composição não reflete, em termos de raça, o que essa sociedade representa?
É necessário se atentar para a sutileza na qual se opera o racismo. As alegações de
que os critérios de cotas não possibilitam o acesso da população negra ou que não há candidatos
que se enquadrem nesse perfil são meros reflexos da sistemática do racismo estrutural ao qual
estamos submetidos há séculos.
A realização das ações afirmativas almeja o reconhecimento da existência de
injustiças e desigualdades históricas, implementando condicionantes que possam garantir um
3
acesso igualitário, democrático e plural às oportunidades de acesso para uma das carreiras mais
socialmente prestigiadas.
Nesse sentido, aliás, é a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial – promulgado pelo Brasil há décadas –, estabelecendo que os
Estados tomarão, se as circunstâncias o exigirem, nos campos social, econômico, cultural e outros, as medidas
especiais e concretos para assegurar como convier o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais de
indivíduos pertencentes a estes grupos com o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício
dos direitos do homem e das liberdades fundamentais.
A exemplo de outras instituições do sistema de justiça que já implementaram essas
medidas, faz-se fundamental, portanto, ao Ministério Público discutir e implementar tais
políticas públicas específicas e transitórias como uma forma de transformação cultural da
instituição, garantindo o compromisso com a efetivação dos direitos humanos, a ruptura da
imagem de um “Promotor-Padrão” e a efetivação dos objetivos fundamentais da República
trazidos pela Constituição.
De São Paulo para Brasília, 16 de setembro de 2014
CONECTAS DIREITOS HUMANOS
GELEDES – INSTITUTO DA MULHER NEGRA
CENTRO DE ESTUDOS DAS RELAÇÕES DE TRABALHO E
DESIGUALDADES - CEERT
ARTICULAÇÃO JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS - JUSDH6
A Articulação Justiça e Direitos Humanos – Jusdh é composta por movimentos sociais e organizações de direitos
humanos (Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos, Ação Educativa – Assessoria, Pesquisa e
Informação, Geledés Instituto da Mulher Negra, AATR – Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no
Estado da Bahia, Centro de Assessoria Popular Mariana Criola, SDDH – Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos
Humanos e Dignitatis – Assessoria Técnica Popular) que atuam com litigância nos diferentes temas de direitos
humanos e vêm trabalhando com uma agenda de democratização da justiça por meio do monitoramento e incidência
política junto aos órgãos do Sistema de Justiça, Poder Executivo e Legislativo.
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Manifestação