UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL
MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL
MARIA DO ROSÁRIO DE LIMA OLIVEIRA
A RUA COMO ESPAÇO PARA MORAR: observações sobre
a apropriação dos espaços públicos pelos moradores de rua da
cidade de João Pessoa-PB.
JOAO PESSOA/PB
2011.
MARIA DO ROSÁRIO DE LIMA OLIVEIRA
A RUA COMO ESPAÇO PARA MORAR: observações sobre
a apropriação dos espaços públicos pelos moradores de rua da
cidade de João Pessoa-PB.
Dissertação de Mestrado apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social, do Centro de Ciência
Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal da Paraíba –
UFPB, em cumprimento às exigências
para obtenção do título de Mestre em
Serviço Social.
ORIENTADORA: Profª Drª MARIA DE FÁTIMA MELO DO NASCIMENTO
JOAO PESSOA/PB
2011.
O48r
Oliveira, Maria do Rosário de Lima.
A rua como espaço para morar: observações sobre a
apropriação dos espaços públicos pelos moradores de rua da
cidade de João Pessoa-PB / Maria do Rosário de Lima
Oliveira.- João Pessoa, 2011.
113f.
Orientadora: Maria de Fátima Melo do Nascimento
Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCHLA
1. Serviço Social. 2. Morador de rua – João Pessoa(PB).
3. Espaço público – apropriação – morador de rua.
UFPB/BC
CDU: 36(043)
“ao Mestre...com carinho!”
Dedico este trabalho à Profa.Fatima Melo, que se
aventurou comigo nessa jornada, e acreditou até o
fim: acreditou junto comigo que era possível
evidenciar a problemática dos moradores de rua;
acreditou que era possível este trabalho se
concretizar; acreditou no meu desejo de levar
adiante esse jeito simples e livre que ela tem, da arte
do ensinar!
AGRADECIMENTOS
Agradecer sempre é importante...significa que alguém deixou marcas em nós
para sempre! E é dessa forma que me sinto, como alguém que foi marcada por pessoas
que torceram, vibraram, sofreram e se alegraram comigo nessa trajetória.
Primeiramente, como não reconhecer e agradecer Àquele que me deu
gratuitamente a vida, a capacidade de amar e a do saber. A Deus, Amigo Essencial, sem
O qual não seria possível dar passo algum, nem reconhecer a presença de todos os
outros que foram sinais da Tua Presença sempre Fiel!
Aos meus pais, que fizeram questão, com seu trabalho e sacrifício diários, deixar
de herança a educação, que ninguém poderia me tirar. Em especial, a presença terna de
minha mãe, que no seu silêncio, no seu cuidado constante não deixou de estar ao meu
lado. Ao meu pai, as valiosas dicas sobre ‘como dissertar’, e a torcida até o fim foram
muito importantes.
À minha querida irmã, que mesmo longe, esteve tão perto com seu carinho, seu
apoio, suas palavras de incentivo constante, que me ajudavam a insistir!
Aos meus irmãos da Comunidade Católica Shalom, que me apoiaram de todas as
formas, através das orações, auxílios, palavras de incentivo e conforto. Em especial, aos
irmãos de João Pessoa, que me acolheram de uma maneira inesquecível. Vocês
marcaram minha vida.
À Patrícia, amiga dos tempos da graduação, sempre presente, e que me animou a
investir nesse caminho...muito obrigada!
À Enne...foi sua ida para Natal, vindo de Teresina para fazer o Mestrado, que me
despertou para também investir na carreira/vocação de Mestre.
A Juan...muito obrigada amigo, você abriu as portas da cidade de João Pessoa
para mim. Obrigada por seu cuidado, seu apoio. Obrigada por me impulsionar a ir além.
Aos amigos (e afilhados) Leandro e Priscylla, pela presença constante. Por
tantos incentivos! Muitas vezes, ao lembrar do quanto vocês queriam me ver feliz é que
ganhei forças para prosseguir.
À Waldete...amiga, você muitas vezes me recolocou na direção, torceu muito
para que eu chegasse ao fim. Seu olhar de quem acreditou foi muito importante!
À Yonara...amiga, seu auxílio foi extremamente importante. Você por perto,
também com suas lutas para concluir seu Mestrado, foi muitas vezes remédio para que
eu me reerguesse e recomeçasse. Obrigada por sua atenção de sempre!
À Hilmara...obrigada pela convivência, apoio, e pela sua sede em aprender, que
ao me procurar para tirar dúvidas, muitas vezes me relembrou o motivo pelo qual
ingressei nessa jornada, e me pôs de pé novamente.
A Flavio Júnior, que vai também enfrentar essa longa e rica caminhada...no
momento em que eu já me via sem rumo, suas palavras de firmeza me devolveram a
direção.
Aos demais amigos, que estão felizes comigo, que estão no coração!
À instituição filantrópica “Comunidade Filhos da Misericórdia”, que me acolheu
de forma generosa, através de seus membros, e me deu a oportunidade de chegar mais
perto daqueles a quem eu desejava tanto ver de perto. Desejo que continuem a se
empenhar nesta jornada que é exigente, mas que se torna tão necessária diante da
realidade degradante sob a qual se encontram cidadãos, se encontram pessoas!
Aos colegas do Supermestrado, turma maravilhosa, que nunca tive igual!
Mesmo não estando por perto, mas pude receber muito do carinho e compreensão de
vocês, povo guerreiro e feliz! Em especial à Ana Martins, que tanto me ajudou, e foi
exemplo de disciplina e amor aos estudos.
Aos professores que durante o Mestrado tiveram uma atenção muito especial
pela turma 2009.1, contribuindo não só com os conteúdos ministrados, mas com o
incentivo constante, fazendo também de cada encontro uma verdadeira mesa de reflexão
e “abertura do olhar” diante daquilo que cada um de nós pretendíamos pesquisar.
E de maneira muito especial quero agradecer, e reconhecer a presença
fundamental da minha professora e orientadora Fátima Melo. Tenha a certeza de que
nada disso seria possível se você não acreditasse em mim. Muito obrigada pela
paciência, pelas boas risadas, pelos inúmeros momentos em que ouvi seu incentivo, seu
alerta de ‘Não desista! Continue!’, por ir junto comigo até o fim. Muito mais do que me
ensinar a fazer uma Pesquisa, você me ensinou o que é ser Mestre: é olhar para o aluno
por inteiro; é extrair aquilo que o aluno traz de melhor dentro de si, é fazê-lo acreditar
nele mesmo. Não esquecerei dessa profunda experiência que tive nesse tempo com a sua
presença.
À professora Lourdes, também o meu carinho e gratidão pela paciência e que,
por também acreditar, ter feito tudo para que eu pudesse chegar ao fim dessa
caminhada. Estendo também o obrigado à Fátima, da Secretaria, sempre disponível!
Agradeço também à CAPES, que proporciona a oportunidade dos alunos
aprimorarem sua profissionalização, através dos incentivos que abrem as portas para
nós.
E por fim, e não menos importante, àqueles que se deixaram observar por esta
‘curiosa’: aos moradores de rua da cidade de João Pessoa, que mesmo tendo-os
conhecido em circunstâncias tão precárias, vivendo de uma forma tão degradante, não
perderam a oportunidade de me ensinar que o nada ainda não é o fim, pois ainda é
possível “se virar”.
“O cara que catava papelão pediu
Um pingado quente, em maus lençóis, nem
voz.
Nem terno, nem tampouco ternura.
À margem de toda rua, sem identificação, sei
não!
Um homem de pedra, de pó, de pé no chão.
De pé na cova, sem vocação, sem convicção...
À margem de toda candura
(...)
Homem de pedra, de pó, de pé no chão.
Não habita, se habitua”
(Cidadão de Papelão – Fernando Aniteli)
RESUMO
O referido estudo trata dos resultados de observações aos moradores de rua da cidade de
João Pessoa-PB, a fim de identificar a presença dessa população nos espaços públicos
da cidade. Na formação dos centros urbanos, os espaços públicos são locais de
passagem da sociedade, que está em constante movimento. Porém, há uma parcela da
população que busca se adaptar a um modo de viver nesse espaço, após sofrer
rompimentos em de todos os seus vínculos: assim é a trajetória dos moradores de rua
nas cidades brasileiras. Tal realidade é também encontrada na cidade de João PessoaPB, local da presente pesquisa. A necessidade de identificar o morador de rua como
aquele que se apropria do espaço público para viver é o que norteia a metodologia
utilizada - a da pesquisa etnográfica. Para a aplicação desta, porém, foi feito um
percurso para se ter acesso ao sujeito, o qual não se distinguia facilmente em meio
àqueles que se apropriam do espaço público apenas enquanto desenvolvem atividades
para o sustento. O acompanhamento da rotina de uma instituição filantrópica que atua
junto aos moradores de rua da cidade de João Pessoa-PB foi o ponto norteador desse
acesso, o qual culminou em observações e escuta de relatos, os quais também são
expostos neste trabalho. Com isso, foi possível identificar o morador de rua e conhecer
o seu modo de viver, que não se trata apenas de se adaptar ao espaço público - mesmo
sob rejeição do restante da sociedade - mas de uma maneira, mesmo que silenciosa,
gritar pelo seu direito à dignidade, inerente a todo ser humano.
PALAVRAS-CHAVE: Morador de rua. Espaço público. Apropriação. Metodologia.
ABSTRACT
This study deals with the results of observations of the homeless city of João Pessoa, in
order to identify the presence of this population in the city's public spaces. In the
formation of urban centers, public spaces are places of passage of society which is
constantly moving. But there is a segment of the population seeking to adapt to a way of
living in that space, after suffering disruptions in all its bonds: so is the trajectory of the
homeless in cities. This reality is also found in the city of João Pessoa, place preparation
of this research. Identify the homeless as one that appropriates public space to live is
what guides the methodology used - the ethnographic research. For this application,
however, was made a route to gain access to the subject, which is not easily
distinguished among those who appropriate public space just as they develop activities
for sustenance. The routine monitoring of a charity that works with the homeless in the
city of João Pessoa was the guiding point of access, which culminated in observations
and listening to stories, which are also presented in this paper. Thus, it was possible to
identify the homeless and know your way of living, which is not just to adapt to public
space - even in rejection of the rest of society - but in a way, even if silent, screaming
for
her
right
to
dignity
inherent
in
every
human
being.
KEYWORDS: Homeless. Public Space. Ownership. Methodology.
LISTA DE SIGLAS
MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e combate à Fome
IBGE- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
CAPS- Centro de Apoio Psicossocial
PIB- Produto Interno Bruto
ONGs – Organizações Não-Governamentais
MNPR – Movimento Nacional da População de Rua
AIDS – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – A rua como espaço para morar
14
1 CAPÍTULO 1 - A FORMAÇÃO DAS CIDADES: HISTÓRICO E
25
ATUALIDADE
1.1 A cidade: definição e suas primeiras formações
25
1.1.1 A estruturação das cidades a partir do capitalismo: a industrialização 29
acelera a urbanização
1.1.2 A urbanização a partir do século XX
34
1.2 A urbanização no Brasil: aspectos históricos e contemporâneos
37
2 CAPÍTULO 2 – ESPAÇO PÚBLICO, A RUA E SEUS MORADORES
41
2.1 O conceito de espaço público
41
2.2 A cidade capitalista e o espaço público
47
2.3 Concepções sobre o uso da rua
49
2.4 Sobre o morador de rua
55
2.4.1 Breve resgate histórico sobre a existência do morador de rua
55
2.4.2 Quem é o morador de rua: caracterização
61
2.4.3 Relação entre espaço público e morador de rua nas cidades brasileiras
68
2.5 A resposta à apropriação dos moradores de rua dos espaços públicos: 73
Governo e a sociedade civil
3 CAPÍTULO 3 - MORADORES DE RUA DA CIDADE DE JOÃO 77
PESSOA
3.1 Urbanização da cidade de João Pessoa-PB: histórico e atualidade
77
3.2 As marcas de hoje: a cidade de João Pessoa-PB e a presença dos 82
moradores de rua
4 CAPÍTULO 4 - O PERCURSO PARA A REALIZAÇÃO DE UMA 86
PESQUISA JUNTO AOS MORADORES DE RUA DA CIDADE DE JOÃO
PESSOA-PB.
4.1 Primeiro passo: encontrar o sujeito
88
4.2 O acesso ao sujeito
94
4.3 Observação do sujeito
97
4.4 Reencontro com o sujeito: observações da utilização do espaço
97
público
4.5 Encontro com a realidade: relato de moradores de rua da cidade de 98
João Pessoa-PB
4.5.1 Pedro: o jovem que encontrou nas ruas seu “esconderijo”
99
4.5.2 João: o andarilho que carrega sonhos (e pesadelos)
101
4.5.3 Tiago: vida consumida pelas drogas, rua como espaço para 102
sobreviver
CONCLUSÃO
105
REFERÊNCIAS
109
15
INTRODUÇÃO
Expressar as consequências da inquietação por um fato: eis aí uma breve
interpretação do que se denomina pesquisa. Na verdade, traduz-se esse termo a partir
daquilo que nos envolve, que passa notadamente pelos sentidos, pelo olhar, pela
imaginação; desenvolvem-se as experiências vividas e marcadas no tempo, o desejo de
ver de perto aquilo que ainda está longe, as dores de uma indignação ou a suspeita de
uma nova descoberta. Pensa-se a pesquisa também com a finalidade da constatação de
um fato ou como algo necessário para comprovar enunciados, afirmações. Enfim, é
tarefa importante para contemplar o que se encontra velado dos olhares superficiais,
desatentos, desinteressados.
Não é à toa que um dos grandes teóricos acerca da
pesquisa social no Brasil afirma que esta “[...] é a atividade científica pela qual
descobrimos a realidade” (DEMO, 1987, p.23).
Desse modo é que se pode entender a pesquisa: como um minucioso trabalho do
desvendar. Aquele que se dedica a esse trabalho é como o simples, mas corajoso
pescador, que com alguns poucos instrumentos, entra a desbravar o misterioso mar:
sabe o que quer encontrar, porém também sabe com o que pode se deparar e, mesmo
assim, não teme em mergulhar nesta aventura surpreendente. O homem que se destina à
pesca não navega no mar de qualquer maneira, sem objetivo; se for assim, não passa de
mais um que “passeia” pelas águas. O pescador deseja extrair aquilo que não está à vista
e que nem sabe ao certo onde se encontra, mas está ali escondido; e assim, enfrentando
as intempéries, os ventos, chuvas, fortes ondas e até mesmo a fúria de outros animais, o
pescador não volta a terra enquanto não trouxer os peixes, que lhe servirão de alimento,
de lucro e de ânimo para as próximas pescarias.
Esse também deve ser o olhar do pesquisador: dada a coragem para iniciar um
trabalho de investigação no “mar”, que é a realidade a qual se propôs a investigar, ao
estar imerso nela, não deverá se esgotar até que tenha encontrado aquilo a que se propôs
a buscar. Mesmo que surjam as indisposições, o cansaço, a falta de rumo, muitas vezes,
diante de tantos “ventos” que vão soprando para lados confusos – dos fatos inesperados,
dos planos desfeitos, dos caminhos modificados –, não se deve temer. E ainda a falta de
respostas imediatas que provam a paciência e a persistência, antes de desanimar, deve
fazer com que se vá mais a fundo nas buscas daquilo a que nos propomos. E como o
pescador, homem que mergulha solitário ou em pequenos grupos, o pesquisador torna-
16
se, em cada pesquisa concretizada, um ousado que se apropria da realidade a qual se
modifica a cada dia, lentamente e na rapidez de cada instante.
No desejo de responder a inquietações que antes pareciam um mistério, buscouse observar mais de perto um dos quadros que compõe o cenário das cidades brasileiras:
a presença dos moradores de rua nos espaço públicos. Verifica-se a existência desse fato
desde a formação das primeiras sociedades no mundo e também no Brasil. Porém, a
presença de pessoas que têm a rua como seu local de moradia se confunde com a
realidade do uso desse espaço, por uma quantidade cada vez maior de pessoas – a partir
do contexto de subemprego enfrentado no país – para a criação de estratégias de
sobrevivência. Foi nesse sentido que surgiram os questionamentos, a partir da
observação do contexto da rua e daqueles que estão diariamente nela: em meio a tantas
pessoas que estão pelas ruas, quem é o morador de rua? Todas as pessoas que estão nas
ruas buscando obter alguma renda são também moradoras desse local? Como identificar
aquele que faz da rua o seu lugar de moradia? Assim, tornou-se ainda mais necessária a
busca pela identificação do morador de rua nos espaços da sociedade, procurando nisso
detectar se há aspectos que os diferenciam dos demais indivíduos que se encontram
nesse espaço e quais seriam esses aspectos. E que espaços são esses ocupados pelos
moradores de rua? Tal questionamento leva a procurar conhecer melhor o local onde o
morador de rua está presente: os pontos que compõem os espaços públicos das cidades.
E como se dá essa relação entre o morador de rua e o espaço por ele ocupado? Tal
questão levanta outras acerca da adaptação do homem à rua – ou vice-versa, conforme a
maneira como se dá essa relação.
Nos últimos anos, foram realizadas pesquisas sobre o referido universo, as quais
pretendiam identificar e caracterizar o morador de rua. Elas o definem, por exemplo,
como sendo o “indivíduo migrante, imigrante ou nascido em uma grande metrópole,
que tem o seu ‘fundo de consumo completamente dilapidado’ e não consegue mais
repor tal fundo e prover o seu bem-estar” (GIORGETTI, 2006, p.25). Em geral, também
são identificados através do seu contexto social de rompimento de uma rede de relações
sociais (família, trabalho) e, dessa forma, acabam sendo vistos como sujeitos
desvalorizados socialmente. São também considerados como grupo populacional
composto por uma “síntese de múltiplas determinações” (SILVA, 2009, p.91), que
compõem a situação de extrema pobreza nas sociedades capitalistas. São caracterizados,
17
portanto, como indivíduos que retratam as desigualdades sociais existentes, através de
sua vivência, de maneira precária, no espaço das ruas das cidades.
A rua, na verdade, parece ser um lugar que traz a cada instante uma novidade,
uma nova impressão, um universo de sensações dentro de seu movimento de tantos vai
e vens. Só em fazer um breve passeio, podem-se encontrar tantos que transitam, gente
que carrega histórias, planos, preocupações, mas estão apenas passando e deixando um
pouco de seu trabalho, de seu consumo, de seus problemas a serem resolvidos naqueles
traçados que formam as ruas e calçadas. Muitos também passam pelas ruas para
encontrar amigos ou parentes no bairro mais adiante ou correm contra o tempo antes
que a loja encerre o expediente. Pedestres ou motoristas, ao circularem no espaço que é
a rua, dão a sensação de que a cidade está viva, em movimento.
Portanto, pensar no espaço da rua significa associá-lo a um local construído
propriamente para a circulação, para a transitoriedade das pessoas; as suas avenidas,
calçadas e praças são pontos por onde todos passam, seja a passeio, seja na correria do
dia a dia, a trabalho. Como pedestres ou como motoristas, diversas vidas se entrecruzam
por esses contornos que vão formando o espaço urbano. A rua é assim: não há nenhuma
distinção sobre quem deve ou não circular por ela. É o acesso livre para todos. Por isso
mesmo considera-se que a rua seja o local de ninguém, pois ninguém é “dono” dela,
ainda que haja uma tentativa de controle da ordem social por parte dos setores públicos
(os quais, aliás, tornam-se responsáveis por sua administração e manutenção). Logo,
não há uma necessidade de identificação de alguém que seja o proprietário desse local;
não se ouve falar de alguém que diga: “essa rua é minha”, ou “essa rua foi decorada de
acordo com o perfil de fulano”. A rua, assim, não pertence nem a mim e nem a outro; e
também não se pretende ter posse desse local e identificá-lo como sendo seu. Mas ao
mesmo tempo, é o local em que todos têm o direito de circular, de permanecer o tempo
que quiser nele e usufruir de tudo o que ele oferece. Na rua encontramos tudo o que não
pode ser oferecido no âmbito privado: as tarefas, as conversas, os produtos, os prazeres,
mesmo que sejam temporários. Mas não é um espaço exclusivamente meu; é acessível a
todos.
Na visão de estudiosos, a rua tem sentidos que vão designar sua utilização por
parte da população em geral, dentro da formação das cidades. O autor Lefebvre, por
exemplo, em seus estudos sobre a cidade e sociedade urbana, mostra os significados da
rua, de forma positiva e negativa: o que ele declara como discurso “a favor da rua” seria
18
a visão de que essa não se constitui apenas como um local de passagem, mas de
obsessão dos automóveis; também é o lugar do encontro e o acesso para que as pessoas
se encontrem em outros lugares, os quais também animam o próprio espaço da rua.
Enfim, esse é o lugar onde “efetua-se o movimento, a mistura, sem os quais não há vida
urbana (...)” (LEFEBVRE, 1999, p.27). Em outro momento, o autor revela os discursos
“contra a rua”, os quais afirmam que os encontros existentes entre as pessoas nesse
espaço são considerados como superficiais, onde apenas “se caminha lado a lado”, não
se conhece ninguém; trata-se de um lugar onde não se formam círculos sociais, mas
apenas se concentra um amontoado de gente. A rua também é o lugar onde se
desenvolve “o mundo da mercadoria” (LEFEBVRE, 1999, p.30).
Em outra concepção acerca do tema da rua, esse é visto como o local onde se
percebem as diferenças sociais, na medida em que, na transitoriedade das pessoas por
esse local, concretiza-se a espacialidade social existente (CARLOS, 2007, p.51). A rua
também é vista, de acordo com outra análise, como um espaço que está em contraste
dinâmico com o espaço “da casa”: é a zona de individualização, da luta, onde cada um
deve zelar por si; é, em suma, “um local perigoso” (DAMATTA, 1997, p.57). É visto
também, conforme o autor, como um espaço que pode ser ocupado por pessoas que
passam a viver “como se estivessem em casa” (idem, p.55).
Percebe-se, em meio às discussões acima mencionadas, que a rua não deve ser
considerada de imediato como um lugar exclusivo, onde se possa dar as formas e cores
que deseja; onde seja possível se esconder de todos, ter o seu descanso e também
guardar seus planos e anseios. Cada um tem a necessidade de ter uma referência, uma
segurança, que se expressam através na necessidade de se ter um lugar. Embora não seja
esse o único aspecto de determinação sobre uma pessoa, ter posse sobre algo parece dar
autoridade àquele que o possui. E ter uma família, laços afetivos, ter um trabalho e ter o
seu local, por pior estado em que se encontre, confere um grau de propriedade sobre
essas determinadas realidades. E dar feições específicas ao espaço onde se vive, sofre e
se alegra, o faz traçar a sua história, é aquilo que a rua não pode oferecer, ou pelo menos
não existe fundamentalmente para isso.
E assim o homem dá vida ao espaço, faz dele um cenário vivo com história, a
partir daquilo que nele se encontra presente. Um exemplo típico para essa reflexão é
uma casa, a qual as pessoas transformam em um lugar apropriado, com as
características próprias de quem mora nela e através de seus móveis, modo de
19
organização e vivências compartilhadas naquele espaço. Até mesmo quando se pensa
em atender a necessidades imediatas (comer, dormir, tomar banho, etc.), é exatamente o
refúgio seguro, o local de referência para satisfazer a tudo isso, onde se permitirá ser
visto, ser revelado, porém, de uma forma privada, sem a necessidade de que todos sejam
conhecedores de tais necessidades.
E o que dizer, pois, daqueles que não estão mais em locais permanentes ou
mesmo nunca viveram dessa forma – perderam suas residências, família, trabalho, etc. –
e passam a morar nos espaços ditos públicos? Sim, a rua, nos seus mistérios, traz essa
interação entre referência e não-referência vivida por milhares de pessoas no mundo e
também nas capitais brasileiras. Essa necessidade de apropriação faz com que o homem,
mesmo sofrendo as ausências daquilo que se obtém somente no âmbito privado, procure
se adaptar de tal modo àquele local que o tornará, mesmo que precariamente, um espaço
para viver. Seja embaixo de árvores ou nas esquinas de ruas, nos bancos das praças, um
olhar atencioso pode conferir tais adaptações. Por vezes, não há a construção de um
local cercado de paredes, mas uma sacola com alguns objetos, um colchonete ou
papelão, peças de roupa, garrafas, panelas, os quais vão demarcando aquele espaço,
onde só “habita” o proprietário desses objetos: o morador de rua. Pode ser a mesma
praça todos os dias ou uma praça da cidade a cada momento – não importa; o espaço da
rua “oferece diferentes possibilidades que são exploradas criativamente por seus
moradores” (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992, p.96).
Diante de tal problemática, pretende-se conferir de maneira mais detalhada a
apropriação da rua feita por aqueles que se encontram na condição de morador nesse
espaço, que não buscam apenas garantir dinheiro e comida, como tantos outros
indivíduos que se encontram diariamente nesse local com tal objetivo. O morador de rua
parece, dessa forma, desenvolver também outros hábitos nos diversos espaços existentes
na cidade, utilizando-os para responder às suas principais necessidades.
Na capital paraibana, local desse estudo, não poderia ser diferente: como nas
principais cidades do Brasil, os moradores de rua se entrelaçam por entre o movimento
acelerado de veículos e pessoas, próximos aos edifícios e casas, nos sinais e
cruzamentos que indicam a urgência de ordem no espaço que é de todos e é de ninguém.
Parecem perdidos, à parte, da correria abrupta pela sobrevivência que se dá a todo
20
instante por toda a sociedade; por isso mesmo são chamados de vagabundos1,
ordinários, pois suas vidas acenam ainda o atraso em que se encontram por sua
precariedade. Porém, à medida que o tempo passa, aumenta para o morador de rua a
incerteza de que conseguirá sair dessa situação e, por isso mesmo, sai em busca,
diariamente, daquilo ou daqueles que podem ajudar a fazer menos indigna a sua
permanência em um local que, a princípio, não foi projetado para tal.
Ao iniciar a pesquisa sobre os moradores de rua na cidade de João Pessoa-PB, o
objetivo era o de investigar as formas de sobrevivência buscadas diariamente pelos
moradores de rua na cidade. As primeiras observações, a busca de informações e dados
gerais começaram a descortinar uma série de atividades existentes no espaço das ruas,
quais sejam: a catação de papel, venda de comidas, jornais, materiais para carro,
prostituição e a atividade de camelô, até oferecimento de serviços, como limpeza de
pára-brisa, vigilância de carro, atividades circenses, além, é claro, da atividade da
mendicância nos sinais, esquinas e calçadas, entre diversas outras. Porém, tais
descobertas também revelaram que grande parte dessa população está nas ruas apenas
enquanto realiza tais atividades – tidas como informais – para a sua sobrevivência, visto
que o mercado formal de trabalho não amplia as oportunidades de emprego. Mas isso
não quer dizer que os moradores de rua não estejam incluídos em pelo menos algumas
dessas atividades. Por isso é que se tornou necessário inferir quem seria o morador de
rua, tendo como referência não apenas o fato de exercerem atividades nas ruas para a
sobrevivência, mas buscar outros aspectos que caracterizem esse público e os distingam
dos demais personagens que circulam nesse espaço.
O próprio termo “morador de rua”, utilizado por diversos estudiosos, indica a
condição do grupo o qual vive a realidade da presença nas ruas. Também são aplicados
os termos “população de rua” ou “população em situação de rua” como forma de buscar
ampliar o conceito e estudos acerca dessa população, no sentido de frisar o caráter
transitório com o qual deveria ser vivenciada tal situação. Define-se como população
em situação de rua um determinado segmento populacional heterogêneo, mas que
possui em comum a condição de pobreza extrema, a busca pela sobrevivência nas ruas,
a fragilização ou rompimento dos vínculos sociais e a ausência de uma residência
1
Uma alusão ao conceito marxiano sobre o lumpenproletariado, utilizado no período de industrialização
no século XVIII, o qual atribuía a definição de “homem-trapo” àqueles que não trabalhavam na produção
industrial, não pertenciam à classe operária.
21
regular, de modo que passa a ocupar os logradouros públicos das cidades, de forma
permanente ou provisória (SILVA, 2009, p.29; BRASIL, 2006, p.24).
Porém, para termos deste estudo, pareceu mais conveniente utilizar o termo
“morador de rua” como forma de enfatizar a atual condição desse segmento, qual seja: a
de estar morando na rua e de que essa é uma realidade presente não apenas a partir de
um determinado período da história, mas durante toda a história da sociedade,
independente do sistema econômico ou político vigente. Uma ideia central sobre o
termo “morador de rua” retrata-o como “um segmento social que, sem trabalho e sem
casa, utiliza a rua como espaço de sobrevivência e moradia” (VIEIRA, BEZERRA e
ROSA, 1992, p.47), onde “ocorre um reorganizar, um reinventar do espaço público e
comum, tornando-o sala/quarto/oficina” (idem, p.103). Tal definição traz a
caracterização do morador de rua já mencionada acerca da população em situação de
rua, mas que enfatiza a forma de apropriação do espaço público como moradia,
estabelecendo algum tipo de ligação entre o indivíduo e o espaço, sobre o qual ele
procura se adaptar para sobreviver. Contudo, não se pretende trazer nesse termo uma
ideia naturalizada da presença de pessoas que têm o espaço das ruas como o seu local de
moradia, nem mesmo determinar que essa seja uma condição da qual não se deve buscar
meios de sair dela. É um termo utilizado apenas como forma de distinguir determinado
público, o qual perdeu ou se fragilizou em suas referências, destacando a utilização da
rua como seu principal ou único local para viver.
