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Vicente de Paula Maciel Júnior
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SHVTXLVD VREUH D FRQVWUXomR GH XPD 7HRULD GR
'LUHLWR3URFHVVXDO&ROHWLYR.
Sumário
1 Introdução
2 Evolução histórica
2.1 Jeremy Bentham
2.2 Rudolf Von Ihering
2.2.1 A influência do pensamento de Ihering na classificação
dos interesses e direitos
2.2.1.1 Interesse ou direito individual?
2.2.1.2 Interesse ou direito Público?
2.2.1.3 Interesse ou direito geral ou coletivo?
2.2.1.4 Interesse ou direito coletivo VWULFWRVHQVX?
2.2.1.5 Interesses ou direitos legítimos?
2.2.1.6 Interesses ou direitos difusos?
3 Críticas às classificações do direito e interesse segundo a
teoria de Ihering
3.1 O equívoco metodológico de Ihering
3.2 A necessária distinção entre interesse e direito.
4 A utilização do termo interesse nos diversos campos do
conhecimento
4.1 O termo interesse na filosofia
4.2 O interesse no campo da pedagogia
2
5 A essência da distinção entre direito e interesse
5.1 A importância da distinção entre os interesses e os direitos
5.2 O conceito de interesse e direito sob a nossa perspectiva
5.3 Os direitos coletivos e difusos segundo nosso critério
5.3 Interesses ou direitos públicos?
5.4 Existe o chamado interesse geral?
5.5 Interesse subjetivo, direito subjetivo, direito objetivo
6 Os interessados difusos e o reconhecimento da existência de
valores comuns
6.1 Os interesses e sua relação com os valores
6.1.1 Os valores como parâmetro de aglutinação de interesses
6.2 Os valores.
7 O conceito de processo
7.1 Dualidade ou unidade do ordenamento jurídico
7.2 O processo estruturado democraticamente
7.3 O Estado e o processo coletivo
8 Conclusão
2
3
,QWURGXomR
O estudo que propomos tem por base a reavaliação dos conceitos de direito,
aqui entendido o direito subjetivo tratado por Ihering, e os interesses, esses
tratados por esse ilustre autor como um componente do conceito de direito.
Para Ihering o direito é o interesse juridicamente tutelado. Essa proposição
vem sendo repetida ao longo dos anos e incorporada em diversas legislações
sem uma maior análise crítica de sua validade e principalmente de suas
conseqüências no campo do direito. Também tem sido desconsiderada a
influência provocada na legislação e no modo de viver as situações jurídicas,
pelas transformações decorrentes da passagem do Estado Social para o
Estado Democrático de Direito.
Mesmo com o surgimento e o progresso dos chamados interesses e direitos
difusos e coletivos, a análise dos antigos conceitos tratados por Ihering não
foi refeita.
Mas a base do estudo de Ihering pressupõe a perspectiva do individualismo,
no qual centrou e explicou o direito subjetivo. Ihering viveu numa época de
afirmação do indivíduo perante o Estado centralizador e forte. Hoje
sorvemos os ares do Estado Democrático de Direito e do reconhecimento
formal do direito de participação nos processos decisórios que delibam
nossos interesses. Vivemos em uma sociedade complexa, o que significa que
não podemos partir dessa mesma perspectiva de Ihering para explicar os
novos fenômenos do direito coletivo. O Estado Democrático de Direito nos
trouxe como legado a necessidade de vivermos a difusão da racionalidade,
que se concretiza por meio de uma infinidade de processos decisórios.
Participamos diariamente em nossas vidas em sociedade, de uma centena de
situações jurídicas que nos obrigam a manifestarmos nossos interesses e
defendê-los para que prevaleçam nos casos concretos.
O que questionamos é se, na perspectiva do Estado Democrático de Direito,
essas bases podem servir para a estruturação de estudos que hoje fazemos
sobre os chamados interesses e direitos difusos e coletivos. E mais, se o
modelo de processo adotado para a tutela dos chamados interesses
individuais e direitos subjetivos pode ser transposto e oferecer efetiva tutela
aos chamados interesses e direitos coletivos e difusos.
Há uma grande perplexidade da doutrina nacional e estrangeira sobre os
direitos coletivos e são diversas as soluções de cada país para conferir
efetividade a esses direitos. Temos no Brasil um sistema de ações coletivas,
mas estamos longe de um consenso sobre o que sejam os direitos (ou
3
4
interesses) difusos, coletivos, homogêneos, etc.. Ou seja, temos tutelas
processuais, mas a doutrina e a jurisprudência estão repletas de indagações
sobre a legitimação, os efeitos, a forma, a extensão daquilo que estamos
tutelando. Os direitos são iguais aos interesses? Significam a mesma coisa?
Qual seria a relevância prática dessa distinção? Se diferentes, o que seriam os
“interesses” difusos e os “direitos” difusos? Como se dá a execução desses
“direitos” ou “interesses”? Não é incoerente que tenhamos um avançado
sistema de tutelas coletivas no Brasil, mas não tenhamos uma teoria do
direito coletivo que a sustente?
Pensamos ser essencial uma tentativa de estruturação de uma teoria que sirva
de base para um salto qualitativo no processo coletivo. Temos de rever,
aprofundar, compreender os conceitos que estão na base do direito coletivo,
no intuito de perquirir qual o melhor modelo para a construção de uma
efetiva tutela dos direitos coletivos através do processo.
Esta é a primeira parte e a base de nossos estudos, onde buscamos revistar a
teoria do direito para compreender o fenômeno coletivo e fixar a estrutura
para a futura construção de uma teoria do processo coletivo.
(YROXomRKLVWyULFD
Em princípio, o estudo do interesse teve sua maior relevância com os autores
utilitaristas, principalmente com Jeremy Bentham e Rudolf Von Ihering, que
o ligaram à idéia de utilidade, valor, necessidade. O último desses autores foi
o grande responsável pela divulgação e equiparação dos interesses aos
direitos, ao afirmar que os direitos são interesses juridicamente protegidos.
Essa idéia central foi manifestada na obra intitulada “A dogmática jurídica”.
-HUHP\%HQWKDP
Jeremy Bentham foi contemporâneo de Augusto Comte, tendo nascido em
1748 e morrido em 1832. Para esse autor, "a natureza colocou o gênero
humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer.
Somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como determinar
o que na realidade faremos.". (BENTHAM, 1974, p.09)
Jeremy Bentham submete os interesses, do indivíduo ou da comunidade, ao
fato de estarem ou não adequados ao princípio da utilidade, servindo de
critério para se verificar se o ato praticado está cumprindo a finalidade de
proporcionar o maior prazer possível. Bentham (1974, p.09) entende que o
4
5
interesse da comunidade é a soma dos interesses dos diversos membros que a
integram, e que, portanto, é inútil falar-se em interesse da comunidade se não
se compreender qual é o interesse do indivíduo.
Os interesses são vistos dentro de uma perspectiva do mundo em sua
realidade “ posta” ou “ dada” , uma vez que o utilitarismo visa fornecer uma
leitura da mesma em função do princípio da utilidade (ou maior felicidade) e
da maximização do prazer. O utilitarismo não foge à esfera do que é dado ou
posto, inserindo-se no positivismo de Comte.
Para Julián Marias (1987, p.346), a ética utilitarista não é egoísta, tendo antes
um caráter social, em virtude de objetivar a maior felicidade possível para o
maior número de pessoas.
É interessante perceber que a concepção de Bentham sobre o interesse
pressupõe sempre a vinculação à manifestação do indivíduo, embora esta
esteja submetida ao princípio da utilidade.
5XGROI9RQ,KHULQJ
Outro autor cujo tema do interesse foi objeto de estudo, e que também pode
ser inserido dentre os utilitaristas, foi Rudolf Von Ihering (1818 - 1892). Para
ele, o fim da lei não se restringia à proteção da liberdade individual, tendo
como escopo o estabelecimento do equilíbrio entre o princípio individualista
e o social. Segundo Ihering, o indivíduo existe para si e para a sociedade1,
1
“Essencial, para nós, é o seguinte. Primeiro: Ihering desloca o eixo
do problema do legislador – como pessoa – para a sociedade, como
grandeza determinante, e, por assim dizer, como verdadeiro DFWRU.
Todavia, transcende tão pouco o credo legalista do seu tempo que se
apropria da sua tese fundamental – a saber: a tese do monopólio do
Estado em matéria de criação do Direito. 'LUHLWR é para ele apenas a
norma coerciva posta pelo Estado. Segundo: a par da qualidade formal de
ser uma norma coerciva posta pelo Estado, Ihering atribui a cada norma
jurídica uma relação de conteúdo com um fim determinado, benéfico para a
sociedade, e por causa do qual a norma existe. Com o que, ainda no
terreno do positivismo, consuma já o abandono quer da Jurisprudência dos
conceitos formal, que de uma compreensão predominantemente psicológica
do conceito de Direito. O Direito é para ele a norma coerciva do Estado
posta ao serviço de um fim social. Para compreender a norma jurídica
precisa-se menos de uma análise lógica ou psicológica do que de uma
análise
sociológica.
Terceiro:Ihering
não
reconhece
qualquer
hierarquização objetiva dos fins da sociedade. Segundo ele, estes
resultam
antes
das
diversas
‘necessidades
vitais’
da sociedade
respectiva, da sociedade KLVWRULFDPHQWH GDGD. Só o que uma FHUWD
sociedade humana vê como útil e vitamente relevante para o seu EHPHVWDU
5
6
devendo estar trabalhando com ela e para ela, de modo que sua realização
pessoal seja tão útil a si mesmo quanto à sociedade. Seu esforço pessoal deve
estar colocado a serviço da humanidade, devendo a sociedade, a partir daí,
regular sua economia. Tal idéia motivou o próprio Ihering a qualificar-se
como um utilitarista social, o que se difundiu, como podemos ver em Roscoe
Pound. (BODENHEIMER, 1966, p.106)
Como afirma Edgar Bodenheimer (1966, p.106), Ihering calcou o ponto
central de sua Filosofia do Direito no "fim". O fim como criador de todo o
Direito, não havendo norma jurídica que não deva sua origem a um fim ou
motivo prático.
