O incômodo que nos acompanha
Ageu Heringer Lisboa
A psicanálise e todo romancista sabem e trabalham com o pressuposto de que o mal está
entranhado no ser humano e que cumpre a todos a tarefa de domá-lo. Trata-se de um
caldeirão energético de que o processo civilizatório busca dar conta, subjugando a besta-fera
que nos espreita de dentro.
Uma associação entre doença e impureza e pecado esteve presente em praticamente todas as
expressões religiosas. Entre os judeus, temos as prescrições de purificação no livro de Levítico
e em outras passagens. Em algumas religiões há processos de santificação que passam por
autoflagelação e penitências, as quais funcionam como catarse na busca de alívio da
consciência pela mortificação, na tentativa desesperada de acertar-se com o mundo espiritual
Estas manifestações demonstram o quanto estão inscritas no psiquismo humano as
representações do sagrado vinculadas aos afetos da alma. Nesse sentido, é significativo o
drama da vida de Cristo, apresentado como o Cordeiro do sacrifício expiatório e substitutivo.
No que diz respeito às culpas do dia a dia, existem as reais e as imaginárias, as fabricadas e a
neurótica. Contudo, há também esperança para quem sofre de culpabilidade patológica.
Algumas pessoas, em uma conversação rotineira, pedem desculpas por qualquer motivo, seja
por tossir ou por escorregar da cadeira. Este cacoete linguístico indica um cuidado constante
para não errar e uma tentativa de acertar ou agradar sempre. Quando me deparo com pessoas
assim, que pedem “des”-culpas a todo tempo, digo-lhes que não têm “dez”, nem “nove”, nem
“uma” culpa; decifrado o jogo linguístico, elas costumam sorrir e se desarmam. Com alguma
ajuda poderão se sentir mais livres para desfrutar da existência sem medo, que é o que Deus
deseja para todos.
Por um lado, há pessoas dominadas pela escrupulosidade e obsessividade constrangedoras e
limitantes. Não querem incomodar, nem errar, e filtram tudo. Sentem-se erradas sempre e
pedem desculpas até por existir. São inseguras, possuídas por um senso moral rígido e
alimentadas por noções inadequadas a respeito de si mesmas. Descobre-se nelas, com
frequência, um histórico de fortes cobranças e moralismo nas relações familiares vindo de pais
e mães castradores, pregações acusadoras ou outras ameaças. Essas pessoas aprenderam
a desconfiar de si mesmas, a sofrer e a não desfrutar da vida. Incorporaram noções
exageradas de culpa e impureza. Não sabem como descansar na graça de Deus, que está
disposto a acolhê-las, pois carregam um enorme fardo de culpa -- neurótica, aprendida, que
complica a situação. Um gracioso processo de aconselhamento ou psicoterapia pode quebrar
as distorções, promover uma reordenação cognitiva (“Conhecereis a verdade e a verdade vos
libertará”) e libertá-las emocional e espiritualmente.
Por outro lado, há pessoas que dificilmente admitem estar erradas. Sofrem quando têm que
pedir desculpas. Pedir perdão é ainda mais difícil; só mesmo quando pressionadas admitem a
culpa, contorcendo-se e tentando se desculpar. Ser “durão” é algo encorajado em certas
culturas.
Na hedonista cultura brasileira, por exemplo, celebra-se uma glamourização do transgressivo,
estimula-se a esperteza e a busca de vantagens em detrimento do outro. “Não existe pecado
do lado de baixo do Equador”, é o que se canta. Os excessos deste processo cultural podem
ser percebidos tanto nos territórios dominados pelos traficantes e policiais, como na corrupção
política que dirige o país. Pena que estes poderosos não se sentem culpados! Como fazem
falta pessoas como João Batista para enfrentar tamanha insensibilidade ética.
Um ser humano bem constituído é capaz de sentir e respeitar limites próprios e do outro. Só é
possível o laço social quando se tem a lei sobre todos. No plano individual, carregamos ou
somos ativados pelo “supereu”, ou superego, nosso dinamismo ético-espiritual, a consciência
trabalhada pela lei e adquirida no processo de educação e formação de caráter, o que nos faz
humanos maduros, responsáveis, capazes de sofrimento e fraternidade. Quando ele falha,
temos difíceis processos de reeducação e socialização pela frente.
O caso extremo da psicopatologia é a psicopatia. O psicopata é o narcisista frio, alguém
incapaz de sentir culpa ou remorso. O contrário, então, a capacidade de sofrer com a culpa, é
sinal de vitalidade do equipamento psíquico, da existência de sensor moral e vida espiritual, de
humanidade preservada.
Culpa e religião cristã
Há uma longa história de equívocos nas comunidades cristãs, que desde os primeiros séculos
possuíam visões ascéticas extremas, com uma série de interdições controlando a vida das
pessoas. O corpo e a sexualidade foram os grandes vilões. Se rabis e sacerdotes judeus
criaram mais de 600 artigos complementares ao Decálogo (e vemos como Jesus desmontou
esta falsa espiritualidade que complicava a vida das pessoas), no meio cristão passou-se por
processo semelhante em nome de doutrinas e interesses de sistemas religiosos. Alguns líderes
são criadores e vítimas de imagens doentias de Deus, de um deus pequeno, complexado,
vingativo, narcisista, semelhante a um guarda rodoviário sem misericórdia, que fica à espreita
da menor falta para flagrar o faltoso e puni-lo. Assim se faz um deus diabólico, doentio.