A partir do encontro com tal conceituação, era preciso agora conseguir
instrumentos que auxiliassem a percepção dessa realidade na cidade a qual se tornou
cenário da pesquisa. A busca por bibliografias que tratassem do tema foi feita no sentido
de desvendar um pouco desse universo que agora parecia se revelar com uma riqueza de
detalhes. Pesquisas sobre o modo de viver do morador de rua, reportagens que
retratavam, mesmo de maneira superficial, a forma de viver dessas pessoas em outras
cidades do Brasil começaram a elucidar essa questão, ao trazer alguns aspectos comuns
concernentes a esse público. Cabe destacar a pesquisa nacional realizada no Brasil entre
os meses de agosto de 2007 e março de 2008, com o objetivo de traçar um perfil
daqueles que constituem a população adulta residente nas ruas das principais cidades
brasileiras: mostra, por exemplo, que a maioria da população adulta que se encontra nas
ruas é do sexo masculino (82%) e que a quantidade de pessoas em idade considerada
22
economicamente ativa (entre 26 e 35 anos, segundo a média utilizada pela pesquisa) é a
que se constitui como maioria dentre a população de rua (BRASIL, 2009, p.85).
A partir dos conceitos referidos, tornou-se ainda maior a necessidade de
aproximação da realidade da moradia de rua em João Pessoa-PB, com fins de chegar a
tais constatações no âmbito local. Além do mais, as pesquisas sobre o tema incitavam a
precisão em detalhes sobre tal fato, aparentemente “invisível”, mas existente também na
capital da Paraíba.
Para tanto, seria necessário observar mais de perto essa dinâmica e trazê-la para
a pauta das discussões, em seu teor concreto. Não seria necessário, com isso, modificar
ou parar o dia a dia daqueles que moram nas ruas nem mesmo invadi-lo; mas entrar
silenciosamente em sua rotina, como o pescador silencioso trabalha em busca de um
cardume. Era preciso sair agora do olhar superficial para enxergar mais de perto os
moradores de rua em seus hábitos, os objetos utilizados, a forma de conseguir comida,
de dormir, da formação de seus vínculos sociais, enfim, o modo como conhecem o
espaço do qual fazem parte e perceber a forma como, através dessas atitudes, tomam
posse do espaço da rua, no espaço urbano permeado de conflitos.
A ideia de participar de alguma forma dessa dinâmica da vida do morador de rua
de João Pessoa-PB encontrou na pesquisa etnográfica o embasamento necessário para
ser efetivada. Esse método de pesquisa propõe a descrição do modo de viver – a partir
de aproximações sucessivas – de um povo, de uma cultura, em suas atividades diárias,
em suas ações imperceptíveis até mesmo para eles, mas que os identificam, pois que não
se encontram em nenhum outro povo. Trazer esse método de pesquisa para perceber o
modo de viver do homem da rua abre as portas para conhecer um modo de viver na rua
o qual nenhuma outra pessoa vive, porque apenas passa por esse local. Além disso, na
pesquisa de cunho etnográfico, o centro é o sujeito – é ele quem terá o papel principal
na pesquisa, que dá significado ao que se é pesquisado. No estudo em questão,
pretende-se revelar o morador de rua, o qual, atingido por contingências em sua vida,
não a perde por inteiro no espaço em que se encontra agora (embora não tivesse outras
possibilidades de escolha de locais para sua permanência) e age nesse espaço, de modo
a criar suas estratégias próprias para permanecer.
Os principais teóricos da pesquisa etnográfica prescrevem que, para a utilização
de tal método de pesquisa, não se deve ter a preocupação com a busca de técnicas
rígidas para serem aplicadas. Na verdade, o pesquisador é quem irá, a partir da presença
23
constante no meio a ser pesquisado, encontrar os caminhos necessários para observar
melhor o sujeito, aproximar-se com mais precisão daquilo que deseja observar. Isso se
dá pelo fato de que “[...] a maior preocupação da etnografia é obter uma descrição
densa, a mais completa possível, sobre o que um grupo particular de pessoas faz e o
significado das perspectivas imediatas que eles têm do que eles fazem” (MATTOS,
2001, p.03).
Como parte do relato da pesquisa, considerou-se necessário antes retratar o
caminho percorrido para haver as primeiras aproximações aos moradores de rua, pois o
que se julgava ser uma porta simples e acessível, visto que as pessoas que moram na rua
aparentemente estão mais expostas, era na verdade um obstáculo a ser superado – o
acesso aos moradores de rua. Acreditava-se inicialmente na possibilidade de uma
aproximação imediata, sem a necessidade de algo para intermediar esse processo.
Porém, a partir do momento em que começaram as observações e a ideia de
aproximação, havia um temor em sofrer algum tipo de violência, como assalto ou
agressão física, e um cuidado em lidar com a desconfiança deles, pois poderiam pensar
que a pesquisa se tratava de busca de informações com o objetivo de prejudicá-los. Foi
possível, dessa forma, a constatação de dois fatos: primeiro, a necessidade de eliminar
conceitos que impedissem a aproximação aos moradores de rua; e, segundo, que mesmo
com a abolição desses conceitos, parecia inviável fazer as abordagens sem o auxílio de
algo, como uma instituição, por exemplo, pelo fato de que essa já poderia facilitar a
detecção dos sujeitos da pesquisa, sem o risco de abordar pessoas que não se tratam de
moradores de rua, e assim, demandar tempo e correr o risco de não encontrar aqueles
que de fato interessariam às presentes discussões. Além do mais, o acesso ao morador
de rua a partir de uma instituição pode servir como alternativa viável para os demais
pesquisadores que desejem aprofundar outros aspectos referentes à temática estudada.
O presente estudo se constitui como resultado da pesquisa realizada e se
encontra organizado da seguinte forma: inicialmente apresenta-se o contexto histórico
da formação das cidades, desde a Antiguidade, e da formação dos espaços públicos,
mostrando-se a presença de moradores de rua ao longo da história da sociedade, além de
uma abordagem histórica sobre o local da pesquisa, a cidade de João Pessoa-PB. Por
fim, descreve-se a metodologia utilizada para a realização da pesquisa, a qual indica o
caminho percorrido para o acesso e observação do sujeito, bem como os resultados das
aproximações aos moradores de rua adultos da cidade de João Pessoa-PB, no
24
acompanhamento das atividades de uma instituição filantrópica que atua todas as noites
com esse segmento populacional. Todo esse percurso e observações se deram em um
período de 10 (dez) meses.
Acerca da duração desse período, é importante enfatizar aquilo que é uma das
características das pesquisas etnográficas, que é a extensão de seu período de
observação, com vistas a retratar a realidade a qual se propôs a observar, “[...] de forma
que este seja o mais representativo possível do significado que as próprias pessoas
pesquisadas dariam a mesma ação, evento ou situação interpretada” (MATTOS, 2001,
p.2). Porém, ao se esgotarem as possibilidades observadas, no sentido se verificarem
agora fenômenos repetitivos no meio observado, ou mesmo ao se chegar ao limite de
aprofundamento das observações e aproximações, o pesquisador pode então deixar
aquele ambiente agora livre de suas interferências presenciais, ainda que silenciosas, do
meio dos sujeitos observados. Tal aspecto vivenciado durante a pesquisa considerou
suficiente esse período de tempo para os fins a serem atingidos com a mesma.
No primeiro capítulo, busca-se caracterizar o contexto sobre o qual os moradores
de rua se encontram – a cidade –, narrando o histórico de sua formação e de
estruturação de seus espaços, além de descrever a vida urbana na atualidade, na
realidade mundial e nacional.
No segundo capítulo, aborda-se de maneira mais específica o espaço público, a
partir da acepção do que seja visto como espaço, baseada nos estudos da Geografia e no
que seja considerado como público, com as reflexões sobre seu aspecto histórico e sua
dinâmica na contemporaneidade. Também se busca caracterizar o espaço da rua, num
debate sobre os usos desse espaço, a partir dos estudos da Geografia, Sociologia e
Antropologia. Nessa parte também se encontram alguns estudos que trazem a definição
e perfil do morador de rua e sua relação com o espaço público das cidades brasileiras.
Finalmente, no terceiro capítulo é trazido um pouco da realidade do local da
pesquisa: a cidade de João Pessoa-PB, no histórico de seu processo de urbanização e seu
movimento na atualidade, a qual, em seus contrastes, é um retrato daquilo que se
encontra nos centros urbanos brasileiros. Também é apresentado o resultado do
encontro com 3 (três) moradores de rua, ocorridos durante os momentos de observação
dos sujeitos – considera-se que esses encontros representam as diferentes formas do
contexto geral vivenciado por esse público. Tais aproximações culminaram em relatos
25
da trajetória de vida dessas pessoas e na descrição do modo como vivem pelas ruas da
capital paraibana.
É dessa forma que aqui se apresentam as descobertas feitas através dessa
pesquisa, a qual, antes de tudo, trouxe uma riqueza em termos de experiência de vida,
ao ver exemplos de pessoas que buscam, diante do nada que possuem, adaptar-se tão
bem quanto possível nos espaços que parecem não os caber, mas que os acolhem. Fazer
da rua o seu modo de viver – não por vontade ou escolha própria, mas justamente por
não ter alternativa de permanência – é muito mais do que apenas se adaptar a um espaço
para sobreviver; é ainda gritar por sua identidade, por sua dignidade como pessoa que
tem direito a sua referência, sua estabilidade. De fato, trata-se, como diz Chico Buarque
em uma de suas canções, de “gente que vai em frente sem nem ter com quem contar”.
26
1 CAPÍTULO 1 - A FORMAÇÃO DAS CIDADES:
HISTÓRICO E
ATUALIDADE
Como palco privilegiado da ocupação da sociedade no espaço, a cidade é vista e
vivida como o local do progresso, do desenvolvimento, da reprodução material e social.
É onde se estabelecem as relações entre os indivíduos. Na cidade se traça a história,
constroem-se modos de viver. O homem, assim, é quem faz a cidade acontecer; é ele
quem a torna dinâmica; e na arquitetura com a qual desenha o corpo desse espaço,
estabelece os lugares das relações com o ambiente, com o outro desconhecido e com o
outro íntimo. Assim, o próprio homem determina a forma de ocupação que deve ser
feita pelo homem, nos diversos espaços que vão compor e caracterizar a cidade.
A partir da concepção de que “[...] a paisagem urbana e a cidade nos abrem a
perspectiva de entendermos o urbano, a sociedade e a dimensão social e histórica do
espaço urbano” (CARLOS, 2005, p.23), cabe buscar compreender os aspectos que
envolveram a formação das cidades e o modo de sua organização, desde sua origem até
a atualidade. A cidade, tal qual se encontra hoje, é definida a partir de condições que
serão brevemente expostas neste capítulo.
1.1 A cidade: definição e suas primeiras formações
Para se examinar o processo de formação das primeiras cidades, é importante
tecer algumas considerações acerca das primeiras aglomerações sociais, essas como
primeira forma de organização do homem no espaço.
Nos primórdios da humanidade, com a fixação do homem em porções de terra,
há também o estabelecimento de atividades de caça e de pesca em locais fixos,
juntamente com o compartilhamento do produto de tais atividades entre os indivíduos
abrigados próximos uns dos outros. São constituídas aí as primeiras aldeias. Nesses
locais, as pessoas organizam sua convivência e proteção mútua, e inicia-se a
demarcação de territórios que lhe serão apropriados para o exercício dessas atividades.
Tais posturas firmarão aquilo que será uma das características essenciais para a
subsistência humana, pois a organização em torno de terrenos para a criação e plantação
“[...] está relacionada diretamente com o que se entende hoje como atividades primárias
(agricultura e criação), atividades estas que pela sua própria natureza exigem territórios
extensivos”. (SPOSITO, 2005, p.14). Mais tarde, a especialização dessas atividades
constituirá o espaço que hoje é visto como o meio rural – o campo – o qual se define
27
como o local da extração direta de recursos para a subsistência da sociedade; é o espaço
próprio da produção autossuficiente, isto é, sua produção pode manter aqueles que o
habitam com os recursos que extraem.
O aglomerado social passa a crescer nessas áreas, tornando-se também
necessária uma organização maior em relação à atuação dos seus membros nesse
espaço. É no campo que se começa a denominar as autoridades religiosas e/ou políticas
como responsáveis também pela organização administrativa (sobretudo pelo
ordenamento da distribuição dos recursos produzidos) e social. Inicialmente, tais
autoridades estarão instaladas nas partes centrais das aglomerações.
Mais tarde, porém, a necessidade da existência de centros autônomos é o que
assinalaria o surgimento das primeiras urbes, ou cidades. A cidade, enquanto abriga
“[...] uma população relativamente grande, habitando compactamente num pequeno
território” (SINGER, 1990, p.137), é o espaço de apropriação e distribuição daquilo que
é produzido no espaço campesinal. O início de seu funcionamento se dá quando existe a
possibilidade de as autoridades se dedicarem exclusivamente às suas tarefas,
concentrando-se em áreas distantes do campo, mas sendo subsidiadas constantemente
pelo que for produzido por este. Nisso se verifica também o início da dinâmica da
divisão de classes, na medida em que há aqueles dedicados à produção e aqueles que
exercem a dominação. Por isso se afirma que as primeiras cidades são “[...] via de regra,
a sede do poder e, portanto da classe dominante” (SINGER, 1990, p.12). Isso significa
que seu desenvolvimento se dá numa perspectiva política, como local próprio do
exercício das relações de poder.
Outro fator característico para a formação das primeiras cidades é a expansão
territorial, visando ao crescimento econômico e dominação. O movimento das guerras
pela conquista de territórios e dominações de povos significava também o aumento do
poder de determinada cidade e, consequentemente, a ampliação de sua influência. Além
disso, os povos que eram dominados garantiam à cidade dominadora o pagamento de
tributos e a destinação de sua produção. Dessa maneira, pode-se considerar que o
crescimento de algumas cidades nesse período foi fundamentado pela dominação de
outras, resultando na formação dos impérios, isto é, na aglomeração de vários povos sob
um único poder. Soma-se a isso o fato de que a cidade dominante poderia se dedicar
ainda mais à especialização de seus membros para a conquista de outros povos, visto
que teria garantida a sua produção por meio daqueles que estavam dominados. Portanto,
28
“[...] a cidade é o modo de organização espacial que permite à classe dominante
maximizar a transformação do excedente alimentar, não diretamente consumido por ele,
em poder militar, e este em dominação política” (SINGER, 1990, p.15). A existência de
um poder centralizado é, dessa forma, condição importante para a sua formação.
As sociedades desse período de formações das urbes se constituíam basicamente
entre as classes altas, como as autoridades políticas e eclesiásticas, os militares e a
população em geral, dominada pelas primeiras. Nos impérios formados através do
sistema de dominações, era comum o regime escravocrata ser utilizado como a maneira
de expressar tal domínio, no sentido de que uma cidade, ao conquistar um território,
também tinha domínio sobre a população e, portanto, o poder total sobre tudo aquilo
que era produzido.
Tais características enquadram-se naquilo que se define como urbanização, a
qual é composta por:
1) um sistema de classes sociais; 2) um sistema político que assegure
o funcionamento do conjunto social e a dominação de uma classe; 3)
um sistema institucional de inversão com particular referência à
cultura e à técnica; 4) um sistema de intercâmbio com o exterior
(CASTELLS, 1985, p.19).
Diante do exposto, é possível discorrer acerca do surgimento das primeiras
cidades na história da humanidade. De acordo com estudos que tratam desse tema,
verifica-se o início dessa formação no período da Antiguidade, por volta do ano de
3.500 a.C., pela região da Mesopotâmia; as cidades tinham em comum, além da
localização estratégica, uma organização dominante, de caráter teocrático (o líder como
rei e chefe espiritual), que se localizava no centro da cidade. Tal disposição na
estruturação “[...] servia tanto para facilitar o intercâmbio das ideias (que permitiam o
exercício da dominação sobre as outras classes sociais), como para elas ficarem menos
expostas aos ataques externos [...]” (SPOSITO, 2005, p.21). As urbes da Antiguidade,
dessa forma, já se configuravam como tais, pois contavam com a organização políticoadministrativa e técnica, conforme já explicitado.
A formação do Império romano é um exemplo conhecido, relativo à formação
das cidades na Antiguidade, o qual compreendia, de forma evidente, todos os aspectos
relativos ao surgimento e desenvolvimento das cidades: na medida em que aumentava
sua fronteira com a conquista de territórios e cidades, organizava a circulação das
29
mercadorias pela região e ainda recolhia tributos como forma de manter o poder político
central, proporcionando o “[...] desenvolvimento de um aparato burocráticoadministrativo” (SPOSITO, 2005, p.22-23). A formação desse império “[...] talvez
tenha sido a mais ampla economia urbana pré-industrial que jamais existiu” (SINGER,
1990, p.20), devido à amplitude de sua dominação e organização políticoadministrativa, além da capacidade de manter uma divisão técnica do trabalho de forma
tão eficaz para aquele período. Ao especializar as atividades produtivas das regiões
conquistadas, tornava-as interdependentes, o que intensificava a unificação política dos
demais territórios a Roma. Verifica-se na dinâmica social o funcionamento do modo de
produção baseado na fabricação de mercadorias por artesãos, ao mesmo tempo em que
funcionava a economia escravagista. Na organização social de Roma havia também
aqueles que não eram considerados como cidadãos e, portanto, não tinham direitos
políticos na região. Os chamados estrangeiros são identificados como aqueles que
perambulavam pelas ruas da cidade.
Porém, registra-se o período da queda do Império romano, o qual, segundo
estudiosos, foi provocado por diversos fatores, entre transformações políticas,
econômicas e sociais que culminaram com a impossibilidade de sustentar a forma de
poder político centralizado; esse fato foi reforçado pela “desarticulação da rede urbana”
(SPOSITO, 2005, p.26), em que muitos daqueles que desenvolviam atividades nos
centros urbanos se deslocaram para o campo, fixando aí seu local de habitação e
produção, fazendo valer a força da troca de mercadorias entre si. Mais tarde, tal
acontecimento deu origem aos feudos, os pequenos aglomerados construídos entre
muralhas, em que o poder era descentralizado, em comparação à dominação existente na
Antiguidade. O poder cabia agora ao senhor feudal, delineando assim o aspecto político
da Idade Média. Também nesse período da História, o funcionamento da economia se
dava com a vida no campo, o que configurou a vida social da época; mas sem deixar de
existir, ao mesmo tempo, as corporações de ofício – que seriam uma especialização de
atividades que não se referem às realizadas no campo – nos espaços considerados
afastados dos cultivos campesinais. As cidades europeias, segundo Sposito, estavam
reduzidas a atividades pouco relevantes. Assim se marcava um período de retorno, de
certa forma, ao sistema de aldeias, com as aglomerações da população em torno do
campo (SPOSITO, 2005, p.28).
30
A estruturação das aldeias medievais se dava, fisicamente, pela forma
arredondada e cercada por muralhas; em seu centro havia um núcleo onde se
concentravam as atividades comerciais e religiosas, as chamadas praças abertas (idem,
p.29). Tal formato, na verdade, era um reflexo do fato de que, no período da Idade
Média, não havia o caráter urbano, pois que o meio rural voltava a ser base das relações
sociais e de produção.
Porém, um novo movimento se verifica no campo, a partir do século XIII, ainda
no período Medieval: durante os séculos seguintes, mudanças no contexto social e
econômico na Europa, como “[...] a libertação de certas cidades do domínio feudal, a
fuga dos servos para estas cidades, o estabelecimento das ligas de cidades comerciais e
o surgimento de uma nova classe de comerciantes e banqueiros [...]” (SPOSITO, 2005,
p.23), tornaram evidente o início da recomposição da economia urbana e a emersão de
um novo modo de produção, o capitalismo. A legitimação desse novo sistema é que irá
configurar com maior intensidade a divisão do trabalho nos centros urbanos; também irá
prescrever as demais modificações nas relações sociais e no desenvolvimento
econômico, conforme se verá a seguir.
1.1.1 A estruturação das cidades a partir do capitalismo: a
industrialização acelera a urbanização
O contexto que pode ser visto como base na sociedade para descrever a transição
do sistema feudal para o capitalismo se dá, de acordo com o autor Singer, a partir da
reflexão sobre o papel exercido pela chamada burguesia comercial. Esse segmento era
formado pelas classes de comerciantes e banqueiros e começava a ganhar espaço no
período que irá se constituir como o fim da Idade Média. Essas classes se uniam em
vista de sua expansão frente às demais, como a dos mestres de ofício – os quais
detinham o conhecimento das técnicas de produção de artefatos que eram produzidos e
comercializados naquele período. O fortalecimento da burguesia se dava no sentido de
constituir e firmar a divisão do trabalho como aspecto essencial das relações sociais;
com isso, verificava-se uma transformação das relações de produção, dentro da própria
cidade. Essas relações deixariam de se dar com a apropriação do produtor sobre todos
os recursos necessários para a produção (como acontecia com o produtor artesanal, por
exemplo, o qual detinha a técnica e os recursos para sua produção e, por isso, agia de
modo independente), passando agora à separação, de início, parcialmente, do produtor
31
de suas condições objetivas de exercer as atividades. De acordo com essa lógica, os
meios de produção deveriam ser adquiridos essencialmente pela burguesia, a qual teria
o controle sobre todo o processo de produção, enquanto os outros segmentos da
sociedade participariam desse processo, realizando a própria produção.
Assim, a burguesia comercial, de acordo com o autor, começa a se desenvolver a
partir do excedente da produção artesanal. Porém, há um conflito de interesses, pois os
manufatureiros tendiam a monopolizar o ensinamento de suas técnicas de produção, e
isso gerava um entrave para a expansão dos capitais que os burgueses esperavam.
Entretanto, com a liberalização da mão de obra do campo, através da comercialização
dos produtos nesse setor, aumentava o número de pessoas disponíveis para as
manufaturas; essas vão se especializar na fabricação de produtos em larga escala. Não
era necessário qualificação nem dispor de instrumentos para trabalho, pois esses eram
fornecidos pelos investidores ou “fabricantes”. Tem-se aí o pontapé para a
especialização do que seria conhecida mais tarde como a indústria.
Reconhece-se, a partir desse contexto, a formação daquilo que é concebido como
luta de classes, no que diz respeito à redefinição dos papéis de seus integrantes e suas
relações dentro da dinâmica da cidade. Essa redefinição se dá, segundo Singer, a partir
da utilização da produção como algo instituído de valor de troca: aqueles que atuavam
como produtores do campo são trazidos para a cidade e dão novo vigor à produção
nesse local; porém, não são proprietários de suas condições de produção e vendem sua
força de trabalho para aqueles que são dominantes dos meios produtivos. Dessa forma é
que aqueles que possuem os meios de produção são capazes de transformar o produto
das atividades em riqueza, pois comercializam a mão de obra com pagamentos mínimos
pelas suas atividades, exigem a produção constante de produtos e, consequentemente,
começam a ter ganhos em larga escala.
Dessa maneira, a expansão da manufatura e da divisão do trabalho trouxe as
condições necessárias para que o investimento do novo modo de produção ocorresse no
instrumento de produção e não na matéria-prima. O emprego de uma grande quantidade
de pessoas como assalariados para acelerar o processo produtivo caracterizavam o novo
“produtor” (SINGER, 1990, p.24): aquele que recebia do investidor os instrumentos
para a produção, mas que não os tinha como sua propriedade. Esse “produtor” é agora
submetido ao “fabricante” e este tem como meta “[...] a valorização do seu capital, tanto
em sua forma fixa como circulante” (idem, p.24), que busca o lucro em suas produções,
32
a partir do uso capital vivo (força de trabalho – produtor) e do capital constante
(máquinas). Assim, afirma-se que “[...] o resultado desse processo – a moderna unidade
de produção, a fábrica – é necessariamente um fenômeno urbano” (idem, p.24), já que
esse se dá também com a aglomeração da população nas cidades e aumenta essa
aglomeração com a constante saída das pessoas das atividades de extração direta que se
dão no campo.
Até mesmo o campo sofreu os impactos da industrialização, pois passou a ser
um local de atividades especializadas, perdendo sua força no que diz respeito à
autonomia para subsistência. O camponês passou a ser também um consumidor dos
produtos industriais, enquanto os donos das indústrias ganhavam novas demandas de
seus produtos. O autor Singer ainda afirma que “[...] a cidade ficou sendo o lugar no
qual se concentra não apenas o excedente alimentar produzido no campo, mas toda
produção agrícola a qual é comercializada, transformada industrialmente e, em parte,
redistribuída ao campo a partir da cidade”. (SINGER, 1990, p.27). Isto é, do aspecto
complementar, o qual se encontrava nas suas primeiras formações, a cidade passou a ser
o ponto essencial de toda a reprodução social. A reprodução agrícola, nesse sentido, não
ficou relegada à extinção, mas foi reorientada em sua função, com o uso de recursos que
aumentavam cada vez mais sua produção (apesar de essa reorientação ter causado
também o desemprego da massa ainda existente nesses locais). A cidade também se
transforma no local de produção de produtos, mas não a partir da extração, como no
campo, e sim da transformação de bens primários, vindos deste. A criação ou
transformação de bens primários em objetos, seja para uso ou para troca, é fundamental
para a constituição da economia que faz parte da dinâmica das cidades.
Em relação ao aspecto político nesse novo modo de produção, afirma-se que
Em contraste com a cidade comercial, que impunha ao campo o seu
domínio político, para explorá-lo mediante uma intricada rede de
monopólios, a cidade industrial se impõe graças a sua superioridade
produtiva. A burguesia industrial toma o poder na cidade em nome do
liberalismo e varre para fora do cenário a competição das formas
arcaicas de exploração. O capital comercial perde seus privilégios
monopolísticos e acaba se subordinando ao capital industrial, reduzido
ao papel de mero intermediário. (SINGER, 1990, p.25)
Tal processo agiu em conjunto com as revoluções que culminaram com a
derrubada do Antigo Regime político, constituído pelo Absolutismo (o poder
33
centralizado na figura do Rei), e a supremacia do parlamento à monarquia. Esse novo
sistema político favorecia o ideal liberal, o qual preconizava a expansão das ações que
fortaleciam o mercado capitalista industrial. Dessa maneira, a cidade tem papel
fundamental no que diz respeito a ser vista como um espaço apropriado para a expansão
do capitalismo moderno, abarcando também todas as consequências desse modo de
produção nas relações econômicas, políticas e sociais. Os avanços e crises da dinâmica
da cidade podem ser analisados como produtos dos ciclos de expansão e crise do
capitalismo. O processo de acumulação de capital, portanto, é que será o eixo de
estruturação das cidades.
A sociedade também se reorganizava mediante as transformações ocorridas com
a chamada Revolução Industrial – fenômeno que caracterizou a indústria como símbolo
da consolidação das relações baseadas no capitalismo de cunho industrial, a partir do
século XVIII. O próprio espaço da cidade também se adaptava a essa nova dinâmica, já
que a concentração da população em larga escala nas cidades acelerava o fenômeno da
urbanização, atraía a instalação da indústria, e esta concentrava um maior número de
pessoas nos centros urbanos. A organização social nas cidades, portanto, tem como
reflexo a organização espacial.
Ao detalhar o movimento das cidades, destaca-se que “[...] é a troca monetária
que finalmente torna possível a ampliação da divisão social do trabalho” (SINGER,
1990, p.15). Com a cidade caracterizada como sendo um espaço originário da
“sociedade de classes” (SINGER, 1990, p.13), percebe-se também que a concentração
dessas classes se dava de forma específica nos diversos pontos da cidade. Um dos
aspectos evidentes na expansão do modo capitalista, presente na estruturação das
cidades, era a apropriação do solo urbano pelo capital (CURY, 2003, p.8). Tal fato foi o
que deu sentido à distribuição do espaço e sua utilização e que, inclusive, associou o
fenômeno da urbanização à industrialização, na medida em que a indústria ampliava o
uso de espaços urbanos e, ao mesmo tempo, a organização acenava a presença de um
número maior de indústrias. Em relação à organização da população no espaço urbano,
essa se dava de acordo com o poder econômico, com a capacidade de pagar pela
moradia em espaços melhor situados e estruturados na cidade; para a população pobre,
porém, as opções eram as periferias, que além de serem distantes da área central da
cidade, tinham pouca disponibilidade de recursos básicos (infraestrutura de água,
saneamento e energia elétrica, por exemplo) e até mesmo de qualidade para locomoção
34
dessa população (sistema de transporte). A centralização do capital, de acordo com Karl
Marx (MARX, 1996, p.286), trazia tal realidade, em que o progresso da riqueza,
provinda da circulação do capital, promovia uma modernização dos centros urbanos,
com a criação de bancos, lojas, demolição de prédios antigos e alargamento de ruas para
a passagem dos meios de transporte luxuosos. Os pobres, por sua vez, eram desalojados
e expulsos para locais piores e concentrados com a população miserável que aumentava
cada vez mais, devido à expansão do fluxo de capital e da especulação imobiliária.
Somava-se a essa situação o agravamento de doenças que se espalhavam nos
aglomerados pobres e que eram temidas até pela burguesia – e, em relação a isso, a
criação de leis e o controle sanitário passaram a ser correntes no processo de expansão
das cidades.
Verifica-se que tais condições de moradia se complementavam pelas precárias
condições de trabalho impostas à chamada classe operária, as quais ultrapassavam os
limites humanos, com jornadas exaustivas de até 16 horas; o trabalho envolvia,
inclusive, a participação de mulheres e crianças, em vista da produção em larga escala.
Ao mesmo tempo, a população se via obrigada a aceitar tal situação de exploração, visto
que o trabalho assalariado tornou-se condição de sobrevivência nas cidades, no modo de
produção capitalista. Dessa maneira, o espaço urbano tornava-se também o espaço de
conflito entre classes, as quais objetivavam, no caso dos trabalhadores, a concessão de
benefícios mínimos para sobrevivência ou obtenção de privilégios para aumentar seus
lucros, no caso dos proprietários dos meios de produção. As ações governamentais,
nesse sentido, davam-se em caráter de intermediação desses conflitos, muito embora
agissem conforme os interesses da burguesia, subsidiando-a economicamente.
