PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL E SUA CONCOMITÂNCIA COM O JUDICIAL: REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS SOBRE O PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 38 DA LEF Julio Cesar Santiago SUMÁRIO:1 Introdução: o Debate Tradicional. 2 A Superproteção do Contribuinte Devedor por Meio de Duas Esferas de Litígio. 3 A Concomitância entre Instâncias na Jurisprudência dos Tribunais Superiores. 4 O Princípio da Eficiência, Separação de Poderes e Duração Razoável do Processo como Fundamento para a Solução dos Conflitos Tributários. 5 Conclusão. 1 Introdução: o Debate Tradicional Quando se discute a concomitância do processo administrativo fiscal com o processo judicial, na seara federal, o debate gira em torno do alcance do disposto no art. 38 11 da Lei nº 6.830/80, Lei de Execução Fiscal (LEF), em especial o seu parágrafo único 2. Ali se diz que a discussão judicial dos conflitos tributários relacionados à Dívida Ativa da União (DAU), já em execução, deverá ser feita nos termos em que disposto naquela lei específica. Ou seja, se existir um débito inscrito em DAU, e já houver sido ajuizada a execução fiscal pela União Federal, o devedor deverá opor os embargos à execução nos termos do art. 16 da LEF, via de regra 3. O objetivo do art. 38 da LEF foi evitar a procrastinação dos processos consequentemente, a eternidade dos conflitos tributários, que, 4 e, além de ocasionarem desperdício de tempo, prejudicando as partes litigantes, geram, ainda, custos para a sociedade. Isso porque toda essa estrutura de solução de conflitos tributários é financiada por meio, não só de taxas judiciárias, mas, também, de 1 “Art. 38. A discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública só é admissível em execução, na forma desta Lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de petição de indébito ou ação anulatória do ato declarativo da dívida, esta precedida do deposito preparatório do valor do debito, monetariamente corrigido e acrescido dos juros e multa de mora e demais encargos.”. 2 Cf. ROCHA, Sérgio André. Processo Administrativo Fiscal. Controle Administrativo do Lançamento Tributário, p. 245-248; XAVIER, Alberto. Princípios do Processo Administrativo e Judicial Tributário, p. 28. 3 A ressalva decorre da ampla aceitação jurisprudencial da apresentação da exceção de préexecutividade no bojo da execução fiscal, simbolizada pela Súmula do STJ nº 393: "A exceção de pré-executividade é admissível na execução fiscal relativamente às matérias conhecíveis de ofício que não demandem dilação probatória". 4 PACHECO, José da Silva. Comentários à Lei de Execução Fiscal, p. 323. 1 impostos 5. De outro lado, o tempo que um processo leva para chegar ao final, pode beneficiar aquele que, desde o início do litígio, já sabia que não tinha razão. Principalmente nos casos de execuções fiscais, que são ajuizadas com uma presunção de certeza e liquidez de seu título, seja por conta do debate realizado na esfera administrativa ou mesmo em virtude da confissão do contribuinte, ao declarar as informações sobre o seu débito 6. Não se ignora, é preciso ressaltar, a possibilidade de erros advindos dos órgãos fazendários, por ocasião do exercício de suas atividades administrativas ou mesmo do contribuinte, como não raro ocorre, no fornecimento de informações. O que se quer enfatizar, todavia, é que a estrutura foi pensada para ser eficiente, ou seja, que a solução para o conflito tributário fosse dada em um curto espaço de tempo, que não se onerasse em demasia o Erário e, ao mesmo tempo, respeitasse direitos do cidadão, em especial, aquele que paga seus tributos e cumpre com suas obrigações tributárias, demandando pouco da estrutura fiscal administrativa. Por essa razão, intuitivamente, mesmo sem maiores reflexões, soa incoerente pensar em duas estruturas Estatais - judiciária e administrativa - exercendo a função jurisdicional 7 para solucionar o mesmo conflito tributário, ainda que a última palavra, eventualmente 8, tenha que ser proferida pelo Poder Judiciário, por se tratar do órgão que exerce a função jurisdicional precipuamente 9 e dos princípios constitucionais que assim determinam, como se verá adiante. 5 Para um debate sobre os custos dos direitos ver HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Rights. Why Liberty Depends on Taxes. New York: W.W. Norton & Company, 1999. 6 STJ, Súmula nº 436: "A entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco". 7 A previsão do art. 5º, LV, CR/88, que obriga o respeito ao contraditório e a ampla defesa no processo administrativo, revela a preocupação constitucional com as funções jurisdicionais exercidas pelo Poder Executivo. 8 Eventualmente, porque o contribuinte pode não querer ir ao judiciário, por motivos vários, como, por exemplo, adesão a algum tipo de parcelamento, renunciando ao debate sobre a existência do débito. 9 As funções estatais, são distribuídas entre os três Poderes Orgânicos - Executivo, Legislativo e Judiciário - de modo que possam exercê-las de forma harmônica e equilibradamente, sem exclusividade na correspondência entre o Poder Orgânico e a função estatal. Assim, não se pode distinguir as funções unicamente com base no órgão que a exerce, ou seja, tanto o Judiciário pode exercer funções administrativas quanto o Executivo, as jurisdicionais. (Cf. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo, p. 21; CÂMARA, Alexandre. Lições de Direito Processual Civil, p. 65). 