Esse tipo de mensagem sobre Deus causa muito sofrimento, gerando nas pessoas
sentimentos persecutórios e sensação de impotência e ausência de perdão. Pinta-se um deus
instável, arbitrário, não confiável, como as divindades pagãs, que precisam ser aplacadas com
sacrifícios. Assim, de forma maldosa, sádica e até criminosa temos uma indústria religiosa do
medo, que explora a fraqueza de pessoas incultas e incautas. Na periferia de São Paulo, por
exemplo, veem-se cristãos paupérrimos e angustiados devido a cobranças de dízimos. Nas
emissoras de rádio e televisão cultiva-se o medo: a pessoa tida como indigna de Deus pode
perder a salvação, ser tratada como herege e excluída da comunidade, dependendo do
julgamento de terceiros. Isso aprofunda as fissuras psíquicas pré-existentes e adoece a relação
com Deus.
Tanto os sentimentos quanto as habilidades funcionais são ensinados pelos pais e demais
instâncias formadoras. Aos conteúdos que se quer inculcar na criança e no adolescente
agrega-se a carga emocional que acompanha o processo de socialização e educação. Este é
um fenômeno universal e aplica-se a todos os âmbitos da vida, notadamente em questões de
orientação religiosa e de ordem sexual. Está presente na família, na igreja, na sinagoga, na
mesquita ou no terreiro de candomblé e é elemento decisivo para a saúde mental das futuras
gerações. Se a instrução vem pela via amorosa, afirmativa e paciente, encontramos pessoas
emocionalmente saudáveis, com raciocínio mais tranquilo. Pais e mães que funcionam como
“nutridores emocionais” espelham uma imagem de Deus amorosa, forte, justa, encorajadora.
No entanto, se Deus é expresso com rigidez, criticismo, suspeitas e castigos, encontramos
pessoas inseguras, sofridas e com dificuldade de crer na graça incondicional. Assim, a
construção da identidade segura, amorosa, ética tem a ver com os padrões desenvolvidos.
Podemos ser controlados por culpas neuróticas, falsas e culturais. Algumas delas vêm por
meio da imposição legalista da cobrança de dízimos nas igrejas, do não cumprimento do tempo
de jejum, de não ter orado ou lido a Bíblia suficientemente, de não ter participado de alguma
campanha. Jesus lidava com as pessoas de modo diferente. Aquele que estava oprimido
encontrava acolhida, graça, proteção e respeito à sua individualidade.
Há a autêntica culpa, sabida ou oculta, que é a transgressão objetiva e real do mandamento do
amor. Neste caso, o Espírito Santo incomoda, esclarece, induz ao arrependimento e perdoa (Sl
19.12-13). Somos perdoados e libertos quando submetemos nossa consciência ao Espírito de
Deus e clamamos por perdão e graça àquele que sonda as mentes e os corações. Pode-se
orar assim: “Tu, Senhor, que sonda meu interior e sabe o que há em mim, torna-me consciente
de minhas faltas e guia-me pelo caminho da retidão”.
Para quem, mesmo sendo dedicado à oração, ainda se sente ameaçado pelas lembranças de
pecados, um conselho: busque ajuda de um bom profissional ou de pessoas alegres e
maduras na fé, que o ajudarão a desativar os mecanismos de sabotagem adquiridos. Sua
mente sofre devido à má digestão de experiências emocionais familiares, ao desconhecimento
das boas novas relatadas nas Escrituras, ao estresse e à desordem bioquímica. Um
psicoterapeuta ou psiquiatra poderá diagnosticar o problema, que tem reparação
medicamentosa. É o caso de muitos que sofrem por sentir que pecaram contra o Espírito
Santo.
Felizmente, para qualquer pessoa -- mesmo as mais afetadas por má educação, violência
psíquica, “bullying” espiritual -- é possível uma cura substancial dos transtornos e a retomada
de uma vida digna. Pode-se ouvir, no íntimo, a voz terna do Pai, que declara um amor
incondicional, como no batismo de Jesus: “Tu és o meu filho e me dás muita alegria!” (Mc
1.11). Por fim, podemos entrar no paraíso, desde agora, ao contemplarmos Jesus na cruz, pois
ele mesmo nos sussurra e nos garante isto (Lc 23.42-43). Esta é uma realidade para o
presente, instaurada pelo Jesus que diz: “Vinde a mim os que estão cansados e oprimidos e
tenham descanso”; “Tudo está consumado”. Desde a cruz, estamos livres de toda maldição e
poder (Is 53). “Vinde, benditos do meu Pai!”
Nota
1. Mircea Eliade é autor clássico no tema.
Ageu Heringer Lisboa, psicólogo clínico, é mestre em ciências da religião e membro fundador
do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos. [email protected]
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