Já entre os séculos XIX-XX, o aprimoramento de técnicas a partir de descobertas
nas áreas química, elétrica, metalúrgica, farmacêutica e de transportes acelerou o
processo de expansão da economia capitalista, tornando-se, em escala mundial, a “lei”
que passava a reger todos os aspectos do funcionamento das relações sociais de
produção, políticas, entre outras. Era importante a descoberta não só de novas técnicas
que ampliassem a produção, mas também a introdução de novas estratégias que
poderiam expandir o mercado de consumo e que garantissem o fato de nem mesmo os
movimentos que buscavam se contrapor a tal expansão – por ela não contemplar a todas
as pessoas – intervirem nesse modo de produção e de relação social. Tudo isso
influenciava diretamente na “fisionomia” da cidade, que se modificava, adquirindo
35
novos contornos em suas demarcações (como a expansão das ruas, ampliação do
número e formato dos prédios e construção de locais públicos – as praças – e do
redesenho das grandes residências). A chegada da energia elétrica para uso doméstico,
já no final do século XIX, deu novo brilho e vivacidade aos contornos da cidade que,
cada vez mais, tornava-se um local atrativo, por conter nela tudo aquilo que significava
o progresso da humanidade. Fazer parte desse progresso, ter condições de acessar tais
benefícios era a forma de se fazer parte da cidade.
1.1.2 A urbanização a partir do século XX
Durante o século XX, de maneira particular, tais avanços ocorreram de forma
acelerada, com o aprimoramento e consumo mais expressivo de produtos (como os
veículos automotores, por exemplo) e do avanço na produção, agora realizada em série,
a partir do sistema conhecido como fordismo. Esse sistema visava difundir uma
produção em massa para que o consumo também assim o fosse, e de fato chegou a sêlo, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, nos chamados “anos de ouro” no
capitalismo. O fordismo não somente modificou a estratégia de produção de
automóveis, mas de todas as grandes produções industriais; enfatizou a necessidade de o
operário não precisar ter qualificação para exercer as atividades. Trouxe também para o
âmbito das relações sociais a cultura de massificação do consumo, de modo que as
pessoas que pouco ganhavam com o trabalho operário, ao adquirirem os diversos
produtos expostos para consumo, colocavam novamente o dinheiro nas mãos dos
investidores do capital.
Durante esse período e nas décadas seguintes, percebe-se um novo delineamento
nas cidades, não só em seu aspecto físico como também nas relações sociais. A
construção de mais estradas para interligar territórios e seu aprimoramento com os
asfaltos e sinalizações, para melhor circulação de veículos; a construção de grandes
centros empresariais, edifícios modernos; novos contornos na localização dos bairros,
dos monumentos, dos serviços. O surgimento e evolução da tecnologia e da robótica
começavam a acelerar o processo de chegada das informações, culminando na
modernização dos meios de comunicação, os quais proporcionavam a chegada de
informações com maior rapidez e precisão. Isso também influenciava o contexto das
relações sociais, as quais se tornavam amplas, na medida em que possibilitava o contato
cada vez maior entre os homens, entre povos. As cidades também se estendem em seus
36
limites e especificam seus acessos dentro delas; fragmentam-se em diversos espaços,
com a presença de vários segmentos sociais, culturais. As indústrias vão sendo
acrescidas dos sistemas financeiros que funcionam para movimentar a economia; ao
mesmo tempo, porém, continuam crescendo as disparidades sociais, as revoltas
populares e contestações até mesmo por parte de segmentos jovens, que ganham
destaque em várias partes do mundo, os quais delatam os malefícios sociais, fruto do
avanço de interesses privados.
O mundo foi palco, no cenário do século passado, em meio à busca por uma
sociedade dita igualitária – com a tentativa frustrada da difusão do comunismo nos
países – da definição dos centros de poder. Nesses locais, através de suas metrópoles,
foi se constituindo uma soberania financeira, política, social que atualizou o esquema de
dominação, sob o capitalismo, de umas nações sobre outras. Nas últimas décadas é
possível contemplar uma realidade mundial ausente de fronteiras – no acesso a todos os
países de toda a novidade tecnológica, informacional, de acesso a serviços – na
chamada globalização. O mundo é denominado, dessa forma, como “aldeia global”,
onde todos, de certa forma, compartilham dos mesmos avanços, onde as sociedades se
diferenciam apenas pela localização geográfica, mas se tornam iguais em termos de
necessidades de bens e serviços. Há uma “socialização da sociedade” (LEFEBVRE,
2001, p.91), ressaltando, conforme o autor, o aspecto “reformista” dessa socialização,
no sentido de que tais avanços se dão em vista da manutenção do sistema vigente e à
custa de uma maior exploração e segregação da sociedade, a partir do que se pode
consumir.
As cidades, nesse sentido, são um reflexo do avanço e do contraste social. São
referência para o homem do local o qual proporciona a satisfação de seus desejos. Ao
ressaltar a busca do homem por “[...] lugares qualificados, lugares de simultaneidade de
encontros, lugares onde a troca não seria tomada pelo valor de troca, pelo comércio e
pelo lucro [...]” e de “[...] um tempo desses encontros, dessas trocas” (LEFEBVRE,
2001, p.104), enfatiza-se a necessidade do homem pela vida urbana, por tudo aquilo
que hoje a cidade oferece. Ao mesmo tempo, porém, uma parcela considerável da
população é atingida pela falta de meios para satisfazer tais necessidades, já que essa
sofre com a falta de acesso a bens essenciais que os fazem usufruir da cidade. Mesmo
com o crescimento da tecnologia nas técnicas de trabalho, dentre tantos outros fatores, o
desemprego cresce em larga escala e o trabalho precário é evidenciado, tornando maior
37
o número de pessoas que não dispõem de recursos até mesmo para sobreviver nas
cidades. Não há alternativas concretas, e, assim,
O resultado desse processo tem sido o agravamento da exploração e
das desigualdades sociais dela indissociáveis, o crescimento de
enormes segmentos populacionais excluídos do ‘círculo de
civilização’, isto é, dos mercados, uma vez que não conseguem
transformar suas necessidades sociais em demandas monetárias. As
alternativas que se lhes restam, na ótica oficial, são a ‘violência e a
solidariedade’. (IAMAMOTO, 2010, p.123)
Dessa forma, presencia-se um verdadeiro caos nas relações sociais na
urbanidade, as quais são baseadas de maneira evidente, conforme a autora, na
“banalização do humano” (idem p.125), em meio à denominação que a autora resgata de
Marx como “era do capital fetiche” – o sistema capitalista que favorece a circulação do
capital através do mercado financeiro, dos grandes negócios realizados por parte das
instituições e empresas multinacionais, a partir dos créditos, empréstimos e juros na
“relação do dinheiro consigo mesmo” (IAMAMOTO, 2010, p.125). Nesse contexto de
circulação do capital, a “descartabilidade e indiferença perante o outro” são as bases das
relações sociais que, de acordo com a autora, “[...] se materializa na naturalização das
desigualdades sociais e na submissão das necessidades humanas ao poder das coisas
sociais – do capital dinheiro e de seu fetiche” (idem, p.125). E ainda, a indiferença
quanto à situação socioeconômica de um número crescente de homens e mulheres tem
levado ao aumento da situação de pauperização desses nas cidades do mundo; é certo,
portanto, que esse quadro expõe o movimento de degradação do ser humano que está
por trás do que se considera como avanço ou amadurecimento das relações no chamado
capitalismo maduro.
E assim, como produto da história e continuidade do abismo que se forma dentro
da sociedade, a cidade é local da segregação social: aquele que possui recursos
financeiros paga por lugares melhores, agora mais isolados do contato com o restante
da sociedade. O isolamento social, que é produto de uma cultura de individualismo,
também é a saída para se proteger do descontrole causado pela violência, pela desordem
existente nos espaços. O consumismo, mais específico no atendimento das necessidades
individuais e mais forte como imposição para satisfação das necessidades, é uma das
peças que faz aumentar o contraste do acesso da sociedade aos bens e serviços. Na
cidade, portanto, percebe-se a extrema contradição entre desenvolvimento tecnológico e
38
privação e pobreza, onde “[...] o desenvolvimento econômico é descaracterizado e
bloqueado nos problemas sociais graves que gera, mais do que legitimado nos
benefícios socialmente exíguos que cria e distribui” (MARTINS, 2002, p.13). A
fragmentação do homem na contemporaneidade revela, portanto, além da dificuldade
mais evidente da inserção dele no mercado de trabalho, o fato de que, para grande parte
da população, permanecer na cidade não se dá por uma necessidade apenas de usufruir
ou apropriar-se daquilo que ela contém, mas daquilo que ela pode oferecer para garantir
palmo a palmo a sobrevivência.
1.2 A urbanização no Brasil: aspectos históricos e contemporâneos
Tomando-se o conceito abordado até aqui acerca da formação das cidades, podese considerar que o Brasil foi, desde sua formação inicial e durante séculos, um país
considerado originário do campo. Isso tanto por sua economia se dar a partir da extração
direta e cultivo de produtos da natureza, quanto por sua população, que se encontrava
nos espaços agrários, desenvolvendo atividades nesse meio. Infere-se que durante o
período colonial (que vai até o século XVIII), “[...] toda a nossa história é a história de
um povo agrícola, é a história de uma sociedade de lavradores e pastores. É no campo
que se forma a nossa raça e se elaboram as forças íntimas de nossa civilização”.
(SANTOS, 2005, p.19). Nesse sentido, as relações sociais também são fundamentadas a
partir da vida no campo, com aqueles que dependem das atividades desse meio para sua
sobrevivência e, por isso, submetem-se a trabalhos para aqueles que detêm as terras, as
propriedades rurais.
Porém, “[...] é a partir do século XVIII que a urbanização se desenvolve e ‘a
casa da cidade torna-se a residência mais importante do fazendeiro ou do senhor de
engenho, que só vai à sua propriedade rural no momento do corte e da moenda da
cana’” (SANTOS, 2005, p.21). Destaca-se aí o surgimento das primeiras cidades
brasileiras, na dinâmica de produção do excedente por parte do campo para sustentar
esses novos espaços. Os senhores de engenho tornam-se os responsáveis pela
administração do espaço urbano, que exporta a matéria-prima produzida no campo – à
custa de trabalhos exaustivos de escravos e trabalhadores em geral –, enquanto importa
recursos e materiais para a estruturação das cidades. Por isso, a sociedade começava a se
transferir para os centros urbanos, ainda que em número reduzido, já que continuava
concentrada no campo.
39
É no período de passagem política do Império para a República, no século XIX,
que o Brasil começava a desenvolver seu processo de industrialização, trazendo
recursos para implantação das primeiras fábricas nas cidades e, assim, demandava um
maior contingente de mão de obra. A concentração populacional começava a se
intensificar, com a substituição do regime escravo pelo trabalho livre, no qual era
necessária a presença do trabalhador nas cidades. Os escravos que eram libertos, mas
não eram aproveitados nas atividades do campo, acabavam migrando para a cidade;
porém, muitas vezes não eram incluídos em atividades nesse local e acabavam
aglomerando o espaço urbano que se formava. Assim, a presença de pessoas
perambulando pelas ruas, em precárias condições de vida, que se encontravam fazendo
bicos, mendigando ou mesmo à espera de alguma chance de emprego, já crescia em
meio ao desenvolvimento dos centros urbanos no país.
Contudo, mesmo aqueles que eram assalariados não escapavam às limitadas
condições de vida. Na verdade, a substituição do trabalho escravo pelo assalariado
trouxe relativa mudança nas relações sociais: os trabalhadores não eram mais “posse”
dos senhores de engenho – poderiam ter sua casa, sua individualidade, podiam “vender”
sua força de trabalho para quem quisessem, por exemplo. Porém, estavam sujeitos às
relações de mando daqueles que eram os proprietários dos meios de produção, os quais
determinavam também a concentração de bens, de decisões políticas e administrativas,
baseadas em interesses pessoais. Dessa maneira, pode-se dizer que, “[...] esta passagem
[da economia agrária para a industrial] ocorre sem uma ruptura de modelos, ou seja, o
modelo urbano-industrial se constitui como modelo hegemônico sem alterar as
estruturas originárias do modelo anterior, mantendo uma estrutura agrária baseada no
latifúndio e na concentração de renda [...]” (BOTEGA, 2007, p.65-66).
Diante dessa realidade, observa-se que, enquanto no início do período industrial
(entre 1890 e 1920), a população nas cidades chegava a 10,7% do total, no período entre
1920 e 1940, esse número chegou a 31,24%. (SANTOS, 2005, p.25). Esses indicadores
atestam a presença cada vez maior da população concentrada no espaço urbano que se
formava, o que era fundamental para o desenvolvimento da economia, apesar de trazer
sequelas para o desenvolvimento social. Enquanto expandiam-se os índices de
exportação, crescia a precariedade da acomodação de pessoas nos centros urbanos,
instalando-se em cortiços e espaços mal elaborados, próximos aos centros industriais,
sem condições adequadas de saneamento. Os baixos salários que impossibilitavam o
40
consumo do mínimo necessário, além da falta de outros serviços necessários à saúde e
bem-estar do trabalhador, faziam parte do cenário urbano brasileiro já nas primeiras
décadas do século XX.
A partir dos anos 1940, a industrialização, enquanto “processo social complexo”,
(SANTOS, 2005, p.30) assume no país, de fato, o caráter de propulsor do processo de
urbanização, na medida em que era necessário o crescimento demográfico, tornando-o
integrado ao processo de consumo e de relações. Afirma-se, dessa forma, que “[...] uma
urbanização cada vez mais envolvente e mais presente no território dá-se com o
crescimento demográfico sustentado das cidades médias e maiores [...]” (idem, p.30).
Nessa dinâmica, é cada vez maior e mais rápido o crescimento populacional nas décadas
seguintes. Todavia, a ocupação acelerada e desordenada do espaço urbano faz do
processo de urbanização no Brasil uma ampliação dos problemas já vivenciados desde o
início de seu processo. Não há, portanto, um controle ou busca suficiente de melhoria
para todos os habitantes, para organizar a ocupação nos espaços existentes nas cidades.
Dessa forma, “[...] a lógica de subordinar a política urbana e habitacional aos interesses
da reprodução das relações capitalistas de produção tem orientado a ação do Estado”
(BOTEGA, 2007, p.72). Ainda que, nos anos 1970-1980, os planos habitacionais
oferecidos pelo Estado tenham sido criados em vista de, entre outras razões, organizar o
espaço de moradia da classe trabalhadora, as condições de pagamento das residências
oferecidas ainda estavam fora da realidade financeira da grande parte da população que
estava à margem da participação na economia brasileira.
Na contemporaneidade, a ocupação do espaço urbano brasileiro pode ser
verificada na assertiva de que:
O espaço de uma grande cidade capitalista constitui-se, em um
primeiro momento de sua apreensão, no conjunto de diferentes usos
da terra justapostos entre si. Tais usos definem áreas, como o centro
da cidade, local de concentração de atividades comerciais, de serviços
e de gestão; áreas industriais; áreas residenciais distintas em termos de
forma e conteúdo social, de lazer e, entre outras, aquelas de reserva
para futura expansão. Este complexo conjunto de usos da terra é, em
realidade, a organização espacial da cidade ou, simplesmente, o
espaço urbano, que aparece assim como espaço fragmentado.
(CORRÊA, apud SANTOS, 2008, p.180).
Destaca-se que o espaço urbano brasileiro é ocupado de maneira tal que é
possível identificar a atuação nesse conforme interesses e funcionalidades: o
41
desenvolvimento do comércio a partir de sua concentração no centro para circulação e
consumo mais favoráveis; as áreas residenciais e de lazer são mais afastadas do centro,
porém estruturadas de acordo com o nível econômico da população que habita nelas. E
ainda, os espaços considerados de circulação e uso público (ruas, calçadas, praças, etc.)
facilitam seu usufruto e o acesso de um lugar a outro. O espaço urbano – considerado
como espaço fragmentado – possui em sua organização a finalidade econômica,
restringindo o acesso de determinados espaços apenas àqueles que possuem condições
para “circular” nele. Dessa forma, a condição econômica é o que possibilitará a
presença das pessoas nos espaços mais favoráveis existentes nas cidades, produzindo aí
também uma segregação socioespacial.
Nesse movimento, faz-se menção à formação das chamadas favelas, não se
tratando de um fenômeno recente e se agravando na atualidade. Afirma-se que “[...] é na
produção da favela, em terrenos públicos ou privados invadidos, que os grupos sociais
excluídos tornam-se, efetivamente, agentes modeladores, produzindo seu próprio espaço
[...]” (CORREIA, 1989, p.30). Essa ocupação, que inúmeras vezes se dá em locais
considerados inadequados para qualquer construção, como nas encostas, por exemplo, é
mais uma forma de buscar sobrevivência no meio urbano. Denota-se, dessa forma, que
“[...] a exclusão e uma sociedade concentradora de renda serão as marcas de um
processo de urbanização brasileiro, onde os olhos dos investimentos estão voltados
somente para o capital imobiliário” (BOTEGA, 2007, p.66).
Por isso, o espaço urbano “[...] expressa muito mais que uma simples localização
e arranjo de lugares; expressa um modo de vida” (CAVALCANTI apud SANTOS,
2008, p.181). Sendo assim, até mesmo o pertencimento social, ainda que seja a uma
classe social considerada inferior em termos de aquisição econômica, será determinado
a partir de seu pertencimento a um espaço ocupado, mesmo sendo um local onde se
encontre uma situação degradante para uma acomodação. A distribuição da população
nos espaços urbanos expressa, portanto, o contexto de desigualdades a que a sociedade
está submetida dentro da dinâmica capitalista, sobretudo na economia brasileira.
Também as mazelas existentes como consequência desse fato não se encontram
somente em um espaço ou em outro, mas no contexto social do país como um todo,
onde “o Brasil está estampado em suas cidades” (SANTOS, 2008, p.185). Dessa
maneira, observar a realidade de um dado espaço urbano torna-se relevante como forma
de conhecer mais de perto o contexto sob o qual o país está em movimento.
42
2
CAPÍTULO
2
-
ESPAÇO
PÚBLICO,
A
RUA
E
SEUS
MORADORES
2.1 O conceito de espaço público
Neste ponto, pretende-se abordar o espaço público, visto como parte integrante
da vida urbana, desde sua formação na história e sentidos na atualidade, para, em
seguida, destacar o espaço da rua, em seus significados, usos e apropriações por parte da
população. Convém, antes de tudo, para uma melhor compreensão da abordagem,
desmembrar o termo e estudar aquilo que se entende nas noções de espaço e de público.
Para um exame atento sobre aquilo que se define como espaço, é necessário,
antes de tudo, considerar a importância de se compreender esse complexo, pois “[...] o
espaço é uma produção social. É categoria representável. É categoria de análise
científica” (RODRIGUES, 1998, p.75). É uma categoria a ser vista basicamente sob
dois aspectos: do ponto de vista do ambiente, em que se define pela “articulação da
sociedade com a natureza em todas as esferas e escalas” (idem, p.75); e do ponto de
vista da atual divisão territorial do trabalho, visto em escala local, regional e
internacional, pois “[...] a organização local da sociedade e do espaço reproduz a
ordem internacional” (SANTOS apud RODRIGUES, 1998, p.75 – grifos da autora). A
discussão acerca daquilo que é tido como espaço é comum na Geografia, uma vez que
essa é uma de suas principais categorias de análise; mas também filósofos buscavam
apreender, desde a Antiguidade, tal conceito, como forma de relacioná-lo à
compreensão das ações dos indivíduos. A sociologia também faz referência à noção de
espaço, na busca de captar a relação existente entre ele e as transformações sociais
correntes.
Partindo da noção preliminar de espaço, apropriada pela Matemática, como
distância entre dois pontos ou a área ou o volume entre limites determinados, pode-se
determinar, inicialmente, que o espaço é percebido a partir dos limites que lhes são
colocados. Essa noção é também utilizada por ramos da Geografia física, como forma
de delimitar seu objeto de estudo. Porém, ao considerar a presença do homem para a
definição do espaço, este deixa de ter uma definição estática para tomar uma noção
dinâmica: passa ser definido como “[...] aquilo que é dado a partir dos objetos no
mundo” (KANT apud CUNHA, 2008, p.183); ou ainda, que a noção do “ser-nomundo” está ligada à temporalidade e esta à espacialidade (HEIDEGGER apud
43
CUNHA, 2008, p.183). Tais reflexões trazem a ideia de que o homem em movimento é
quem contribui para a concepção do espaço. É possível afirmar, inicialmente, que é
chamado de espaço o local onde o homem está presente e só é assim percebido a partir
dessa presença. Mas também, é preciso considerar a existência de demais objetos com
os quais o homem deverá se relacionar, que irão complementar essa noção. Por isso,
também é que “[...] o espaço é resultado da ação dos homens sobre o próprio espaço,
intermediados pelos objetos naturais e artificiais” (SANTOS, 1988, p.25), sendo os
objetos naturais a própria natureza já presente, independente da ação humana, e os
objetos artificiais existentes a partir da ação primeira do homem que transforma a
natureza. Tal definição amplia o conceito de espaço a partir da ação do homem sobre
aquilo que se encontra existente (objetos naturais e artificiais).
Ainda acerca da noção de espaço, considera-se que há uma transformação social
dele quando há o relacionamento de vários indivíduos com aquilo que está disposto para
tal – daí a inferência a espaço social. E ainda, verifica-se uma constituição das relações
sociais que são vivenciadas nesse local transformado. Para complementar essa reflexão,
afirma-se ainda que:
Como qualquer realidade social, o espaço não é uma entidade apenas
objetiva; sua objetividade é lida (inter) subjetivamente, sua
materialidade é dotada de significações específicas para cada
indivíduo (subjetividade) mas que são, também, em certa medida,
compartilhadas por vários indivíduos (intersubjetividade). Palco
material e objetivo das relações sociais, o espaço, contexto da
experiência de sujeitos cognoscentes organizados em sociedade, é, em
certa medida, “construído” intersubjetivamente (...) (SOUZA, 2007,
p.22-23).
Por essa razão é que as discussões atuais partem também da noção de espaço
como “[...] um conjunto de formas contendo cada qual frações da sociedade em
movimento. As formas, pois, têm um papel na realização social” (SANTOS, 1988,
p.10). E ainda: “[...] o espaço inclui, pois, essa ‘conexão materialística de um homem
com o outro’[...]" (SANTOS, 2006, p.218). Dessa maneira, o espaço se define como o
local da relação entre os homens, nessa natureza transformada e para a transformação
dela.
A bibliografia corrente sobre o tema traz a distinção entre espaço social e espaço
geográfico, sendo o primeiro considerado como produto das relações sociais e que,
44
juntamente na relação com a natureza formaria o segundo. Assim, “[...] o espaço social
é uma dimensão do espaço geográfico e contém a qualidade da completividade. Por
causa dessa qualidade, o espaço social complementa o espaço geográfico”
(FERNANDES, 2006, p.4). Dessa forma, é possível atribuir a maneira pela qual são
concebidas as relações sociais à classificação do espaço como sendo unitário ou
fragmentado, harmonioso ou cercado de conflitos. Essas relações vão, assim,
caracterizar o espaço em que elas ocorrem.
Concebe-se, por isso, que o espaço expressa até a própria subjetividade do
homem. Ele passa a tomar o espaço como sendo “seu”, dando-lhe uma identidade
particular, caracterizando-o. Usa-se agora o nome lugar como forma de denominar tal
movimento. Assim, o lugar “[...] se constitui quando atribuímos sentido aos espaços, ou
seja, reconhecemos a sua legitimidade para localizar ações, expectativas, esperanças e
possibilidades” (CUNHA, 2008, p.184). Também se afirma que a referência a lugar se
dá em um conceito “[...] mais elevado: materialidade dotada de significado, parte da
experiência humana” (SOUZA, 1997, p.23). Portanto, falar sobre o lugar de alguém é
falar das marcas, daquilo que identifica uma pessoa, uma vez que o lugar passa a ser
dotado de valores individuais. Argumenta-se, além disso, que
No lugar – um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas,
firmas e instituições – cooperação e conflito são a base da vida em
comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se
individualiza; e porque a contiguidade é criadora de comunhão, a
política se territorializa, com o confronto entre organização e
espontaneidade. O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao
mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações
condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões
humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais
diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade.
(SANTOS, 2006, p.218)
O homem, dessa forma, tem a necessidade de firmar essa marca, ter essa
identidade, pois “[...] num mundo do movimento, a realidade e a noção de residência
[...] do homem não se esvaem (SANTOS, 2006, p.222). Quando, ao contrário, ele não se
sente parte de algum local ou não colaborou com sua construção ou formação, sente-se
como se não tivesse uma referência e buscará dar uma feição característica sua a algum
espaço. O autor Milton Santos também reflete que, em relação a lugar, as noções de
45
espaço e tempo se relacionam, numa perspectiva de se atribuir significação própria a
este.
Nesse sentido, reflete-se que “[...] os lugares são preenchidos por subjetividades
[...]. Quando nossa subjetividade atribui sentido aos lugares, eles se tornam parte de nós
mesmos. Eles constroem nossa história e neles deixamos parte de nós” (CUNHA, 2008,
p.185). Assim, a definição de lugar é associada, basicamente, ao valor significativo.
Cabe, no entanto, frisar que tal noção está aqui pontuada a título de esclarecimento do
conceito abordado e não se pretende utilizá-la como categoria para o presente estudo,
pois, de acordo com o que foi visto sobre a noção de lugar, este exige um desejo de se
atribuir um significado a determinado local, e isso não corresponde à linha de
abordagem na qual se baseia esta pesquisa.
Há ainda outro conceito, o de território, que difere do sentido de espaço e lugar.
O território é assim denominado em referência às relações de poder, ao aspecto político.
É o espaço conquistado para ser ocupado, por meio do confronto de forças. Assinala-se
que “[...] o território é, assim, um espaço mediado pelas representações construídas por
um determinado grupo ao estabelecer seu poder frente a outro, e que se apropria do
espaço como forma de sua expressão e projeção” (LOPES apud CUNHA, 2008, p.185).
A caracterização do território é, portanto, a apropriação de espaço como maneira de
expressar o poder político. Afirma-se ainda que o território tanto pode ser entendido no
sentido “concreto”, como no sentido “imaterial” (FERNANDES, 2006, p.6), sendo esse
último referente àquilo que faz parte do conhecimento, do pensamento, etc., assim, “[...]
os territórios se movimentam e se fixam sobre o espaço geográfico” (idem, p.6).
Nesse sentido, é possível a relação entre as denominações de espaço, lugar e
território, muitas vezes tidas como sinônimos, mas que representam movimentos
distintos quanto à ocupação e relação entre os homens, num dado plano: “[...] o espaço
se transforma em lugar quando os sujeitos que nele transitam lhe atribuem significados.
O lugar se torna território quando se explicitam os valores e dispositivos de poder de
quem atribui os significados” (CUNHA, 2008, p.185). O espaço trata-se de um conceito
mais amplo, que inclui as noções de lugar e território. Portanto, compreender essa
relação se faz necessário na medida em que se torna claro que o espaço, lugar e
território são imbuídos de uma dinâmica que envolve relações sociais, significados e
relações de poder e que o valor dado será de acordo com a atuação dos homens nesse
local.
46
Feitas as acepções acerca daquilo que concebe por espaço, cabe neste momento
trazer as reflexões sobre o que se considera como público. Na Antiguidade, as tarefas
que não tratassem das primeiras necessidades do homem constituíam a “esfera dos
negócios humanos” (ARENDT, 2007, p.34). A polis grega começava a vivenciar a
dinâmica da separação entre as atividades e o discurso, no qual o trabalho para a
subsistência não era visto com o mesmo status que o da participação dos momentos de
decisões, em que se utilizava o poder da persuasão. Esses momentos eram, inclusive,
uma experiência diferente da do lar, pois enquanto o discurso se dava entre iguais, na
casa havia uma hierarquia, onde o chefe exercia o poder dando ordens e imperava
também através do uso da violência; mas essas experiências eram complementares, no
sentido de que exercer o poder no lar era condição necessária para se participar dos
negócios do mundo.
A chamada “esfera da polis” (idem, p.40) formava-se como a esfera da
liberdade, no sentido de que não havia domínio do outro e que aqueles que tinham
acesso à polis eram vistos como iguais (algo que não era vivido na esfera privada, onde
se davam as relações de dominação). Portanto, “[...] ser livre significava ser isento da
desigualdade presente no ato de comandar e mover-se numa esfera onde não existiam
governo nem governados” (ARENDT, 2007, p.42). A autora, mais adiante, afirma ainda
acerca da formulação desses conceitos na Antiguidade, que viver unicamente uma vida
privada – a exemplo dos escravos e dos bárbaros – era não ser considerado inteiramente
humano, pois na esfera da polis é que ele pode ser quem realmente ele é, isto é,
demonstrar que não é um ser restrito apenas à satisfação de suas necessidades vitais,
satisfeitas no âmbito do lar.
Afirma-se ainda (ARENDT, 2007, p.55) que o surgimento da sociedade
absorveu as esferas do privado e da política (polis), e inclusive modificou o caráter de
algumas atividades; o trabalho passa a estar relacionado à esfera pública (o qual estava
relegado à esfera privada por se tratar de atividade que visava o sustento). Esse fato deu
uma importância ao caráter do trabalho de tal forma que tornou necessária sua expansão
e evolução. Dessa forma, “[...] o próprio processo da vida foi, de uma forma ou de
outra, canalizado para a esfera pública” (idem, p.55).