2 A ideia central do parágrafo único 10 do art. 38 da LEF é a da impossibilidade de discussões paralelas da mesma matéria em esferas diversas 11 . Significa dizer que o contribuinte não poderia questionar perante a esfera administrativa aquilo que já estaria sendo discutido judicialmente. A Lei, por sua vez, é categórica em afirmar que, uma vez ajuizada a demanda judicial, o contribuinte renuncia à esfera administrativa. É óbvio que essa consequência da dupla discussão nada tem a ver com uma manifestação de vontade expressa pelo contribuinte, sob uma ótica subjetiva, ou seja, o contribuinte não afirma para a administração que está discutindo judicialmente a mesma situação posta e, então, desistirá da esfera administrativa. Ao contrário, a Lei é que considera essa situação de concomitância como óbice ao prosseguimento do processo administrativo 12 , independente da vontade do contribuinte. Pouco importa, portanto, se o contribuinte possuía a vontade de continuar discutindo perante as duas searas, tendo em vista que a escolha do contribuinte tem efeitos legais que independem de sua vontade. Contudo, a situação de concomitância era muito difícil de ser identificada sem a colaboração do contribuinte. Se ele não informasse que ajuizaria demanda judicial para discutir o mesmo fato que gerou o débito, a autoridade administrativa julgadora não tomaria conhecimento, em regra, salvo nos casos de mandado de segurança, em que ela acabava sendo notificada da impetração. Com o advento da Lei nº 11.196/05, que introduziu o inciso V ao art. 16 do Decreto nº 70.235/72, que regula o processo administrativo fiscal federal (PAF) 13 , o legislador tentou solucionar o problema, prevendo como obrigatório informar se a matéria impugnada administrativamente está sendo apreciada judicialmente. Entretanto, essa obrigatoriedade soa enfraquecida, pois o texto legal afirma que a informação deve ser prestada com a impugnação; porém, não raras vezes, o contribuinte propõe a demanda em momento posterior à impugnação. O 10 Parágrafo único, art. 38. "A propositura, pelo contribuinte, da ação prevista neste artigo importa em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto". 11 Vide nota 4. 12 Não vou ingressar no debate sobre a distinção entre processo e procedimento administrativo, uma vez que não importa para o propósito do trabalho. Para o enfretamento do tema, com, extensa citação bibliográfica, ver ROCHA, Sérgio André. Processo Administrativo Fiscal. Controle Administrativo do Lançamento Tributário, p. 31-44. 13 "Art. 16. A impugnação mencionará: (...) V - se a matéria impugnada foi submetida à apreciação judicial, devendo ser juntada cópia da petição." 3 enfraquecimento decorre, também, da ausência de uma sanção específica, como, por exemplo, uma multa, aquele que descumpre a obrigação de informar o ajuizamento judicial, pois é do interesse do contribuinte, muitas vezes, manter as duas esferas de litígio 14. 2 A Superproteção do Contribuinte Devedor por meio de Duas Esferas de Litígio No campo do direito material, com a "virada Kantiana" e a supervalorização dos princípios tributários em prol da defesa do contribuinte em face da intervenção estatal, não se defende o contribuinte atualmente sem que se alegue, ao menos, uma série de princípios, ainda que muitas vezes fora de contexto, ou mesmo, em situações em que existe uma regra evidente, sem indícios de inconstitucionalidade 15 . No campo processual tributário a situação não é diferente. Alberto Xavier, ao tratar da relação entre o processo administrativo e o judicial, afirma que tanto a impugnação judicial do lançamento tributário quanto a administrativa são garantias previstas constitucionalmente 16. A impugnação judicial estaria prevista no art. 5º, XXXV, da Constituição atual 17 , ou seja, no dispositivo que consagra a inafastabilidade do controle judicial. Já a impugnação administrativa, com base também no art. 5º, teria seu fundamento de validade constitucional ao abrigo do direito de petição previsto no inciso XXXIV 18 e nos princípios da ampla defesa e contraditório, previstos no inciso LV 19 14 "Com efeito, a falta de comprovação pelo impugnante da matéria objeto do processo judicial pode ser de interesse da parte, uma vez que a presença da concomitância de processos impede o conhecimento de sua impugnação pelo órgão julgador" (v. NEDER, Marcos Vinicius; LÓPEZ, Maria Teresa Martínez. Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado, p. 297). 15 Em Ribeirão Preto um juiz federal afastou o prazo para adesão ao parcelamento tributário instituído pela Lei nº 11.941/09, citando apenas o princípio da razoabilidade, afirmando que seu "matiz constitucional se extrai da dimensão substantiva da garantia do devido processo legal" (BARBOSA, Rogério. Empresa que perdeu prazo poderá consolidar Refis. Conjur 30 ago 2011. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2011-ago-30/empresa-perdeu-prazo-consolidar-refisjustica-federal#autores>. Acesso em: 25 out 2011. 16 Ob. cit., p. 19 17 Art. 5º, XXXV: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". 18 Art. 5º, XXXIV, a: "são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder". 19 Art. 5º, LV: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes". 4 Hoje, como dito, não se concebe falar em direito do contribuinte, sem citar, ao menos, dois ou três princípios que protegeriam sua situação no caso concreto, independente de previsões expressas na legislação que pudessem abarcar aquela situação. Contudo, muitas vezes, os princípios são lançados em petições e decisões judiciais sem maiores reflexões sobre o caso concreto em análise, sem justificar, adequadamente, porque a lei não se aplicaria ao caso. Essa percepção também é sentida pelo professor Daniel Sarmento: "Hoje, instalou-se um ambiente intelectual no Brasil que aplaude e valoriza as decisões principiológicas, e não aprecia tanto aquela calcada em regras legais, que são vistas como burocráticas ou positivistas - e positivismo hoje no Brasil é quase um palavrão. Nesse contexto, os operadores do Direito são estimulados a invocar sempre princípios muito vagos nas suas decisões, mesmo quando isso seja absolutamente desnecessário, pela existência de regra clara e válida a reger a hipótese." 