O QUE NOS MOSTRAM AS CRIANÇAS SOBRE A ESCOLA? Kelly Jessie Marques Queiroz – UNIR - [email protected] Marli Lúcia Tonatto Zibetti – UNIR - [email protected] Fundação Universidade Federal de Rondônia- UNIR Financiamento: CNPq Introdução O ingresso no mundo letrado é uma conquista importante para crianças que vivem em contextos urbanos, uma vez que o ambiente social e cultural que as envolve, demanda a utilização dessas competências diuturnamente. Entretanto, este ingresso não tem transcorrido de forma tranqüila para uma grande parte de crianças que freqüentam as escolas públicas brasileiras. Os índices de retenção têm se mantido extremamente altos, mesmo com a adoção de medidas como a ampliação do tempo previsto para a aprendizagem da leitura e da escrita com a implantação dos Ciclos de Alfabetização. No Brasil, conforme dados do INEP, em torno de 20% das crianças não conseguem aprender a ler e a escrever ao final de dois anos de escolarização (Inep, 2009). Há alguns anos estudando essa problemática, várias perguntas têm nos levado a buscar novos conhecimentos sobre a questão, procurando entender os diferentes ângulos do fracasso e suas conseqüências para as crianças e famílias que os vivenciam. Com vistas a ouvir os/as principais envolvidos/as no processo de aprendizagem, ou seja, as crianças, traçamos como objetivo, investigar as concepções sobre a escola presentes entre crianças em processo de alfabetização que vivenciaram situações de fracasso e de sucesso escolar. Interessa-nos verificar se há diferenças entre as concepções sobre a escola entre crianças bem sucedidas e aquelas com histórico de repetência escolar. O fracasso escolar e a pesquisa com crianças 2 Nos anos iniciais do Ensino Fundamental, os maiores índices de retenção sempre estiveram relacionados ao processo de alfabetização. Assim, historicamente, a aprendizagem da leitura e da escrita tem se constituído como a primeira barreira a ser superada pelas crianças em seu processo de escolarização (Queiroz, 2008). Por se tratar de um problema histórico, o fracasso escolar na alfabetização vem recebendo diversas explicações ao longo dos anos. As pesquisas sobre esta problemática estiveram em princípio marcadas por um discurso biológico em que as causas do fracasso estavam relacionadas a fatores genéticos, raciais ou hereditários. Foi por volta dos anos 1970 que essas teorias passaram a ser questionadas e um novo discurso passou a se fazer presente. As explicações passaram a ser buscadas na proveniência cultural dos alunos e alunas, dando origem às teorias da carência cultural. Pesquisas como as de Patto (1999); Machado (1994); Souza, M. (1991); Souza, D. (1991), Kramer e Leite et al (1997) entre outros, procuraram mudar o eixo de discussão sobre o fracasso escolar, empenhando-se em desvelar como são construídas e consolidadas as idéias de desvalorização e os preconceitos em relação aos indivíduos da classe trabalhadora e, muitas vezes, legitimados sob um discurso cientificista. Entretanto, mesmo sendo as maiores vítimas do fracasso, de acordo com Demartini (2002), na produção atual, são mais comuns os estudos sobre as crianças e sobre a infância, enquanto os relatos e falas das próprias crianças têm sido pouco discutidos. A autora defende a urgência em aprender a ouvir as crianças e os jovens. É preciso romper com as concepções que acabam por considerá-las como incapazes de refletir sobre suas ações. A presença da criança em pesquisas científicas não é novidade. Entretanto, sua condição vem limitando-se a de objeto a ser observado, medido, descrito, analisado e interpretado. Na educação, as pesquisas observam e analisam a criança como aluno/a, especialmente no cotidiano escolar. Na saúde pública, as crianças são focalizadas a partir de comparações de suas condições físicas a padrões definidos como normais. Campos (2008, p. 36) aborda a crescente necessidade de introduzir uma mudança radical na abordagem do pesquisador/a adulto junto a