A partir desse processo de transformação das relações, a autora enfatiza a ideia
do que seria pensado como público, o qual se trata, a princípio, de tudo aquilo com
grande divulgação, sendo visto e ouvido por todos, mas não percebe aquilo que se
47
precisa ver de maneira minuciosa, o qual é “irrelevante”, irrisório, pois o público é
amplo demais, capta o geral. Cabe à esfera privada perceber e “se encantar” com o
irrelevante, apreendendo os detalhes daquilo que está “quase escondido”. Outro sentido,
de acordo com a autora, é de que o público é o próprio mundo, do que deve ser
conhecido e vivenciado por todos – mundo entendido numa concepção de negócios
realizados, aquilo feito pelo homem. Faz-se também uma crítica à sociedade atual
(ARENDT, 2007, p.68), a qual tem a esfera pública e privada prejudicada pelo
“fenômeno de massa da solidão” (idem, p.68), que descarta a importância das relações
sociais e tira a particularidade característica do ambiente privado.
A autora ainda destaca a reflexão acerca da propriedade privada, a qual, na visão
das sociedades antigas, consistia em afirmar que era preciso ter um lugar próprio e
privado e a necessidade de ter riqueza privada significava que o homem poderia exercer
atividades públicas sem se preocupar com a provisão privada. Já na sociedade moderna,
o termo propriedade passou a estar ligado à riqueza, e a falta de propriedade à pobreza;
os homens passaram a fazer parte da esfera pública, não porque já estariam em um
razoável nível de riquezas, mas “[...] exigiram dela proteção para o acúmulo de mais
riqueza” (ARENDT, 2007, p.74). Enfatiza ainda que na atualidade pode-se considerar o
desaparecimento da esfera pública, pelo fato de que a preocupação apenas com os
interesses privados se tornou premente, mesmo dentro daquilo que seria o âmbito
público.
Na atualidade, usa-se a referência ao que seja observado como público, de
maneira geral, para os eventos os quais são acessíveis a qualquer um, como os locais ou
casas públicas (HABERMAS, 1984, p.14). Já a referência, segundo o autor, ao termo
prédio público, por exemplo, amplia a definição do que seja apontado como público,
pois este, ao abrigar instituições do Estado, revela também a função deste, de ser “o
poder público” (idem, p.14), com o dever de promover o bem público aos cidadãos.
Também a referência ao que é público é utilizada para definir aquilo que seja a opinião
pública ou menção à própria população de uma maneira geral. Finalmente, aponta-se
para a noção de esfera pública, a qual se exemplifica através dos órgãos estatais ou
daqueles que servem para a comunicação em público, como as mídias (idem, p.15).
A partir das apreciações feitas sobre os termos propostos, é possível agora
referenciar a relação entre eles, através da noção de espaço público. Utiliza-se esse
termo quando se deseja designar “áreas de apropriação pública” (LAURENTINO, 2006,
48
p.307) e que podem se destinar a um grupo determinado (como escolas, hospitais, etc.),
ao acesso livre, para o lazer (como parques, ginásios) ou que servem para o movimento
e circulação de pessoas e veículos (praças, ruas); possui o caráter de pertencimento ao
Estado, com valor de uso (idem, p.307). Em uma concepção ligada às relações sociais, o
espaço público é visto como “[...] a estrutura espacial que faz a ligação entre as parcelas
privadas, facilitando a ligação entre elas; [...] um possibilitador de encontros impessoais
e civilizados, que obedece e respeita a lógica do mercado, visivelmente desigual”
(GALVÃO, RODRIGUES e TONELLA, 2009 p.1).
Infere-se também que a noção de espaço público está ligada à recepção de
aspectos relacionados ao todo e que “[...] acolhe inúmeras atividades orientadas por
interesses convergentes e divergentes, algumas exaltadas, outras camufladas” (NEVES,
1999, p.114). Nesse ponto, a autora enfatiza a questão das relações entre diferentes
universos, que investem no espaço público de determinadas formas, caracterizando o
uso do referido espaço: seja a ordem jurídica, que estabelece o caráter policial; seja a
ordem social, pela contribuição fiscal ou sendo sustentado pela instituição estatal; seja a
ordem mercantil, através da apropriação dos espaços públicos para o desenvolvimento
do comércio, impondo regras privadas para o uso desses espaços; seja pela ordem da
justiça social estatal, a qual realiza práticas de recolhimento e isolamento social
daqueles considerados miseráveis, dos espaços públicos (NEVES, 1999, p.115). A
autora ainda frisa que essas diversas ordens buscam prevalecer sobre as outras, no
intuito de se estabelecerem no espaço público, apropriando-se dele. Por isso se diz que
esse também é um espaço de conflitos.
2.2 A cidade capitalista e o espaço público
Ao compreender o contexto de formação das cidades, podemos verificar que, ao
longo da história, o espaço público ganhou importância, como valor para uso, a partir de
sua ocupação, delimitação, construção de edifícios, monumentos e demais
empreendimentos, além, é claro, do uso dele para circulação de pessoas, produtos,
serviços. Esse valor caracteriza o espaço público como um espaço social, na medida em
que as pessoas podem apropriar-se dele, no acesso irrestrito a todas as partes do
território urbano.
49
Porém, o mesmo percurso histórico demonstra, naquilo que se refere à
propriedade privada, a valorização do território urbano como instrumento de troca, em
que a demarcação de terrenos, espaços menores, tem a finalidade de servir de “moeda”
em negociações ou é vista como alvo de investimentos. Assim, o espaço que deveria ser
acessível a todos acaba sendo apropriado por alguns, em determinadas circunstâncias;
esse se fragmenta em camadas cada vez menores, e aqueles que detêm poder de compra
é que podem ter acesso privilegiado.
A respeito do processo de ocupação da população nas cidades, desde o período
da industrialização e, ainda, na atualidade, verifica-se o fato de que, enquanto parcelas
consideráveis da população precisam se amontoar em habitações irregulares e mínimas,
um pequeno número de pessoas adquire terrenos, mansões, luxuosos edifícios,
apropriando-se, através de negociações financeiras, de grande parte do território das
cidades.
Falar em apropriação de um espaço através do consumo significa atribuir uma
condição para que tal apropriação aconteça. Apropriar-se de algo significa,
fundamentalmente, tomar posse, tornar próprio, adaptar a, etc. E o ser humano se
apropria de algo através de seu corpo, em que este é o sinal de sua presença em
determinado lugar, com seus hábitos, suas ações que irão modificar ou transformar por
completo aquele espaço agora tomado. Historicamente, o homem foi se apropriando de
territórios, demarcando a sua presença, com a aglomeração de pessoas, com a
construção de habitações, o cultivo de plantas e animais, fazendo-se presente em
determinado local, tendo livre circulação por ele.
Numa sociedade que vive sob a égide do capital, em que a porta de entrada para
fazer parte da sociedade e usufruir de seus meios se dá pelo consumo, a apropriação, ou
posse, ou acesso a determinados lugares só será possível por meio do dinheiro. Isso se
torna contraditório na medida em que a forma de se obter dinheiro se torna cada vez
mais restrita, devido à precarização do trabalho, com salários baixos, aumento do
desemprego, maior tempo de espera para as pessoas entrarem no mercado de trabalho,
crescimento do mercado informal, dentre outros fatores, que diminuem a capacidade de
consumo de uma parcela considerável de pessoas. E ainda, mesmo com a inclusão de
segmentos populacionais em programas assistenciais, ampliação de acesso a créditos
para compras – ações realizadas no Brasil nos últimos anos –, é perceptível, em meio às
crises e inseguranças apresentadas pela marcha capitalista financeira, a corrida de
50
grandes parcelas da sociedade pela sobrevivência, na tentativa diária de apropriação de
meios que garantam tal finalidade.
Sabe-se também que até mesmo alguns locais existentes nos centros urbanos
destinados ao acesso de todos são, na verdade, acessíveis apenas àqueles que possuem
condições para o consumo: o shopping center, por exemplo, é o símbolo da segregação
espacial existente na sociedade atualmente. Alguém que não tem as mínimas condições
de adquirir algum produto ou serviço nesse local não se atreve a entrar e circular nele,
apesar de ele parecer estar aberto ao acesso de todos. O mesmo acontece no interior de
lojas, restaurantes, clubes, os quais foram construídos em um espaço destinado ao uso
de todos, mas que, na verdade, só permite a entrada de alguns – daqueles que possuem o
meio de consumo, o dinheiro. Dessa forma, pode-se afirmar que os espaços se tornam
acessíveis no momento em que as pessoas podem apropriar-se deles, através do
consumo.
2.3 Concepções sobre o uso da rua
Em meio a essa dinâmica de segregação dos espaços urbanos, ainda é possível
destacar nesses a existência de locais em que o acesso ainda se considera como sendo a
todos, independente de sua condição financeira: os espaços das ruas e das avenidas,
praças, praias urbanas, onde se vê claramente a presença de toda a sociedade. É nesses
locais onde se pode descobrir quem de fato faz parte do contexto urbano. Circulando a
pé, em carros de pequeno ou de grande porte, todos precisam passar por esses locais ou
passar algum período neles, para ter acesso a outros locais, para o lazer, para o
consumo, para apreciar outras pessoas; ou, utilizando o contexto brasileiro, para os
grandes eventos populares (como o carnaval de rua, por exemplo, nas cidades de
Olinda, Salvador), para as reivindicações políticas (como a marcha dos jovens pelo
impeachment do ex-presidente Fernando Collor), para as festividades religiosas, com
suas procissões que tomam as ruas. Enfim, são locais em que todos fazem parte,
abertamente.
Tomando a rua como destaque para reflexão acerca de sua apropriação pelo
homem, pode-se verificar que esse é um espaço considerado público, organizado pelo
Governo, para o acesso de todos: em seu calçamento, sua iluminação, sinalização,
construção de calçadas e conservação de todos esses objetos. É um espaço construído,
delineado pelo homem para o uso de todos. Assim, as pessoas se apropriam desses
51
locais através de seu corpo, seja passeando, apreciando paisagens, trabalhando nele, seja
correndo para o trabalho, entre outras atividades que caracterizam a utilização do espaço
da rua.
Em uma discussão acerca dos sentidos do uso da rua, (CARLOS, 2007, p.53-54),
destaca-se que essa pode ser apropriada apenas como uma passagem para a ida ao
trabalho; pode ter um sentido em si mesma, quando utilizada como local de trabalho, a
exemplo dos camelôs que montam seus negócios na rua (e ainda até mesmo o semáforo,
segundo a autora, é apropriado como “local” de trabalho, onde se vendem vários objetos
para os motoristas); pode ter o sentido ainda de normatização da vida, com suas placas e
sinais indicando o controle da circulação social. As ruas, nesta reflexão, também tem o
sentido de segregação social, no momento em que o uso de seus espaços só é possível
através da aquisição daquilo que se oferece neles, como foi explicitado anteriormente. E
ainda, a rua pode ter o sentido de ser local de formação dos chamados guetos urbanos,
entendido como espaços onde se pode tecer uma cultura própria de um segmento da
sociedade, mas que, como não se trata de uma maioria social, isola-se em determinados
espaço; além disso, há os sentidos de festa e de reivindicação como próprios da rua.
Nessa reflexão, a rua também é apresentada no sentido do morar. É interessante
que a autora descreve esse sentido como sendo restrito à cidade de São Paulo, mas sabese que essa realidade é presente nas capitais brasileiras e vem crescendo de forma
significativa, especialmente nos últimos anos. Seja qual for a maneira em que se dá o
significado da rua para a pessoa que se apropria dela, o fato é que esse local mantém em
sua essência o sentido do encontro (CARLOS, 2007, p.54): para o encontro e diversão
da família, o encontro de amigos para jogar cartas, festas entre vizinhos de um mesmo
bairro.
Tais sentidos configuram a rua como sendo um espaço vivido, e ainda:
[...] representa a cotidianidade na nossa vida social [...]. Lugar de
passagem, de interferências, de circulação e de comunicação, ela
torna-se, por uma surpreendente transformação, o reflexo das coisas
que ela liga, mais viva que as coisas. Ela torna-se o microscópio da
vida moderna. Aquilo que se esconde, ela arranca da obscuridade. Ela
torna público. (LEFEBVRE apud CARLOS, 2007, p.54).
A autora ainda considera que “[...] no movimento da rua encontra-se o
movimento do mundo moderno” (CARLOS, 2007, p.50), considerando que
52
especialmente nas grandes cidades, a rua tem se tornado lugar mais de passagem do que
de permanência, não encontrando nesse o seu lugar de referência fixa, mas de “acesso
a”, isto é, de meio para se chegar até os locais aos quais estão destinados. E ainda mais,
que a rua também está submetida ao sistema de rendimentos e de lucro, na medida em
que “regula o tempo além do tempo de trabalho” (LEFEBVRE apud CARLOS, 2007,
p.56), ao trazer apenas a possibilidade da compra de produtos como opção de utilização
da rua pelo homem.
Ao abordar a sociedade urbana em seus estudos, o autor Lefebvre traz uma
reflexão sobre a rua em seu sentido positivo e negativo ou, como ele mesmo afirma, traz
argumentos “a favor e contra a rua” (LEFEBVRE, 1999, p.27). Na argumentação
favorável à rua, o autor afirma não ser esse apenas um local de passagem e circulação,
mas é o caminho de obsessão dos veículos e o espaço do encontro, além de ser o acesso
aos demais lugares; e, ainda, é o local da mistura, do movimento, onde todos se tornam
espectadores, atores, em um mesmo espetáculo. Também a rua traz consigo “[...] a
função informativa, a função simbólica, a função lúdica” (idem, p.28) e, aparentando
uma desordem, na verdade é espaço livre para a dinâmica dos elementos congelados da
vida urbana. O autor aponta para o fato de que o movimento nas ruas, de certa forma,
protege as pessoas da ocorrência de crimes, o que não ocorre quando se circula por
alguma rua num momento sem movimentação; faz também memória dos
acontecimentos revolucionários os quais, ao ocorrerem na rua, parecem gerar uma
desordem, mas esses acontecem justamente com o objetivo de reivindicar por uma nova
ordem (idem, p.28).
Já os argumentos que são contrários à dinâmica da rua, trazidos pelo autor, são
no sentido de demonstrar que, apesar de proporcionar encontros, o que se experimenta
são presenças superficiais em que, na verdade, “se caminha lado a lado” (LEFEBVRE,
1999, p.28), e não há o objetivo de se constituir um grupo social, mas de ir em busca da
realização do consumo. Vista por esse ângulo, a rua se define como uma grande vitrine
de mercadorias expostas para transformar o tempo do pedestre, ao passar pelas lojas, em
tempo de compra e de venda, e essa assim passa a ser uma das formas da relação do
espaço com o tempo. O autor ainda ressalta o fato de se poder falar em uma
“colonização do espaço urbano” que se efetua na rua, pelos objetos exibidos para o
consumo que se tornam o espetáculo das ruas e, ainda, que as festividades promovidas e
autorizadas para ocorrerem nas ruas são, na verdade, uma apropriação caricata da rua,
53
diferente da apropriação através da manifestação pública (a qual ele chama de
verdadeira apropriação), e que essa é combatida pelas forças repressivas (idem, p.29).
Complementando a ideia da rua como “local de repleta fluidez e movimento”
(DAMATTA, 1997, p.57), ao se considerar que toda a dinâmica social é refletida no
movimento da rua, também as sequelas da banalização do homem permeiam esse
espaço. As experiências do mundo moderno nesse espaço podem ser verificadas quando
se utilizam expressões ao se referir à rua como um espaço “onde cada um deve zelar por
si” (idem, p.55), no qual “ninguém é de ninguém”, revelando o contexto da
individualidade que orienta as relações na sociedade; é o lugar da malandragem, onde
não há uma preocupação com o valor do outro, pois não se estabelecem relações
permanentes com ele, só “de passagem”. O autor Damatta ainda argumenta que ficar
doente ou morrer na rua, ter necessidades fisiológicas ou desmaiar em um local como a
rua é viver uma experiência de isolamento e da sensação negativa de estar em um local
desconhecido, já que a rua é um espaço de ninguém – onde não há identificação e
responsabilidade sobre o outro (DAMATTA, 1997, p.59).
A rua também é denominada como “um local perigoso” (idem p.57), na medida
em que em seus diversos locais podem ocorrer acidentes, mas sobretudo os atos de
violência, pois que não há um controle absoluto sobre a circulação e atitudes das
pessoas que transitam pelas ruas. É por isso que a sensação de insegurança também é
algo vivenciado ao se passar pela rua – mesmo se houver um aparato policial no
momento, numa tentativa de garantir a segurança e prevenir a ocorrência de crimes. Não
há, portanto, uma associação da rua a um local favorável para se permanecer por muito
tempo, já que se trata de um local caracterizado como inseguro. Nesse contexto, é
demonstrado um lado negativo do significado da rua e que especialmente nas grandes
cidades brasileiras, é frequente a violência em seus espaços.
O autor reflete também a respeito de expressões como “fiquei na rua da
amargura” ou “vá pro olho da rua”, como símbolos de apartação de um indivíduo de
determinado grupo social ao qual fazia parte; dessa forma, a rua é vista como o local de
isolamento, como a alternativa para quem não tem mais referência social. A rua sinaliza,
assim, a exclusão a que diversas pessoas estão submetidas, consequência da contradição
do chamado desenvolvimento. Esse movimento de expulsão para a rua segue, na
verdade, a ideia de que a rua é o local onde se deposita aquilo que não serve mais para
estar no nosso meio; onde se joga o que não tem mais valor, como lixo que é posto na
54
rua. Por mais que se deseje passar por vias limpas e bem cuidadas pelo poder público,
não há nenhum receio em se jogar lixo pela janela do carro, dos edifícios ou mesmo ao
circular pelas ruas, pois ali não se tem uma necessidade de preservação imediata; a rua é
o local do que é desprezado, daquilo que não tem utilidade alguma.
Da mesma forma, aquele que tiver chegado ao ponto de “parar na rua” e passa a
permanecer nela é visto como alguém que foi desprezado e que esse é o lugar próprio
para essa condição – de que “não serve mais”. Porém, diferentemente dos demais
objetos jogados nas ruas (em que não há mais alternativas para seu uso), as pessoas que
se encontram nessa condição continuam sentindo necessidades imediatas e secundárias,
consideradas importantes; mas se esquece de se considerar tais necessidades. Por isso,
as pessoas que passam a ter suas vidas resumidas a esses espaços tentam de alguma
forma agora se utilizar dele para vencer a batalha travada diariamente pela
sobrevivência.
A rua nada oferece que se possa permanecer nela de fato; mas ao mesmo tempo
ela é a via de acesso a todos os recursos existentes na cidade. Experimentar a tentativa
de conseguir algo através da rua é impulsionar a criatividade e a luta, no que diz
respeito a elaborar estratégias que façam desse local um meio para se chegar ao objetivo
desejado. Para tanto, é preciso que se vá a cada instante adentrando nesse espaço e
conhecendo suas entrelinhas e, assim, apropriar-se, tomar posse, utilizar aquilo que a
rua pode oferecer. A venda de objetos nos sinais, por exemplo, (CARLOS, 2007, p.59)
é aquilo que pode ser reconhecido como uma forma de apropriação de um dos espaços
da rua, local onde se concentram todos os veículos que circulam na cidade, e, a partir do
contato com as pessoas que os conduzem, é possível obter alguma renda. Assim, “[...] o
imprevisto, o inusitado aflora na rua e é passível de ser apreendido como elemento
essencial ao entendimento do cotidiano e de sua superação” (idem, p.59). A rua, nesse
sentido, torna-se não mais um local de passagem, mas a alternativa existente para que
alguns encontrem nela a manutenção de sua sobrevivência.
Porém, tal forma de apropriação desse espaço urbano não é vista de forma
agradável aos olhos dos demais “cidadãos”, pois estão modificando a finalidade da
utilização do espaço da rua; estão, com sua permanência, descaracterizando a finalidade
de “passagem” que a rua deve ter, além de comprometer a estética do local,
desorganizando aquilo que deveria estar “em ordem”. Tornar um banco de uma praça a
cama para dormir, as portas das lojas para abrigo durante a noite, as árvores das praças
55
como tetos para os momentos de banho com baldes, as calçadas como locais para
comer, conseguir dinheiro ou deitar-se após umas doses de bebida são algumas das
formas de apropriação da rua como um espaço onde se passa a viver. Chegar ao ponto
de ter a rua como local de moradia, além da luta pela sobrevivência financeira, é visto
como algo inadmissível por parte de um consenso generalizado, já que a rua não tem
essa finalidade e não oferece aquilo que é encontrado no ambiente dito “do lar” que a
caracterize dessa forma. Além disso, a noção de apropriar-se da rua da mesma forma
como se apropria de um local para moradia submete-se à ideia de que o espaço que é de
todos está sendo tomado por alguns, e isso contraria mais a aceitação da presença de
pessoas morando nas ruas. E, ainda, implica dizer que os hábitos realizados no ambiente
privado, como a casa, serão realizados ali, onde todos passam e veem, onde tudo é
descoberto e contrasta toda a moralidade acerca da privação de certos costumes.
E no mais, ao se observar quem é aquele que se apropria do espaço da rua como
sua moradia, aumentam-se os motivos da não-aceitação de tal atitude, por parte do
restante da sociedade: são justamente aqueles considerados como “desprezados”, inúteis
para o mercado de trabalho, para a família, para as unidades psiquiátricas, para o
convívio social. Esse segmento da sociedade, que aumenta sua quantidade a cada dia,
embora sob a repulsa e contestação do restante da sociedade, é visto como parte do
cenário da cidade, de suas ruas, e existe não apenas no contexto atual, mas ao longo da
história da formação das cidades e da constituição de seus espaços. Sendo pessoas de
todas as idades e trajetórias de vida, os chamados moradores de rua “desenvolvem
formas específicas de garantir a sobrevivência, de conviver e ver o mundo. Têm sobre a
cidade um outro olhar, atribuindo novas funções aos espaços públicos” (VIEIRA,
BEZERRA e ROSA, 1992, p.96). As pessoas que moram nas ruas buscam, dessa forma,
ampliar o sentido de apropriação desse espaço e, com sua adaptação a tudo aquilo que
faz parte da rua, enfrentam a indiferença, o medo, a desvalorização demonstrada pelo
restante da sociedade quanto ao uso desse espaço. O próprio termo utilizado para
denominá-los já enfatiza uma relação de contradições. Encontram-se entre a rejeição,
por fazerem das ruas o seu local de moradia, e a naturalização de sua presença, por
“merecerem” as ruas devido a seus infortúnios. Tal relação remonta a uma concepção de
que a rua está sendo utilizada de uma forma para a qual ela não foi projetada, não
importando se aqueles que assim o fazem sejam pessoas que não possuem referência,
teto ou perspectiva de vida.
56
Nesse sentido, tornam-se válidas as reflexões que serão feitas posteriormente
acerca daqueles os quais se apropriam da rua de forma permanente, tendo nela o sentido
de moradia, pois além de estarem contra a maré da onda consumista, a qual adquire
valor a partir do aspecto financeiro e dos bens, tornam pública a contradição em que se
encontra a modernização da sociedade, que permite ainda a situação de miséria entre
seus cidadãos.
2.4 Sobre o morador de rua
2.4.1 Breve resgate histórico sobre a existência do morador de rua
O contexto de desigualdades existente na sociedade faz com que contingentes
cada vez maiores da população se encontrem em condições precárias de vida, a ponto de
não ter outra alternativa para a sobrevivência a não ser estar nas ruas. Cada vez mais a
presença de pessoas – homens e mulheres de todas as idades – adaptando-se a um modo
de vida nesse espaço se faz evidente no cenário de vários países, sobretudo no Brasil,
onde esse contingente parece aumentar ao longo dos anos. Tal condição, porém, não se
encontra apenas no contexto contemporâneo. Verifica-se que, historicamente, a
existência de pessoas nas ruas como consequência da falta de acesso às condições
mínimas de sobrevivência já era frequente, bem como as parcas ações para enfrentar tal
questão.
A existência de pessoas morando nas ruas não é recente. Verifica-se já a
presença dos estrangeiros que perambulavam pelas ruas dos grandes centros já na Idade
Antiga (como, por exemplo, na cidade de Roma) e durante a era pré-industrial, com a
“onipresença de mendigos” (SNOW e ANDERSON, 1998, p.29). De acordo com os
autores,
[...] não há certeza sobre como exatamente essas pessoas conseguiam
sobreviver. A mendicância era um meio comum de subsistência e se
combinava, às vezes, com roubo e prostituição, mas ‘muito do seu
tempo parecia ter sido gasto perambulando, à espera para se envolver
no que quer que estivesse acontecendo (SOLPERG, 1960 apud
SNOW e ANDERSON, 1998, p.29).
As pessoas que se encontram nessa situação já desenvolviam comportamentos
que se caracterizavam como “adaptações a necessidades ambientais” (SNOW e
ANDERSON, 1998, p.75). Os moradores de rua tinham, assim, o espaço urbano como
57
seu espaço de moradia e de sobrevivência, sem o apoio estrutural comum aos
considerados incluídos.
Na Idade Moderna, as ações do Estado europeu com relação às pessoas em
condição de pobreza funcionavam no sentido de oferecer auxílios assistenciais (como se
pode recordar a Lei dos Pobres na Inglaterra – 1601) à população incapaz para o
trabalho; porém, esses recursos não eram destinados àqueles considerados como mão de
obra disponível. Ao contrário, a esses era destinado estímulo à aceitação de qualquer
trabalho, por pior que fosse; e caso não se aceitasse, eram condenados com as mais
diversas punições. E ainda no século seguinte, a criação, na Inglaterra, da
Speenhamland Law (1795) se destinou a complementar a renda dos trabalhadores com
um auxílio mínimo, pois a condição de pobreza já era considerável; porém, não havia
políticas diretas voltadas para as pessoas que viviam nas ruas, para quem a situação de
miséria era ainda mais evidente.
Para Karl Marx, essas pessoas eram consideradas como o lumpen, que na
tradução significa “homem-trapo”; eram vistos como a escória da sociedade, como
aqueles incapazes de se organizarem como classe, que não colaboram para a unificação
da sociedade e, pelo contrário, apenas se beneficiam dela. Por isso, Marx se referia de
modo pejorativo à presença dessas pessoas no círculo social, citando em suas obras
algumas características desse segmento:
[…] Lado a lado com roués decadentes, de forma duvidosa e de
origem duvidosa, lado a lado com aventureiros rebentos da burguesia,
havia vagabundos, soldados desligados do exército, presidiários
libertos, forçados foragidos das galés, chantagistas, saltimbancos,
lazzarani,
punguistas,
trapaceiros,
jogadores,
maquereaus
(alcoviteiros), donos de bordéis, carregadores, literati, tocadores de
realejo, trapeiros, amoladores de faca, soldadores, mendigos – em
suma, toda essa massa indefinida e desintegrada, atirada de ceca em
meca, que os franceses chamam la boheme; [...]. (MARX, 2002, p.9798).
Em outra obra de sua autoria, Marx ainda traz o conceito de lumpen como sendo
do “proletariado em farrapos”; em sua explicação, esse segmento seria constituído de
“[...] elementos desclassificados, miseráveis e não-organizados do proletariado urbano”
(MARX, 2001, p.108) ou ainda como a “[...] putrefação passiva dos extratos mais
baixos da velha sociedade” (MARX, 1999, p.24).
Tais camadas mencionadas acima costumavam fazer parte do quadro do centro
urbano, no local de maior movimentação econômica e social. Diversos estudos
58
históricos constatam a existência daqueles que não se incluíam na dinâmica de
atividades proletárias. Além de idosos e crianças desamparados pela família e que
ficavam pelas ruas, pedindo ajuda para se sustentarem a cada dia, a existência de
pessoas adultas era evidente e cada vez maior pelas ruas, a viverem de esmolas, de
bicos, de roubos ou outros modos de conseguirem sustento diário. O autor Castel, em
sua discussão acerca do trabalho, cita a presença daqueles que classifica como
supranumerários (CASTEL, 2005, p.25), destacando o seu grande número nos centros
urbanos, mas que “não fazem nada de socialmente útil” (idem, p.25) e que, por isso, não
possuem um lugar na sociedade; não representam força de pressão, pois “[...] não atuam
diretamente sobre nenhum setor nevrálgico da vida social” (idem, p.25). O autor ainda
diz que a situação daquele que é denominado de vagabundo é, de certa forma,
contraditória, pois “[...] em falta quanto ao imperativo do trabalho, também é, muito
amiúde, rechaçado para fora da área da assistência” (CASTEL, 2005, p.42),
considerando que a vulnerabilidade desse segmento se dá, em certa medida, pelo
“enfraquecimento das proteções” (idem, p.45).
Sem trabalho, sem apoio do Estado, destituídos das condições básicas para se
inserirem na sociedade, as pessoas adultas que perambulavam pelas ruas – consideradas
aptas para o trabalho – ainda sofriam dos estigmas que os denominavam como:
“[...] indivíduos mal-afamados: caymands (isto é, aqueles que
mendigam sem motivo; tratava-se da versão pejorativa do mendigo
válido), velhacos, biltres (mendigos simulando enfermidades),
ociosos, luxuriosos, rufiões, tratantes, imprestáveis, indolentes [...]”
(CASTEL, 2005, p.120).
No auge da industrialização, no século XVIII-XIX, a intensificação daquela
massa de pessoas que estavam fora da dinâmica do trabalho constituiu a situação de
pauperismo generalizado. A denominação de lumpen para as massas que se
encontravam nas ruas classificou-as como pertencentes a uma “classe perigosa” à ordem
social. Porém, constata-se que a maioria das pessoas rotuladas dessa forma era
destituída de bens no aspecto econômico e nos aspectos sociais, afetivos, morais. Dessa
forma, pode-se afirmar que a moradia de rua é consequência de uma modificação na teia
de relações sociais de indivíduos, a qual “perdeu a força ou se esgarçou” (SNOW e
ANDERSON, 1998, p.25).