20 Os princípios, que deveriam fundamentar um Estado de justiça, equidade e segurança, acabam por gerar seu oposto, fomentando uma situação de injustiça, iniquidade e insegurança, quando mal utilizados em decisões judiciais. Ainda mais em tempos de globalização, onde as fronteiras geográficas perderam sua importância para o capital, que viaja em uma velocidade cada vez maior 21 ; capital que não dá valor ao local de onde extrai a fonte de sua própria existência e que não tem problema algum em mudar de localidade, ao primeiro sinal de recrudescimento fiscal 22 Deste modo, os princípios acabam por proteger aquele que não tem razão e, pior, acabam protegendo aquele contribuinte que sabe que não tem razão e que faz da proteção excessiva e, por vezes, redundante, seu porto seguro. 20 Por um Constitucionalismo Inclusivo, p. 264. "O dinheiro circula por vários países numa velocidade impressionante, normalmente por meio eletrônico, sem qualquer transferência física. Neste contexto, os Estados tornam-se reféns dos interesses do capital internacional, pois precisam dos seus investimentos. Os países que não adaptam o seu direito interno às exigências comuns do mercado internacional são imediatamente abandonados, pois o capital sem pátria tem como buscar abrigo nos Estados cujas leis lhe favoreçam" (SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas, p. 30). 22 "A mobilidade adquirida por pessoas que investem (...) significa uma nova desconexão do poder em face das obrigações (...) liberdade em face do dever de contribuir para a vida cotidiana e a perpetuação da comunidade. (...) Livrar-se da responsabilidade pelas consequências é o ganho mais cobiçado e ansiado que a nova mobilidade propicia ao capital sem amarras locais, que flutua livremente" (BAUMAN, Zygmunt. Globalização... p. 16-17). 21 5 Generalizar situações, como se todas fossem apenas uma, não é uma solução adequada, pois parte de uma premissa de igualdade inexistente, em especial em se tratando de execuções fiscais, em que, não raro, quando ajuizadas, o patrimônio do contribuinte já foi dilapidado ou escamoteado, de modo que a via crucis se inicia no bojo do processo judicial. Este, por sua vez, acaba por ser "conduzido" pelos diretores de secretarias 23 por questões de sobrevivência da função jurisdicional dos magistrados, que não dão conta da progressiva judicialização das execuções fiscais 24 , em um ciclo irrefreável, que tem no atual modelo de solução de conflitos tributários, com duas esferas de julgamento acessíveis a qualquer momento, um fator para o agravamento da situação. Decerto, a despeito de retórica política sobre sua eficiência 25 , o fato é que as execuções fiscais hodiernamente são ineficientes, situação que tende a piorar com o crescente passivo tributário, gerado pelo inadimplemento tributário culturalmente arraigado 26. É preciso haver uma reflexão sobre o tipo de contribuinte 27 que utiliza as duas esferas de solução de conflito tributário, com o único intuito de procrastinar o processo 28 . Com efeito, os direitos podem ser exercidos de forma legítima, mas, também, podem ser exercidos de forma ilegítima. Além disso, não se pode tratar da mesma forma contribuintes que utilizam seus direitos de forma diferente. Existem 23 Situação reforçada pelo reconhecimento da legalidade dos "despachos concentrados", que faz de um simples despacho de citação inicial em execução fiscal federal verdadeiro "formulário", com situações que chegam a conter quinze providências condicionadas a serem tomadas pelo diretor de secretaria, a depender do que a parte requeira, evitando-se que o processo vá novamente à conclusão do magistrado. 24 Para um debate sobre a eficiência das execuções fiscais no modelo brasileiro em cotejo com o modelo português, veja-se o excelente trabalho de Gustavo Caldas Guimarães de Campos, que alerta para o fato de a Procuradoria da Fazenda Nacional realizar anualmente mais de um milhão de inscrições, podendo, em consequência, gerar mais de um milhão de processos judiciais (v. Execução Fiscal e Efetividade..., p. 49). 25 Para um debate sobre a "suposta" arrecadação pelos juízes federais em execução fiscal, veja entrevista de Gabriel Wedy, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (In: http://www.conjur.com.br/2010-set-12/entrevista-gabriel-wedy-presidente-associacao-juizes-federais, acesso em 08.09.2011) e o artigo de Anderson Bitencourt Silva, presidente do Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional (Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2011-mar22/arrecadar-nao-funcao-justica-nao-superavitaria>. Acesso em: 08 set. 2011). 26 Os periódicos parcelamentos (REFIS, PAEX, PAES, REFIS da crise, etc.) têm contribuído para essa cultura de inadimplemento tributário. 27 Klaus Tipke chega a relatar tipos de contribuintes, tais como o homo oeconomicus, que pensa em sua conveniência econômica e o compensador, que acredita que o Estado não presta bons serviços e por isso "compensa", por conta própria, pagando menos tributos, dentre outros (v. Moral Tributaria del Estado y de los Contribuyentes, p. 112-120). 28 A Procuradoria da Fazenda Nacional já percebeu a importância de dar um tratamento mais específico a determinados contribuintes e, por essa razão, mantém em sua estrutura um núcleo de acompanhamento dos grandes devedores. 