Gustav Radbruch (1934), em percuciente análise da obra de Ihering, ressalta
que ele não conseguiu ultrapassar o empirismo porque o fim, que
considerava como a força criadora do Direito, não era a idéia supra-sensível
de fim que serve de parâmetro ao desenvolvimento jurídico. A idéia de fim
para Ihering era extraída empiricamente do mundo dos fatos, de uma espécie
de causa a que se dá o nome de causa final, e não de uma oposição entre o
ideal e a realidade.
Ihering (1946, p.180-181) entendia que os direitos não existem apenas para
realizar a idéia de vontade jurídica abstrata. Servem para garantir os
interesses da vida, ajudar as suas necessidades e realizar fins. Esta é sua
missão e tal é o fim da medida da vontade e das convenções; todas aquelas
que não apresentam nenhum interesse nessa ordem de idéias são nulas e não
dão origem a uma obrigação. Os direitos não produzem nada inútil, uma vez
que a utilidade é a substância do Direito (IHERING, 1946, p.180).
Para Ihering, o princípio do direito era formado de dois elementos, sendo um
o substancial, em que reside o fim prático do direito, produzindo uma
utilidade. O outro é o formal, referindo-se a esse fim unicamente como meio,
ou seja, proteção do direito, ação da Justiça, que funcionam como
mecanismos garantidores do primeiro. Em famosa frase, Ihering define os
direitos como interesses juridicamente protegidos.
é que decide da sua própria e historicamente mutável ‘exigência de
felicidade’.”
LARENZ,
Karl.
0HWRGRORJLD GD &LrQFLD GR 'LUHLWR
Lisboa:Fundação Calouste Gulbenkian. 3ªed, 1997, p.60-62.
6
7
Segundo Ihering, qualquer definição de direito que não parta da idéia de
bem, em sentido amplo, pecaria por falta de base. Bem seria toda coisa que
nos possa servir para algo. À idéia de bem estariam unidas as noções de
valor, que expressaria a medida de sua utilidade, e a de interesse, cuja noção
pressupõe o valor em sua relação particular com o sujeito e seus fins. Um
direito que por si mesmo possui um valor, pode não tê-lo para outro sujeito.
(IHERING, 1946, p.182)
Dentro de sua perspectiva prática utilitarista Ihering (1946, p.182-183) chega
a quantificar o valor e o interesse, afirmando que o dinheiro é a medida
econômica do valor e do interesse. O dinheiro seria, para ele, o modo pelo
qual se resolvem os objetos de valor e o meio em virtude do qual podem ser
reconstituídos, sendo a substância originária que a todos contém. Tudo que
se pode comprar se pode estimar, reduzir a dinheiro.(IHERING, 1946, p.182183)
No paradigma de Ihering (1946, p.183), qualquer que seja a diversidade do
interesse que apresentem os diversos direitos, todo direito estabelecido seria
a expressão de um interesse reconhecido pelo legislador e que estaria a
merecer a sua proteção. Os direitos sofreriam transformações à medida em
que os interesses presentes na vida também se modificassem. Ihering (1946,
p.183) reconhece que os interesses e direitos são historicamente paralelos.
Quanto aos dois elementos que compõem o direito, o primeiro deles, o
substancial, que seria o gozo, domina a vontade. O objeto próprio do direito
para Ihering é o gozo. A reivindicação de um direito é o meio de se chegar ao
poder dele gozar. Gozar de um direito sem dispor dele, pode conceber-se,
mas dispor dele sem gozá-lo é impossível, sob o prisma de Ihering. O direito
estaria calcado nesse princípio, que seria o ponto de partida da vontade, no
sentido de permitir que ela possa concorrer ao objeto geral do direito.
Tomado em seu conjunto, Ihering admite a designação do direito como força,
mas para ele a força não seria objeto do direito. A força seria um instrumento
do direito, o modo pelo qual ele alcançaria seu fim. (1946, p.188)
O segundo elemento do direito é a proteção jurídica que ele recebe. O direito
é a segurança jurídica do gozo. Para Ihering os direitos são interesses
juridicamente protegidos, mas há interesses que não reclamam a proteção
7
8
jurídica porque não podem esperá-la. O direito não seria outra coisa que o
interesse que se protegeria a si próprio. (IHERING, 1946, p.189-190)
$ LQIOXrQFLD GR SHQVDPHQWR GH ,KHULQJ QD FODVVLILFDomR
GRVLQWHUHVVHVHGLUHLWRV
A complexidade da vida moderna e a evolução tecnológica criam bens de
consumo que provocam verdadeiras alterações nas relações humanas,
chegando a modificar a noção de tempo e espaço, como acontece com os
computadores de última geração, com robôs que constroem carros, com faxsímiles, etc. É a tecnologia posta a serviço da produção em massa para o
atendimento dos interesses da coletividade.2
A geração de bens de consumo para atender a uma população cada vez maior
(SALDANHA, 1986, p.19) sofre o patrulhamento do Estado, que reconhece
a necessidade de tutela da massa de consumidores3, em virtude dos interesses
pluralizados quanto ao sujeito, e da possibilidade de danos que não se
restringem apenas ao indivíduo, mas estendem-se às vezes a toda população
de um país.
Essa modificação estrutural decorrente do avanço tecnológico e da explosão
populacional revela a alteração que o paradigma4 do Estado Democrático de
2
Em análise crítica ao papel da técnica e ciência no mundo moderno,
Habermas afirma que: "a direção do progresso técnico é hoje determinada
ainda
em
grande
parte
pelos
interesses
sociais
que
provêm
espontaneamente da coacção à reprodução da vida social sem que sobre
eles, enquanto tais, se reflita e sem que sejam confrontados com a
autocompreensão
política
esclarecida
dos
grupos
sociais;
como
conseqüência, irrompe um novo poder técnico sem qualquer preparação nas
formas existentes da praxis vital, e os novos potenciais de um poder
ampliado de disposições técnicas tornam cada vez mais manifesta a
desproporção entre os resultados de uma racionalidade no máximo da sua
tensão, e objetivos irrefletidos, sistemas de valores ancilosados e
ideologias
caducas."
(HABERMAS,
Jürgen.
Técnica
e
ciência como
ideologia. 1994. p.119)
3 Não se pode esquecer da advertência feita pelo prof.Artur José Almeida
Diniz, no sentido de que o interesse dos cidadãos e os programas
governamentais de desenvolvimento muitas vezes não são traçados pelos
Estados, mas planejados pelas grandes firmas, que direcionam o
escoamento de seus produtos e serviços.(DINIZ, Arthur José Almeida. A
Política
e
o
terceiro
mundo;
contradições
econômicas
contemporâneas.Revista Brasileira de Estudos Políticos. 1983.p.40)
4
Arthur José Almeida Diniz revela-nos a utilização do termo “paradigma”
por Platão no sentido de que ele representa o mundo dos seres eternos,
do qual o mundo sensível é a imagem e, Aristóteles, dentro da Lógica,
atribui ao termo o significado de exemplo. O Mestre mineiro ainda aponta
8
9
Direito5 vem sofrendo no curso da história6 quanto à proteção que ele deve
oferecer aos direitos e interesses que lhe incumbe tutelar.
O modelo clássico objeto de tutela pelo Estado reside na proteção à relação
jurídica-base entre indivíduos, protegendo predominantemente os direitos
subjetivos, dentro de uma perspectiva individualista que, conforme esclarece
Bobbio (1992, p.60), estabelece o primado do indivíduo sobre o Estado. Para
o pensador, esses direitos individuais seriam direitos de "primeira geração".
Não se admitia a presença de corpos intermediários entre os indivíduos e o
Estado7, sendo que este desconfiava das corporações e associações por
desenvolverem atividades coletivas em concorrência com as dele. Merece ser
a evolução que a noção de paradigma vem sofrendo, tendo ainda
significado “sistema” e, mais recentemente, aproveitando conquistas de
pesquisas na área da fisiologia e transportado-as para as Ciências
Humanas, podemos ter o sentido de paradigma como o prisma globalizante
em que o indivíduo é parte viva de um universo que também é vivo e que
vai sendo construído (autopoiética). ( cf. DINIZ, Arthur José Almeida.
Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1995. p.29-30).
5 O Estado Democrático de Direito é uma opção surgida em contraposição
ao Estado Autoritário, sendo que o Brasil adotou claramente em sua
Constituição de 1988 esse paradigma, conforme nos revela o Mestre Raul
Machado Horta: “A opção pelo Estado Democrático de Direito, que a
Constituição de 1988 fundamentou na vontade constituinte do Povo e no
pluralismo político, exprime a recusa da Sociedade Brasileira a qualquer
forma de autoritarismo e às seduções do messianismo político.
Autoritarismo e messianismo conduzem à opressão do Estado e à submissão
da comunidade à tirania política.”(HORTA, Raul Machado. Estudos de
direito constitucional. 1995. p.301.)
6
O professor José Alfredo de Oliveira Baracho, em importante estudo
sobre o princípio da subsidiariedade, ressalta ainda o surgimento do
Estado suplente, assentado na concepção de uma sociedade plural, de
sentido mais amplo do que o de modelo democrático e que, além de
possibilitar a diversidade de opiniões, é munido de uma variedade de
capacidade de atuação para a efetivação dos fins individuais e sociais.
O Mestre mineiro aponta o princípio da subsidiariedade como sendo
característico
da
cultura
política
européia,
que
concretiza as
atribuições do Estado na pluralidade de comunidades, sendo que as
sociedades têm vida própria e autonomia, justificando-se o Estado apenas
para possibilitar a efetivação desses fins. (BARACHO, José Alfredo de
Oliveira. O princípio da subsidiariedade; conceito e evolução. 1995.
p.134-135.
7 "A história do direito de associação sindical pode, portanto, ser
subdividida em três períodos distintos: o primeiro, que vai da época da
Revolução Francesa até 1824, é a fase da repressão legal das associações
sindicais; o segundo, que se estende de 1824 a 1871, é a fase de
tolerância legal das associações profissionais e da revogação da
precedente legislação; o terceiro, de 1871 aos nossos dias, é a fase do
reconhecimento ou da proteção legal da associação sindical." (MAZZONI,
Giuliano. Relações coletivas de trabalho. 1972. p .07.