59
Afirma-se que um fator comum que os levava à condição de moradia nas ruas
seria o rompimento social com os principais setores da sociedade (família, trabalho,
moralidade); consequentemente, as pessoas que passavam por tal situação acabavam
tomando os espaços públicos, retratando a sua “falta de referência”. Os locais de maior
movimentação eram geralmente ocupados por certo número de pessoas, como forma de
ali disputarem o ganho de qualquer forma para sobreviverem. Desse modo:
Realmente, saber que a maioria dos indivíduos rotulados de mendigos
ou de vagabundos era, de fato, formada por pobres coitados levados a
tal situação pela miséria e pelo isolamento social, pela falta de
trabalho e pela ausência de suportes relacionais, não podia
desembocar em nenhuma política concreta no quadro das sociedades
pré-industriais (CASTEL, 2005, p.139).
Eram, portanto, sujeitos que estavam desprovidos também de qualquer
mobilização, seja por parte da sociedade, seja do Estado, para que saíssem da situação
de circulação e permanência nas ruas, pois eram também desprovidos de “[...] papéis
consensualmente definidos de utilidade social e valor moral” (SNOW e ANDERSON,
1998, p.28). Assim, pode-se perceber que a presença de pessoas habitando nas ruas –
tendo esse espaço como local para sobrevivência – fazia parte do cenário urbano e,
dessa forma, não estimulava maiores ações que buscassem modificar a situação desses
indivíduos.
A presença das pessoas que moram nas ruas persiste ao longo dos séculos,
concomitantemente com as transformações ocorridas com o capitalismo na sociedade,
em diversas partes do mundo. Sobretudo nas economias capitalistas formadas
tardiamente, nos países considerados subdesenvolvidos – porque seu desenvolvimento
no sistema capitalista não ocorreu no mesmo período da Europa –, a existência de
pessoas que moram nas ruas acompanha a formação socioeconômica desses países.
No Brasil, no século XIX (início da Primeira República), relatos afirmam que o
fim do regime escravocrata teve por consequência a ocupação dos pobres no espaço
urbano, os quais se movimentavam pelas ruas em busca de emprego e de um teto para
abrigar-se. Registra-se que naquele período os antigos escravos, forros, habitantes
vindos do interior do país, além de brancos pobres, constituíam a massa de pessoas que
perambulavam pelas cidades. De fato, tal realidade era composta por “[...] uma série de
trabalhadores pauperizados e expropriados e a eles juntam-se os imigrantes europeus.
60
Estes se enquadram nas mais diversas atividades para garantirem a sobrevivência”
(JUSTO, 2008, p.11-12). Constata-se que os fatos históricos da Abolição da escravatura
e da instauração do regime republicano deixaram à margem um sem-número de pessoas
em condições miseráveis de vida, tendo que sobreviver em diversos espaços da cidade.
Afirma-se que essas populações eram “[...] acusadas de atrasadas, inferiores e
pestilentas, [e] [...] seriam perseguidas na ocupação que faziam das ruas, mas,
sobretudo, seriam fustigadas em suas habitações” (MARINS, 2001, p.133), as quais
eram construídas em sua maioria sob a forma de cortiços, feitas sobre palafitas,
mocambos, demonstrando a situação de miséria em que essas populações se
encontravam.
Tais locais, considerados como insalubres, foram foco de diversas doenças e
pestes que assolavam a população das capitais – inclusive com registro de grande
quantidade de mortes – nesse novo período político-social. A cidade do Rio de Janeiro é
tida como exemplo da realidade encontrada nas demais cidades, com as ruas imundas e
as casas “[...] sem infraestrutura de esgotamento e abastecimento de água” (MARINS,
2001, p.140) e que encontrava poucos recursos científicos para combater os efeitos
dessas epidemias. As medidas impostas posteriormente, consideradas de cunho
sanitarista, tiveram como uma de suas principais ações a demolição das habitações
irregulares, buscando também reformular a urbanização da cidade. Na verdade, havia
nessas ações o desejo “[...] de arrancar do seio da capital as habitações e moradores
indesejados pelas elites dirigentes” (idem, p.141), como forma de organizar o espaço em
vista de seus interesses, restringindo o acesso aos principais pontos da cidade àqueles
que faziam parte do perfil elitista, buscando dar um aspecto luxuoso e atraente à cidade
e aos investimentos internacionais. Porém, muitas das medidas não obtiveram sucesso,
pois o surgimento das favelas, por exemplo, não eliminou a precariedade da construção
de habitações e, ainda, ocupou espaços dentro das cidades, obrigando a convivência das
elites com as camadas populares. Ainda, a obrigatoriedade da reforma sanitarista,
através da campanha geral de vacinação, somada à série de demolições de habitações,
gerou um caos nas ruas do centro da cidade do Rio de Janeiro, no episódio conhecido
como “a Revolta da Vacina”.
Ainda no Rio de Janeiro, nos anos seguintes, as reformas nas ruas e avenidas
centrais tinham como quadro de ações a expulsão dos “ocupantes das ruas”, para não
somente dar lugar aos novos prédios e construções, mas também de reservar as ruas
61
àqueles que, de acordo com a lógica de interesses, deveriam circular por elas,
“privatizando” um espaço que a princípio deveria ser público (MARINS, 2001, p.150).
Nesse período já existia a perseguição às chamadas “classes subalternas”, com a
vagabundagem sendo considerada como crime comum, com o tratamento violento por
parte do Estado, como forma de resolução dos problemas causados pela presença de
pessoas perambulando pelas ruas. Também há referência aos “menores vadios”, aos
mendigos e prostitutas, como focos de atuação do Estado, com o intuito de “sanear a
sujeira” – tirá-los das ruas. Com isso, “[...] junto com os loucos que vagavam pelas ruas,
toda uma ‘escória’ formada por ladrões, prostitutas, bêbados, mendigos etc.,
constituintes das ‘classes perigosas’, deram trabalho para os alienistas2. Estes tinham
entre seus objetivos imediatos a moralização do espaço público” (JUSTO, 2008, p.12).
Na atualidade, com a condição de banalização do ser humano em todos os
lugares do mundo, da disseminação da indiferença diante da precarização da situação de
vida das pessoas, desconsidera-se a trajetória de vida daqueles que moram nas ruas e,
dentro dela, o contexto de infortúnios em sua situação financeira, nas relações sociais,
familiares, profissionais, entre outros. Tais vínculos, uma vez rompidos, fragilizam
sobremaneira a condição moral de permanecerem inseridos socialmente e, ainda, são
rotulados como “merecedores da rua” por suas “imperfeições ou falhas morais” (SNOW
e ANDERSON, 1998, p.26-27). É a respeito desses aspectos que tratará o item a seguir.
2.4.2 Quem é o morador de rua: caracterização
A existência de pessoas que moram nas ruas nas principais cidades, nos diversos
continentes do mundo, revela que há uma marca comum consequente das relações de
desigualdades causadas pelo capitalismo. Pesquisas de cunho comparativo sobre a
população de rua entre países, como Brasil e França, ou Brasil e Canadá, já foram
realizadas e mostraram essencialmente que
[...] a pobreza tem um importante papel na homogeneização de certos
contextos em escala mundial, tornando possíveis as comparações
internacionais, sendo observáveis em países do Primeiro Mundo, onde
as questões sociais pareciam elucidadas pelo menos para a grande
maioria da população (GIORGETTI, 2006, p.22).
2
Expressão utilizada para designar os profissionais especialistas no tratamento daqueles considerados
alienados, loucos.
62
Não se trata, portanto, de um fenômeno localizado, muito embora possam se
perceber variações quanto ao atendimento à população de rua em alguns países; porém,
tal questão se trata de um fruto do contexto global de acesso desigual a bens que
proporcionem melhores condições de vida. A autora Giorgetti, em uma pesquisa
realizada acerca da moradia de rua entre o Brasil e a França, também destaca uma
homogeneização quanto ao principal aspecto relativo à presença de pessoas nas ruas
nesses países: “[...] trata-se de indivíduos sem uma habitação e que satisfazem tal
necessidade, seja procurando uma instituição social, seja se apropriando e
transformando o espaço público em moradia” (GIORGETTI, 2006, p.24). Dessa forma,
há uma caracterização geral daquele que é considerado como morador de rua,
independente da situação social de cada país.
Particularmente no Brasil, não há como ignorar essa realidade, que se encontra
presente em todas as principais cidades brasileiras e já se tornou tema de discussões e
estudos, ainda que pouco notáveis se comparados à dimensão da questão discutida, por
atingir o indivíduo em todas as dimensões de sua vida. Nesse sentido, algumas análises
buscam revelar o que se encontra por trás da realidade do morador de rua, de sua
trajetória, na tentativa de encontrar respostas para solucionar ou mesmo encontrar as
bases que culminam na existência dessa problemática. Tais reflexões buscam antes
definir quem é o morador de rua, através da definição de suas características, a fim de
identificá-lo em meio à sociedade. Geralmente designam-se os moradores de rua como
“[...] grupo populacional heterogêneo, composto por pessoas com diferentes realidades,
mas que têm em comum a condição de pobreza absoluta e a falta de pertencimento à
sociedade formal” (COSTA, 2005, p.3). Em outra definição sobre esse público, baseada
no estudo comparativo feito entre a moradia de rua da França e do Brasil, observa-se
que se trata de indivíduos (migrante, imigrante ou nascido em uma metrópole) que, após
atravessarem momento de afastamento de todas as relações, seja de trabalho, familiar,
seja social, não possuem mais bases de consumo, não conseguindo repor tais bases e
prover seu bem-estar (GIORGETTI, 2006, p.25). Também em uma conceituação geral
acerca da população de rua, afirma-se que este é “[...] um segmento social que, sem
trabalho e sem casa, utiliza a rua como espaço de sobrevivência e moradia” (VIEIRA,
BEZERRA e ROSA, 1992, p.47).
Em pesquisa recente, que relaciona a questão do trabalho e a população de rua
no Brasil, há a denominação desta como o fenômeno o qual se destaca “como uma
63
expressão radical da questão social” (grifos do autor) (SILVA, 2009, p.26). Essa autora
também, na concepção sobre tal realidade, apresenta seis características que irão definir
quem é o morador de rua, a partir do reconhecimento de que a presença constante de
sujeitos nesse espaço trata-se de um fenômeno ocasionado pelas desigualdades sociais:
inicialmente, associado às múltiplas determinações, entre fatores estruturais,
biográficos, relacionados a desastres, etc. Em seguida, considerado como expressão da
questão social, conforme já assinalado. O terceiro aspecto corresponde à localização do
fenômeno nos centros urbanos, sendo esses os lugares propícios para que os moradores
de rua possam garantir a sua sobrevivência diária, ao contrário das pequenas cidades.
Um quarto fator é o preconceito como valor atribuído moralmente pela
sociedade aos moradores de rua, com as históricas denominações pejorativas que são
atribuídas àqueles que estão nas ruas, e da intolerância com a qual essas pessoas são
tratadas pelo restante da sociedade. O quinto fator que, de acordo com a autora,
contribui para definir a população de rua dentro da sociedade é a manifestação
particular do fenômeno no território onde ocorre, pois embora se destaque que esse é
um fenômeno mundial, cada país, com seu perfil socioeconômico, é que irá dispor as
formas de sobrevivência adotadas pelas pessoas nas ruas, e inclusive, influenciará no
tempo de permanência delas nesses locais. Finalmente, o último aspecto seria a
tendência à naturalização do fenômeno, juntamente com a inexistência de políticas
sociais efetivas que reduzam a pobreza e garantam a melhoria de condições para os
moradores de rua (SILVA, 2009, p.105-122). Tais fatores, de acordo com a autora,
definem a existência da população de rua como um fenômeno vinculado à estrutura da
sociedade capitalista, a qual tem nas desigualdades sociais a sua maior expressão.
Como se pode observar, esse segmento populacional possui as diferentes
realidades que o definem, tanto referentes àquilo que o leva às ruas, quanto ao que o faz
permanecer nelas. Por isso, uma das principais características desse público é a sua
heterogeneidade, com “[...] origens, interesses, vinculações sociais e perfis
socioeconômicos diversificados” (SILVA, 2009, p.123). Isto é, a rua acaba reunindo
uma gama de histórias que sofrem as marcas das perdas, conforme já citado. Infere-se
ainda, de acordo com levantamentos já realizados nas principais cidades do Brasil, que
apesar de haver pessoas de todas as idades morando nas ruas, os homens são a maioria
64
encontrada na rua, numa média de 82%, segundo Pesquisa Nacional3 realizada no ano
de 2008 (MDS, 20083 , p.6). Outros dados dessa pesquisa revelam a média da
quantidade de pessoas adultas que podem ser caracterizadas como moradores de rua nas
principais cidades brasileiras (31.922 pessoas). Sobre a escolaridade desse público,
apesar de a quase totalidade não estudar atualmente (95%), foi constatado que pelo
menos 74% sabem ler e escrever, enquanto 17,1% não sabem escrever, e 8,5% apenas
assinam o nome. Podemos verificar no seguinte quadro acerca da formação acadêmica:
Tabela 1- Escolaridade dos moradores de rua – Geral (pesquisa entre 2007 e 2008)
Escolaridade
%
Nunca estudou
15,1
1º grau incompleto
48,4
1º grau completo
10,3
2º grau incompleto
3,8
2º grau completo
3,2
Superior incompleto
0,7
Superior completo
0,7
Não sabe/ não lembra
7,7
Não informado
10,1
Fonte: Pesquisa Nacional sobre a População em situação de rua, Meta, MDS/2008
A partir da informação de que a maioria da população pesquisada tem uma
escolaridade precária, pode-se inferir que as possibilidades relacionadas ao aspecto
profissional se tornam limitadas, podendo esse se constituir como um dos fatores
preponderantes para a permanência nas ruas. Inclusive a pesquisa aponta a falta de
trabalho como a segunda maior razão para a ida às ruas (29,8%), enquanto as situações
de uso de álcool/ drogas são consideradas como principal motivo (35,5% dos
entrevistados afirmam que estão nas ruas por causa do uso de álcool e drogas). O
3
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS. Pesquisa Nacional sobre a
População em Situação de Rua. 2008.
65
rompimento de vínculos familiares é também comumente citado como motivo de estada
nas ruas (29,1%).
Seja qual for o motivo, o fato é que uma grande quantidade de pessoas encontra
nas ruas o único local que irá abrigá-los, após terem sofrido situações que culminaram
em seu “isolamento” social. Por isso, acabam se apropriando desse espaço, numa
perspectiva de se utilizar daquilo que esse pode oferecer para garantir sua moradia e
sobrevivência. Com os parcos recursos que possuem, arranjando-se com materiais
retirados de lixo, portando objetos usados, vestindo roupas maltrapilhas e carregando
pedaços de papelão, sacolas para dormir, os moradores de rua são vistos como
“poluidores do espaço urbano” (FRANGELLA, 2005, p.203). Como se não bastasse, a
sua presença nas ruas também destitui desses indivíduos a condição de serem vistos
como iguais perante os demais cidadãos. São assim, “[...] excluídos de qualquer
possibilidade de se tornar perceptível e, sobretudo, de qualquer direito ao respeito”
(ESCOREL apud SOUSA, 2009, p.383), quando se sabe que, na verdade, eles não se
encontram nas ruas espontaneamente, mas foram empurrados pelas circunstâncias, que
excluem qualquer outra possibilidade que não seja ir para as ruas.
Desse modo, afirma-se que
A rua pode ter pelo menos dois sentidos: o de constituir num abrigo
para os que, sem recursos, dormem circunstancialmente sob marquises
de lojas, viadutos ou bancos de jardim, ou pode constituir-se em um
modo de vida para os que já têm na rua o seu habitat e que
estabelecem com ela uma complexa rede de relações (VIEIRA,
BEZERRA e ROSA, 1992, p.93).
Dentro dessa reflexão, as referidas autoras trazem uma distinção – baseada na
pesquisa realizada na cidade de São Paulo – acerca da ida para as ruas e a consequente
apropriação que ocorre desse espaço, à medida do tempo em que permanecem nele. Tal
distinção é baseada na concepção de que “[...] à proporção que aumenta o tempo, se
torna estável a condição de morador” (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992, p.94). Dessa
forma, é possível identificar pelo menos três tipos de situações relacionadas à
permanência nas ruas, as quais consistem em: ficar na rua – como forma circunstancial,
pela precariedade provocada pelo desemprego ou por estarem chegando à cidade em
busca de emprego, de tratamento de saúde ou de parentes; estar na rua – quando se
assumem estratégias de sobrevivência nas ruas para seu rendimento e já não a
66
consideram como um espaço tão “ameaçador”; e ser da rua – compreendida como a
situação daqueles que já estão há um bom tempo na rua e, em função disso, foram
sofrendo um processo de debilitação física e mental (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992,
p.93). Ainda dentro dessa dinâmica, o prolongamento do tempo de permanência nas
ruas pode influenciar nas possibilidades de saída desse local, que começam a se tornar
mais difíceis no momento em que a pessoa que vive em uma constante falta de
condições para alimentação, por exemplo, envolve-se geralmente em uso de álcool e
sofre com a violência constante, perdendo qualquer tipo de perfil próprio para conseguir
emprego.
Outros estudiosos sobre o tema, em pesquisa realizada na cidade do Texas,
Estados Unidos, trazem a reflexão acerca das circunstâncias que levam as pessoas a
morar nas ruas. De acordo com esse estudo, diversos fatores caracterizam a ida das
pessoas para as ruas, mas que essas possuem em comum um contexto de perdas que
marcam o início dessa trajetória e afastam cada vez mais essas pessoas daquilo que se
considera como aspectos do pertencimento social. Tal movimento ocorre em várias
dimensões da vida humana, das quais serão citadas algumas.
Conforme os autores, à primeira vista, o morador de rua se encontra nessa
condição em consequência da perda da moradia, de seu local de referência privado, de
permanência. Afirma-se que “[...] o desabrigo de uma forma ou de outra existiu ao
longo da maior parte da história humana” (SNOW e ANDERSON, 1998, p.23) e que
variam os motivos que levam as pessoas a tal situação: seja por desastres da natureza;
pela condição própria do trabalho que os leva à migração; seja por fuga de situações
políticas ou econômicas, entre outras causas.
A própria condição de pobreza, apesar de não ser o único fator para estar nas
ruas, é considerada como componente que “empurra” as pessoas para tal situação, pois
“[...] o grosso dos moradores de rua vem de famílias que estão no nível de pobreza”
(SNOW e ANDERSON, 1998, p.233). Nisso, os demais estudiosos sobre o tema estão
de acordo que esse é um dos fatores que mais condicionam a existência de moradores de
rua, já que o agravamento da pobreza vai tornando mais difícil o acesso a recursos para
sobrevivência.
A perda dos vínculos afetivos é uma característica também encontrada nos
estudos que buscam definir os motivos que levam as pessoas a morarem na rua.
Discussões familiares, uso excessivo de álcool e uso de drogas na residência são fatores
67
frequentemente encontrados e que têm inclusive trazido para as ruas pessoas que
possuem boa condição econômica, mas que estão inseridas nessas problemáticas. Dessa
forma, “[...] a erosão de uma rede de apoio familiar solidária tem se apresentado como o
princípio-motor de ingresso dos indivíduos nas ruas” (SOUSA, 2009, p.395), pois
compromete o pertencimento social.
A perda do trabalho ou mesmo a não-inserção no mercado de trabalho é um
fator comumente associado à situação de rua. O trabalho ainda é considerado tema
central na vida do homem, e “[...] o próprio desabrigo resulta em parte de problemas e
tendências associadas com o mundo do trabalho remunerado” (SNOW e ANDERSON,
1998, p.185); não tê-lo é ser visto como não-contribuinte para a produção social e até
mesmo como fracassado no papel de sustento pessoal e familiar.
Dessa maneira, afirma-se que
[...] em muitos casos, faz parte do processo de ida para a rua a busca,
às vezes desesperada, de alternativas de sustento pessoal ou familiar.
As pessoas nessa condição geralmente informam que têm uma
profissão, mesmo que já não a estejam exercendo há vários anos.
Conforme Castel (1997), em nossa sociedade, o trabalho confere
identidade às pessoas [...] (COSTA, 2005, p.9).
Ainda dentro do contexto da perda do trabalho, há aquelas situações em que a
busca constante de emprego faz o indivíduo permanecer na rua; há aquelas pessoas que
migram do campo, de outras regiões, à procura de trabalho, mas que não têm estrutura
de moradia ou familiar que o apoie no local; e há também aqueles que não possuem
qualificação para emprego formal e acabam encontrando nas ruas o meio mais
“adequado” a sua situação para se manterem.
Tais motivos, vivenciados em conjunto ou de maneira isolada, levam os
indivíduos à situação de rua como sua última (ou única) alternativa de vida. Acabam por
necessitar desse local para sua sobrevivência diária, recorrendo a diversos meios para se
chegar a tal fim. Assim, “[...] para suprir as necessidades básicas, as pessoas que vivem
nas ruas se utilizam de estratégias variadas, contam com a rede de serviços assistenciais
e com a solidariedade da população” (COSTA, 2005, p.11). O que se verifica ao
conhecer o modo como vivem os moradores de rua, na busca dessa sobrevivência, é que
“[...] o que esses indivíduos situados de modo tão semelhante têm em comum não é um
68
conjunto forte e reconhecível de valores, mas um destino compartilhado e a
determinação de se virar tão bem quanto possível” (SNOW e ANDERSON, 1998, p.77).
Nessa perspectiva, percebe-se também que
Como as pessoas em toda a parte, os moradores de rua têm de comer,
dormir, eliminar, viver dentro de seu orçamento e construir um senso
de significado e amor-próprio. Os moradores de rua, entretanto,
devem atender a esses requisitos de sobrevivência sem os recursos e
estruturas de apoio social que a maior parte de nós dá como certas.
[...] Além disso, a vida nas ruas é frequentemente permeada de um
senso onipresente de incerteza. Não há garantias de que o que facilitou
a sobrevivência de hoje funcionará amanhã (SNOW e ANDERSON,
1998, p.77-78).
Diante de tais necessidades que se dão diariamente para essa população, “[...]
um dos problemas cotidianos mais prementes para os moradores de rua é achar um
modo de obter algum dinheiro quase imediatamente” (SNOW e ANDERSON, 1998,
p.201). O contexto urbano também não favorece o sucesso nessas estratégias de
sobrevivência, seja pela própria estrutura urbana, seja pelas exigências para ingressar
em um tipo de trabalho ou até pelos próprios outros indivíduos que rejeitam aquele que
se encontra na rua. Destarte, entende-se que “[..] repertórios e estratégias de
sobrevivência não surgem espontaneamente; são o produto de uma ação recíproca entre
os recursos e a inventividade dos moradores de rua e as restrições organizacionais,
políticas e ecológicas locais” (idem, p. 48).
Mesmo assim, essa população enfrenta tais contingências e cria modos de se
manter. Desenvolvem a mendicância, a catação de lixo, atividades informais (vigiar
carro, limpar para-brisa dos carros, prostituição, deslocamento para outras cidades para
melhorar sua situação, etc.), entre outras atividades, para conseguir o sustento daquele
dia, já que também não dispõem de recursos que possibilitem outras formas de
conseguir dinheiro. A Pesquisa Nacional demonstra que grande parte desse público
exerce alguma atividade remunerada, conforme a tabela a seguir:
69
Tabela 2 – Atividades exercidas pelos moradores de rua (%) -
ATIVIDADE
%
Catador de materiais recicláveis
27,5
Flanelinha
14,1
Construção civil
6,3
Limpeza
4,2
Carregador/ estivador
3,1
Pedinte
15,7
Fonte: Pesquisa Nacional sobre a População em situação de rua, Meta, MDS/2008
A análise da Pesquisa Nacional, a partir dessas informações, é a de que a
atividade de mendicância não é a preponderante entre os moradores de rua. De fato, esse
público busca exercer funções ligadas ao recebimento imediato de dinheiro, visto que
objetivam o socorro de necessidades pontuais. Assim, “[...] seu mundo restringe-se às
ruas e seu trabalho só se dá nas ruas. Por esta razão, talvez, suas atividades ‘produtivas’
muitas vezes se resumem à obtenção do estritamente necessário à subsistência imediata:
a comida” (BURSZTYN, 2000, p.43). Dessa forma, passam a desvendar o “universo”
das ruas, recorrendo àquilo que ela pode dispor em seus espaços.
2.4.3 Relação entre espaço público e morador de rua nas cidades
brasileiras
Os espaços públicos são utilizados pelos moradores de rua como referência para
conseguir sua subsistência e abrigo. Tal realidade foi comprovada no Brasil através de
inúmeras pesquisas realizadas nos níveis local e nacional. De acordo com os dados da
pesquisa do MDS feita junto às pessoas adultas que se encontravam instaladas nas ruas,
no período da noite, nas capitais e em outras cidades de grande porte do Brasil, verificase que a maioria delas se adapta às ruas para dormir, justificando inclusive a preferência
por essa alternativa aos albergues, os quais, segundo os entrevistados, são caracterizados
pela falta de liberdade e pela rigidez nos horários que devem ser seguidos, além da
proibição do uso de álcool e drogas no local; e o espaço da rua, ao contrário, não possui
“restrições” para tais práticas.
70
Gráfico 1: Local onde os moradores de rua dormem (%) – Pesquisa entre 2007 e 2008.
80
70
60
50
40
30
22,1
20
8,3
10
0
Rua
Albergue
Ambos
Fonte: Pesquisa Nacional sobre a População em situação de rua. Meta, MDS/2008.
A pesquisa ainda afirma que, entre aqueles que preferem dormir em albergues, a
maioria o faz por temer a violência durante o período da noite nas ruas (69,3%
afirmaram esse motivo); 45,2% buscam conforto de um local para dormir. Esse é, aliás,
um dos poucos recursos oferecidos pelas entidades governamentais e até mesmo por
ONGs, em algumas cidades, para o morador de rua. Assim, tal população procura se
adaptar à vivência nas ruas, encontrando galpões, terrenos vazios ou colunas de viadutos
para se abrigarem à noite, fazerem suas necessidades ou fugir das agressões durante o
dia; utilizam chafarizes públicos ou mangueiras de estabelecimentos comerciais, como
postos de gasolina para tomar banho, entre outros recursos existentes, os quais
compõem os espaços públicos das cidades. Muitos passam o dia nesses locais ou só o
procuram à noite, quando cessa o movimento de toda a sociedade, e tais espaços se
esvaziam, dando liberdade para a instalação. Essa realidade é retratada também na
Pesquisa Nacional, a qual demonstra que os principais locais que os moradores de rua
em geral utilizam para tomar banho, por exemplo, são a própria rua (32,6%), os
albergues (31,4%), os banheiros públicos (14,2%) e a casa de parentes e amigos (5,2%).
Já em relação aos locais utilizados para fazer suas necessidades, os entrevistados
apontaram da seguinte forma:
71
Gráfico 2: Locais onde os moradores de rua fazem suas necessidades
(%) - dados entre 2007 e 2008.
2,7
9,4
Rua
32,5
21,3
Albergue/Abrigo
Banheiros Públicos
Estabel.comerciais
25,2
Casa de parentes/amigos
Fonte: Pesquisa Nacional sobre a População em situação de rua. Meta, MDS/2008.
Cabe frisar nesse ponto que, apesar de não ser o local mais procurado, o uso dos
estabelecimentos comerciais é citado como um dos recursos utilizados pelos moradores
de rua para fazerem suas necessidades. Porém, não se sabe ao certo se tal uso não se dá
com algum tipo de reclamação posterior, pois é comum esse tipo de prática por parte
dos donos dos estabelecimentos, que tentam impedir a entrada dos moradores de rua
nesses locais. O que se sabe é que, de fato, os moradores de rua vão adaptando suas
necessidades diárias àquilo que esse espaço pode oferecer e “[...] transformam o espaço
público – as ruas – em seu universo de vida e de sobrevivência privado. Às vezes
tornam-se perigosos, na medida em que praticam delitos; ou simplesmente são
estigmatizados como risco à segurança pública” (BURSZTYN, 2000, p.20).
Nesse movimento, os moradores de rua também vão acrescentando novos
objetos aos monumentos já existentes, dando novo aspecto à paisagem construída.
Remete-se assim à reflexão de que “[...] morar na rua dá um novo sentido ao uso do
espaço público [...], enquanto o espaço coletivo de circulação torna-se espaço de morar.
Esta subversão de regra faz da ocupação das ruas um fato conflituoso” (VIEIRA apud
JUSTO, 2008, p.10). Ainda, quanto mais demarcam seu “espaço nas ruas” com seus
poucos pertences, “mais escandalizam os demais usuários do espaço público” (idem,
p.10).
Nesses locais, além de realizarem as estratégias de sobrevivência diária já
citadas, acabam desenvolvendo hábitos referentes ao convívio social, tais como:
reuniões em rodas, conversa entre si, namorar, beber, fumar (algumas usam drogas),
72
entre outros. Também buscam pernoitar em grupos como forma de se protegerem dos
perigos da noite e, de alguma forma, obterem alguma “segurança”; destaca-se o fato de
que nesses grupos “[...] a pessoa recupera, até certo ponto, sua identidade pessoal e
social; ela é aceita na condição de igual, enquanto que, por outros segmentos sociais, é
discriminada e inferiorizada” (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992, p.59). Dessa forma,
procuram encontrar nas ruas a satisfação mínima de suas necessidades, já que esse é o
local que lhes resta para aí sobreviver. A rua torna-se, nesse sentido, um modo de vida,
conforme se reflete a seguir:
Ser morador de rua não significa apenas estar submetido à condição
de espoliação, enfrentando carências de toda sorte, mas significa,
também, adquirir outros referenciais de vida social, diferentes dos
anteriores, baseados em valores associados ao trabalho, à moradia, às
relações familiares (VIEIRA, BEZERRA e ROSA, 1992, p.96).