6 contribuintes que são verdadeiros litigantes tributários, que abusam do seu direito de acesso à justiça, não medindo esforços para postergar o pagamento do tributo. De outro extremo, existem aqueles que querem adimplir suas obrigações, todavia, em virtude da burocrática administração tributária, por vezes se veem envolto em um emaranhado de obrigações que só mesmo a via judicial para acudi-los. O Estado de hoje, contudo, não é mais o mesmo da época das concepções liberais, visto como algo negativo e que deveria ser evitado; aquele em que as ações deveriam ser limitadas, para que a liberdade do indivíduo pudesse aflorar 29 À época do Estado Liberal não era preciso vultosas quantias para mantê-lo, eis que sua preocupação era voltada para a proteção do território e a segurança dos indivíduos, ou seja, bastava que o Estado não interviesse na propriedade dos indivíduos para que sua função fosse praticamente cumprida. Todavia, a atuação livre dos indivíduos no mercado levou à destruição desta concepção liberal, na medida em que direitos mínimos dos trabalhadores não eram respeitados pela burguesia, detentora dos meios de produção. É fato que hoje o Estado Democrático de Direito possui inúmeras outras funções, que se distanciam da simples proteção do território e segurança dos indivíduos, tal como à época do Estado Liberal. Hoje, o rol de direitos consagrados pela Constituição de 1988 30 faz com que o Estado necessite cada vez mais da arrecadação tributária para implementar os programas sociais previstos, razão pela qual ganha força a necessidade de se equipar o Estado de instrumentos que viabilizem uma arrecadação eficiente e que evite o desperdício de estrutura. Não é demais lembrar que, se em épocas passadas o Estado era o grande vilão, aquele que destruía direitos, em uma perspectiva verticalizada, é certo que hoje, em uma perspectiva horizontal, são os próprios indivíduos que violam os direitos fundamentais uns dos outros 31 . Esse, portanto, é mais um motivo pelo qual se deve ter um Estado eficiente e que não desperdice energia superprotegendo o contribuinte devedor. 29 Cf. Nosso "A Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais - DCTF como forma de constituição do crédito tributário" In: Revista Tributária e de Finanças Públicas, nº 94, p. 157-166. 30 Basta pensar, por exemplo, no art. 196 da CR/88, no qual se afirma que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas. 31 Nossa Constituição de 1988, conforme adverte Daniel Sarmento "não se ilude com a miragem liberal-burguesa de que é o Estado o único adversário dos Direitos Humanos" (SARMENTO, Daniel. A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais. In: SARMENTO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: balanço e crítica, p. 158). 7 A jurisprudência já teve oportunidade de se debruçar sobre o tema da concomitância entre as esferas administrativa e judicial, em especial, o STF e o STJ, que há muito afirmaram que o direito de petição, o acesso à justiça, não são violados por conta do disposto no parágrafo único do art. 38 da LEF. Todavia, essa postura jurisprudencial parece não ser suficiente para impedir aqueles que desejam procrastinar as execuções fiscais, evitando o adimplemento do tributo, conforme se verá adiante. 3 A Concomitância entre Instâncias na Jurisprudência dos Tribunais Superiores O STF, no Recurso Extraordinário nº 233.582/RJ 32 , que considerou constitucional o parágrafo único do art. 38 da LEF, debateu o tema em torno dos princípios destacados na doutrina, além de discutir a antieconomicidade da concomitância. Com efeito, nos debates que se travaram no julgamento do Recurso Extraordinário, o Ministro Marco Aurélio, relator originário, levantou a questão se o dispositivo da LEF não violaria o acesso ao Judiciário, bem como o direito de petição, pois estaria punindo o contribuinte por optar pela via judicial. Para o Ministro, o contribuinte ficaria em um impasse entre ingressar simultaneamente em juízo e ver prejudicado seu processo administrativo ou aguardar o esgotamento da fase administrativa, razão pela qual considerava o dispositivo inconstitucional. O Ministro Carlos Britto, que acompanhava a inconstitucionalidade do dispositivo, afirmara, ainda, que se tratava de um juízo de economicidade que só poderia ser feito pelo contribuinte, ao rebater o fundamento da antieconomicidade da concomitância alegada pelo Ministro Cezar Peluso, que, por sua vez, inaugurara a divergência. Para o Ministro Carlos Britto, o processo judicial concomitante poderia servir, ainda, para agilizar o processo administrativo, o que foi bem confrontado pelo Ministro Cezar Peluso ao afirmar que o processo judicial não poderia ter essa finalidade, finalizando seu voto com a seguinte frase: "É luxo demasiado a um país subdesenvolvido permitir que a mesma lide seja discutida e julgada, ao mesmo tempo, por dois órgãos do Estado, com prevalência final da 32 Tribunal Pleno. Relator para o acórdão Min. Joaquim Barbosa. Julgado em 16.08.07 e publicado em 16.05.08. 8 sentença, em qualquer caso". Em seu voto, o Ministro Joaquim Barbosa, acompanhando a divergência, deixou claro não se poder deixar nas mãos do contribuinte "algo parecido como uma loteria; ele tenta na via administrativa, se não funcionar, ele recorre à judicial". Em seu voto-vista, o Ministro Gilmar Mendes bem sintetizou a questão: "Tem-se aqui fórmula legislativa que busca afastar a redundância da proteção, uma vez que, escolhida a ação judicial, a Administração estará integralmente submetida ao resultado da prestação jurisdicional que lhe for determinada para a composição da lide". No fim, a maioria dos Ministros 33 entendeu que o dispositivo é constitucional e não violaria a legalidade, acesso à justiça, tampouco direito de petição. O STJ também já apreciou o tema da concomitância entre o processo judicial e o processo administrativo. No Recurso Especial nº 840.556/AM 34 o STJ discutiu o tema em um caso em que a Procuradoria impugnava decisão do TRF da 1ª Região sob o argumento de que ela teria violado não só o art. 38 da LEF, como também o art. 1º, § 2º, do Decreto-Lei nº 1.737/79 35 . Esse é um caso paradigmático, tanto pelo fato de ser citado em outros acórdãos do STJ quanto em virtude da divergência no julgamento inaugurada pelo atual Ministro do STF Luiz Fux. Tratava-se de situação em que empresa de produtos eletrônicos apresentara três mandados de segurança contra autoridades diversas 36 , com o intuito de possibilitar a importação dos referidos produtos, via Zona Franca de Manaus. Após um ano da vigência das liminares 37 , a Receita Federal efetuou a fiscalização e o lançamento do tributo. A empresa foi autuada em decorrência de suposta redução indevida de oitenta e oito por cento do Imposto de Importação incidente sobre a 33 Vencidos os Ministros Marco Aurélio, relator originário e Carlos Britto, que o acompanhava Primeira Turma. Relator para o acórdão Min. Luiz Fux, DJ 20.11.06, p. 286. 