9
10
citada a Lei francesa Le Chapelier, de 1791, que vedou a criação de
corporações.(PRADE, 1987, p.29 e 36)
Um segundo momento do Estado social, sem deixar de ter por base os
interesses individuais, caracteriza-se pelo reconhecimento das associações e
sindicatos, como entes legítimos de representação de interesses de seus
associados, em virtude de admitir que o fato associativo é inerente à
condição humana (MANCUSO, 1988, p.50-51). Proliferam-se as associações
e sindicatos, reconhecendo-se a relação jurídica-base entre o Estado e o
indivíduo, deste com a associação e desta com o Estado, fortalecendo-se o
indivíduo como participante de um grupo, com atribuição de direitos e
interesses às associações. Surge uma disseminação de direitos sociais. É o
que Bobbio (1992, p.06) denomina de direitos de "segunda geração".
Um terceiro momento do Estado democrático em face das relações objeto de
tutela se refere aos interesses difusos, os chamados direitos de "terceira
geração" (BOBBIO, 1992, p.06), aqueles que afetam interesses e direitos de
um grupo indefinível de indivíduos, dizendo respeito a todos e a cada um.
Seriam os direitos à qualidade de vida, os do consumidor, do meio ambiente.
São direitos e interesses tuteláveis, mesmo sem a apresentação imediata de
um titular, decorrentes de um fato básico que afeta a todos.
Dentro desse parâmetro de organização estatal, as definições clássicas
tipificam os interesses em três grandes categorias: o individual, o geral e o
público, que passaremos a analisar.
O Código de Defesa do Consumidor prevê uma definição legal no art.81,
itens I, II e III, para a tutela em sede coletiva de três ordens de interesses,
sendo os primeiros os difusos, assim denominados os transindividuais, de
natureza indivisível, cujos titulares são pessoas ligadas por circunstâncias de
fato. Os segundos são os interesses coletivos, também transindividuais, de
natureza indivisível, cujos titulares são grupos, categorias ou classes de
pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídicabase. E por fim os interesses individuais homogêneos, que são os decorrentes
de origem comum (tais interesses não são coletivos nem difusos, mas
individuais, tendo um ponto de fato comum que recomenda a defesa a um só
tempo (FREITAS, 1992, p.328) ). Essa classificação denota o
reconhecimento, dentro da relação de consumo, de três possibilidades de
10
11
manifestação dos interesses de forma pluralizada, quais sejam, a difusa, a
coletiva e a homogênea.
,QWHUHVVHRXGLUHLWRLQGLYLGXDO"
Para o professor José Alfredo de Oliveira Baracho (1991, p.276), os
primeiros interesses e direitos do indivíduo são os de poder desenvolver
livremente suas faculdades, sendo que o melhor meio para assegurar o seu
aprimoramento é permitir que a própria pessoa dirija sua vontade, de forma
espontânea, assumindo os riscos inerentes que decorrem desse exercício
quando tiver pela frente alguém com igual direito. Assegurando-se este livre
desenvolvimento, obtêm-se os diversos tipos de liberdades que compõem os
direitos individuais.
Ainda segundo Baracho (1991, p.278), os interesses e os direitos individuais
apresentam em comum o fato de que limitam os direitos do Estado, que se
deve abster e deixar para os indivíduos os ônus de suas próprias atividades.
O interesse individual é o particular (GONÇALVES, 1994a, p.1228).
Rodolfo de Camargo Mancuso (1988, p.35-37) entende não haver outra
forma de conceituar o interesse individual senão pelo critério do elemento
predominante, sendo que, sob esse prisma, "é individual o interesse cuja
fruição se esgota no círculo de atuação de seu destinatário". Somente o
indivíduo sofre os efeitos ou se beneficia dos encargos que assume. E conclui
no sentido de que os interesses individuais se encontram na base do conceito
de direito subjetivo, resultando da fusão do interesse individual com a
proteção ou garantia fornecidas pelo Estado.
Péricles Prade (1987, p.31) denomina esse interesse de "privado" e lhe
confere um sentido material, que seria o de integrar o núcleo de um direito
subjetivo do particular. Atribui ainda um sentido formal, segundo o qual o
interesse privado seria aquele submetido ao regime jurídico de direito
privado, caracterizado pela disponibilidade e equivalência com os demais
interesses privados.
Segundo definição do Jurista Ivo Dantas (CAVALCANTI, 1989, p.28), os
direitos e garantias individuais são:
11
12
“aquele
conjunto
de
preceitos
jurídicos que, por sua natureza mesma,
são inalienáveis ao homem como tal,
fundamentados em seu sentimento de
justiça;
são
manifestações
de
um
resguardar-se frente à Organização
Política e aos quais só conhece, como
limite,
os
mesmos
direitos
pertencentes ao outro indivíduo, tal
como no imperativo kantiano; o direito
de um termina onde começa o direito do
outro.”
O Código de Proteção e Defesa do Consumidor, ao abordar a defesa do
consumidor, em seu Título III, no art.81, inciso III, destaca a existência de
uma espécie de interesse e direito individual que qualifica de "homogêneos".
Conforme entende Rodolfo de Camargo Mancuso (1991, p.278-279), tais
interesses não são coletivos na essência ou mesmo no modo de serem
exercidos, apresentando, no entanto, uma uniformidade em face da
circunstância em que seus titulares se encontram, o que lhes confere certa
coesão suficiente para apartá-los da massa de indivíduos. Para o autor, a
característica primordial dessa categoria de interesses é a homogeneidade,
que decorre da origem comum e da mesma base jurídica, fundamentos dos
direitos de cada indivíduo.
,QWHUHVVHRXGLUHLWRS~EOLFR"
Interesse público é o pertinente à própria sociedade, que se faz representar
pelo Estado.(GONÇALVES, 1994a, p.1228-1229).
Para Ada Pellegrini Grinover (1984, p.30), os interesses públicos também
são metaindividuais. São os interesses exercidos com relação ao Estado (à
ordem pública, à segurança pública) dos quais todos os componentes da
sociedade compartilham. Mas diferem dos interesses metaindividuais gerais,
porque o conflito decorrente de interesse público violado somente será
12
13
analisado dentro da perspectiva clássica da controvérsia entre o indivíduo e o
Estado.
,QWHUHVVHRXGLUHLWRJHUDORXFROHWLYR"
Interesse geral ou coletivo ODWR VHQVX é o representado pelo "conjunto de
interesses
comuns
aos
indivíduos
que
compõem
uma
sociedade".(GONÇALVES, 1994a, p.1228).
Esclarece o Mestre Aroldo Plínio Gonçalves (1994b,p.2) 8 que “ os direitos e
interesses coletivos compõem-se da simbiose da pluralidade dos interesses e
direitos individuais.” Para o autor, a dimensão individual dos direitos e
interesses está presente no âmago dos interesses coletivos, ressaltando que
seria inútil o Direito conferir a proteção na esfera coletiva a direitos que não
pudessem ser gozados no plano individual.
Foi no campo dos interesses gerais ou coletivosODWRVHQVX que surgiram os
desdobramentos e o uso das terminologias "interesse coletivo", "interesse
difuso", "interesse social", "interesse metaindividual", em virtude do
aparecimento, desenvolvimento e reconhecimento de grupos intermediários
entre o Estado e o indivíduo, que disseminaram uma nova tipologia de
relação. O uso das denominações, entretanto, não é uníssono entre os autores.
A noção de interesse geral ou coletivo VWULFWRVHQVX também pode ser tomada
na acepção particularizada de um interesse pertencente a um grupo
determinado, ou seja, o interesse geral de uma categoria ou grupo associativo
ou sindical; ou em um sentido mais abrangente, dizendo respeito a toda a
sociedade, ou a um grupo indeterminável de indivíduos de uma sociedade, o
que recebe atualmente a denominação de "interesses difusos". Comporta
ainda os denominados "interesses sociais", que tomam o sentido de interesse
de uma sociedade (geral); e também o restrito, relativo ao interesse de uma
sociedade legalmente constituída para a defesa de seu patrimônio
associativo.
8
GONÇALVES, Aroldo Plínio. A coisa julgada no Código de Defesa do
Consumidor e o Conceito de Parte. Trabalho apresentado no 7o Curso
Brasilcon de Direito do Consumidor, realizado em Belo Horizonte,
de 22 a 25.11.94, p.2.
13
14
A esses interesses que transcendem o indivíduo, para envolver um número
maior ou indeterminado de pessoas, a doutrina tem atribuído o nome de
“ interesses metaindividuais” , que são os próprios de uma sociedade de
massa. (GRINOVER, 1984, p.31).
No campo do interesse coletivo VWULFWR VHQVX e do interesse difuso é que
desenvolveremos nosso estudo posteriormente.9
A expressão “ interesse coletivo” é indistintamente manipulada tanto para
significar os interesses atinentes a um grupo ou categoria determinada,
quanto para representar a referência aos interesses gerais, ou mesmo
difusos10.
O foco de nossas atenções se dirige agora à análise dos “ interesses coletivos
VWULFWRVHQVX” e dos "interesses difusos".
9 Em sentido contrário ao nosso entendimento, Rodolfo de Camargo
Mancuso("in"
"Interesses
difusos",op.cit.p.60-61)
preconiza
que o
interesse difuso é mais amplo do que o interesse geral(equiparado por
ele também ao público), uma vez que este concerne especialmente ao
"cidadão", ao "Direito", ao "Estado", e aquele se reporta ao "homem",
"nação", ao "justo". E conclui por incluir os interesses difusos a meio
caminho entre os interesses legítimos e os interesses simples. Por outro
lado, Hugo Nigro Mazzilli (in "A defesa dos interesses difusos em juízo;
meio ambiente, consumidor e outros interesses difusos e coletivos. 1992.
p.20-23.) admite a pertinência do interesse difuso à categoria dos
interesses
"públicos"(geral),
e
acrescenta
que
esses
interesses
intermediários sempre existiram, só que agora têm merecido maior atenção
e incremento legislativo, tornando-se objeto de apropriação jurídica.