Ainda de acordo com as autoras, “cair na rua” – passar a morar nas ruas –
significa romper com as formas socialmente aceitas de vida (VIEIRA, BEZERRA e
ROSA, 1992, p.97) e que, gradualmente, conforme o tempo que se permanece nesses
locais, vão dando lugar a uma nova forma de vivenciá-las. Assim, “[...] a rua deixa de
ser o contraponto negativo da casa (...) trata-se, na verdade, de um processo de perdas,
por um lado, e de novas aquisições por outro” (idem, p.98). Sendo assim, desenvolvem
nas ruas os hábitos citados, considerados de cunho privado – pois são realizados
ordinariamente em ambientes considerados como tais –, tornando-os expostos no
ambiente público. Essa exposição é que também causa indignação, pois isso não é
considerado aceitável como comportamento social e nem a rua é considerada como
local para a realização de tais atos.
Por tal motivo é que a presença dessas pessoas nos espaços públicos é vista
como sinal de desordem, de caos na sociedade. Essa presença é vista com desprezo,
com nojo, pelas pessoas que passam e veem os moradores de rua. É vista com
indignação por parte daqueles que têm estabelecimentos comerciais ou públicos, porque
os moradores de rua estão “afugentando os clientes”. Os moradores de rua são vistos
como um “lixo”, e não mais como pessoas que estão nesse ambiente atingidos por
diversas contingências, que não estão nas ruas por uma simples escolha. Dessa forma, a
vida dos moradores de rua é apontada “[...] não apenas pela ausência de moradia
permanente, convencional, mas também por uma ausência ou atenuação de papéis
73
consensualmente definidos de utilidade social e valor moral” (SNOW e ANDERSON,
1998, p.28). Assim, os moradores de rua são desvalorizados, desrespeitados em sua
condição humana e são isolados cada vez mais do convívio e da aceitação social, sendo
diminuídas as chances de saída das ruas e, consequentemente, aumentando a
necessidade de apropriar-se do espaço das ruas como moradia.
Por isso mesmo, a utilização das ruas como ambiente de moradia ocasiona desde
ações individuais de reclamações com os próprios moradores a ações de cunho geral,
como a retirada dessas pessoas por parte da polícia, dos órgãos públicos (estes afirmam
que realizam ações com vistas à organização do espaço público do qual o Estado é
responsável); há uma resistência social ao fato de que as ruas acabam sendo apropriadas
por várias pessoas para moradia e sobrevivência.
Verifica-se em ações publicamente conhecidas tal rejeição, como espancamentos
e até assassinatos dos moradores de rua, por parte daqueles que demonstram com isso
não aceitar a presença desse público. Donos de estabelecimentos que jogam óleo, água
nas calçadas dos locais para que não se abriguem em frente às lojas; ações policiais, que
se dão tanto pela retirada das pessoas dos bancos das praças, das calçadas, quanto pela
destruição dos poucos pertences dos moradores de rua durante a madrugada; e até
mesmo medidas governamentais, com o intuito de “limpar” a cidade, retirando as
pessoas das ruas e jogando-as em albergues provisórios ou cercando com grades os
locais onde se instalam as pessoas nas ruas, impedindo o acesso destas.
Tais práticas, como se sabe, são também históricas e consideradas como reflexo
da forma como a problemática do morador de rua é tratada no Brasil. Existem,
inclusive, produções artísticas que mostram, por exemplo, a realidade da visão do poder
público no trato da população de rua no país nos anos 1960, através do assassinato de
mendigos no Rio de Janeiro, com o intuito de tornar a cidade “limpa” para a visita da
Rainha Elizabeth (filme Topografia de um desnudo). Episódios conhecidos
nacionalmente, como a chacina da Candelária (assassinato de seis crianças e dois
adultos que dormiam ao relento), ocorrido no ano de 1993, no Rio de Janeiro; o
assassinato do Índio Galdino, no ano de 1997 (que foi queimado por jovens enquanto
dormia em um ponto de ônibus na cidade de Brasília), a pichação de um mendigo em
Porto Alegre, no ano de 2010, e tantos outros crimes contra moradores de rua denotam o
preconceito a partir do qual se vê essa problemática ainda na contemporaneidade.
74
Dessa forma, os moradores de rua estão completamente expostos à insegurança
pessoal, estão desprotegidos por todos os lados, são sujeitos à violência permanente e,
ainda, são vistos como os marginais, como os violentos (embora muitos utilizem dessa
atitude para se defenderem ou para conseguirem o que não possuem), dos quais a
sociedade deve ter medo, deve se afastar. A instalação das pessoas para morar na rua é
sinônimo de perigo, do “fim da tranquilidade” da sociedade, apenas pelo fato de morar
na rua, independente das circunstâncias que as trouxeram até lá, de quem sejam ou do
que precisam.
Portanto, não há uma aceitação da presença das pessoas morando nas ruas; não
há uma aceitação da sua instalação nos espaços de passagem, do transitório. E não
importa como devem sair dessa situação, importa que não ocupem esses espaços, não
incomodem a passagem, o caminho daqueles que transitam; não importunem a ordem
estabelecida.
2.5 A resposta à apropriação dos moradores de rua dos espaços públicos: o
Governo e a sociedade civil
A respeito das medidas para se enfrentar esse desafio cercado de conflitos, a
criação dos albergues, seja por parte do Estado, seja por ações filantrópicas, parece ser
de imediato uma alternativa que contribui para a retirada dos moradores de rua desses
espaços públicos. É um recurso existente nas cidades, em que esse segmento é recebido
para pernoitar em locais com um sistema de regras específico, como, por exemplo, da
condição de saírem no dia seguinte pela manhã ou de só poderem pernoitar na condição
de não estar embriagado. Ainda assim, os albergues são visitados com frequência pelos
moradores de rua, como uma alternativa de realizar aquilo que não foi possível durante
o dia, seja uma refeição, tomar um banho, seja mesmo ter um descanso menos
desconfortável. Por isso, há uma grande procura, e em muitos locais as vagas são
limitadas.
Porém, pode-se verificar que a criação de albergues é uma alternativa paliativa,
precária, que diante da reflexão feita até aqui, não oferece condições de permanência,
de apropriação desse espaço como sendo privado, porque, além de tudo, pernoita-se
sempre com outros desconhecidos, que não fazem parte de suas referências de vida.
Também não é algo garantido para todas as noites, pois não é o fato de ter sido
75
albergado numa noite que garantirá o albergue do dia seguinte. É uma situação incerta
todos os dias.
A existência de ONGs e outras instituições que distribuem alimentos e objetos às
pessoas que moram nas ruas é outra realidade existente para o atendimento das
necessidades do público da rua. Através de trabalhos semanais ou diários, equipes vão
até os locais onde os moradores estão instalados pela cidade e deixam comida, lençóis,
roupas, colchões, até levam serviços de corte de cabelo, das unhas, além, é claro, de
uma tentativa de conforto através de um momento de escuta e de palavras de apoio. Tais
atividades assim constituídas são vistas também como uma solução paliativa, que não
oferece a garantia da alimentação no dia seguinte. E, pelo fato de não terem condições
de oferecer um local adequado para a instalação dos moradores de rua, tais órgãos, que
buscam diminuir as péssimas condições em que essas pessoas se encontram, parecem
reforçar a presença delas nesses locais. Essas iniciativas são, por isso, alvo de críticas
por grande parte da sociedade.
A existência de movimentos no país voltados para a valorização, inclusão e luta
por direitos dos moradores de rua é uma realidade existente há anos, apesar de não
haver uma repercussão notória nos meios de comunicação. A partir das mobilizações
ocorridas nos anos 1980 e 1990 por parte da população de rua, devido às constantes
agressões sofridas por ela e da ausência de políticas que auxiliassem tal público, ao
longo dos anos foram sendo realizados, nas principais capitais brasileiras, fóruns de
discussão, debates, manifestações, até que no ano de 2005, houve a criação do
Movimento Nacional da População de Rua – MNPR –, movimento que passaria a
representar politicamente as reivindicações e lutas em defesa da população de rua 4.
Sabe-se também que, dentre diversos órgãos sociais que discutem acerca da
problemática, a existência do Fórum de Debates sobre a População em Situação de
Rua5, desde 2003, promovido por uma faculdade da cidade de São Paulo, trouxe para o
âmbito acadêmico, nas variadas áreas profissionais, a discussão sobre a problemática da
moradia de rua. Na atualidade, o fórum envolve, além dos acadêmicos, profissionais que
atuam junto a essa população e, ainda, representantes do segmento da população de rua.
Diante dessas e de outras iniciativas que visam trazer à tona tal problemática que
parece imperceptível, inaceitável ou “naturalizada” por parte da sociedade, o Estado
4
5
As informações sobre o MNPR encontram-se no site do movimento: www.falarua.org
Maiores informações no site: http://debaterua.atspace.com/historia/historia.htm
76
começa a reconhecer a necessidade de se elaborar estratégias políticas que visem de
alguma maneira responder a tal questão. No ano de 2005, foi realizado o Primeiro
Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua com representantes políticos e
da população de rua, e, nos anos seguintes, foi elaborada e instituída, por decreto no ano
de 2009, a Política Nacional para a População em Situação de Rua6. A referida política
direciona os procedimentos de sua implantação aos entes federativos, com a instituição
de comitês, a celebração de convênio para executar projetos sociais; apresenta os
objetivos, princípios e diretrizes voltados para a realização de políticas junto à
população de rua. Além disso, contempla a atuação dos vários setores da sociedade com
vistas a beneficiar esse público, através da garantia do acesso dele aos serviços de
saúde, educação, trabalho, esporte e lazer, cultura, assistência social e jurídica, entre
outros.
Como se pode verificar, o decreto que aprova a implantação da política voltada
para população de rua no país ainda é recente. Sabe-se que sua elaboração é o resultado
de lutas vivenciadas há anos por parte desse segmento, além do enfrentamento de
situações de violência e preconceito sofridas diariamente, sem obter sequer um
atendimento que garanta a dignidade e respeito à sua condição humana. Assim, tal
política torna visíveis as necessidades desse segmento que, durante toda a história de
desenvolvimento do Brasil, esteve invisível no que diz respeito à atenção para as suas
degradantes condições e tratado como objeto que deveria ser eliminado dos espaços
públicos, os quais se via obrigado a ocupar. No entanto, ainda não é possível identificar
um destaque nacional para essa conquista social, e, aparentemente, não se verifica
também uma adesão por parte da sociedade em geral, daquilo que se constituem como
direitos e ações políticas voltadas para a população de rua. A impressão é que se trata de
uma política resumida ao conhecimento de poucos e que ainda não possui a força social
suficiente para ser estabelecida, ao contrário do que se percebe em relação às demais
políticas existentes para outros setores da sociedade. Além do mais, o fator histórico do
país baseado no patriarcalismo, na conservação do atendimento aos interesses privados,
aliados à atual política neoliberal é o bastante para que não haja prioridade no
atendimento de interesses sociais, os quais não constituem base de lucro nem geram
ampliação dos mercados financeiros. Enfim, a realidade ainda mostra que nem a Política
6
Decreto
nº
7.053
de
23
de
dezembro
de
2009.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7053.htm
Disponível
em:
77
Nacional para a População de Rua, nem mesmo os programas voltados para a
assistência social, conseguem chegar até esse público, caracterizado pela pobreza
extrema e que deveria ser, de fato, beneficiado ao menos com os programas de
transferência de renda – ainda que esses sirvam apenas para minorar a situação de
miséria, embora não modifiquem a estrutura de desigualdades sociais.
Enquanto isso, o número de homens e mulheres que passa a ter as ruas como seu
local de moradia aumenta cada vez mais nas capitais brasileiras; em muitas delas,
inclusive, não há o mínimo de atendimento governamental a essa população, deixando
as pessoas que passam a viver nas ruas à mercê de ajudas de entidades filantrópicas e da
sociedade em geral (isso quando não há, em muitos casos, uma situação de conflito
entre os habitantes da cidade e os moradores de rua). Nesse sentido, tornou-se
interessante, para efeitos de materialização deste estudo, fazer um recorte da realidade
da moradia de rua em uma das capitais onde se concentra essa realidade – a cidade de
João Pessoa-PB –, com vistas a reconhecer a presença dos moradores de rua e sua
apropriação dos espaços públicos nos principais pontos da cidade. Para tanto, a
necessidade de conhecer o histórico da urbanização da capital paraibana, bem como
retratar a sua atual situação socioeconômica auxiliam na assimilação de alguns aspectos
que envolvem a particularidade do enfrentamento dessa problemática na cidade.
78
3 CAPÍTULO 3 - MORADORES DE RUA DA CIDADE DE JOÃO
PESSOA
3.1 Urbanização da Cidade de João Pessoa-PB: histórico e atualidade
As margens do Rio Sanhauá era o novo cenário escolhido para, ainda no século
XVI, ajudar a compor o quadro chamado Brasil. Ali estava reservado para o nascimento
da capital paraibana, que, no ano de 1585, já despontava com ares característicos de
cidade, planejada de acordo com a colonização portuguesa. Hoje adotada com o nome
de João Pessoa, em seus edifícios, ruas movimentadas, população crescente, nem de
longe lembram a Filipéia de Nossa Senhora da Neves, sua primeira denominação, com
suas poucas ruas irregulares e população pacata e de costumes.
A construção de um forte, de pelourinhos e mosteiros, entre os anos de 1585 e
1587, começou a dar os moldes de estruturação da cidade, que também iniciava a sua
organização social. Em meio a isso, o delineamento das primeiras ruas começava a abrir
o espaço necessário para direcionar o crescimento da cidade. A rua Nova e a rua Direita
foram as primeiras denominações dessas vias que surgiam na cidade.
O crescimento comercial nos anos seguintes, com a expansão da venda do
açúcar, configurou também a expansão estrutural da cidade: aumentou o número de
construção das casas e também sua qualidade, pelo fato de os comerciantes
enriquecerem com as vendas. Dessa forma, foram se definindo entre seus limites
urbanos a chamada Cidade Alta, constituída pelas instituições religiosas e pelas
residências, onde um segmento mais seletivo da população a ocupava; e a Cidade
Baixa, local reservado para a instalação das atividades comerciais. Tal configuração,
elaborada de acordo com o padrão comum das cidades coloniais, perdurou ainda até fins
de século XIX. Nesse período, a Cidade Baixa já concentrava os fluxos comerciais da
cidade, sendo esse local visto como o centro comercial principal da capital paraibana.
Por isso também que era na Cidade Baixa onde se localizava a estação de trem, o porto
da cidade, entre outros principais estabelecimentos, que facilitavam a circulação de
produtos.
Porém, o fim da exploração holandesa, já no século XVIII, culminou, em virtude
das dívidas sofridas nesse período, em uma dependência da capitania pernambucana.
Tal situação acaba se refletindo em sua organização social e espacial, pois, pelo fato de
não haver uma diferenciação mais evidente entre classes, com segmentos mais
79
abastados na cidade, o investimento e expansão dessa passa a ser mais lento. Verifica-se
assim que “[...] de uma maneira geral, durante todo o período colonial, a cidade
permaneceu como uma pequena povoação composta de sítios, na maioria com pomares,
e rodeada pela floresta tropical. No início do século XIX contava ainda com apenas
3.000 habitantes” (SILVA, 1997, p.7).
A cidade já apresentava, portanto, as marcas daqueles que a ocupavam e
compunham seu quadro social. A presença dos negros escravos e índios, os quais
traziam seus costumes tradicionais, caracterizava os hábitos sociais dos citadinos, como,
por exemplo, a existência dos banhos nus diários nas bicas públicas e a forma de os
homens andarem nus da cintura para cima. A religiosidade também dirigia a vida social
da população, onde se destacava sua importância, através da construção de igrejas, e a
dedicação às suas festividades, as quais, além de fazerem parte do ritmo que
movimentava a população, reuniam todo o povo em sua diversidade étnica e social em
uma mesma confraternização.
A construção de novas casas e sobrados não era acompanhada pela estruturação
de suas ruas e calçadas. Essas ainda apresentavam aspecto rude, que impunham
dificuldades de locomoção das carroças e pedestres. A situação se tornava mais
agravante no período das chuvas, quando o lamaçal tomava conta desse espaço de
circulação, tornando a saída às ruas um transtorno sem precedentes. Pode-se observar,
portanto, que a estruturação desse espaço não era prioridade durante a construção da
cidade: a rua era vista apenas como o local em que se depositava o lixo tirado das
residências, as quais eram bem conservadas. Juntamente com a vegetação rasteira que
crescia e servia de pasto para animais, o lixo acumulado nas ruas representava o
entendimento do espaço da rua como o local de ninguém, onde a construção dos altos
muros e grades das casas protegia os seus moradores desse espaço caótico, o qual era
definido como depósito de tudo aquilo que não prestava – e também daqueles que não
serviam também para a sociedade, como os pobres, os loucos, os criminosos – os quais
acabavam sendo “recebidos” pelas ruas.
A Parahyba – outra denominação dada à capital – retoma o crescimento
econômico e social já em fins do século XIX, com a produção do algodão e escoamento
em seu porto para a venda e as consequentes importações de produtos. A construção de
novos estabelecimentos comerciais na parte baixa da cidade e a expansão populacional
deram novo ritmo à urbanização da cidade, que aumentava sua extensão. Assim, a
80
modernização chega à cidade, e com ela a necessidade de uma adaptação a novos
hábitos que vão sustentar esse aspecto, que se diferenciavam dos costumes pacatos
vividos até então pela sociedade.
Com o acesso a novas informações e ideias oriundas da civilização europeia,
chegavam à Parahyba as agremiações esportivas e literárias, as revistas de moda, os
bondes e os jardins públicos, que ao mesmo tempo em que se constituíam como uma
novidade, também se tornavam elemento demarcador das diferenças sociais, pois o
acesso a esses novos produtos e serviços se restringia àqueles que se encontravam em
condições econômicas de adquiri-los. Assim, a população considerada pobre começava
a ser excluída dos novos hábitos da cidade, parecendo, dessa maneira, “não fazer parte”
dela. Dava-se início ao que seria reconhecido mais tarde já nos primeiros anos do século
XX como “Revolução Urbanística”.
Nesse século que surgia, a capital já atravessava um novo momento em sua
urbanização: com a vida nas cidades ainda mais valorizada em função do ordenamento
econômico, o qual dava relevância ao patriarcado urbano, “[...] que se legitimava
através da classe média, compreendida por comerciantes, profissionais liberais,
estudantes e mulheres” (SILVA, 1997, p.15), a cidade, agora chamada João Pessoa (a
partir de 1930), também passava por um reordenamento espacial urbano. A demolição
de Igrejas para dar lugar à construção de praças, por exemplo, significou, conforme se
afirma acerca desse período, a “[...] mudança que a cidade experimentava, saindo de
uma ordem social religiosa para uma ordem laica, em função do recém-nascido estado
republicano” (idem, p.14). Porém, mantinha a estrutura de poder evidente, representado
também na construção de monumentos e prédios públicos grandiosos, que sinalizavam a
centralidade do poder político e econômico.
No tocante à organização das residências e demais prédios, a cidade cresce nas
demais direções (sentido leste e sul), ampliando a construção de um número maior de
prédios públicos e alteração no formato das casas das classes médias, que passam a ser
descoladas uma da outra e a possuir varandas. Essa expansão das construções começa a
afastar os moradores do espaço considerado como o Centro da cidade. As obras de
saneamento, iniciadas na década de 1920, também fizeram parte da nova configuração
da cidade, em um contexto do país de reforma da saúde pública. Sob a administração
municipal de Guedes Pereira, “[...] foi urbanizada a Lagoa, que se transformou em
parque Solon de Lucena, construída a Praça Vidal de Negreiros, no Ponto de Cem Réis,
81
e o Parque Arruda Câmara, a Bica [...]. Foram abertas várias ruas de ligação às artérias
principais, a partir da planta da cidade” (SILVA, 1997, p.17-18). Acerca dos serviços
básicos (abastecimento de água e luz), a cidade de João Pessoa ainda os oferecia de
maneira limitada para seus moradores. Para se ter uma ideia, a água era utilizada de
forma racionada até meados dos anos cinquenta, quando houve a construção da adutora
das Marés. No local onde hoje se contempla o tradicional Colégio das Lourdinas,
abrigava-se a estação dos bondes que ainda eram utilizados, e em seus compartimentos
havia a classe dos ricos e a classe dos pobres (esta se tratava de um reboque engatado ao
bonde). O passeio às praias, nesse período, não fazia parte do lazer urbano, a não ser
que as famílias abastadas se deslocassem até lá para veraneio.
A vida nas ruas também foi reestruturada, com a construção de diversas praças e
coretos, que estimulavam a saída das pessoas de suas casas para o lazer e rodas de
discussão política. Contudo, esses espaços eram cercados, limitando seu acesso apenas
para a classe média e alta, as quais os utilizavam para passeios e apreciação das bandas
que ali se apresentavam. Às pessoas pobres não era destinado qualquer investimento
voltado para o lazer e, assim, elas permaneciam pelas ruas olhando de longe o
espetáculo que era oferecido apenas àqueles a quem o Governo oferecia tais benefícios.
Essa cena refletia, dessa forma, a segregação social que se configurava na cidade, assim
como nas demais capitais brasileiras. Constata-se que até mesmo a frequência a eventos,
como as missas dominicais, restringia-se às classes ricas, mesmo não havendo proibição
para a presença de pobres; mas estes, diante de tantas pompas, olhares e “narizes
empinados”, não se consideravam no direito de acessar tais locais, pois eram “muito
diferentes”. Em relação à principal festividade religiosa da cidade, relata-se que “[...] a
Festa das Neves, que em séculos anteriores era festejada por toda a população, passou a
ser uma festa das elites. Os pobres ocupavam lugar subalterno e eram chamados de
"gentinha", classe composta por empregadas domésticas, soldados, caixeiros, etc.
(OCTÁVIO e AGUIAR apud SILVA, 1997, p.20). E ainda, “[...] as atividades sociais
de rua se resumiam em reuniões políticas, festas, desfiles cívicos e militares e futebol.
Afora isso, as visitas eram eventos cerimoniosos” (idem, p.20). De tais acontecimentos
sociais, a classe pobre não tinha conhecimento nem acesso, sendo, assim, cada vez mais
excluída das atividades urbanas. A ela restava a obrigação do trabalho exaustivo –
quando o tinha – ou mesmo o desprezo e indiferença sofrida com a sua precária situação
de vida.
82
A capital da Paraíba continuava seu processo de formação e expansão nas
décadas seguintes, com a construção de uma de suas avenidas, a Epitácio Pessoa, sendo
essa uma das principais vias de acesso da população às praias urbanas, seja em seus
veículos, seja através dos transportes de massa existentes. Os recursos recebidos através
da Política Nacional de Habitação foram aplicados, em sua maior quantidade, nas áreas
próximas à citada avenida, com a construção de casas em condições de serem
financiadas apenas pela classe média e alta. E ainda, a melhoria da infraestrutura na
região das praias levou aqueles que tinham casas de veraneio a tornarem tais moradias
permanentes. Dessa forma, reduzia-se a possibilidade de aqueles que não possuíam
condições financeiras habitarem esses locais, apartando-se do acesso frequente a essas
áreas.
Dessa maneira, os pobres, que também passaram a desocupar o centro da cidade,
por esse se caracterizar mais como referência comercial, sem opção adequada de local
de moradia, começaram a construir suas casas nos trechos próximos à rodoviária (que
atualmente configura-se como o Bairro Cruz das Armas) e outras regiões, como o atual
bairro de Mandacaru, diante dos limites da cidade que não davam acesso a tantas
construções (como a existência de manguezais a oeste da cidade, por exemplo).
Abrigavam-se, por vezes, em locais suscetíveis a desmoronamentos, como encostas e
morros; são, assim, “empurrados” para fora do movimento da cidade e da ordem
espacial burguesa.
Nos primeiros anos deste século, a cidade de João Pessoa ainda se caracteriza
como uma capital em desenvolvimento no Nordeste do Brasil. Afirma-se que, entre as
décadas de 1970 e 1980, “[...] a população da cidade cresceu 62%, enquanto a área
urbana ampliou-se em 170%” (SILVA, 1997, p.24). Vale salientar que o delineamento
urbano da capital paraibana inclui uma vasta área verde, ponto de preservação
ambiental. Dessa forma, é interessante observar que, mesmo em meio à expansão das
construções prediais, a cidade parece ter uma qualidade ambiental satisfatória no que
diz respeito à sua urbanização.
Atualmente, com 702.235 habitantes, a capital paraibana aumentou o número de
sua população em 14% desde o ano 2000 (IBGE 2009). Apesar de a infraestrutura não
acompanhar esse processo, o qual se caracteriza como um “inchaço populacional”, a
cidade de João Pessoa caracteriza-se por possuir a tranquilidade de moradia e de ter a
presença de um povo receptivo. Também, o fato de ter um PIB per capita (dados do ano
83
de 2007) de 10.018 reais (IBGE, 2009), faz da cidade um polo atrativo para
investimentos comerciais, por seu potencial de crescimento e de seu segmento médio e
alto da população representar um bom público de consumo. Ademais, a cidade de João
Pessoa conserva as marcas da valorização e vivência da cultura popular, presentes nos
eventos frequentes e nos monumentos históricos existentes e conservados para
apreciação.
Em relação à organização espacial, a cidade busca se adaptar de modo a atender
as principais necessidades da população que cresce consideravelmente. Pode-se citar
como exemplo o fato de já haver uma estrutura de serviços ao redor das áreas mais
afastadas do centro, de maneira que os habitantes dessas áreas não precisam se deslocar
do bairro onde moram. O centro passa agora a não ser o único ponto de referência
comercial (apesar de ser ainda o principal). A construção dos shopping centers,
disponíveis para o consumo das classes média e alta e a criação de subcentros populares
(como o centro comercial existente no bairro de Mangabeira, que se encontra a cerca de
11km de distância do centro da cidade), refletem uma nova configuração dos espaços
sociais da capital paraibana, em que o consumo está acessível às pessoas. O centro da
cidade, que guarda em algumas de suas instalações a memória das suas primeiras
construções, continua a abrigar o comércio e os serviços; todavia, apresenta uma
característica mais popular, identificada também naqueles que o acessam. A região do
centro da cidade ainda é a principal via de acesso à rodoviária e ponto de circulação dos
transportes coletivos da cidade.
3.2 As marcas de hoje: a cidade de João Pessoa-PB e a presença dos
moradores de rua
A capital paraibana, conforme os demais centros urbanos brasileiros, traz as
marcas que evidenciam as contradições que chamam as autoridades ao desafio de
elucidá-las. As características mencionadas anteriormente e que bem traduzem os rumos
da capital sobrevivem em meio a um cotidiano marcado pelos índices de violência
crescente e de desigualdades sociais, em que a miséria se contrapõe às potencialidades
que geram riquezas para a cidade, características presentes nas capitais do Brasil. A
incidência de pobreza em João Pessoa, por exemplo, segundo dados do ano de 2003,
chega a 52,98% (IBGE, 2009), denotando o aspecto contraditório que não pode ser
ocultado, o qual faz parte da realidade local.
84
Nesse sentido, ainda cabe trazer à luz um dos aspectos desse contraste, o qual
faz parte da investigação aqui apresentada. A descrição sobre a formação da cidade de
João Pessoa revela que a sua constituição foi permeada pelas marcas do
desenvolvimento e desigualdades, evidentes em todo o processo de formação social
brasileiro. E mais especificamente, o modo como eram tratados aqueles que não
dispunham de condições econômicas para sobreviver torna evidente o caráter da
exclusão social latente na cidade. O afastamento dos pobres da participação da vida
social da população e até mesmo da possibilidade de constituírem habitações nas
principais áreas da cidade são fatos concretos dessa realidade.
É possível inferir também que a cidade de João Pessoa carrega em seus traços
urbanos a presença de pessoas que estão ainda aquém das perspectivas em relação às
classes sociais até aqui apresentadas. Trata-se de pessoas que não possuem condições
financeiras de participar da dinâmica de consumo, mas que também não têm condições
de habitar nos bairros populares ou até mesmo nas favelas; estão em todas as partes da
cidade, desde o seu centro comercial, onde têm contato com parte da população em
geral, até as praias urbanas, onde são vistas pelas classes abastadas. Os moradores de
rua adultos da cidade de João Pessoa encontram acessos aos espaços da cidade,
composta em seus diversos bairros; porém não encontram acesso a uma política local
que contemple a satisfação de suas necessidades.
Em relação a essa situação, até o momento da elaboração deste trabalho, foi
criado em 2007 um abrigo para adultos, por iniciativa da Prefeitura, mas que, no ano
referente à Pesquisa (2010), não foi localizado no endereço informado no site da
Prefeitura.
De acordo com o que foi descrito até aqui, os moradores de rua são pouco
caracterizados historicamente como parte da formação da população. Mas não há como
esconder essa realidade, a qual existe tanto no passado como no presente da capital
paraibana. Conforme dados da pesquisa nacional, chega a ser de 205 a quantidade
média de pessoas adultas que moram nas ruas da capital (MDS, 2008). Os adultos que
moram na rua, observados durante a pesquisa realizada pelo Ministério do
Desenvolvimento Social e combate à Fome, buscam de alguma forma ter meios de
sobrevivência na cidade, seja exercendo alguma atividade, seja através da mendicância.
Em relação à presença dos moradores de rua em João Pessoa, os locais observados,
durante a pesquisa, que possuíam maior concentração de moradores de rua, tratava-se
85
das áreas comerciais do centro e de suas praças, durante a noite; pelo período diurno, ao
que se entende, essa concentração se desfaz, e muitas vezes não é perceptível a presença
desse público em tais espaços. Dessa forma, o centro da cidade, aqui retratado como
local onde atualmente não reside a maioria da população da cidade, mas apenas o utiliza
para a aquisição de serviços, é onde, mais especificamente à noite, “abrigam-se” os
moradores de rua da capital.