35 Art. 1º, § 2º: "A propositura, pelo contribuinte, de ação anulatória ou declaratória da nulidade do crédito da Fazenda Nacional importa em renúncia ao direito de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso interposto". 36 Contra ato do Superintendente da Zona Franca de Manaus - SUFRAMA, o inspetor da Alfândega do Porto e o inspetor da Alfândega do Aeroporto de Manaus. 37 À época, a orientação vigente perante a Receita Federal era a de efetuar o lançamento tributário, para evitar a decadência. Não existia o atual art. 62 e parágrafo único do Decreto nº 70.235/72, introduzido pela Medida Provisória nº 232, de 2004: "Durante a vigência de medida judicial que determinar a suspensão da cobrança, do tributo não será instaurado procedimento fiscal contra o sujeito passivo favorecido pela decisão, relativamente, à matéria sobre que versar a ordem de suspensão". Parágrafo único. "Se a medida referir-se à matéria objeto de processo fiscal, o curso deste não será suspenso, exceto quanto aos atos executórios". 34 9 internação de bens de informática, que integrariam produtos a serem industrializados na Zona Franca de Manaus. Em virtude da autuação, a empresa apresentou a impugnação administrativa e, posteriormente, impetrou Mandados de Segurança obtendo liminar lhe assegurando a redução de alíquota. No que interessa ao debate, a autoridade administrativa, tomando conhecimento da impetração, considerou a exigência definitiva na via administrativa e, sem julgar o mérito, alertou a empresa de que ela não poderia, na hipótese, recorrer à segunda instância, pois teria renunciado a via administrativa. Contra essa decisão administrativa, a empresa ingressou com o quarto mandado de segurança 38 , pleiteando sua nulidade e o direito de interpor, eventualmente, recurso administrativo, o que foi indeferido em primeira instância. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por maioria, reformou a decisão de primeira instância, sob o fundamento de que, na hipótese específica, a propositura de ação judicial no curso de processo administrativo fiscal não enseja renúncia da via administrativa, uma vez que ainda não se trata de discussão a respeito de Dívida Ativa da União, sendo inaplicável, portanto, o art. 38, parágrafo único, da Lei nº 6.830/80. O Ministro-Relator originário, Francisco Falcão, quando a questão chegou no STJ, utilizou uma linha de raciocínio hermenêutico no seguinte sentido: o parágrafo único do art. 38 da LEF é uma exceção ao "livre acesso à esfera administrativa" e, sendo exceção, o dispositivo deve ser interpretado restritivamente. Para o Ministro, como o dispositivo usou o termo Dívida Ativa, a lei se referiria à dívida definitiva, que apoia o título executivo no processo de execução fiscal e conclui que "não havendo propriamente Dívida Ativa, o contribuinte pode ajuizar ações judiciais sem que isso represente renúncia à discussão no âmbito administrativo" 39. O Ministro Luiz Fux, ao proferir seu voto, que inaugurou a divergência e prevaleceu na Corte, além de ressaltar as lições da doutrina na interpretação do parágrafo único do art. 38 da LEF, afirmou que a "intenção do legislador justificase, precisamente, por medida de economia processual, tendo em vista a perda de interesse de agir na via administrativa em decorrência da prevalência das decisões 38 Aqui já se percebe o anacronismo do parágrafo único do art. 38 da LEF, pois se o objetivo era evitar discussões paralelas, a sucessiva impetração de mandados de segurança faz pouco caso do comando normativo 39 Excerto do inteiro teor do julgado. 10 judiciais". Um dos pressupostos identificados no voto para que se reconheça a concomitância é a identidade de objetos entre o processo judicial e o processo administrativo. Esse requisito é fundamentado na doutrina de Leandro Paulsen, para quem o parágrafo único do art. 38 tem o objetivo de privilegiar a jurisdição una: "O parágrafo em questão tem como pressuposto o princípio da jurisdição una, ou seja, que o ato administrativo pode ser controlado pelo Judiciário e que apenas a decisão deste é que se torna definitiva, com o trânsito em julgado, prevalecendo sobre eventual decisão administrativa que tenha sido tomada ou pudesse vir a ser tomada. Considerando que o contribuinte tem direito a se defender na esfera administrativa, não faz sentido a sobreposição dos processos administrativo e judicial. A opção pela discussão judicial, antes do exaurimento da espera administrativa, demonstra que o contribuinte desta abdicou, levando o seu caso diretamente ao Poder ao qual cabe dar a última palavra quanto à interpretação e à aplicação do Direito, o Judiciário. Entretanto, tal pressupõe a identidade de objeto nas discussões administrativa e judicial. Caso a ação anulatória fira, e.g., a questão da constitucionalidade da norma tributária impositiva e o recurso administrativo se restrinja a discussões quanto à apuração do valor devido, em razão de questões de fato, não haverá a identidade que tornaria sem sentido a concomitância das duas esferas." 40 Importante ressaltar que o julgado se referia a um caso de cifras milionárias 41 , no qual a empresa alegava, também, questões de isonomia 42 , pois mesmo obtendo liminar em juízo, foi autuada administrativamente 43. Em síntese, percebe-se que o STJ, quando aborda o tema, em regra fundamenta o dispositivo na prevalência da decisão judicial em virtude da jurisdição una, em consequência, na ausência de interesse no julgamento administrativo, bem como na necessidade de que o objeto do processo administrativo seja menor ou idêntico. Em que pese concorde com o resultado do julgamento do STJ, ouso discordar parcialmente de sua fundamentação, na medida em que o dispositivo 40 Direito Processual Tributário, p. 447-448. O julgado alude a 17 milhões de reais, como valor do auto de infração. 