Fato é que a terminologia não encontrou critério uniformemente aceito.
10
A utilização indiscriminada da terminologia sobre os chamados
“interesses metaindividuais” é fator de imprecisão e falta de critério
nocivos ao desenvolvimento dessa categoria. Considerando a nomenclatura
já existente sobre o tema, preferimos preservá-la, acrescentando, no
entanto, notas que a particularizam e permitem uma melhor identificação.
Consideramos diferentes, portanto, os termos
"interesses
coletivos"
e
“interesses
difusos”.
Acrescentaremos ao termo “interesse coletivo” a expressão "lato sensu",
quando quisermos dizer interesse geral, o gênero que comporta
subdivisões em várias espécies. O interesse coletivo "stricto sensu" tem
para nós o significado de interesse próprio de uma coletividade
determinada, como a família, a sociedade, as associações, sindicatos,
etc. Interesses difusos são os fragmentados, que dizem respeito a todos
e a cada um, restando, no entanto, indeterminados quanto ao sujeito.
(Sobre a imprecisão terminológica, vide MANCUSO, Rodolfo de Camargo.
Interesses difusos; conceito e legitimação para agir. 1988. p.57-60).
14
15
Esses interesses, chamados por Ada Pellegrini Grinover de
“ metaindividuais” , são assim considerados pelo fato de transcenderem a
esfera individual e atingirem um número limitado ou não de pessoas.
Partindo da crítica à dicotomia entre o público11 e o privado, Rodolfo de
Camargo Mancuso (1988, p.31-32) admite uma forte interação entre os dois
sentidos, por ser impossível o aprisionamento do direito em compartimentos
estanques. As evidências dessa constatação, segundo o autor, podem ser
encontradas no fato de o "coletivo", o "geral" e o "público" não serem noções
abstratas, mas encontrarem suas significações a partir da concretude dos
interesses individuais que se agrupam para formá-las. E conclui, citando
J.Chevallier, para quem os interesses privado e público sofreram o
enfraquecimento de suas fronteiras, tendo seu espaço foi ocupado pelos
interesses coletivos ODWRVHQVX.
,QWHUHVVHRXGLUHLWRFROHWLYRVWULFWRVHQVX"
Ada Pellegrini Grinover (1984, p.30) entende por “ interesses coletivos” os
que são comuns a uma coletividade de pessoas e somente a elas, assentandose em um vínculo jurídico definido que as congrega, como por exemplo, a
sociedade, a família. Refere-se ao que chamamos de interesses coletivos
VWULFWRVHQVX.
Para Rodolfo de Camargo Mancuso (1988, p.38-41), nesse sentido o
interesse coletivo comporta três acepções: o interesse "pessoal" do grupo,
que traduz o interesse próprio da pessoa jurídica, enquanto tal. Não se
confunde com os interesses de seus associados, nem significa a destinação da
sociedade para o incremento destes interesses. Não há um interesse coletivo
propriamente dito, mas interesse pessoal da pessoa jurídica, também
11
Sobre a questão entre o público e o privado, Hannah Arendt discorre
que: "A contradição óbvia deste moderno conceito de governo, onde a
única coisa que as pessoas têm
em comum são os seus interesses
privados, já não deve nos incomodar como ainda incomodava Marx, pois
sabemos que a contradição entre o privado e o público, típica dos
estágios iniciais da era moderna, foi um fenômeno temporário que trouxe
a completa extinção da própria diferença entre as esferas privada e
pública, a submersão de ambas na esfera do social. Pela mesma razão,
estamos em posição bem melhor para compreender as conseqüências, para a
existência humana, do desaparecimento de ambas estas esferas da vida - a
esfera pública porque se tornou função da esfera privada, e a esfera
privada porque se tornou a única preocupação comum que sobreviveu."(
ARENDT, Hannah. A condição humana. 1993.p.79).
15
16
chamado de "interesse social". É o interesse da sociedade pela defesa de seu
patrimônio invadido ou violado, ou mesmo o interesse da sociedade em
aumentar seu capital social.
Em verdade, não encontramos propriamente na hipótese aventada pelo autor,
o uso da terminologia “ interesse coletivo” ou “ social” , algo diferente do
"interesse individual". O interesse social por ele preconizado nada mais é do
que o interesse de uma pessoa jurídica tomando por base essa qualidade que
lhe atribui a lei. Ocorre aqui o interesse individual da entidade moral quando
esta defende interesse próprio da sociedade.
Há, ainda, em conformidade com o mestre paulista, um segundo significado
do interesse coletivo VWULFWRVHQVX, que é por ele combatido. Sob esse prisma,
essa espécie de interesse representaria a "soma" de interesses individuais.
Mancuso repudia tal significado por entender que dentro dessa perspectiva o
interesse seria coletivo na "forma" mas individual na "essência". Para ele, um
feixe de interesses individuais não se transforma em coletivo somente pelo
fato de seu exercício se dar de forma coletiva, não se podendo falar de
existência de verdadeiros interesses coletivos, porque a simples alteração no
modo de exercício não altera a essência dos interesses agrupados.
Um terceiro e mais evoluído sentido conferido ao termo interesse coletivo
VWULFWR VHQVX é a consideração do mesmo como a "síntese" de interesses
individuais. Há aqui um salto qualitativo muito grande, porque não se tem
apenas o interesse "pessoal" da entidade ou a "soma" de interesses, mas
conforme entende Mancuso (1988, p.39):
"trata-se de interesses que depassam
esses dois limites, ficando afetados a
um ente coletivo, nascido a partir do
momento
em
que
certos
interesses
individuais, atraídos por semelhança e
harmonizados
pelo
fim
comum,
se
amalgamaram no grupo. É "síntese",
antes que mera "soma". "
16
17
O traço característico e distintivo dessa modalidade de interesses é a
"organização", uma vez que, se não organizados, inocorre a coletivização e a
aglutinação em torno de interesses comuns. À organização se somaria a
afetação desses interesses a grupos determináveis (HQWL HVSRQHQ]LDOL), além
do vínculo jurídico básico que os une. A forma de expressão desses
interesses se daria através de grupos intermediários como a família,
sociedades civis, sindicatos, associações, partidos políticos, etc.
Na mesma linha de exposição, Péricles Prade (1987, p.39-43) traça a nota
característica dos interesses coletivos partindo do fato de que nestes o
homem é socialmente engajado, é membro de grupos menores que se situam
entre o Estado e o indivíduo. Conceitua tal categoria como os interesses:
...”pertinentes
aos
fins
institucionais
de
determinada
associação,
corporação
ou
grupo
intermediário, decorrendo de um prévio
vínculo
jurídico
que
une
os
associados, sujeitando-se a regime
jurídico portador de características
peculiares."
O código de defesa do consumidor deu definição legal em seu art.81, II, aos
interesses coletivos VWULFWR VHQVX, para considerá-los como os
"transindividuais de natureza indivisível" cujos titulares são grupos, classes
ou categorias de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária através de
uma relação jurídica-base.
,QWHUHVVHVRXGLUHLWRVOHJtWLPRV"
Deve preceder à análise do tema dos interesses difusos o assunto correlato
aos interesses legítimos.
Embora não se confundam interesse legítimo e interesse difuso, o estudo do
primeiro ganha relevância, mormente em face da doutrina européia que tem
encontrado pontos de convergência na matéria.
17
18
Os interesses legítimos são criação pretoriana surgida da jurisprudência dos
Conselhos de Estado francês e italiano e aprimorada pela doutrina jurídica
deste último país. (PRADE, 1987,p.22)
No direito europeu, em virtude da bipartição da jurisdição em administrativa
e jurisdicional, surgiu uma situação substancial denominada "interesse
legítimo", acatada em relação ao contencioso administrativo e com objetivo
de anulação do ato da administração pública. (PRADE, 1987, p.22). O
interesse legítimo tem âmbito mais restrito do que a noção de direito
subjetivo.
Para Rodolfo de Camargo Mancuso (1988, p.52-56), além dos interesses
simples, que significam meros anseios, aspirações, desejos restritos à esfera
de cada indivíduo e indiferentes ao Estado, e dos direitos subjetivos, que
representam uma posição de vantagem, privilégios, prerrogativas,
normalmente acompanhados de sanções e tutelados pelo Estado através da
ação, surge um "WHUWLXPJHQXV", que são os interesses legítimos. Estes não
comportariam diferenciação dos demais quanto à essência, mas sim quanto à
intensidade da proteção estatal. Enquanto os interesses simples são
indiferentes ao Estado, e os subjetivos gozam de um máximo de proteção, os
interesses legítimos situam-se em uma zona intermediária. Estes últimos se
caracterizam pelo fato de o sujeito se encontrar em uma tal situação dentro
da abrangência da norma que, embora não tenham uma posição claramente
subsumida no texto normativo, existe a possibilidade da extensão de tutela
diferenciada em face das demais situações existentes. E cita ainda o mestre
uma série de hipóteses jurídicas em que algumas pessoas não têm um direito,
mas sim “ mais interesse” do que outras, como no exemplo daquele indivíduo
que vence uma licitação e que, apesar de não adquirir o direito subjetivo de
efetivar o contrato, tem, no entanto, legítimo interesse em que a decisão
administrativa que o renegue seja motivada.
Mancuso (1988, p.55) arrola como pontos de aproximação entre os interesses
difusos e os legítimos o fato de que ambos se aplicam a um número vasto de
sujeitos e não se confundem com os direitos subjetivos, mas mesmo assim
merecem proteção por serem consentâneos com o ordenamento jurídico.
Péricles Prade (1987, p.23) menciona que alguns interesses difusos passíveis
de atração por ato da administração pública, embora pertinentes a uma série
18
19
indeterminada de indivíduos, conseguem ao mesmo tempo manter
características de determinação de interesses individuais, razão pela qual se
assemelham aos interesses legítimos tutelados na jurisdição administrativa
européia por via do contencioso de anulação. Por esse motivo, segundo o
ensaísta, a doutrina italiana tem defendido a possibilidade de tutela de
interesses difusos perante a jurisdição administrativa sempre que se puder
vislumbrar nesses interesses metaindividuais a existência de interesse
legítimo atingido por ato administrativo.