criança, objetivando “[...] dar voz à criança e de moldar a pesquisa às possibilidades de captar essa voz.” Ouvir as concepções dos alunos/as que fracassam pode levar a uma compreensão de seu potencial para a aprendizagem que, geralmente, é desqualificada pelo sistema de ensino, e pode nos ajudar a compreender como os/as alunos/as se 3 colocam nas situações escolares e as estratégias que constroem para lidar com as frustrações e dificuldades decorrentes do insucesso nos percursos escolares. Entender da perspectiva das próprias crianças as marcas deixadas por experiências de fracasso vividas no interior das escolas, pode fornecer elementos importantes para a compreensão das barreiras que se interpõem entre os aprendizes e o processo de escolarização. Aspectos metodológicos Como recomendam Lüdke e André (1986) uma investigação qualitativa supõe o contato direto do pesquisador/a com o campo, pois o/a pesquisador/a precisará presenciar o maior número de situações em que se manifeste o que lhe interessa investigar, enfatizando mais o processo do que o produto e se preocupando em retratar a perspectiva dos participantes. O campo de investigação envolveu duas turmas de 4º ano do Ensino Fundamental numa escola estadual do município de Rolim de Moura – RO. Participaram da primeira etapa da pesquisa um total de 45 alunos. Na turma 01 estavam matriculados/as 24 alunos/as, sendo 15 meninos e 09 meninas com idade entre 08 e 14 anos. Destes, 06 já haviam sido retidos em algum ano de sua escolarização (25%). Presentes no dia da aplicação do primeiro instrumento (desenho) estavam 17 crianças. Já na turma 02 havia 21 alunos/as matriculados, 15 meninos e 06 meninas, cuja faixa etária era de 09 a 16 anos e 13 já haviam reprovado (66%). Presentes em sala no dia da aplicação do desenho estavam 18 alunos/as. Na segunda fase da pesquisa participaram apenas 10 crianças, selecionadas dentre as 35 envolvidas na etapa anterior. Os dados foram coletados por meio da produção e análise de desenhos e realização de entrevistas individuais semiestruturadas. As entrevistas consistiram em um diálogo com as crianças, tomando por base os desenhos realizados na etapa anterior. Utilizamos nomes fictícios para preservar a identidade das crianças envolvidas. (Re)significações: fracasso e sucesso 4 É vasto o número de idéias sobre os motivos que levam as crianças ao fracasso no processo de alfabetização. Várias pesquisas documentam isso (Patto 1999, Moysés & Collares, 1997) indicando que as concepções vigentes nas escolas, não sofreram alterações nos últimos anos, muito embora tenham sido objeto de contestação por parte de teóricos críticos. De acordo com Collares e Moysés (1996) a imagem que diretoras, professoras, coordenadoras pedagógicas têm em mente ao se referirem às famílias de seus/as alunos/as, revela um aprisionamento em uma concepção idealizada de família, “famílias normais”, constituídas por pai, mãe, irmãos, todos vivendo em plena harmonia. Quando fogem a essa regra, pelas más condições financeiras, valores diferentes, ausência de um dos membros, crianças criadas por avós ou simplesmente por viver um padrão distinto de família, são rotuladas como desestruturadas, desajustadas com alunos/as também desajustados/as. Mas o que pensam as crianças sobre essa questão? O que as experiências de fracasso escolar produzem nas mesmas? Quais os estigmas deixados pela memória do fracasso? Uma das questões proposta na entrevista era para que as crianças explicassem os motivos que levam um aluno/a reprovar na escola. “Desinteressados”, “desligados”, “bagunceiros”, “lerdos”, “que não prestam atenção”, “que levam as atividades na brincadeira”, “não se esforçam” etc.. Foram com essas expressões e adjetivos que as crianças da turma 01, que não possuem histórico de reprovação descreveram o aluno/a que reprova: São muito atrasados nas matérias e não prestam atenção. (Laura 09 anos, turma 01) Porque não prestam atenção e ficam levando as atividades só na brincadeira. (Bruna 09 anos, turma 01) É porque não se esforçam na tarefa, na hora da prova. (Sofia 09 anos, turma 01) Porque elas não estudam na sala, não presta atenção na aula, só fica brincando. Falando de jogo, de brincadeira, brincando. (Ana 10 anos, turma 01) Ficavam brigando e não faziam à tarefa. Tem uns que vão reprovar de novo. (Maria 09 anos, turma 01). 