Acerca da execução de políticas sociais voltadas ao atendimento à população de
rua na cidade de João Pessoa, o que se verifica é que as ações governamentais são
voltadas mais diretamente para as crianças e adolescentes da cidade, com programas
realizados pela Prefeitura da cidade, de abordagem de rua e manutenção de abrigos e
casas de Passagem, em consonância com a consecução de direitos garantidos pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente. Também há campanhas em locais de grande
circulação, como a rodoviária, de incentivo à não-doação de dinheiro para crianças e
adolescentes que pedem esmolas. Em relação à população de rua adulta, conforme já
mencionado na Metodologia desse estudo, não houve acesso a maiores informações
quanto à existência de Programas voltados para esse segmento na cidade. O que se
percebe, ao andar pelas ruas (durante o período das observações, como parte da
pesquisa) é a existência de alguma iniciativa de cunho particular /filantrópico que
atende emergencialmente as necessidades de moradores de rua, como, por exemplo, a
presença de uma pessoa que distribui sopa no fim da tarde, diariamente, aos moradores
de rua que estão em dos pontos do centro da cidade. Outra iniciativa se dá através de
entidades religiosas e filantrópicas que diariamente saem à noite para distribuir comida
e objetos para acomodação dos moradores de rua nos locais em que eles se instalam
para dormir, nos diversos pontos da cidade.
No mais, a realidade da moradia de rua em João Pessoa-PB não demonstra ser
um tema preocupante na pauta de discussões do conjunto da problemática da cidade,
mesmo com o aumento de pessoas atuando nos semáforos, nos canteiros da capital, e
especialmente à noite, quando o movimento da cidade diminui, e dessa forma se destaca
a presença de moradores de rua ocupando os diversos espaços públicos da cidade.
Presenciam-se também cenas cotidianas de violência aos moradores de rua nas páginas
dos principais jornais, como o assassinato, no mês de janeiro de 2011, de um morador
de rua durante a noite, enquanto dormia embaixo de uma árvore localizada em dos
pontos do centro da cidade.
86
O que se pode refletir diante desse quadro é que são inúmeros os desafios para se
reconhecer e atuar no sentido de minimizar as péssimas condições de vida da população
de rua da cidade de João Pessoa (apesar de já existirem programas assistenciais voltados
para as crianças e adolescentes que também vivem nas ruas7). De fato, isso demonstra o
quadro social negativo do país, no que se refere à busca pela igualdade de condições
entre seus cidadãos. Sem um apoio efetivo, resta aos moradores de rua da cidade de
João Pessoa-PB a luta pela sobrevivência, frequentando os principais locais da cidade e
apropriando-se dos espaços que essa capital em crescimento populacional e econômico
oferece, para obterem alguma renda e abrigo, em meio ao acelerado ritmo de
construções prediais e circulação de pessoas, adaptando-se a esse modo de vida que foi
imposto como última – e única – alternativa.
O capítulo seguinte trata da descrição de alguns depoimentos ouvidos durante o
período de execução da pesquisa realizada em pontos do Centro da cidade (Praça da
Independência, Praça 1817, proximidades do Mercado Central), em que foram
escolhidos três dos dez relatos ouvidos, trazidos aqui como forma de ilustrar a realidade
observada. Neles se percebe a dinâmica que indica tanto a trajetória de vida que
culminou com a chegada às ruas quanto as estratégias de adaptação e sobrevivência
nesses locais, que caracterizam a apropriação feita pelos moradores de rua nos espaços
públicos da capital paraibana.
7
Programa de abordagem de crianças e adolescentes em situação de rua, desenvolvido pela Secretaria de
Desenvolvimento Social (SEDES) da Prefeitura de João Pessoa. A proposta se utiliza basicamente da
linguagem artística para facilitar a aproximação. Depois da abordagem, é feito o encaminhamento, seja
para um retorno à comunidade, seja para uma das unidades de acolhimento.
87
4 CAPÍTULO 4 - O PERCURSO PARA A REALIZAÇÃO DE UMA
PESQUISA JUNTO AOS MORADORES DE RUA DA CIDADE DE
JOÃO PESSOA-PB
A pesquisa como instrumento da Ciência parece ser algo que se inscreve em uma
perspectiva além da realidade em que se vive, mas não é: o início de sua atividade se dá
a partir do dia a dia, nas ações ditas corriqueiras. Afirma-se que “[...] a prática
quotidiana e as vivências dos problemas no desempenho profissional diário ajudam, de
forma importantíssima, a alcançar a clareza necessária ao investigador na delimitação e
resolução do problema” (TRIVIÑOS, 1987, p.93). Fazemos parte de um contexto:
estamos lidando profissionalmente, pessoalmente, com uma dada realidade. Quando não
compreendemos determinado fenômeno, ou percebemos algo de extraordinário, ou até
mesmo a sucessão de fatos, logo vem a curiosidade de se desvendar tal fenômeno. Mas
também simplesmente o desejo de conhecer algo de maneira mais detalhada inspira a
necessidade de se chegar, de alguma forma, mais próximo daquilo que nos “inquietou”
e de também encontrar uma resposta que desvele o fenômeno em todas as suas
expressões.
E se há uma pretensão em tentar a busca por essa resposta, é preciso então trilhar
um caminho para se chegar a ela. É, de fato, um trabalho de investigação, que visa
desvendar uma dada realidade, algo que aparentemente não está claro ou que merece um
detalhamento para sua melhor compreensão. Assim é que se intenta a realização de uma
pesquisa, a partir dos seguintes elementos: o método, isto é, a maneira como irá ser
observado, interpretando aquilo que será constatado no fenômeno; os instrumentos, que
se trata daquilo que é utilizado para apreender o fenômeno e o aproxima da
interpretação; e além, claro, do próprio pesquisador que trará suas hipóteses, dúvidas,
inquietações, que marcarão as possibilidades sobre quais caminhos serão percorridos. E,
antes de tudo, o próprio objeto em questão, que traz a marca do surpreendente, à medida
que se aprofunda no conhecimento desse.
A despeito do método, é importante inferir que esse “[...] é o caminho para se
chegar a determinado fim. E método científico como o conjunto de procedimentos
intelectuais e técnicos adotados para se atingir o conhecimento” (GIL, 1987, p.27). E
ainda acerca dos métodos nas Ciências Sociais, esses “[...] visam fornecer a orientação
necessária à realização da pesquisa social, sobretudo no referente à obtenção,
88
processamento e validação dos dados pertinentes à problemática que está sendo
investigada” (idem, p.34). De fato, considera-se que “[...] cada fenômeno deve ser
analisado tendo em conta toda a gama possível das suas manifestações concretas,
estudando cada uma através de uma investigação exaustiva de exemplos detalhados”
(MALINOWSKI, 1997, p.30). A escolha do método é, portanto, relevante no processo
da pesquisa empreendida.
Tais conceituações levaram a indagações diante da problemática já anunciada e
do desejo de “vê-la”, mais de perto, e até mesmo de desnudá-la. A observação da
apropriação dos espaços públicos pelos moradores de rua nas cidades é o que instiga
esta investigação.
Partiu-se então do pressuposto de que as pessoas que moram nas ruas são
caracterizadas como tais por utilizarem esse espaço para sobrevivência. O
reconhecimento da presença de um público que se apropria desse local para conseguir
alguma renda é crescente no Brasil; mas há determinado grupo populacional que se
diferencia pela utilização da rua para permanecer nela, utilizando-a como moradia.
Dessa forma, o pressuposto foi complementado pela necessidade de caracterizar o
morador de rua como aquele que não só passa por ela para conseguir alguma renda, mas
permanece nela, fazendo desse espaço, considerado público, o seu espaço privado, onde
também desenvolve hábitos como dormir, comer, tomar banho, entre outros. Destaca-se
também que essa constatação pode ser evidenciada tanto através da fala daqueles que
vivem essa realidade, como pela observação de seus atos no ambiente em que se
encontram. A necessidade, portanto, de captar a linguagem corporal também poderia
contribuir para a investigação. Desse modo, seria importante tomar como um
instrumento imprescindível no percurso investigativo a observação, para verificar as
suposições indicadas.
Porém, era necessário ainda delinear o caminho a ser seguido para dar rumo à
investigação. Com base nas acepções feitas sobre as pretensões deste estudo,
consideraram-se pertinentes as definições acerca da pesquisa etnográfica para o
objetivo pretendido. Afirma-se que “[...] existem vários fenômenos de grande
importância que não podem ser recolhidos através de questionários ou da análise de
documentos, mas que têm de ser observados em pleno funcionamento [...]”
(MALINOWSKI, 1997, p.31). Esse autor descreve, em seguida, aquilo que basicamente
89
deve ser levado em conta por um investigador científico que escolhe realizar a pesquisa
de forma etnográfica:
Neles se incluem coisas como a rotina de um dia de trabalho, os
pormenores relacionados com a higiene corporal, a maneira de comer
e de cozinhar; a ambiência das conversas e da vida social em volta das
fogueiras da aldeia, a existência de fortes amizades ou hostilidades e
os fluxos dessas simpatias e desagrados entre as pessoas, o modo sutil,
mas inequívoco como as vaidades e ambições pessoais têm reflexos
sobre o comportamento do indivíduo e as reações emocionais de todos
os que o rodeiam (MALINOWSKI, 1997, p.31)
O autor ainda frisa que esses fatos devem ser observados e registrados, não de
maneira superficial, mas sim com teor científico, “[...] com um esforço de penetração na
atitude mental que eles expressam” (MALINOWSKI, 1997, p.31). Também destaca o
desafio de se trazer para o leitor a vida real investigada, sob o aspecto legal e íntimo, a
partir do registro das opiniões, das visões dos sujeitos, mas também do comportamento,
já que “o modo e o tipo de comportamento observado na representação de um acto é de
máxima importância” (idem, p.33). Tais atitudes, em conjunto com outras, devem
marcar aquele que opta pela pesquisa etnográfica, a qual objetiva “[...] compreender o
ponto de vista do nativo, a sua relação com a vida, perceber a sua visão do seu mundo.
Temos de estudar o Homem e devemos estudar o que mais o preocupa, ou seja, aquilo
que o liga à vida” (idem, p.36).
A partir das conceituações trazidas sobre a pesquisa etnográfica, era importante
encontrar o próprio sujeito motivo da investigação, que se apresenta em meio à
movimentação social e que parece “invisível” – por não ser considerado como parte
dela – pelos demais cidadãos. Portanto, encontrar o sujeito, ter acesso ao sujeito e
observar o sujeito – eis os passos que iriam constituir a pesquisa empreendida.
4.1 Primeiro passo: encontrar o sujeito
Os primeiros contatos com o tema desse estudo deram-se no desenvolvimento
das atividades como Assistente Social em um Programa Social da Prefeitura Municipal
de Natal-RN, intitulado “Programa Canteiros Reconstituindo Vidas”. Tratava-se de um
Programa Social constituído por Projetos Sociais voltados para o segmento adulto e
adolescente dos moradores de rua da cidade de Natal-RN e tinha por objetivo resgatar
esse público das ruas, através da profissionalização, com capacitação e encaminhamento
90
para o mercado de trabalho e estágios. Dessa forma, o Programa era visto como uma
novidade, por atuar junto a um segmento “invisível” aos olhos dos transeuntes – os
moradores de rua - e inspirava questões acerca desse universo, o qual se começava a ter
acesso em seus interstícios.
A partir daí, na atuação diária, nas abordagens realizadas às pessoas que estavam
nas ruas, o olhar já se modificava: o desejo de procurar conhecer a realidade das pessoas
“de rua” já se manifestava de forma contundente. Através da aplicação de questionários
e investigação da situação socioeconômica das pessoas abordadas, foi possível perceber
o fato de que havia pessoas que passavam o dia na rua, desenvolvendo atividades para
conseguir dinheiro, mas que não moravam na rua. Há pessoas que passam o dia na rua,
limpando para-brisa de carro, pedindo esmola, cuidando de carros e que, à primeira
vista, parecem ser habitantes daquele local, mas não o são: têm suas residências, ainda
que nas favelas e cortiços, de maneira precária. Ao recorrer à literatura que trata sobre
moradores de rua, há de fato uma diferenciação trazida pelos autores acerca da
permanência no espaço público, que os distingue em denominá-los como pessoas que
têm as ruas como seu local de moradia ou não. Assim, perceber que existia essa
diferenciação fez com que o “olhar” começasse a entrar em foco, já que tais estudos
proporcionaram uma maior segurança para a realização de uma nova abordagem ao
público em questão.
Ainda em relação à atuação profissional anterior ao início da pesquisa, as
abordagens eram realizadas durante o dia, no momento em que as pessoas estavam
desenvolvendo atividades pelas ruas. À primeira vista, havia dificuldade em perceber se
aquelas pessoas que estavam exercendo atividades nesses locais também habitavam
neles (perguntas que já aguçavam a curiosidade). Somente quando alguém era
entrevistado para coletar seus dados é que se sabia sobre sua situação de moradia.
Dessa forma, surgiu a necessidade de reconhecer quem de fato é o morador de
rua que tomou a atenção a partir de então. Porém, somente a atuação no trabalho não se
configurava como suficiente para encontrar os sujeitos em questão. Assim, a partir da
percepção de que “[...] as pesquisas propendem para reconhecer uma pluralidade
cultural, abandonando a autoridade única do pesquisador para reconhecer a
polivocalidade dos participantes [...]” (CHIZZOTTI, 2003, p.231), era preciso assumir
uma decisão de aprofundar-se naquilo que já havia começado, agora necessitando
munir-se de teoria, técnica e ações que fundamentassem uma resposta para tais
91
questionamentos e com isso pretender despertar uma discussão mais aprofundada sobre
esse tema. Assim, já durante o Mestrado, buscou-se encontrar as formas com as quais se
poderia encontrar o “morador de rua” e conhecer seu modo de viver.
Dessa feita, deu-se um novo início: percorrer os caminhos para efetivar uma
pesquisa sobre moradores de rua, revelando o modo de viver desse segmento na
sociedade. O levantamento bibliográfico acerca desse tema, a busca de reportagens,
programas sociais, leis que dão assistência a essa camada populacional foram
desvelando a “presença” dos moradores de rua no cenário social. Tais levantamentos
levaram ao conhecimento de que a questão do morador de rua é discutida no meio
acadêmico basicamente por cientistas sociais e antropólogos e, ainda, pela área da
psicologia. Os estudiosos trazem como produto de aproximações junto aos moradores
de rua reflexões e análises acerca dos motivos que levam pessoas a ter esse local
enquanto moradia, bem como sobre a maneira de viver na rua. Geralmente são estudos
baseados em realidades locais (pesquisa em um município) e que são apresentadas com
vistas a assimilar a realidade nacional sobre a moradia na rua. A pesquisa apresentada
pelo Governo Federal no ano de 20088, que abrangeu todo o país, traz a quantidade de
moradores de rua existentes nacionalmente e em cada Estado e ainda revela um perfil
característico sobre o morador de rua.
Com isso, parecia que a suposta inquietação havia sido respondida, tendo
encontrado o morador de rua. Porém, ainda se buscava reconhecer a relação entre o
morador de rua e os espaços públicos na realidade local, na cidade de João Pessoa-PB,
no intuito de constatar como era a vida dos moradores de rua daquela cidade.
Segundo a literatura corrente sobre o tema, as pessoas que têm as ruas como
espaço para moradia e sobrevivência permanecem geralmente em locais onde há grande
fluxo de circulação de pessoas, tais como os centros comerciais, e nas principais
avenidas das cidades. Assim começou-se a percorrer alguns pontos da cidade de João
Pessoa-PB, à procura desse público, para dar início ao que se pode considerar como
uma nova etapa da pesquisa, do encontro com o sujeito: o de começar a procurar onde
estava o morador de rua da cidade de João Pessoa-PB.
A partir do mês de março/2010, em visitas ao centro da cidade, caminhando pelo
local, ou mesmo só passando dentro do ônibus, foi perceptível a presença de pessoas
8
Trata-se da Pesquisa Nacional sobre a População em situação de Rua – 2008, já mencionada no capítulo
anterior.
92
que exerciam atividades de limpador de para-brisa, vendedores de frutas e pedintes
pelos arredores do principal ponto de referência do centro da cidade9. Daí passou-se a
observar esse movimento com mais frequência, passando a visitar o local por três vezes
na semana, em média, e nos sábados, durante dois meses, para tentar identificar se
dentro desse universo havia moradores de rua.
A partir dessas visitas foi possível notar a existência de um grupo que, em todos
os momentos em que foi encontrado, estava sob as árvores desse ponto do centro da
cidade. Eles eram vistos somente durante o dia, já que nas observações feitas durante a
noite, nenhuma pessoa se encontrava nesse local; o que parece, portanto, que aquele
ponto era utilizado como ‘parada’ para descanso ou até mesmo para uso de drogas
(percebia-se a utilização de garrafas à boca – característico de cola de sapateiro). O
grupo se caracterizava pela presença de uma média de oito pessoas (a maioria era
homem), com idade aparente de até trinta anos, que estavam com roupas maltrapilhas e
algumas sacolas.
Tais observações implicaram no levantamento de algumas reflexões: a literatura
afirma que a permanência na rua é o que assinala alguém como sendo morador de rua.
Parece óbvio, mas a princípio, somente uma observação “de longe” não é suficiente
para identificar uma pessoa como tal. Conforme exposto anteriormente, há pessoas que
passam o dia nas ruas, mas têm a sua referência de casa, ainda que seja em
barracos/cortiços. Essa “impressão” que foi trazida da experiência profissional tornou-se
como uma forma de “filtrar” as buscas pelo morador de rua.
No caso das observações ao grupo, enquanto essas eram feitas durante o dia,
parecia evidente que aquelas pessoas que estavam ali eram moradoras de rua, pois, nos
horários da manhã e da tarde em que se passava por lá, o grupo estava presente no
mesmo local, com pedaços de papelão sendo utilizados como objeto sobre os quais
dormiam em plena luz do dia. Porém, ao se ter a ideia de começar a andar pelo local à
noite, foi verificado que eles não se encontravam; e diante do conceito citado
anteriormente, havia dúvidas se aquele grupo se tratava de moradores de rua ou não.
Mas a característica de se apropriar dos diversos espaços existentes na cidade poderia
ser considerada na observação da rotina desse grupo – que nesse caso, provavelmente
utilizava outro local para dormir – e, dessa forma, ser identificado enquanto moradores
9
Esse ponto é conhecido como o Parque Solon de Lucena: há uma Lagoa, que marca o ponto central da
cidade, e ao redor diversas avenidas e centros comerciais. Por esse ponto de referência desloca-se para
outros bairros, para o terminal rodoviário da cidade, havendo circulação constante de pessoas.
93
de rua da cidade. Porém, não foi possível elucidar tal questão através de uma
aproximação ou até mesmo ouvir o relato deles, pelo fato de que, em todos os
momentos observados, essas pessoas se encontravam fazendo uso da cola de sapateiro.
De qualquer maneira, isso serviu como constatação de que o relato do sujeito era
também importante para distingui-lo dentro daquilo que se considerava como morador
de rua. E, ainda, que a figura dele está “escondida” entre diversos atores do movimento
diário da rua; e para reconhecê-lo, era preciso aprofundar o encontro, que até então
estava reduzido a um “localizar”. Era preciso, de fato, “abordar”, ter acesso ao sujeito.
Porém, tal necessidade se colocava como um desafio, na medida em que as pessoas que
foram localizadas até o momento não se encontravam em condições favoráveis para
uma abordagem. E também não havia o interesse em encerrar as observações sem ter
constatado a presença dos moradores de rua da cidade de João Pessoa-PB e sua
apropriação dos espaços públicos da cidade. Dessa forma, somente encontrando algum
lugar estratégico de visita, de passagem dos moradores de rua existente na cidade é que
ocorreria a oportunidade de aproximação a esse público. Nos relatos de experiências e
pesquisas com moradores de rua em outras cidades, é frequente a menção aos albergues
mantidos por prefeituras ou entidades filantrópicas, onde os moradores de rua
pernoitam. Embora em número reduzido em relação à demanda existente e mesmo com
uma série de exigências para usufruir dessas, verifica-se uma considerável circulação
nos albergues diariamente, e, em alguns casos, ocorre até disputa por vagas nesses
locais.
Em pesquisa no site da Prefeitura e ligações para seus respectivos órgãos, foram
obtidas informações sobre um albergue destinado a moradores de rua adultos da cidade,
criado em 2007, mas que, no ano referente à Pesquisa (2010), não foi localizado no
endereço informado tanto pelo site da Prefeitura quanto pelas informações fornecidas
por telefone pela Secretaria de Desenvolvimento Social (SEDES) da Prefeitura de João
Pessoa. Também houve visita ao chamado “Restaurante Popular” (tipo de restaurante
que faz parte dos Programas Sociais mantidos pelo Governo Federal), por esse ser
considerado um local de acesso amplo, o qual oferece refeições ao custo de R$ 1,00 e
que supostamente um morador de rua poderia procurá-lo para fazer refeição. Havia uma
expectativa de encontrar ao menos algumas pessoas de que se tivesse a impressão de
serem moradores de rua e abordá-las com uma conversa informal, no anseio de
94
comprovar ou mesmo negar as impressões já existentes e obter outras informações
sobre sua vida nas ruas.
Na chegada ao local, já observando a fila enorme que se fazia à entrada, houve já
uma grande decepção: as pessoas que estavam na fila não aparentavam serem de rua,
fato comprovado ao conversar com alguns deles, os quais eram, em sua maioria,
trabalhadores do comércio, que encontravam no restaurante popular uma alternativa de
custo mais barato.
Porém, a visita não foi perdida completamente: iniciou-se uma conversa com um
flanelinha que estava na fila, nas proximidades (foi identificado assim pela flanela na
mão e por ele mesmo ter citado que trabalhava no estacionamento em frente ao
restaurante). E muito à vontade, o rapaz começou a falar sobre sua rotina de atividades
na rua, mas informou que não dormia nesse local, apenas trabalhava nele – então já não
houve mais o mesmo interesse por adentrar em sua realidade, por não se tratar de um
morador de rua. Ainda durante a permanência no restaurante, foi abordado outro homem
que estava na mesma mesa, o qual deu informações de que talvez fosse possível
encontrar pessoas moradoras de rua naquele restaurante em um horário anterior ao
movimento dos demais frequentadores, pois segundo ele, os moradores de rua não
ficam no meio do povo, ficam em um horário só para eles. Mas depois desse dia, em
visitas posteriores ao local, no horário indicado pelo rapaz, não foi constatada
movimentação alguma de pessoas que se caracterizassem como sendo de rua.
Tal experiência levou a firmar a necessidade de saber qual espaço que ele ocupa,
quais lugares ele frequenta durante o dia e durante a noite. E, ainda, de que não havia
como buscar respostas para essas perguntas sem algo que intermediasse de fato os
sujeitos: era necessário ter acesso a este universo e ouvir seus relatos.
Havia a clareza desse rumo da pesquisa; porém, não havia como concluí-lo. Por
isso, foi feita a busca por algum estudo acerca dessa realidade em João Pessoa, na
tentativa de encontrar, senão a resposta, pelo menos algum caminho anteriormente
percorrido, que pudesse iluminar tais perspectivas. Foi encontrado um artigo na área das
Ciências Sociais10, em que basicamente a autora afirma ter utilizado o intermédio de
uma instituição filantrópica para fazer a abordagem pretendida em sua pesquisa aos
10
Trata-se do artigo de: SOUSA, Anne Gabriele Lima. Sou feio, pobre, sujo e alcoólico: emoções e
sociabilidade dos moradores das ruas de João Pessoa-PB. UFPE, 2009.
95
moradores de rua. Porém, não fazia menção à instituição e não foi possível entrar em
contato com a autora para obter essa informação.
Foi quando, enfim, tomou-se conhecimento da existência de uma instituição
filantrópica que atuava diretamente com moradores de rua. E assim, após contatos para
confirmar as informações obtidas e fazer a devida identificação, foi possível chegar
àquele que seria o intermediário do verdadeiro encontro com o morador de rua da
cidade de João Pessoa-PB.
4.2 O acesso ao sujeito
O local encontrado para a continuidade da pesquisa trata-se de uma instituição
filantrópica, mais especificamente de uma Comunidade da Igreja Católica, que atua na
cidade de João Pessoa-PB, nos dias de terça a sexta-feira e, em um sábado por mês, com
atividades de distribuição de comida e de higienização 11 junto aos moradores de rua, em
alguns pontos de movimentação da cidade. Vale destacar que esse trabalho se dá
somente no turno da noite, o que dava agora a oportunidade de ver quem realmente tem
a rua como seu abrigo, até mesmo durante a noite.
Para a realização das atividades, a referida instituição dispõe de um carro tipo
Kombi, de uma equipe específica para se dedicar a essas atividades e recebe doações de
sopa e de refeições (as quais são recebidas diariamente de um dos principais
restaurantes da cidade), para que sejam feitas marmitas, além de doação de pães e de
suco. Toda essa comida é distribuída para cada pessoa abordada. A instituição recebe
também doações de material de higiene pessoal e de produtos para que seja realizada a
higienização.
O trabalho é feito da seguinte forma: a partir do horário das 21 horas, após a
preparação das marmitas e organização dos demais alimentos no veículo, inicia-se a
chamada rota, para a distribuição da comida: por onde o veículo passa, a equipe
permanece atenta observando os locais, até encontrar alguém que esteja dormindo ou
abrigado pelas ruas da cidade. Existe um esquema prévio de locais a serem visitados, os
quais, segundo informações dos membros que realizam a atividade, foram escolhidos
por concentrarem pessoas que moram nas ruas, de acordo com a experiência de atuação.
11
O termo “higienização” é utilizado pelos membros da instituição para designar as atividades de corte de
cabelo, corte de unhas e de barba dos moradores de rua. Esse atendimento é realizado no próprio espaço
onde se encontram as pessoas abordadas, onde se organiza um espaço com os materiais para o
atendimento à população.
96
Ao abordar uma pessoa ou um grupo, é distribuída a comida, ao mesmo tempo em que
os voluntários conversam um pouco para saber da situação da pessoa abordada, fazem
um breve momento de oração e seguem a rota à procura de outras pessoas.
Assim, a primeira participação na rota com a instituição para observações foi
permeada de novidades acerca da realidade da moradia de rua: primeiramente, porque
era um dia chuvoso, e por isso era esperado que a equipe não saísse para realizar as
abordagens, pelo fato de que, com a chuva, não iríamos encontrar pessoas nas ruas.
Porém, hoje se percebe que tal reflexão contrariava a própria realidade pesquisada, pois,
para onde iriam os moradores de rua durante a chuva, já que a rua é o seu local de
moradia? No máximo, procurariam se abrigar debaixo de lojas, de prédios, já que não
teriam acesso a espaços privados.
E assim aconteceu: durante o percurso, encontramos os moradores de rua
abrigados em diversos locais, visíveis às abordagens. Geralmente estavam sob as portas
de lojas, em pequenos grupos ou isolados, alguns com uma pequena sacola onde deviam
portar algumas roupas e objetos pessoais; dormiam em papelões, mas, muitas vezes,
estavam no chão mesmo, cena presenciada várias vezes. Pode-se até afirmar que essa
forma de abrigo era característica de todas as abordagens realizadas.
Nesse primeiro encontro, só a perplexidade de encontrar os moradores de rua
“mesmo em um dia de chuva” já serviu como ponto importante da observação.
Acrescenta-se a isso à emoção de, em cada ponto em que parávamos, ter-se a
oportunidade de estar bem perto do morador de rua – apesar de refletir posteriormente
que essa “emoção”, considerada positiva, só foi possível pelo fato de que havia o
aparato nas abordagens por intermédio da instituição. Mas naquele instante, não
importava se aquele encontro estava acontecendo apenas por causa da instituição
(porque não houve “coragem” para buscá-lo individualmente); importava que aquela
instituição estava conduzindo exatamente para o encontro com os moradores de rua, que
pareciam “escondidos” pela cidade de João Pessoa-PB.
Esse momento, portanto, caracterizou-se como uma primeira aproximação
através da intermediação e teve o intuito apenas da observação do espaço; os moradores
de rua ainda não tinham sido abordados para a pesquisa. Tal aproximação foi marcada
pela descoberta dos locais, pela surpresa de encontrar os moradores de rua, mesmo em
um dia chuvoso, e de levar para casa a reflexão de que, durante o dia, os moradores de
rua não estão naqueles “abrigos” que são as portas de lojas, calçadas de avenidas: são os
97
comerciantes, os consumidores que saem do seu ambiente privado que ocupam tais
lugares. E o morador de rua, ao que parece, perde-se no espaço de todos e de ninguém.
O segundo dia de acompanhamento das abordagens junto com a instituição se
deu por ocasião do dia da higienização. Foi feita uma breve explicação sobre o
desenvolvimento dessa atividade, a qual já deixou a impressão de que seria uma
oportunidade de estar por mais tempo com as pessoas abordadas. E de fato, as visitas
nesse dia deram a oportunidade de finalmente encontrar/abordar as pessoas moradoras
de rua. Para desenvolver as atividades de higienização, inicialmente a equipe da
instituição organiza o local onde será feito o atendimento (que se dá exatamente no
lugar onde estão os moradores de rua na noite); em seguida, enquanto alguns dos
membros fazem o corte de cabelo ou fazem as unhas/barba, daqueles que desejam,
outros permanecem conversando com os demais moradores que estão aguardando o
atendimento. Na chegada ao local onde seria feito o atendimento, em uma das praças
centrais da cidade – a Praça da Independência12 –, tal cenário já estava formado, visto
que parte da equipe já havia chegado antes e dado início às atividades. As observações
iniciais se deram no sentido de buscar uma forma de “inserção” na dinâmica daquela
atividade: se seria auxiliando na higienização, tentando conversar com os moradores de
rua, como os demais voluntários, ou somente observando de fora aquele movimento. A
ansiedade por aquela oportunidade e o medo de não ter uma boa aceitação por parte
daquele segmento no primeiro contato eram evidentes, por reconhecer que se estava
adentrando no “território do outro” e que qualquer ação contrária à rotina daquela
atuação, com perguntas demasiadas, observações insistentes, ocasionariam na perda
daquela oportunidade, talvez única, que abriria as portas para todas as outras, junto aos
moradores de rua.