Mas embora se reconheça a proximidade e importância do estudo dos
interesses legítimos para uma melhor configuração dos interesses difusos, é
remansoso o entendimento de que estes são de maior abrangência do que
aqueles. Os interesses legítimos apenas são utilizados com referência a atos
da administração pública, o que restringe sobremaneira sua aplicação em
face da imensa área de incidência dos interesses difusos. Além do mais, os
interesses legítimos, ainda que remotamente, referem-se a um texto legal ou
a princípio insculpido no ordenamento jurídico, ao passo que os interesses
difusos decorrem de situações de fato, de caráter fluido e contingencial.
,QWHUHVVHVRXGLUHLWRVGLIXVRV"
Mauro Cappelletti (1973, p.16) assevera que a "questão social" está na base
dos interesses difusos, e eles decorrem das necessidades da sociedade
contemporânea, caracterizada pelo "fenômeno de massa". Vivemos em uma
economia cuja preocupação se dirige ao trabalho, consumo, comércio e
produção em massa, com reflexos no campo social, e na presença do Estado
promocional e intervencionista, o Estado de ZHOIDUH. Em conseqüência, as
relações tomam novo dimensionamento, engendrando problemas antes
inexistentes, como o "dano de massa", ou seja, a possibilidade de um ato
ilícito ou prejudicial a um número ilimitado ou indeterminado de pessoas,
como na hipótese dos consumidores. Essa nova gama de interesses que
merecem proteção não são individuais, privados, mas envolvem grupos,
massas, coletividades. São interesses "fragmentados" (CAPPELLETTI,
1988, p.26) no sentido de que cada um de nós tem um fragmento do interesse
difuso.
19
20
Não ocorre o fenômeno da apropriação do interesse por um grupo limitado
ou determinado, mas pelo contrário, ocorre a expansividade da relação fática
que abrange número indefinido de pessoas.
O professor José Alfredo de Oliveira Baracho (1984, p.142-143) ressalta
também a origem dos interesses difusos em decorrência do fenômeno de
massa, por via substancial, ao contrário dos direitos individuais adquiridos
por via formal. Para o ilustre constitucionalista, os interesses difusos têm
como nota caracterizadora a "metaindividualidade".
José Carlos Barbosa Moreira (1984, p.99) enfeixa, dentre os traços básicos
dos interesses difusos, a existência de uma "pluralidade de titulares em
número indeterminado" e "a indivisibilidade do objeto do interesse, cuja
satisfação necessariamente aproveita em conjunto a todos, e cuja postergação
a todos em conjunto prejudica."
Para Kazuo Watanabe (in: GRINOVER,1984, p.87), ocorre o interesse
difuso quando se estabelece uma relação entre pessoas por dados de fato.
Não se trata de um vínculo ( relação-base ) formado entre elas, mas de um
fato que abrange todos, indeterminadamente. E acrescenta Ada Pellegrini
Grinover (1984, p.31) que a satisfação dessas necessidades coletivas se
refere à preservação da "qualidade de vida".
Rogério Lauria Tucci (1989, p.147) também ressalta a titularidade
indeterminada e a situação fática que circunstancialmente ligam as pessoas
como dados caracterizadores dos interesses difusos.
Péricles Prade (1987, p.57-58) propõe o seguinte conceito para os interesses
difusos:
"são os titularizados por uma
cadeia abstrata de pessoas, ligadas
por
vínculos
jurídicos
fáticos
exsurgidos de alguma circunstancial
identidade de situação, passíveis de
lesões disseminadas entre todos os
titulares, de forma pouco circunscrita
20
21
e
num
quadro
conflituosidade."
de
abrangente
Rodolfo de Camargo Mancuso (1988, p.105), após conceituar os interesses
difusos, aponta suas principais características como sendo a indeterminação
dos sujeitos, indivisibilidade do objeto, intensa litigiosidade interna,
tendência à transição ou mutação no tempo e espaço.
Para o ilustre professor mineiro Alberto Deodato Maia Barreto Filho (1986,
p.114), a indivisibilidade não é nota configuradora dos interesses difusos.
Calcado na lição de Ronaldo Cunha Campos, o Mestre defende que o traço
exclusivo dos interesses difusos estaria no aspecto subjetivo, e sentencia:
“ Podemos assinalar que quando a
agressão do direito é à pessoa como
membro da comunidade nós nos referimos
a direito individual. Se a agredida é
a comunidade e a pessoa é agredida por
ser membro dela, então estamos diante
dos chamados direitos coletivos e dos
difusos.
No interesse coletivo os interessados
são determinados ou determináveis,
como o segmento dos promotores de
Justiça, os advogados, os condôminos
de terras, os membros de um sindicato,
de uma sociedade comercial, etc.
No interesse difuso há uma série
indeterminada e indeterminável (pelo
menos na prática) de interessados.”
(BARRETO, 1986, p.114).
O Código de Proteção e Defesa do Consumidor, em seu art.81, item I,
conceituou os interesses difusos como os "transindividuais de natureza
indivisível", nos quais há uma indeterminação quanto aos sujeitos, que, no
entanto, são ligados por determinada circunstância de fato.
21
22
&UtWLFDV jV FODVVLILFDo}HV GR GLUHLWR H LQWHUHVVH VHJXQGR D
WHRULDGH,KHULQJ
Para Carlos Campos (1961, p.25-26) Ihering não resolveu o problema da
elaboração do interesse e da sua realização no direito, descrevendo apenas o
seu resultado, que ele supôs saído da mecânica social. Essa concepção
mecanicista de Ihering inviabilizaria a possibilidade de resolver essa questão,
porque a vida não é mecânica. Segundo Carlos Campos (1961, p.26), o
problema de Ihering é o mesmo do benthanismo, que se procurou resolver
aritmeticamente. O brilhante Mestre mineiro afirma a equivalência entre a
aritmética social de Bentham e a mecânica social de Ihering e as contesta sob
o fundamento de que não são possíveis de se realizar.
A classificação dos interesses e direitos até hoje admitida na doutrina com
fulcro na doutrina de Ihering, como pudemos constatar, faz indistintamente
menção a eles como uma só coisa.
Essa equiparação de conceitos tem gerado o obscurecimento dos mesmos e
em muitos casos, a impossibilidade de que a doutrina trilhe caminhos mais
seguros no estudo e na evolução sobre os temas dos direitos coletivos e
difusos.
Se admitirmos a classificação dos interesses, equiparando-os aos direitos,
realmente não conseguiremos evoluir nos conceitos que utilizam essas
expressões como base. E chegaremos mesmo a situações incompatíveis e que
não podem ser satisfatoriamente esclarecidas.
Bastaria como exemplo a esses problemas que imaginássemos a situação da
existência de interesses difusos contrapostos a interesses individuais.
Consideremos a hipótese em que a entidade estatal de controle ambiental,
fundada em legislação que lhe confere o poder de fiscalização para autuação
e aplicação de sanções, embarga a atividade de determinada empresa
siderúrgica que polui o meio ambiente e ofende as normas vigentes quanto
ao setor. Temos a entidade estatal que atua com poder de polícia e de acordo
com o direito legislado, na tutela das situações jurídicas previstas nas
normas. Temos os interessados difusos na qualidade do meio ambiente, que
são atingidos pela atuação da entidade estatal e, mesmo que não tivessem se
manifestado ou percebido a importância do embargo imposto, seriam
22
23
atingidos individualmente por ele. Teríamos ainda o interesse da empresa na
manutenção e exercício de sua atividade comercial, que estaria
comprometida e poderia gerar o seu encerramento. Teríamos ainda os
trabalhadores da empresa, que estariam atingidos individualmente em seus
interesses de manutenção do emprego.
Podemos identificar uma série de interessados na situação descrita, como a
entidade estatal que estaria no cumprimento de seus fins institucionais; os
diversos cidadãos interessados atingidos pela medida em sua esfera
individual; a empresa interessada na manutenção de sua existência e de sua
atividade comercial; os empregados da empresa interessados na manutenção
de seus empregos. Atente-se que o embargo aplicado à atividade que ofende
ao meio ambiente objetiva proteger inclusive a saúde dos empregados da
empresa, mas eles têm um interesse imediato na manutenção do emprego.
Todos esses interessados poderão manifestar-se e, ocorrendo o impasse, não
poderemos afirmar a existência de um direito de qualquer dos envolvidos
sobre os demais. No máximo haverá a prevalência da situação jurídica
imposta pelo poder público em função da existência de norma regulamentar
da atividade fiscalizadora da entidade estatal. Ou seja, o interesse
manifestado pelo órgão público prevalecerá administrativamente. Entretanto,
ele poderá ser questionado por qualquer dos demais interessados diretos
através da via judicial. Na ausência de consenso os interessados deverão
procurar a via judicial e manifestar seus interesses. Somente após o devido
processo legal e a manifestação judicial é que poderemos falar em direito de
qualquer dos envolvidos. Deverá haver o necessário processo judicial de
validação do interesse para sua transformação em direito.
Dentro da perspectiva de Ihering de equiparação de interesses e direitos não
poderíamos explicar satisfatoriamente a existência de diversos interesses
perante a norma. Quais interesses manifestados poderiam ser considerados
direitos? O interesse do dono da fábrica, dos interessados difusos, dos
interessados coletivos, da entidade pública, seriam todos equiparados a
direitos? Mas se assim fosse, como explicar que eles se encontram
contrapostos? Se o direito é o próprio interesse juridicamente protegido,
como admitir que possam existir diversos interesses divergentes na base da
formação do direito? Qual seria o momento em que haveria o
reconhecimento desses direitos? Eles já decorrem de lei e são auto23
24
executáveis? São dependentes de interpretação judicial? Existiriam direitos
pré-concebidos que retroageriam para legitimar interesses?
Não conseguiremos obter qualquer resposta satisfatória se partirmos da
perspectiva de equiparação de interesses e direitos.
É fundamental que tenhamos claro que os interesses são a manifestação
unilateral de vontade de um sujeito em face de um bem. Se esse interesse vai
futuramente se transformar em direito dependerá do processo de validação
espontâneo no qual a sociedade reconhece ao indivíduo o gozo da coisa.