42 O argumento da isonomia se deve ao fato de outras empresas terem conseguido a redução de 88% do imposto de importação. 43 Vide nota 35. 41 11 hodiernamente não tem só a ver com jurisdição una, mas, também, com eficiência da Administração Pública e duração razoável do processo. Com efeito, o dispositivo precisa sofrer uma releitura constitucional, tendo em vista que a Constituição de 1988 positivou o princípio da eficiência em seu art. 37 e que a reforma do Judiciário (EC nº 45/04) trouxe a ideia de razoável duração do processo, expressa no art. 5º, LXXVIII. Os Tribunais Regionais Federais atualmente costumam seguir essa orientação, vedando uma dupla via de discussões simultâneas 44 . Assim como o CARF segue a jurisprudência firmada nas antigas súmulas dos Conselhos de Contribuintes (Súmula nº 5, 3º, CC): "Importa renúncia às instâncias administrativas a propositura, pelo sujeito passivo, de ação judicial por qualquer modalidade processual, antes ou depois do lançamento, com o mesmo objeto do processo administrativo, sendo cabível apenas a apreciação de matéria distinta da constante do processo judicial". 4 O Princípio da Eficiência, Separação de Poderes e Duração Razoável do Processo como Fundamento para a Solução dos Conflitos Tributários É comum, como se viu, a alegação de jurisdição una e separação de poderes para fundamentar uma excessiva proteção do contribuinte, por meio das duas longas esferas de solução de conflito tributário. Contudo, a separação de poderes não é um princípio absoluto e muitas vezes tem sido mal interpretada. É que a separação de poderes absoluta, como se verá abaixo, não é adotada em nosso ordenamento jurídico, tampouco deve ser analisada de forma isolada. Outros princípios devem ser percebidos para que se visualize uma solução de conflitos tributários justa. São eles: a eficiência e a duração razoável do processo. Para Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a eficiência administrativa deve ser vista "como a melhor realização possível da gestão dos interesses públicos, posta em termos de plena satisfação dos administrados com os menores custos para a sociedade". Aduz, ainda, o autor que a eficiência "se apresenta, simultaneamente, com um atributo técnico da administração, como uma exigência ética a ser 44 Ver por todos Apelação em Mandado de Segurança nº 45.176. Quinta Turma Especializada do TRF da 2ª Região. Rel. Juiz Federal convocado Mauro Souza Marques da Costa Braga. E-DJF2R 13.07.2010, p. 83. 12 atendida, no sentido weberiano de resultados, e, coroando a relação, como uma característica jurídica exigível, de boa administração dos interesses públicos" 45. Assim, quer o parágrafo único do art. 38 da LEF, em uma releitura constitucional, que a Administração Tributária concentre esforços na solução de conflitos e adimplemento tributários, uma vez que não há razão para disponibilizar ao contribuinte duas esferas de solução de conflitos tributários em tempos de escassez de recursos, aumento da litigiosidade tributária e necessidade de razoável duração do processo 46 . Deste modo, se o contribuinte opta por discutir a demanda judicialmente, não se revelaria eficiente concentrar o escasso aparato fiscal na solução de um litígio que poderá ter resultado diverso do decidido pelas vias administrativas. Pensar em jurisdição una, por sua vez, é olhar apenas para um lado da moeda, sem considerar o outro lado que a complementa. A relação entre processo judicial e administrativo, relacionado aos conflitos tributários, deve ser vista como uma relação de complementaridade e nunca de separação absoluta, pois o princípio da separação de poderes em sua forma mais pura não é realizável atualmente. A separação absoluta de poderes não foi desejada pela Constituição de 1988, na medida em que ser "independente" não quer dizer ser separado dos demais poderes. Uma vez que a independência é conjugada com a harmonia exigida pelo art. 2º da Constituição 47, ela somente é atendida quando aquele que é independente está próximo, está perto do outro. Aquele que está absolutamente separado, não pode estar em harmonia com ninguém, pois está isolado, distante, fora da realidade em que deveria estar inserido. A separação de poderes, tradicionalmente, envolve a ideia de divisão funcional, ao mesmo tempo que se estabelece um controle recíproco. Da divisão de funções e do controle recíproco, conforme salienta Luís Roberto Barroso, extraise dois corolários: "a especialização funcional e a necessidade de independência orgânica de cada um dos poderes em face dos demais" 48 . Pela especialização 45 Curso de Direito Administrativo, p. 117. Art. 5º, LXXVIII, incluído pela EC nº 45/04: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação". 47 "Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário." 48 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo, p. 175. 46 13 funcional, cada Poder é titular de determinadas competências, ao passo que a independência orgânica é atingida mediante a existência de três requisitos, de acordo com Luís Roberto Barroso: "(i) uma mesma pessoa não poderá ser membro de mais de um poder ao mesmo tempo; (ii) um Poder não pode destituir os integrantes de outro por força de decisão exclusivamente política; e (iii) a cada Poder sãoatribuídas, além de suas funções típicas ou privativas, outras funções (chamadas normalmente de atípicas), como reforço de sua independência frente aos demais poderes." 