E assim, a ida até o local onde os membros da equipe estavam conversando com
alguns moradores de rua foi o início da aproximação. A primeira tentativa, feita com um
jovem que estava aguardando o atendimento, era a de iniciar uma conversa informal a
partir de um assunto diverso e acabou se transformando em um momento de relato, por
parte do morador de rua, sobre sua trajetória de vida, o que o levou até as ruas, e sobre
12
Praça localizada no bairro de Tambiá, um dos mais tradicionais da cidade. Do logradouro sai a
principal Avenida da capital, a Epitácio Pessoa.
98
sua rotina diária nesse local13. A conversa finalizou porque ele saiu para ser atendido
pela equipe.
A partir desse primeiro contato, considerado como bem-sucedido, especialmente
pelo fato de ter havido interação, passou-se a buscar outra pessoa para fazer o mesmo
percurso. E assim aconteceu com outro jovem, apesar de ele demonstrar uma timidez
inicial, que parecia um desinteresse pelo assunto iniciado; porém, assim como o
primeiro, foi feito um verdadeiro relato de sua vida, naquele momento de abordagem.
A utilização desse modo de aproximação (através das conversas informais) foi
importante e eficaz para alcançar as primeiras respostas das inquietações trazidas até
aqui, para começar a encontrar o morador de rua da cidade de João Pessoa-PB, ao
conhecer um pouco sobre sua trajetória e formas de sobrevivência nesse espaço.
4.3 Observação do sujeito
Nos demais dias de visitas às ruas com a instituição, seguindo a rotina de
distribuição de comida aos moradores de rua dos principais pontos da cidade, foram
encontradas realidades semelhantes, em relação à ocupação do espaço, que se dava
durante a noite, e que não ocorriam da mesma forma durante o dia. Geralmente, as
pessoas estavam no mesmo local todas as noites, e, em alguns casos, apenas com
pequena variação na quantidade; ocupavam espaços característicos já mencionados,
como portas de lojas e de prédios; tinham características semelhantes quanto à
acomodação nesses espaços, utilizando-se de papelões ou lençol, quando possuíam –
houve até mesmo um momento em que foi presenciado o uso de um saco plástico como
“cobertor” para os pés. Por fim, não apresentavam perspectivas concretas para sua saída
das ruas, e a média de tempo de estada nesse lugar era de, no mínimo, dois anos.
O encontro dessas realidades semelhantes chegou ao ponto do encerramento das
visitas, pois as situações já se repetiam, dentro daquilo a que se limitou a observar, a
buscar.
4.4 Reencontro com o sujeito: observações da utilização do espaço público
As observações feitas ao longo desse período constituíram o retrato do cotidiano
das pessoas que moram na rua, as quais utilizam o espaço público para as atividades
consideradas de caráter privado ou que são realizadas em ambiente privado, como:
13
Esse relato e o de outros dois moradores de rua se encontram no Capítulo 3 desse estudo.
99
comer, dormir, satisfazer necessidades fisiológicas, além do desenvolvimento de
estratégias de sobrevivência diária. Verificou-se também, em diversas abordagens, a
formação de vínculos afetivos, que consistem na criação de laços de amizade e até na
formação de família, conforme verificado em algumas observações, como, por exemplo,
a de um jovem casal que se conheceu “nas ruas” e tinha um filho, e a mulher já esperava
outra criança. Dessa forma, infere-se que a apropriação do espaço considerado como
público abrange aspectos que vão além da busca pelo sustento financeiro, ampliando
assim as maneiras de se adaptar a esse espaço – ou de adaptar o espaço público à sua
vida e necessidades básicas.
Acredita-se que o conhecimento daquilo que seja a criação de formas de
sobrevivência, por parte dos moradores de rua, ou da trajetória de sua vida até a chegada
às ruas, são fragmentos dessa questão central da apropriação do espaço público como
única alternativa de moradia e de vida, no contexto das consequências negativas do
chamado desenvolvimento urbano, o qual não oferece oportunidades de dignas
condições de vida para todos.
4.5 Encontro com a realidade: relato de moradores de rua da cidade de
João Pessoa-PB
Durante o período de realização da pesquisa empreendida, foi possível encontrar
não somente anônimos, andando solitários ou agrupados, que buscam abrigo e algum
tipo de renda diariamente, mas encontrar vidas, histórias que estão perambulando pelas
ruas da cidade. Pessoas que têm agora, depois de sucessivas perdas, apenas as
lembranças de parentes, de lugares onde trabalharam, de situações vivenciadas antes de
se depararem com a realidade de terem que sobreviver e adaptar suas vidas às ruas.
Indivíduos com expectativas ou com devaneios; amargurados pela falta de esperança de
sair daquela situação que agora é vista como permanente ou desejosos de voltar para o
contexto social em que viviam. Enfim, um cenário vivo de trajetórias percorridas e que
se encontram no local que é de todos e, ao mesmo tempo, de ninguém: a rua.
Tal realidade será ilustrada aqui com o relato de encontros com alguns
moradores de rua na cidade de João Pessoa-PB que ocorreram durante o período de
observações, os quais contribuíram para corroborar aquilo que era observado, com a
narração de sua trajetória de vida até a chegada nas ruas, bem como da descrição de sua
forma de sobrevivência diariamente nesse espaço. Os encontros foram vivenciados de
100
maneira espontânea, sem o uso, portanto, de instrumentos técnicos que caracterizassem
uma entrevista, sendo realizados com a perspectiva de complementar as observações
feitas durante as abordagens. Os discursos dos sujeitos proporcionaram a oportunidade
de conhecer os momentos nos quais não foi possível presenciar outras características
que apontam a apropriação do espaço público e que foram citadas durante as conversas.
Muitas vezes também tais conversas tornaram-se momentos de escuta de desabafos,
marcados por sofrimentos, alegrias e incertezas.
A seguir serão relatados três desses encontros, com aquilo que foi vivenciado e
ouvido em cada um deles, como forma de trazer à tona o que há por trás desses corpos
que parecem apenas perambular pelos espaços públicos da cidade.
4.5.1 Pedro14: o jovem que encontrou nas ruas seu “esconderijo”
A visita à instituição que atua com moradores de rua na cidade de João PessoaPB, no dia da realização das atividades de higienização, tornou-se um momento
oportuno para conhecer a história de Pedro, 22 anos. No momento da chegada da
equipe, ele e os companheiros estavam dormindo nas proximidades da Praça da
Independência, embaixo de um quiosque, enrolados em lençóis e dormindo por cima de
colchões. Logo que começou a ser organizado o espaço para fazer o trabalho, os jovens
se aproximaram e começaram a conversar bastante à vontade com alguns membros da
instituição que já os conheciam. Em seguida, chegou mais um rapaz que deveria fazer
parte desse grupo, o qual apresentava sinais visíveis de embriaguez, mas que começou
também a conversar com o grupo e logo se ofereceu para seu cabelo ser cortado; o
jovem Pedro observava atentamente esse trabalho.
A busca por dar início a uma conversa com esse jovem significou o início de
uma aproximação aos moradores de rua que até então eram vistos somente de longe. À
pergunta respondida sobre o que estava acontecendo naquele momento sucederam-se
conversas sobre diversos outros assuntos.
O jovem, que afirmou ser natural da cidade de Natal-RN foi interpelado sobre o
motivo de estar atualmente na cidade de João Pessoa, o que foi explicado pelo seguinte
fato: ele morava em Natal com a mãe e, após uma discussão entre ela e um homem, que
seria seu vizinho, este teria agredido sua mãe; e então ele, como filho, quis “tomar as
14
Os nomes das pessoas são fictícios, como forma de preservar sua identidade.
101
providências” – conforme afirmou – e que, após isso, “deu problema”, “deu confusão”,
e ele teve que sair de lá, a ponto de não poder mais voltar para a cidade de origem. Em
uma tentativa de saber com mais detalhes do motivo pelo qual não poderia voltar, Pedro
afirmou que não poderia falar sobre isso, para “não se comprometer” - a situação deve
ter chegado a se tornar uma ocorrência policial. Apesar do medo sentido naquele
momento, deu-se continuidade à conversa.
O jovem afirmou estar morando em João Pessoa há dois anos e que dormia
frequentemente com o grupo o qual foi abordado nesse dia, sendo “todos parceiros”,
segundo ele, e que preferia ficar naquele local a ter que se instalar nas imediações da
Lagoa – Parque Solon de Lucena –, pois, segundo ele, lá as pessoas usavam
entorpecentes (cola de sapateiro e tirna), e ele afirma não ser dependente químico, mas
admitiu que bebia e fumava. Ao ser perguntado sobre como fazia para sobreviver nas
ruas, afirmou que tinha um ponto fixo onde exercia a atividade de flanelinha, em frente
a um restaurante próximo ao local onde o evento estava acontecendo naquela noite.
Sobre a rotina para tomar banho (nesse momento já não havia mais o medo, mas a
curiosidade, pela abertura dada à conversa), Pedro respondeu que pede uma mangueira
às pessoas do posto de gasolina para tomar banho. Ainda acrescentou que o dono de um
restaurante próximo dá almoço uma vez por semana.
O jovem ainda contou histórias sobre a sua vida: de que já foi casado e tem uma
filha, com 5 anos de idade; estava separado recentemente quando veio para João PessoaPB, e relatou inclusive que antes de vir, cedeu para a ex-esposa a loja tipo lan house que
tinha, como forma de garantir a pensão alimentícia para a filha, já que não sabia se teria
algum tipo de renda fixa. Disse que há alguns meses não faz ligações para a filha (ele
afirma que comprava algumas vezes um cartão telefônico), e reconheceu, com pesar,
não ter certeza de quando a verá novamente.
Após um momento de silêncio, Pedro mudou de assunto, lembrando sobre o seu
gosto pelo esporte de jiu-jitsu – o qual disse já ter praticado quando morava em NatalRN –, e que conheceu pessoas na sua “vida na rua” que o levaram para ver vídeos sobre
o esporte. Questionado se ele já sofreu alguma abordagem policial, ele informou que o
local onde fica é tranquilo, que não havia presença frequente de policiais. Porém, disse
já ter havido um episódio no qual a polícia estava à procura de pessoas que estariam
furtando naquela área, e quando ele estava dormindo, foi abordado por policiais que o
102
chutaram, e ele “chutou de volta” como reação imediata, mas não houve maiores
problemas, e a polícia não o espancou.
Falou também que tem os seus “parceiros” da rua, mas não pode confiar em
todos, pois sabe que alguns, pelo fato de usarem drogas, até roubam os outros
moradores de rua. Ele falava sobre isso de forma indignada, pois dizia não admitir que
isso fosse feito com alguém na mesma situação precária dele. Esse comentário pode ser
lido à luz das discussões teóricas sobre a temática da moradia de rua, em que se forma
uma rede de solidariedade entre seus moradores, mas que, ao mesmo tempo, essa rede é
permeada por aquilo que é característico do espaço público: a individualidade, a
desconfiança, pois afinal, são todos estranhos um ao outro.
Questionado ainda sobre o contato com a família, Pedro informou que liga para
a mãe algumas vezes, e que ela sabe que ele está em João Pessoa, mas não sabe que ele
se encontra em situação de rua. Sobre o fato dele acreditar que um dia sairia da situação
da rua, Pedro respondeu que sim, mas demonstrava muito mais ter “se acostumado”
com a vida nas ruas, já que de alguma forma tinha sua rotina fixa, tanto para conseguir
dinheiro quanto para o uso de seus hábitos privados (dormir, comer, tomar banho, etc.),
fato que pode ser derivado da circunstância que o levou às ruas e que o faz não ver outra
alternativa a não ser fazer dela o seu esconderijo; ao que parece, sem previsão ou
perspectiva de sair dela.
4.5.2 João: o andarilho que carrega sonhos (e pesadelos)
Neste momento será relatado um pouco da história de João, 34 anos, o qual
também deu a conhecer a sua trajetória no dia da visita por ocasião das atividades de
higienização. Ao fim da conversa com Pedro e retomada das observações, o jovem João
começou a se aproximar, com suas roupas maltrapilhas e aspecto de quem estava
desgastado pelo tempo. João olhava para todos de uma forma estranha, como se
estivesse assustado: dava a impressão de estar sob efeito de drogas; mas ele se
aproximou e começou a falar com os membros que estavam no desenvolvimento das
atividades, demonstrando familiaridade com esses e com o trabalho ali realizado. Para
iniciar a aproximação e obter algumas informações, perguntou-se sobre seu nome e se
ele era de outra cidade (pois tinha um sotaque característico de outro local); disse ser do
Rio de Janeiro, mas que já morou em Porto Alegre, Recife e está morando em João
Pessoa-PB há mais de um ano. Disse que “aqui não tinha o que dar” – referindo-se à
103
cidade onde se encontra atualmente, e queria voltar para a sua cidade de origem.
Questionado se tal insatisfação seria pelo fato de não ter conseguido algum trabalho
durante o período em que está na capital paraibana, ele afirmou viver da mendicância
pelas casas nos bairros e também pelas ruas, inclusive dizendo que era muito difícil
obter alguma doação por parte das pessoas (ele afirmava isso com um aparente mau
humor, talvez por lembrar os momentos de rejeição que deveria sofrer pelas ruas).
João afirmou que não convivia com o grupo que estava ali sendo atendido, pois
gostava de “ficar só”, que preferia andar sozinho a ter que andar em grupo, por não
confiar nas pessoas da rua. Nesse momento, alguns membros do grupo o chamaram para
o corte do cabelo e começaram a fazer brincadeiras com ele, de que poderia arranjar
uma namorada com o cabelo cortado, e João se divertia com eles; diante disso, foi
perguntado se ele ainda pensava em casar, ao que disse que sim, que ainda queria “ter o
seu lugar”. Mas logo depois ele afirmou que as mulheres não queriam “homem de rua”
e mesmo as que moram na rua não permanecem com ninguém. Nesse momento pode-se
remeter à reflexão de que não é só a mulher que não quer um “homem de rua”, mas
nenhuma outra pessoa quer esse “homem de rua” por perto.
Atendendo aos pedidos insistentes, João aceitou cortar o cabelo e também
gostou do resultado; ao receber com alegria o elogio de todos, demonstrou também
confiança nas pessoas que naquela noite queriam cuidar um pouco dele.
Quando a equipe já estava de partida na Kombi, João aproximou-se do veículo e
pediu algo para o motorista, um dos membros da equipe. Enquanto ele respondia, uma
pessoa da equipe informou que aquele homem era portador do vírus da AIDS, precisava
comprar frequentemente um tipo de leite especial para tomar com o medicamento com o
qual faz tratamento e que algumas vezes pedia dinheiro aos membros da equipe. A
partir disso, o entendimento sobre sua história, sobre sua necessidade de estar sozinho, o
fato de pedir para sobreviver e não conseguir trabalho pode se dar pela doença a qual
faz tratamento. Não foi mais possível conversar com ele para saber desse fato de sua
vida, até porque era algo que ele não deu acesso para ser conhecido naquele primeiro
contato.
104
4.5.3 Tiago: vida consumida pelas drogas, rua como espaço para
sobreviver
Em um dos diversos momentos de visita da instituição filantrópica para
distribuição de comida junto às pessoas que se encontravam nas ruas da cidade de João
Pessoa-PB, foi possível conhecer a vida de um jovem que retrata a realidade de um dos
principais motivos que provoca o rompimento de um indivíduo da sua teia de relações
sociais, construídas ao longo da sua história. O jovem Tiago, 23 anos, foi abordado
junto a um grupo que estava sob o teto de uma loja próxima ao Mercado Central da
cidade. Aparentava um bom senso de humor, era um rapaz interativo e demonstrava
uma alegria própria de sua juventude.
O momento oportuno para a aproximação a esse jovem foi durante a distribuição
da quentinha, em que foi possível perguntar seu nome e se ele era da cidade de João
Pessoa-PB. Tais perguntas pareciam ser mesmo a porta de entrada para conhecer o
universo da vida dessas pessoas, e com Tiago não foi diferente: informou que é de
Pernambuco, mas que mora em João Pessoa há dois anos e que sobrevive da atividade
de flanelinha na praia (não informou de qual praia se tratava), com um “ponto fixo” de
trabalho. Afirmou ter apenas o 5º ano de escolaridade, sendo difícil conseguir trabalho
formal. Afirmava, com certo orgulho, que era descendente direto de índios, atribuindo a
esse fato a beleza que dizia ter, em um momento de brincadeira com os demais colegas
“da rua” que ali se encontravam. Disse ter duas filhas, mas que não moram com ele:
uma mora em São Paulo e outra em Recife, ambas com as mães (são filhas de mães
diferentes); ao falar nas crianças, demonstrou estar emocionado e disse sentir muito a
falta delas. Esse desabafo foi oportuno para perguntar o motivo de estar nas ruas hoje;
ele se referiu à sua última separação, dizendo que chegou a se casar, e que até
“frequentavam a igreja”– esse fato foi citado como forma de demonstrar o quanto
viviam de maneira harmoniosa; mas depois que deixou de ir ao local, começaram os
problemas. Nesse momento, outros jovens passaram por ele, fizeram acenos,
interrompendo o assunto; mas como ele estava começando a falar sobre sua história e
aquele momento não poderia ser perdido, houve a tentativa de retomar a conversa do
ponto onde ela parou, colocando até mesmo em risco a continuidade desse primeiro
momento de aproximação, pelo temor de que ele se irritasse e fosse embora. Mas, ao
contrário, Tiago continuou a conversa, como se tivesse percebido o interesse pelo
assunto. Nesse momento, admitiu que sua separação ocorreu, na verdade, pelo uso
105
constante de drogas; falou até que tivera três terrenos de sua posse e que precisou
vender dois deles para pagar dívidas com drogas e o terceiro deixou para sua ex-mulher,
após a separação.
Tiago disse também ter parentes em João Pessoa, mas que esses não sabem da
sua situação nas ruas, nem mesmo sua mãe, que mora em Recife. Ao se questionar
sobre seu pai, ele disse que se suicidou ao pilotar uma moto e provocar um acidente, e
Tiago tinha 9 anos de idade. O jovem atribui o início do seu uso de drogas à ausência do
pai, do qual era muito próximo, e utilizava o entorpecente como “fuga” dessa dor (mas
não chegou a mencionar a idade do início do uso da droga). No momento, ele
interrompeu com essa reflexão de que não sabia por que estava contando essa história,
fazendo entender que eram fatos de sua vida que talvez ele não contasse para qualquer
pessoa, muito menos em um primeiro encontro. Mesmo afirmando isso, não parou de
conversar, e tal fato foi surpreendente, considerado como uma aceitação satisfatória do
diálogo que se seguia naquele instante.
Tiago afirmou também que atualmente faz uso de crack, apesar de ter feito por
algum tempo o tratamento no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)15. Esse jovem, ao
descrever sua situação atual, pareceu “conformado” com o fato de morar na rua – talvez
pelo uso de drogas –, não demonstrando em suas palavras ou gestos acreditar que sairá
um dia dessa situação. Parece não mais consumir, mas ter sido consumido pela droga e
suas consequências, que acarretaram na destruição de sua perspectiva de vida, na
projeção de planos e na separação daquilo que considerava seu maior bem: seus filhos.
Conhecer um pouco das vidas que permeiam as ruas da capital paraibana é
desvendar a riqueza e o drama de histórias, é conhecer de perto as necessidades
constantes dessas pessoas. Significa também ver que a apropriação do espaço rua feitos
por elas não é algo apenas exterior, na ocupação dos bancos das praças e das portas das
lojas para dormir, do uso das mangueiras de estabelecimentos e da busca das casas e
restaurantes para conseguir comida. É, sobretudo, uma busca por continuar de alguma
forma a viver, mesmo que de uma maneira mais precária que antes, já que essas pessoas
que se encontram nas ruas foram destituídas, por diversos motivos, de suas relações.
15
Os CAPS são um dispositivo de atenção à Saúde Mental. São serviços de saúde municipais, abertos
comunitários, que oferecem atendimento diário (Fonte: ministério da Saúde. Disponível em:
<http://portal.saude.gov.br/portal/saude/visualizar_texto.cfm?idtxt=29797&janela=1>)
106
CONCLUSÃO
Realizar uma pesquisa é de fato uma tarefa que exige um olhar minucioso por
parte daquele que investe nessa atividade, junto ao que se pretende pesquisar. A
pesquisa com moradores de rua não se deu de maneira diferente, visto que o próprio
sujeito traz consigo marcas, experiências que seriam impossíveis de se constatar apenas
com uma observação superficial por parte daquele que deseja conhecer melhor essa
realidade.
O objetivo da pesquisa empreendida partiu da observação de que havia um
número cada vez maior de pessoas que utilizam o espaço da rua para garantir a
sobrevivência, além da inferência de que nem todos aqueles que se faziam presentes
naquele espaço se caracterizariam como moradores de rua. Tal pressuposto foi tomado a
partir do contato anterior ao início da pesquisa com esse público, em um Programa
Social da Prefeitura da cidade de Natal-RN. Investigar quem seria de fato morador de
rua, quais são as suas características em meio a tantos personagens existentes que atuam
nesse espaço passou a ser a indagação e o objetivo do estudo. Durante a pesquisa,
através das consultas bibliográficas e das observações contínuas e detalhadas dos
moradores de rua nesses locais, foi possível constatar aquilo que inicialmente ainda se
tinha como ideia sobre o morador de rua. Pode-se inferir que o morador de rua se trata
daquele que se apropria do espaço público da cidade não apenas para conseguir algum
tipo de renda para subsistência diária, mas também para dormir, realizar hábitos de
alimentação, higiene e instalação com os poucos objetos que possui.
Conhecer o contexto no qual está inserida a relação homem/rua tornava-se
imperativo para uma maior clareza do caminho o qual se pretendia percorrer. Estudar
sobre a formação das cidades, desde seu surgimento e desenvolvimento até a
contemporaneidade, é esclarecedor para que se compreendam os significados atribuídos
à formação e uso da rua. Historicamente foi se formando a acepção do que é esse
espaço, a partir da atribuição desse como sendo um espaço público, de acesso a todos.
Tanto em sua formação como na atualidade, a rua é vista como espaço reservado para a
passagem, para a transitoriedade e para o desenvolvimento de atividades comerciais,
além de se tornar o local da superficialidade das relações, da ausência de privacidade,
assim descaracterizando esse local de qualquer possibilidade de ser referência para se
morar ou construir algum tipo de referência pessoal.
107
Mas a rua também guarda em suas esquinas, praças, portas de estabelecimentos,
dentre tantos outros espaços, a presença de pessoas que adaptam, no dia a dia, suas
vidas àquele local que agora lhes resta como única possibilidade de sobrevivência.
Marcados por um contexto de sucessivas perdas – sejam elas profissionais, afetivas,
familiares – os moradores de rua perderam até mesmo o seu local privado a passaram a
se apropriar da rua de uma forma mais específica do que as demais pessoas. Sabe-se que
esse não é um problema recente na sociedade: destaca-se desde a Antiguidade, com a
presença dos escravos e estrangeiros que perambulavam pelas ruas, chegando a situação
a se intensificar no período da industrialização, com a massificação da classe operária.
Aqueles que não estavam inseridos nesse tipo de atividade e buscavam sua
sobrevivência nas ruas eram vistos como os sem-classe, lumpen, ou sobrantes, pois não
estavam inseridos na dinâmica social da época. E até na contemporaneidade, ainda não
se verifica uma estratégia eficaz para o enfrentamento de tal problemática, cujos sujeitos
são alvo de rejeição por parte das demais pessoas que vivem nas cidades. No Brasil,
mesmo com aprovação de decreto que estabelece uma Política Nacional para favorecer
a população em situação de rua, o que se vê é ainda uma falta de adesão consistente por
parte do Governo, no intuito de pôr em prática tal legislação.
Dessa forma, a alternativa existente para as pessoas que se encontram nas ruas é
a de procurar, a cada dia, locais e situações que possam satisfazer suas necessidades
imediatas, em “[...] um mundo social que não é criado ou escolhido pela grande maioria
dos moradores de rua, pelo menos não inicialmente, mas para o qual a maioria foi
empurrada por circunstâncias além do seu controle” (SNOW e ANDERSON, 1998,
p.77-78).
A apresentação de dados da Pesquisa Nacional sobre a População em Situação
de Rua é um dado considerado importante, no que diz respeito a ser esse um
instrumento que dá maior clareza quanto à identificação, de uma maneira geral, de
quem é aquele visto como morador de rua nas principais cidades brasileiras. É possível
nesta pesquisa, por exemplo, perceber que o uso de álcool/drogas, a perda de trabalho e
desavenças familiares são os principais motivos pelos quais as pessoas vão parar nas
ruas, atribuindo a questão da moradia de rua a uma “síntese de múltiplas determinações”
(SILVA, 2009, p.91). Também é possível notar que o desenvolvimento de estratégias
para sobrevivência não se dá apenas através da mendicância – apesar de tal prática ainda
108
se dar de maneira constante –, mas também através de serviços prestados nas ruas, como
o de flanelinha e o de catador de materiais recicláveis.
A Pesquisa Nacional também revela que as pessoas entrevistadas nas ruas não
estão nesse espaço apenas para o sustento, mas também se adaptam e satisfazem
necessidades como dormir (a maioria dorme nas ruas, mas existem aqueles que buscam
albergues noturnos), tomar banho, fazer necessidades e alimentar-se. Tais foram os
aspectos citados na referida pesquisa como estratégias de adaptação realizadas pelos
moradores de rua.
Cabe também considerar que a identificação do morador de rua – objetivo deste
estudo –, na cidade de João Pessoa-PB, não se constituiu tarefa fácil. Ao contrário, as
observações iniciais durante o dia não garantiam que essas eram feitas ao real sujeito da
pesquisa, diante de tantos personagens que se encontravam no espaço da rua. Também
foi revelado neste percurso que uma aproximação para o diálogo com os sujeitos não era
uma tarefa simples – pelo menos com o grupo o qual se pretendia fazer essa primeira
abordagem, pois eles sempre estavam fazendo uso de drogas nos momentos de
observação, o que também causava incerteza do sucesso em um encontro, pois não
haveria condições de se travar um diálogo com as pessoas no estado do uso dos
entorpecentes.
Dessa forma, foi preciso pensar em uma estratégia de aproximação respaldada
por uma instituição, a qual facilitaria o acesso ao sujeito a ser observado. A busca de
albergues que atendessem a esse público foi uma das alternativas sem sucesso, uma vez
que durante o período da pesquisa não foi encontrado o albergue existente da prefeitura
nos endereços indicados. O percurso para encontrar um meio de aproximação ao
morador de rua chegava ao fim a partir do acesso à instituição filantrópica
“Comunidade Católica Filhos da Misericórdia”, a qual realiza trabalho voluntário
diariamente junto ao segmento da população de rua. Acompanhar frequentemente o
desenvolvimento das atividades dessa instituição, tendo a possibilidade de ver o
morador de rua dentro de sua realidade – abrigado sob tetos de lojas, deitados sobre
papelões, cobrindo-se com lençóis velhos ou até mesmo sacos plásticos – foi o início de
uma nova etapa no percurso da pesquisa. O que antes era a busca de uma posição
melhor para observação agora passava a ser uma busca por fazer o trabalho de
observação de maneira mais detalhada possível da realidade e dos hábitos dos
moradores de rua da capital paraibana. Daí foi encontrado não somente o modo de viver
109
nos espaços públicos, mas histórias, trajetórias de vida que na verdade dão vida aos
lugares cinzentos e sem dinamicidade que contornam a cidade.
O fato de se trazer alguns relatos ouvidos ao longo da pesquisa é considerado
como um item que ilustra toda a perspectiva teórica estudada, no sentido de tornar
concreto na realidade local aquilo que se verifica tanto nas acepções teóricas quanto na
pesquisa de cunho nacional, anteriormente citada. E já no trajeto de encontros diários
com moradores de rua, foi igualmente difícil admitir o término do período das
observações. É uma etapa que exige o reconhecimento não só da repetição de situações
– no caso, do encontro com as mesmas pessoas nos mesmos lugares “criados” como
abrigo e da percepção de hábitos que os moradores de rua realizavam de maneira
constante –, mas também de reconhecer que já era o momento de se afastar para
prosseguir com a conclusão da pesquisa, a qual resulta neste trabalho.
Destarte, evidenciar a realidade de que o espaço público da rua é constantemente
apropriado por uma quantidade cada vez maior de pessoas no país e também na cidade
de João Pessoa-PB não é, de modo algum, denunciar tais pessoas por essas práticas,
colocando-as ainda mais como autores voluntários desse modo de viver, como parece
fazer a maior parte da sociedade, demonstrando culpar os moradores de rua pela
situação em que vivem. Mostrar como se dá a apropriação do espaço público pelo
morador de rua e destacar que essa é a sua forma de não perecer é, antes de tudo,
descortinar uma dinâmica à qual se submetem milhares de brasileiros, em meio ao
corre-corre e à indiferença disseminados e vividos pelos demais cidadãos. Estes
parecem insistir em tratar como invisíveis aqueles que estão buscando, de maneira
precária e indigna para qualquer ser humano, não sucumbir diante das intempéries já
sofridas e vividas dia após dia. E como afirma o compositor Fernando Anitelli, em uma
música que retrata o cotidiano do morador de rua, este “não habita, se habitua” ao local
que lhe resta: a rua.
110
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