Caso a sociedade não reconheça o interesse do sujeito, ele poderá requerer o
reconhecimento compulsório através do devido processo legal, no qual
exporá, fará prova e realizará debates em contraditório no sentido de ver
reconhecido seu interesse como um direito através da sentença judicial.
A mera existência formal dos direitos previstos em lei não assegura,
efetivamente e a priori, que aqueles direitos sejam espontaneamente
reconhecidos pela sociedade. O processo de formação do direito é um
processo vivo que começa com a afirmação do interessado em face de um
bem, e culmina com a validação espontânea ou judicial desse interesse,
através de um processo legitimador, presente em uma determinada
sociedade.
Estão aí, portanto, definidos, o cerne dos interesses e a gênese dos direitos.
Esses são conceitos fundamentais para a nossa classificação sobre os direitos
difusos, coletivos, etc.
2HTXtYRFRPHWRGROyJLFRGH,KHULQJ
Para Ihering os direitos são interesses juridicamente protegidos. Essa posição
adotada por esse brilhante autor permeou, como vimos, todas as definições
que até hoje se sucederam, fazendo escola e equiparando de modo categórico
os interesses aos direitos.
Entretanto, Ihering trabalha com dois conceitos diferentes e que nunca
poderiam ter sido confundidos. Se os interesses são a manifestação da
vontade que vincula um sujeito a um bem, isso significa que os interesses são
pertencentes à esfera privada, particular do indivíduo, que exterioriza uma
vontade. Já os direitos seriam outra coisa, um outro momento.
24
25
Somente poderíamos falar de duas espécies de direitos. Uns seriam aqueles
que resultam de um processo de validação espontâneo estipulado pela
própria sociedade, que admite e reconhece ao indivíduo que manifesta a sua
vontade perante um bem, que essa vontade é legítima e deve ser respeitada
pela coletividade. E outros que seriam decorrentes de processos formais de
validação da vontade, ou seja, de processos judiciais em que o magistrado
fixasse qual a vontade da lei para o caso concreto.
Desde que a sociedade negasse validade à manifestação do interesse da parte,
haveria sempre a possibilidade de levar esse interesse para a análise segundo
o direito vigente, legislado.
O Estado, através do juiz, depois de garantir o devido processo legal, é o
legitimador pela via do provimento (sentença), do interesse manifestado pela
parte.
Portanto, somente podemos dizer que há o direito quando a própria
sociedade, pelo consenso, admite que o interesse da parte é válido
socialmente, havendo respeito a esses direitos. E, quando não haja consenso
na sociedade sobre o interesse da parte, o interessado deve manifestar sua
vontade em face de um bem perante o Estado-Juiz que, adotando um modelo
processual admitido na legislação vigente em um país, conduzirá um
processo de validação do interesse da parte, verificando ou não a final, a
confirmação da vontade da parte.
O interesse, desse modo, sempre será um momento anterior à formação do
próprio direito. O direito pressupõe um processo de validação do interesse
pela sociedade, seja pelo consenso e respeito à manifestação do interesse
individual pela coletividade, seja pela adoção de um processo de validação
substitutivo do processo de validação espontâneo da sociedade, que é o
processo judicial.
O equívoco metodológico de Ihering consistiu em pressupor que o interesse
somente teria importância para o direito a partir do momento em que
houvesse a previsão legal de tutela desse interesse. O interesse que
importaria ao direito seria um interesse juridicamente tutelado, ou seja, um
direito. Não haveria, segundo essa concepção, a razão para a diferenciação
ontológica entre interesses e direitos.
Entretanto, essa posição não poderia ter sido acatada, tanto em sua época
quanto hodiernamente. Ora, os interesses nunca podem confundir-se com os
direitos. Os interesses estão na base da formação dos direitos mas, enquanto
manifestação da vontade de um sujeito em face de um bem, eles não
25
26
passaram ainda pelo processo de validação da manifestação dessa vontade,
seja pelo reconhecimento social ou judicial.
Os interesses nunca se confundirão com os direitos, visto que os primeiros
sempre serão uma manifestação individual de vontade, enquanto os direitos
pressuporão sempre um processo social de validação e reconhecimento da
legitimidade dos interesses manifestados.
Esse equívoco manifestado por Ihering se evidencia mais ainda com a
complexidade da evolução da sociedade, que passou a reconhecer direitos
que, embora existentes, não eram objeto de cogitação legal.
Os chamados interesses e direitos coletivos e difusos são um exemplo disso.
A legislação brasileira, em diversas passagens fala da tutela dos interesses e
direitos difusos, coletivos. A nomenclatura revela que haveria uma distinção
entre as expressões. Se adotássemos a definição de Ihering de que os direitos
são interesses juridicamente tutelados, teríamos de admitir que tanto os
interesses quanto os direitos difusos representam exatamente a mesma coisa,
não havendo divergência ontológica entre as expressões, que cairiam no
vazio.
A nossa teoria de que os interesses são diferentes dos direitos explicaria de
modo satisfatório e simples essa questão.
Em verdade não haveria interesses difusos ou coletivos, porquanto
admitimos que os interesses são sempre individuais, sempre ocorrem e se
exaurem na esfera particular do indivíduo. Os interesses são uma
manifestação, uma afirmação unilateral da vontade em face de um bem.
Dessa forma, nunca poderíamos aceitar que os interesses, que são
individuais, fossem classificados em coletivos ou difusos. No máximo
poderíamos reconhecer que, em face de um determinado fato, existe um
número indeterminado de indivíduos numa mesma situação jurídica. Se
pudéssemos identificar ou agrupar esses indivíduos em uma classe de
pessoas, com interesses comuns e legalmente reconhecidos e previstos,
estaríamos diante de interessados coletivos ou homogêneos, dependendo das
características peculiares dos interesses individuais envolvidos e
manifestados individualmente.
Por outro lado, se não pudéssemos identificar os interessados que são
atingidos por um determinado fato ou ato jurídico, teríamos a hipótese de
interessados difusos, o que decorreria da existência difusa de diversos
26
27
interessados que poderiam ter uma solução conjunta e abrangente para todos
os que se encontrassem na mesma situação jurídica prevista em lei.
A confusão originária da expressão de Ihering deslocou o eixo do problema,
unificando o sentido de vocábulos cujos conceitos não poderiam ser
equiparados.
O fato de os interesses estarem na base de formação dos direitos não
significa que eles se confundam com o próprio direito.
Poderíamos falar com tranqüilidade que todo direito possui em seu processo
de formação um interesse, mas nem todo interesse gerará a formação de um
direito.
Portanto, concluímos que os interesses e os direitos são conceitos diferentes,
mas se inter-relacionam de modo íntimo.
Os interesses são a base a partir da qual haverá a manifestação do sujeito e
ocorrerá o desencadeamento do processo social ou judicial de validação dos
interesses e a sua transformação em direitos.
Os direitos são, por sua vez, as situações jurídicas reconhecidas por um
processo de validação de interesses manifestados perante a sociedade ou
perante o Estado-juiz.
Mas o passo seguinte a essa constatação será perquirir qual o seu significado,
sua importância perante o ordenamento jurídico-doutrinário?
$QHFHVViULDGLVWLQomRHQWUHLQWHUHVVHHGLUHLWR
Em brilhante estudo sobre a ação civil pública na Justiça do Trabalho, o
professor Aroldo Plínio Gonçalves (1994a, p.1225-1229) se deteve na análise
dos interesses e direitos, sistematizando o tema com importantes conclusões
que não poderiam restar sem exame.
A primeira constatação é a de que são diferentes os interesses e direitos12,
constituindo-se em categorias distintas postas no campo das "situações
jurídicas".13
12
Consoante o sentido geral e fundamental adotado em ABBAGNANO
( ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2a ed. São Paulo: Mestre
Jou, 1982 ), Direito é : “a técnica de coexistência humana, isto é, a
técnica voltada a tornar possível a coexistência dos homens.” A
27
28
Segundo afirma o Mestre, o termo “ interesse” comporta dois
sentidos básicos, sendo um subjetivo, que é permeado de "conotações
psicológicas" por envolver impulsos, desejos, motivação; e um sentido
objetivo, como o que é ou se torna relevante, vantajoso, importante a um
sujeito. É na inter-relação dos dois sentidos que ocorre a transição do
"interesse como motivação para o interesse como objeto em que se projeta o
desejo de satisfação de necessidades ou anseios humanos." (GONÇALVES,
1994a, p.1227) Do mero plano da subjetividade, o interesse passa a adquirir
concretude, objetivando-se em coisas e bens com os quais o sujeito se
relaciona, passando a adquirir valor.
Rodolfo de Camargo Mancuso (1988, p.12-14) ressalta ser a busca de uma
situação de vantagem a nota caracterizadora dos interesses, seja no campo
fático ou jurídico, uma vez que "o interesse interliga uma pessoa a um bem
de vida, em virtude de um determinado valor que esse bem possa representar
para aquela pessoa."
Para esse último autor, os interesses, considerados ODWRVHQVX têm conteúdo
axiológico variado, representando, a partir da idéia de vantagem, uma gama
infinita de desejos e aspirações da mais variada ordem. Esses interesses se
desenvolvem dentro dos limites da esfera psíquica de cada pessoa, não
podendo ser exigidos ou opostos por se encontrarem no campo do
pensamento. Constituem-se em interesses que podem ser chamados de
"simples", "puros", "de fato" ou WRXW FRXUW e se situam no campo da
concepção do que seja Direito é, entretanto, bem mais complexa e varia
em função do enfoque dado ao tema. ABBAGNANO sintetiza quatro abordagens
fundamentais da concepção de Direito: “1a. a que considera o D. positivo
(isto é, o conjunto dos D.que as várias sociedades humanas reconhecem )
como fundado em um D.natural eterno, imutável e necessário; 2a a que
julga o D.fundado na moral e o considera, portanto, uma forma diminuída
ou imperfeita de moralidade; 3a. a que reduz o D.à força, isto é, a uma
realidade histórica politicamente organizada; 4a a que considera o D.
como uma técnica social”.