49 A doutrina, por sua vez, reconhece a flexibilização da separação absoluta de poderes, para que seja adequada à nova realidade constitucional. Nesse sentido, relevante a percepção de Inocêncio Mártires Coelho ao tratar da necessidade de Poder Executivo e Judiciário legislarem: "Nesse contexto de ‘modernização’, esse velho dogma da sabedoria política teve de flexibilizar-se diante da necessidade imperiosa de ceder espaço para a legislação emanada do Poder Executivo, como as nossas medidas provisórias que são editadas com força de lei - bem assim para a legislação judicial, fruto da inevitável criatividade dos juízes e tribunais, sobretudo das cortes constitucionais, onde é frequente a criação de normas de caráter geral, como as chamadas sentenças aditivas proferidas por esses supertribunais em sede de controle de constitucionalidade." 50 A separação de poderes, como princípio republicano, não deve servir de óbice a uma efetivação da justiça fiscal de modo a tornar mais eficiente a solução dos conflitos tributários. Com a Reforma do Judiciário, a necessidade de eficiência da administração fiscal se faz ainda mais necessária. É que a EC nº 45/04 incluiu o inciso LXXVIII ao art. 5º com o seguinte teor: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação". Portanto, a razoável duração do processo passou a ser um direito de todos, ou seja, de toda a sociedade, não só particularmente em cada processo que se desenvolva individualmente na seara administrativa, mas, 49 50 Ibidem. Curso de Direito Constitucional, p. 178. 14 também, abstratamente, no sentido de que se tenha e se pense um rito célere, sem desperdício de recursos. Uma solução de conflitos tributários que mantém duas esferas de resolução de conflito disponíveis a qualquer tempo e a qualquer momento ao contribuinte devedor não atende ao princípio da razoável duração do processo, tampouco à eficiência da administração. Apenas fixar um prazo para que o processo chegue ao fim não é a melhor solução para atender o princípio da razoabilidade 51 , pois em muitos casos a demanda fiscal se revela complexa exigindo uma série de diligências para a solução do litígio, tal qual ocorre perante o judiciário. Melhor seria rever o próprio procedimento em si, o desenho institucional existente para a solução de conflitos tributários, não apenas um lado da moeda, ou seja, a face administrativa, mas, sim, em conjunto com a judicial. Com a massificação dos litígios, impor punições ao agente fiscal 52 pelo descumprimento de prazos não se revela a melhor solução, pois, em muitos casos, existe um limite fático, estrutural, que nenhuma norma abstratamente considerada pode solucionar, não se trataria, então, de desídia do agente. É preciso que se pense uma nova alternativa para a via crucis que se estabelece nos processos de conflitos tributários, quando a questão não é resolvida administrativamente. Um debate que poderia ser melhor travado em torno do tema é saber se há necessidade de se conferir tantas oportunidades ao contribuinte para litigar, quando pretende não pagar um débito tributário. Por exemplo, se considerarmos os instrumentos que lhe são dispostos, para evitar o pagamento existem, antes da autuação fiscal, o mandado de segurança preventivo e a ação declaratória. Lançado o débito, existem, ainda exemplificando, a ação anulatória, os embargos à execução, a exceção de pré-executividade, isso sem contar que o contribuinte pode percorrer toda a esfera administrativa e, ainda, sim, após intenso debate, percorrer toda a judicial. E aqui reside o maior problema: a possibilidade de percorrer toda a seara administrativa e, após o julgamento final administrativo, percorrer todo o contencioso judicial, com a possibilidade de repetir todos os atos e diligências realizados administrativamente. 51 A Lei nº 11.457/07 prevê em seu art. 24 a seguinte redação: "É obrigatório que seja proferida decisão administrativa no prazo máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias a contar do protocolo de petições, defesas ou recursos administrativos do contribuinte". 52 Essa parece ser a solução vislumbrada por Sérgio André Rocha, nos casos de demora injustificada (Cf. ROCHA, Sérgio André. Processo Administrativo Fiscal, p. 82). 15 A tentativa de se impor algum limite ao acesso do contribuinte a tanta proteção não é nova. A Constituição Federal de 1969, em seu art. 153, § 4º 53 , previa a possibilidade de a legislação infraconstitucional exigir que o administrado, antes de ingressar com a ação judicial questionando o débito fiscal, discutisse a questão administrativamente, desde que não lhe fosse exigida garantia para recorrer, tampouco se levasse mais de 180 dias para decidir o pedido. Rubens Gomes de Souza, autor do anteprojeto que originou o CTN, já em 1943, em sua clássica obra A distribuição da Justiça em Matéria Fiscal, demonstrava preocupação em se conferir inúmeras oportunidades para que o contribuinte discutisse o débito tributário. Ao fim do processo administrativo, o contribuinte teria sempre dois caminhos a seguir: ou ajuizava diretamente uma ação para anular o ato administrativo ou ajuizava demanda de repetição do tributo que foi pago ou, de outro modo, aguardava o ajuizamento da execução fiscal, para opor defesa com a renovação judicial das questões "já ventiladas e decididas nas instâncias administrativas" 54. Suas críticas, feitas há mais de setenta anos, ao sistema judicial da época poderiam perfeitamente compor os manuais de processo tributário, o que demonstra a atualidade do seu pensamento. Hoje, essa possibilidade de rediscussão de tudo o que foi debatido permanece, pois o contribuinte que aguardar todo o processo administrativo, ainda, sim, pode ingressar em juízo para anular o ato definitivo de lançamento, reproduzindo todo o debate administrativo, com todas as oportunidades renovadas, a qualquer tempo. Gilberto de Ulhôa Canto, também, há muito demonstrou a mesma preocupação com as sucessivas fases administrativa e judicial a ponto de achar mais conveniente defender duas fases administrativas e uma judicial colegiada, mantendo-se as instâncias extraordinárias 55 De todo modo, o problema que ora se levanta é acerca da utilidade de se manter duas instâncias diversas de solução de conflitos tributários, que a despeito de observarem a separação de poderes, não observam a harmonia que complementaria o princípio, estando longe de ser alcançada. Em muitas situações, 53 Art. 153, § 4º, da CR/69: "A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual. O ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se exauram previamente as vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias para a decisão sobre o pedido" (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 7, de 1977). 