5 Interessante notar como as crianças incorporaram as concepções que circulam nas escolas de que “quem bagunça e não faz a tarefa não passa de ano”, culpabilizando a própria vítima pelo fracasso. O que realmente define sucesso e fracasso escolar? Entra em discussão aqui um julgamento de valor em função do “aluno ideal” com uma “aprendizagem ideal”. Em nossa cultura, o espaço da escola na vida das pessoas possui natureza definida, e todos/as concordam com sua importância e necessidade na busca de “uma vida melhor”. Mais do que um aluno, a criança que está na escola é um ser social, determinado por relações sociais e históricas que marcam as suas vivências dentro e fora do universo escolar, condição que a escola, na maioria das vezes, ignora. Ribeiro (1991) fala sobre a “pedagogia da repetência” e como esta prática está na própria origem da escola brasileira com seu modelo de ensino de elite. Mas seria este um componente cultural de nossa práxis pedagógica? Ou apenas uma conseqüência da ineficiência do sistema? As pesquisas mostram claramente que o sistema joga a culpa pelo fracasso escolar ora nos próprios alunos/as, ora nos pais, ora no sistema sociopolítico, raramente no despreparo dos professores e professoras ou na própria organização escolar. No cotidiano escolar as crianças falam sobre suas vivências, suas histórias de vida. Revelam um sentimento ambivalente em relação à escola, sendo esta, um objeto de desejo e ódio: Figura 01: Desenho Pedro, 10 anos (turma 02) Pesquisadora: O que é isso aqui? Pedro: A sala de aula. Pesquisadora: E isso te deixa triste ou alegre? Pedro: Deixa triste. Eu não fiz nada de alegre na escola. 6 Pesquisadora: Não tem nada na escola que te deixa alegre? Pedro: Algumas coisas, só que eu não desenhei. Desenhei só o que me deixa triste. (Pedro 10 anos, turma 02). A escola é objeto de temor, temor esse que provem de uma história escolar marcada pela segregação e estigmatizada pelo fracasso. Para Sirino e Cunha (2001, p. 11) as relações estabelecidas na escola acabam por produzir no aluno este sentimento de duplo vínculo: de querer/não querer, de afeição/expulsão. Manifestam sentimentos de inferioridade, inadequação, incompetência e não pertencimento que se mesclam com sentimentos de poder e querer saber. Nas entrevistas dos alunos da turma 02, além das explicações envolvendo brigas, falta de atenção, bagunça e etc., encontramos outros elementos que explicam, do ponto de vista das crianças, os motivos do fracasso escolar. Como a opinião de Pedro cuja explicação volta-se para sua característica pessoal: “Eu reprovei porque era lerdo, não conseguia fazer as coisas rápido”. (Pedro 10 anos, turma 02). Ou a explicação de Lucas que novamente se culpa por não ter feito as tarefas: “Por causa que eu não fazia a tarefa.” (Lucas 12 anos, turma 02). É visível o desconforto que essas recordações trazem aos meninos, nas respostas rápidas e tímidas, na expressão corporal e no tom da voz. Uma hipótese a considerar são as conseqüências negativas trazidas por essas experiências de fracasso escolar. O aluno sente vergonha e tristeza e busca justificar para si e para os demais os motivos que o levaram a fracassar. Vários teóricos apontam as mudanças que são necessárias na escola para melhor atender a seus pressupostos de aprendizagem. Melhorias na estrutura física, estética, aquisição de equipamentos de qualidade, a redefinição de concepções de ensino e aprendizagem, a implantação de políticas públicas que contemplem a educação para todos e todas, melhores salários, redução do número de alunos/as por turma, maior participação das