De qualquer prisma que se observe o “Direito” ele não pode ser
confundido com os “interesses”. São categorias diferentes. Os interesses
são o conteúdo que se pretende proteger com o direito, a matéria
psíquica variável segundo o direcionamento do desejo. O Direito é a
organização e o escoamento dos interesses presentes na sociedade de
forma determinada segundo os valores nela vigentes. O Mestre Wille
Duarte Costa assevera que o interesse se manifesta no nascimento da
relação jurídica (COSTA, Wille Duarte. Relação jurídica. Belo Horizonte:
Del Rey, 1994. p.35)
13 Sobre a teoria das situações jurídicas, vide GONÇALVES, Aroldo
Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide,
1992. p.85-90.
28
29
"existência-utilidade". Têm por notas características, além da já referida
limitação à esfera psíquica de cada pessoa e a conseqüente inexigibilidade da
conduta de terceiros em face desses interesses, o fato de que seus efeitos
também pertencem aos limites de cada sujeito, que deverá usufruir da
vantagem ou suportar a frustração de seu interesse não realizado. Além disso,
os interesses simples são indiferentes ao Estado, que não fomenta nem proíbe
sua existência.
Por outro lado, existem interesses que são de qualidade diversa, por
apresentarem conotação jurídica. Sofrem a apreensão axiológica segundo a
valoração predeterminada na norma. São, na linguagem de Rodolfo de
Camargo Mancuso (1988, p.14), situados no plano "ético-normativo".
Esses interesses14 como uma possibilidade de vantagem a ser atingida,
tomados dentro de uma perspectiva do direito material e desde que tenham
sido juridicamente regulados, são relevantes para o direito, carecendo de
proteção. Negada a satisfação dos interesses juridicamente tutelados no plano
material, nasce o interesse de agir no plano processual.
A relação jurídica processual também exige para a sua formação a existência
de interesse. E a doutrina processual (LIEBMAN, 1985, 150-160) entende
existir o interesse quando há necessidade da tutela jurisdicional através do
processo, além da utilidade da demanda, que decorre do fato de poder gerar
uma posição de vantagem em relação àquela situação de fato em vigor antes
do julgamento do processo. Esses pressupostos para a configuração do
interesse de agir são imprescindíveis, e como afirma Rogério Lauria Tucci
(1989, p.105), o Poder Judiciário, através do juiz, deve tomar o cuidado para
evitar a formação de processos inúteis, com manifesta economia de tempo,
atos e despesas, o que constitui meta incontestável da moderna
processualística.
O interesse, no plano processual, desponta como condição para o exercício
do direito de ação (GONÇALVES, 1994a, p.1227).
14 Para Torquato Castro, calcado em lição de Betti, não pode ser
confundida a categoria jurídica da norma, que encerra o “poder” e o
“dever”, com a categoria econômica-social do interesse. (CASTRO,
Torquato. Teoria da situação jurídica em direito privado nacional;
estrutura, causa e título legitimário do sujeito. 1985. p.64).
29
30
Traçando uma diferenciação entre direitos e interesses, o professor Aroldo
Plínio Gonçalves (1994a, 1227-1228), apesar de reconhecer uma íntima
relação entre as duas categorias, demonstra os sinais existentes na legislação
no sentido de evidenciar a necessidade de distinção das mesmas15. Para ele,
enquanto o direito subjetivo se configura como o momento de "verticalização
da norma jurídica" que garante a pretensão exigível do titular em face da
previsão feita no modelo normativo, o interesse seria outra modalidade de
situação jurídica, que nem sempre contém de forma evidente a pretensão,
concluindo que, quando obtém conteúdo jurídico o interesse passa a ser
merecedor de garantias.
Interesse e direito são coisas distintas.
A palavra interesse tem origem etimológica do latim LQWHUVXPHVLQWHUHVVH
LQWHUIXL, que em sentido próprio significa HVWDUHQWUHHVWDUVHSDUDGRSRUXP
LQWHUYDOR, e em sentido figurado significa DVVLVWLUDHVWDUSUHVHQWH (FARIA,
1992, p.290).
15 "Sinais da necessidade da diferenciação entre direitos e interesses
encontram-se na legislação recente, que trata das duas categorias de
forma discriminada. A título exemplificativo, pode-se apontar o art.81,
da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, que dispõe sobre a defesa
dos "interesses ou direitos coletivos" e a "interesses ou direitos
difusos", a “interesses ou direitos coletivos" e a "interesses ou
direitos individuais homogêneos", e o próprio art.83, III, da Lei no
75/93, que trata da proteção de interesses vinculados a direitos.
Já se repetiu muitas vezes que definir é função da doutrina e não
do legislador. Contudo, a separação insistente e cautelosa feita pela
Lei no 8.078/90, que ao oferecer os elementos de distinção entre os
interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos,
remeteu-os aos propósitos dela própria ("para efeitos deste Código"),
denota a necessidade do avanço na precisão terminológica na própria
legislação, a provocar a atividade dos doutrinadores.
É certo que o legislador separou direito e interesse mas não
ofereceu uma distinção entre as duas categorias. À doutrina cabe,
portanto, retomar sua função."( GONÇALVES, Aroldo Plínio. A ação civil
pública na Justiça do Trabalho. Out. 1994. p.1227-1228).
30
31
$ XWLOL]DomR GR WHUPR LQWHUHVVH QRV GLYHUVRV FDPSRV GR
FRQKHFLPHQWR
2WHUPRLQWHUHVVHQDILORVRILD
A palavra interesse não é uma propriedade do campo do direito. Segundo a
definição encontrada em Abbagnano (1982, p.549-550), trata-se de um
conceito moderno que Kant utiliza no domínio da estética para afirmar o
caráter desinteressado do prazer estético. O interesse seria segundo Kant o
prazer que jungimos à representação da existência de um objeto. Para Hegel
o interesse seria o momento da individualidade subjetiva e de sua atividade,
entendendo que ele era a presença do sujeito na ação.
Tanto Kant, Hegel e Ihering utilizaram-se do termo interesse sob a
perspectiva da organização social e da formação dos conceitos de direito em
torno da figura do Estado, detentor da força impositiva de sua vontade.
Habermas, autor moderno da filosofia pertencente à Escola de Frankfurt,
pretendeu uma dupla finalidade em sua obra intitulada “ Direito e Democracia
entre facticidade e validade” :
[...]esclarecer por que a teoria
do agir comunicativo concede um valor
posicional central à categoria do
direito e por que ela mesma forma, por
seu turno, um contexto apropriado para
uma teoria do direito apoiada no
princípio
do
discurso.
E
ao
desenvolver
este
ponto,
eu
tento
elaborar um princípio reconstrutivo
capaz de assumir duas perspectivas
diferentes: a da teoria sociológica do
direito e a da teoria filosófica da
justiça.(HABERMAS, 1997, p.24).
Dentre suas importantes contribuições, Habermas interrompe a seqüência
histórica do pensamento que desde Aristóteles até Kant e Hegel organizaram
e justificaram a estruturação da sociedade em torno da figura do Estado, para
tentar reconstruir uma teoria do direito fundada no princípio do discurso.16
16 ³6HP G~YLGD WDQWR +HJHO FRPR $ULVWyWHOHVHVWmR FRQYHQFLGRVGH TXHD
VRFLHGDGH HQFRQWUD VXD XQLGDGH QD YLGD SROtWLFD H QD RUJDQL]DomR GR
HVWDGR D ILORVRILD SUiWLFD GD PRGHUQLGDGH SDUWH GD LGpLD GH TXH RV
31
32
Não que o Estado, tal qual o concebemos hoje, tivesse existido da mesma
forma e por todos os séculos, com a mesma fisionomia. É evidente que
ocorreram transformações importantes na evolução do Estado, mas o que é
relevante aqui perceber é que essa estrutura de poder à qual se reconhece o
nome de Estado e em torno da qual tudo se organiza e se justifica, passa a ser
analisada por Habermas de outra forma.
Habermas parte da constatação de que antes o Estado tinha um fundamento,
ou alguma razão que o justificasse, de modo a haver o reconhecimento de
seu poder. No Estado teocrático, o monarca era o representante do poder
divino, o que por si só fundamentava seus atos e justificava o seu exercício.
O Estado Aristocrático e o feudal estabeleceram como fundamento a
convenção entre o monarca e a classe dominante no sentido de limitar os
poderes do primeiro no pressuposto da manutenção dos poderes que
deveriam ser compartilhados e exercidos em prol da classe dominante. O
Estado de Direito pressupôs a submissão de todos, inclusive dos governantes,
à legalidade e aos processos de exercício do poder fixados nas leis de um
determinado país.
Habermas constata que o Estado atual carece de um fundamento. A
característica do Estado moderno é o fato de que o mesmo perdeu esse
referencial e que a estruturação de uma auto-organização jurídica de cidadãos
iguais e livres deve se dar sob as condições de sociedades complexas.
(HABERMAS, 1997, p.24). Ou seja, o Estado não é o fim em si mesmo e
nem tudo pode ser por ele e em função dele justificado. O Estado é apenas
um dos entes que compõem a sociedade e existem vários interlocutores
dentro dela que se posicionam em um mesmo patamar participativo. O
Estado hoje deve ser um interlocutor, juntamente com os diversos segmentos
da sociedade, no sentido de estabelecer um processo de participação dos
sujeitos quanto às diversas pretensões existentes dentro dessa sociedade. A
teoria do agir comunicativo de Habermas tenta assimilar a tensão que existe
entre a facticidade e a validade, estabelecendo pelo processo da linguagem,
do discurso, o consenso sobre as pretensões de validade manifestadas em
uma dada sociedade. (HABERMAS, 1997, p.25)
Essa nova perspectiva exposta por Habermas contribui sobremaneira para
esclarecer que o poder do Estado democrático de direito, que seja formado
por cidadãos livres e iguais, deve pressupor a participação dos diversos
segmentos da sociedade e suas instituições através de processos de
LQGLYtGXRVSHUWHQFHPjVRFLHGDGHFRPRPHPEURVDXPDFROHWLYLGDGHRXFRPR
DVSDUWHVDXPWRGRTXHVHFRQVWLWXLDWUDYpVGDOLJDomRGHVXDVSDUWHV´
HABERMAS, Jürgen. Rio de Janeiro, 1997, v.I, p.19.