54 SOUSA, Rubens Gomes. A Distribuição da Justiça em Matéria Fiscal, p. 64. 55 O Processo Tributário, p. 62. 16 todo o debate que ocorreu na seara administrativa é repetido judicialmente, o que ocasiona a morosidade e ineficiência da jurisdição tributária. É preciso, então, refletir sobre os custos dos direitos e, ainda, se seria possível uma nova proposta de solução de conflito tributário que harmonize as duas searas: a administrativa e a judiciária. De outro turno, é preciso refletir, também, a respeito da responsabilidade do contribuinte por suas escolhas, de modo que não se visualize no direito um paternalismo da época dos Estados deficitários que compunham os blocos socialistas. Assim, será que o contribuinte não é responsável por escolher o espaço público em que irá litigar? Uma solução possível, de lege ferenda, é abreviar o rito judicial daqueles que optam por litigar administrativamente. Assim, os que percorressem toda a esfera de litígio administrativo teriam abreviado o procedimento judicial, justificado com base na harmonia que compõe a separação de poderes, bem como no princípio da eficiência e duração razoável do processo, que devem beneficiar a sociedade como um todo. Deste modo, optando por litigar administrativamente, a seara judicial deverá ser acionada em determinado prazo razoável 56 e funcionará como uma instância de revisão do debate administrativo, já em segunda instância. Seria uma espécie de competência originária do Tribunal Federal, no caso dos litígios com a União Federal. Trata-se de uma proposta inicial que será melhor aprofundada em trabalhos futuros, pois, neste momento, o objetivo foi de chamar a atenção para a necessidade de se debater o tema. 56 No passado já se tentou fixar um prazo de 180 dias para o ajuizamento da demanda judicial, previsto no art. 33 da MP nº 1621-30, de 12.12.97. Essa MP foi reeditada diversas vezes, trazendo a limitação até não mais conter tal dispositivo a partir da MP nº 1863-55, de 22.10.99. Todavia, tal prazo foi fixado a partir da intimação da decisão de primeira instância, o que não se revelava razoável, pois o contribuinte ficava em um impasse em recorrer administrativamente ou ingressar judicialmente, já que o prazo para o acesso à justiça já estaria correndo. O STF na ADI nº 1.922 MC/DF, julgada em 06.10.99, Rel. Moreira Alves, suspendeu a eficácia do dispositivo por considerálo como violador do "princípio constitucional do devido processo legal em sentido material". Ao se converter a MP na Lei nº 10.522/02 o legislador preferiu não trazer igual limitação. 17 5 Conclusão Como visto, o art. 38 da LEF, em uma leitura tradicional, foi concebido para se evitar discussões paralelas, na seara judicial e administrativa, envolvendo a mesma lide. O artigo, portanto, foi pensado para se evitar a procrastinação judicial. Os Tribunais Superiores reconhecem sua constitucionalidade, não vendo ali violação do direito de petição, tampouco à ampla defesa ou acesso à justiça. Contudo, mesmo diante deste cenário, a procrastinação não foi evitada. Em razão disso, é preciso fazer uma releitura constitucional do artigo para com ele debater sobre a superproteção do contribuinte por meio de duas esferas de litígio: a judicial e administrativa. Ambas, em muitos casos, são utilizadas ao mesmo tempo ou sucessivamente a qualquer tempo. Além disso, os custos de se manter ambas esferas de litígio deve ser levado em consideração, na medida em que, por vezes, todas as diligências realizadas administrativamente são repetidas judicialmente. É preciso ter em mente que o rol de direitos consagrados pela Constituição de 1988 exige que o Estado obtenha mais recursos, via arrecadação tributária, para implementar os programas sociais previstos, razão pela qual ganha força a necessidade de se equipar o Estado de instrumentos que viabilizem uma arrecadação eficiente e que evite o desperdício de estrutura. Uma releitura constitucional possível seria enfrentar o problema a partir do aspecto harmônico da separação dos poderes, que em nosso cenário jurídico não é vista de forma absoluta, de modo que se possa viabilizar uma congruência entre as esferas administrativa e judicial. Além disso, deve entrar nessa equação o princípio da eficiência, agora expresso no art. 37 da Constituição, e o princípio da duração razoável do processo, oriundo da reforma do Judiciário. Assim, é possível especular, como já o fizera a doutrina no passado, uma forma de integração entre as duas esferas, mediante a fixação de prazos ao acesso ao Judiciário daquele que optar por litigar administrativamente e, nesses casos, atribuindo o julgamento ao Judiciário em uma instância de revisão do processo administrativo, já em decisão colegiada proferida por um Tribunal. Essas são apenas propostas para conferir maior celeridade e efetividade à solução de conflitos tributários, tanto na via judicial quanto na administrativa. 18 Bibliografia BARBOSA, Rogério. Empresa que perdeu prazo poderá consolidar Refis. Conjur 30 ago 2011. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2011-ago-30/empresaperdeu-prazo-consolidar-refis-justica-federal#autores>. Acesso em: 25 out 2011. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. CÂMARA, Alexandre. 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