famílias, e tantas outras. A estas reivindicações precisam ser agregadas as manifestações dos alunos/as. Uma outra forma de interpretação, um outro olhar para o espaço escolar. Entre o que deveria ser melhorado na escola podemos registrar nas palavras das crianças: Quando eu vim pra cá eu fiquei com a professora C. depois passou pra professora E., daí passei pra professora M. e depois pra professora E. [...] Ah é legal mudar, mas às vezes é chato quando fica mudando 7 todo tempo, todo dia. Talvez uma é legal ai entra outra ruim que a gente não conhece. (Andréia 10 anos, turma 02). [...] ai eu passei porque tinha menos de cinco né. Fica facinho. É que dá mais atenção. Mais de dois alunos não [...] porque você vai fazer uma tarefa, e como você vai fazer a tarefa se você não sabe fazer, se nunca ouviu falar? Não tem como fazer a tarefa desse jeito. (Marcos 16 anos, turma 02). O que quê dá pra fazer? Falar pra professora fazer alguma coisa, falar que isso não é certo, brigar com eles, levar pra direção, se não levar eles vão continuar. Já falei pra professora quando me chamaram de cabelo de Bombril, eu falei assim: “Professora eu vou na direção!” A professora disse: “Se você sair da sala você não volta mais!” (Ana, 10 anos, turma 01) O que me deixa feliz é quando a professora me chama de “meu amor” e quando a gente vai pra Educação Física e ela deixa a gente brincar mais 10 minutos na sala [...] O que deixa triste é quando a professora briga. (João 09 anos, turma 02) [...] atrapalha porque eles gritam muito, não dá pra fazer a tarefa. É isso, eles se atrasam e a gente se atrasa. [...] (Laura 09 anos, turma 01). Figura: 02 Desenho Paula, 10 anos (turma 01) 8 Afinal, qual a escola que queremos? As falas dos alunos/as permitem inferir que queremos uma escola mais humana, mais feliz, livre de preconceitos, onde aprender seja algo prazeroso. Queremos uma escola onde a individualidade seja respeitada, onde todos aprendam com todos/as. Uma escola onde seja possível sentir o gosto da liberdade sem cair em brigas e bagunças. Uma escola onde o diálogo entre alunos/as não seja visto e punido como indisciplina. Uma escola onde a autoridade do/a professor/a não seja autoritarismo, mas que o/a professor/a seja amigo/a, solidário/a, companheiro/a. E esta escola que queremos, garantida por lei, já deveria estar estruturada e concebida se considerarmos o séculos de discussões, planejamentos e teorias. 5-Considerações finais Por meio de suas experiências e interações, os sujeitos vão construindo saberes que lhes permitem atribuir sentido a conceitos materiais ou abstratos. Na escola circulam múltiplos significados que são percebidos de diferentes formas pelas crianças, por meio dos quais cada uma constrói o sentido pessoal de suas vivências escolares. Assim, a escola pode ser considerada pelas crianças, tanto como um espaço de possibilidades prazerosas, quanto um espaço repressor, estigmatizante e sem alegria. Sobre o fracasso escolar, consideramos que não basta encontrar as causas e as soluções; é necessário intensificar a vigilância sobre os efeitos das políticas públicas na vida dos alunos e alunas, é preciso intensificar a compreensão das relações que estes alunos/as mantém com a escola e principalmente, é preciso intensificar o respeito ao direito básico de uma educação escolar que não possibilite experiências de fracasso. Nada pode justificar as experiências dessa natureza sofridas por nossas crianças ano após ano. É fundamental refletirmos sobre os caminhos que podem possibilitar uma educação escolar onde o aluno/a possa muito mais do que ser aprovado/a, experimentar o sucesso na aprendizagem de cada dia. 9 Referências CAMPOS, M. M. (2008). Por que é importante ouvir a criança? A participação das crianças pequenas na pesquisa científica. Em CRUZ, S. H. V. A criança fala: a escuta de crianças em pesquisas. São Paulo: Cortez. COLLARES. C. A. L. & Moysés. M. A. A. (1996). 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