32
33
linguagem que estabeleçam as discussões sobre as diversas pretensões de
validade dos sujeitos participantes. Desses processos de linguagem e da
contraposição das diversas pretensões é que poderemos firmar sobre elas o
consenso.
É importante notar que, a teoria de Habermas da ação comunicativa tem
grande relevância para o direito e, especialmente, para o direito processual,
onde o debate em contraditório muitas vezes permitirá o estabelecimento de
consensos sobre as situações jurídicas que serão a base de um futuro
provimento .
Apesar de haver a legislação, o direito codificado, Habermas secciona e
minimiza a importância dos padrões transcendentais constantes nas normas,
para reconhecer maior valia aos processos discursivos de aplicação do
direito.
Nesse passo ele abandona o idealismo Kantiano para construir sua teoria em
torno da teoria da linguagem, da valorização da formação de consensos sobre
pretensões de validade existentes na sociedade, e na construção democrática
do direito tendo por fulcro o agir comunicativo de diversos sujeitos.
É evidente que esse agir comunicativo presente nas sociedades complexas
não é um mar de rosas.17. Primeiro porque para que haja a formação de um
processo discursivo sério é necessário pressupor que os interlocutores têm de
estar conscientes e orientar seu agir por pretensões de validade.
(HABERMAS, 1997, p.38).
Em segundo plano, temos de reconhecer que os processos discursivos vão se
desenrolar em um dado momento e serão validados tendo em vista esse
marco temporal, sob pena de perderem razão de ser em um contexto
17 ³ 4XDQWR PDLRU IRU D FRPSOH[LGDGH GD VRFLHGDGH H TXDQWR PDLV VH
DPSOLDU D SHUVSHFWLYD UHVWULQJLGD HWQRFHQWULFDPHQWH WDQWR PDLRU VHUi D
SOXUDOL]DomRGHIRUPDVGHYLGDHDLQGLYLGXDOL]DomRGHKLVWyULDVGHYLGD
H D LQGLYLGXDOL]DomR GH FRQYHUJrQFLD GH FRQYLFo}HV TXH VH HQFRQWUDP QD
EDVHGRPXQGRGDYLGDHQDPHGLGDGHVHXGHVHQFDQWDPHQWRGHFRPS}HPVH
RV FRPSOH[RV GH FRQYLFo}HV VDFUDOL]DGDV HP DVSHFWRV GH YDOLGDGH
GLIHUHQFLDGRV IRUPDQGR RV FRQWH~GRV PDLV RX PHQRV WHPDWL]iYHLV GH XPD
WUDGLomR GLOXtGD FRPXQLFDWLYDPHQWH $QWHV GH WXGR SRUpP RV SURFHVVRV
GD GLIHUHQFLDomR µVRFLDO¶ LPS}HP XPD PXOWLSOLFDomR GH WDUHIDV
IXQFLRQDOPHQWH HVSHFLILFDGDV GH SDSpLV VRFLDLV H GH LQWHUHVVHV TXH
OLEHUDP R DJLU FRPXQLFDWLYR GDV DPDUUDV LQVWLWXFLRQDLV HVWUHLWDPHQWH
FLUFXQVFULWDV DPSOLDQGR RV HVSDoRV GH RSomR R TXH LPSOLFD XPD
LQWHQVLILFDomR GDV HVIHUDV GR DJLU RULHQWDGR SHOR LQWHUHVVH GR VXFHVVR
LQGLYLGXDO´ HABERMAS, Jürgen. Rio de Janeiro, 1997, v.I, p.44.
33
34
universalizado, padronizado para outras situações. (HABERMAS, 1997,
p.39).
Talvez esses sejam os pontos mais frágeis da filosofia de Habermas, porque a
pressuposição do que sejam esses interlocutores conscientes encerra por si só
uma definição subjetiva. Quem seriam esses interlocutores conscientes?
Seriam interlocutores isentos, preparados e cultos, ou seriam partidários,
cada qual em sua formação ideológica? Como seria composto o cenário dos
debates? No âmbito da comunidade, em uma rua, em um bairro, em uma
cidade, no parlamento, no país?
Por outro lado, a variação de resultados dos processos discursivos poderia
gerar a instabilidade de situações de fato nas quais os diversos sujeitos teriam
diferentes decisões para a mesma situação, às vezes em um mesmo período
de tempo ou também em espaços de tempo relativamente próximos.
Quando surge a tensão entre a faticidade e a validade dos interesses
manifestados, emerge em importância a lei, como fator estabilizador no
sentido de prever os padrões de comportamento e a distribuição do direito
em tese.
Mas mesmo em face da lei em tese o conflito não se resolve por si só. Muitas
vezes é essencial que se recorra ao sistema estatal vigente para a solução dos
conflitos de interesses, cujo objetivo principal será a eliminação desse
conflito através de uma sentença, um provimento judicial que ponha fim à
controvérsia.
O direito, portanto, se não decorrer de um processo de validação espontânea
dos interesses, reconhecidos e harmonizados no seio da própria sociedade,
decorrerá do provimento estatal que fixa a vontade da lei para o caso
concreto.
Mas entendemos que a proposta de Habermas é bem mais abrangente do que
isso. Em verdade, quando ele admite que o Estado é apenas um dos
componentes da sociedade, mas não é o único, e não é a sua instituição
central, ele está dizendo que a sociedade é complexa, formada de diversas
instituições e de sujeitos comunicantes.
Quando no Estado são promovidos os processos legislativos e ocorrem as
soluções dos problemas pelo consenso estabelecido nas normas ou pela
forma de solução dos conflitos, que é o processo judicial, essas serão apenas
formas internas nas quais o Estado soluciona seus problemas.
34
35
Entretanto, haverá sempre uma imensa gama de instituições e sujeitos que
continuarão participando e levantando pretensões de validade, manifestações
de interesses sobre esses processos estatais.18
Hoje em dia, isso é ainda mais visível, como as atuações das ONGs,
associações, sindicatos, federações, partidos políticos e outras infinitas
entidades paraestatais que, embora não atingidas diretamente pelo resultado
do processo legislativo ou judicial, continuam mantendo e questionando os
seus critérios de validade e de eficácia. A ação comunicativa não se limita ou
esgota dentro do Estado, tendo um campo aberto para o desenvolvimento do
discurso e a interlocução inclusive sobre a atuação do próprio Estado.
Quantas vezes uma sentença judicial provoca a reação por parte daqueles que
não são partes e nem poderiam ser por ela atingidos? Quantas vezes uma lei
editada não gera protestos de entidades e de pessoas que dela discordam e
saem às ruas para a manifestação pública de suas opiniões?
Talvez o grande mérito de Habermas seja a constatação de que a sociedade é
complexa, formada de diversos seguimentos e tendências manifestadas por
diversas instituições que a compõem. O Estado, como as instituições em
geral precisam se organizar e estabelecer padrões de comportamento
aceitáveis para fundamentar a convivência de diversas pretensões de validade
dos sujeitos que dele participam. Seja no processo legislativo ou no processo
judicial, o Estado procura estabelecer o consenso sobre as diversas formas de
acatamento das pretensões de validade. Considerando a organização estatal,
esse padrão de comportamento previsto na norma facilita e estatui o
consenso que servirá para reger os casos em abstrato. Os processos judiciais
servirão para o Estado afirmar e reafirmar o conteúdo da norma quando haja
uma divergência de sua interpretação ou mesmo a recusa de seu acatamento
entre sujeitos que estejam em conflito de interesses ou manifestem diferentes
pretensões de validade em face da norma. Com isso o Estado estaria, em
tese, cumprindo o seu papel de garantir o primado da lei para todos.
18 ³ $Wp +HJHO D UD]mR SUiWLFD SUHWHQGLD RULHQWDU R LQGLYtGXR HP VHX
DJLU H R GLUHLWR QDWXUDO GHYLD FRQILJXUDU QRUPDWLYDPHQWH D ~QLFD H
FRUUHWD RUGHP SROtWLFD H VRFLDO 7RGDYLD VH WUDQVSRUWDUPRV R FRQFHLWR
GHUD]mRSDUDRµPHGLXP¶OLQJtVWLFRHRDOLYLDUPRVGDOLJDomRH[FOXVLYD
FRP R HOHPHQWR PRUDO HOH DGTXLULUi RXWURV FRQWRUQRV WHyULFRV SRGHQGR
VHUYLU DRV REMHWLYRV GHVFULWLYRV GD UHFRQVWUXomR GH HVWUXWXUDV GD
FRPSHWrQFLD H GD FRQVFLrQFLD DOpP GH SRVVLELOLWDU D FRQH[mR FRP PRGRV
GHYHUIXQFLRQDLVHFRPH[SOLFDo}HVHPStULFDV´HABERMAS, Jürgen. Rio de
Janeiro, 1997, v.I, p.19.
35
36
Mas essa perspectiva do Estado não esgotaria o discurso nem a necessidade
de que ele continue presente no processo de interlocução dos diversos
segmentos que compõem a sociedade.
Não é por haver lei ou pelo fato de ser estabelecido um processo decisório
que se terá exaurido o que ocorre no que Habermas chama de “ o Mundo da
Vida” .
Essa abordagem da obra de Habermas nos termos de uma valorização da
teoria do discurso nos oferece um rico campo para a reavaliação do conceito
de interesse, bem como do conceito de direito.
$XWLOL]DomRGRWHUPRLQWHUHVVHQRFDPSRGDSHGDJRJLD
Conforme relata Abbagnano, a noção de interesse foi muito utilizada no
campo da pedagogia, onde representa a participação do educando no saber, e
este se apresenta ao educando como útil. Abbagnano traz a contribuição de
Herbart, para quem o interesse está no meio entre o ser espectador dos fatos e
o neles intervir, onde seria uma participação ainda não totalmente ativa ou
empenhada. O interesse seria diferente do desejo porque, enquanto o objeto
deste ainda não existe, naquele o objeto já está presente e é real. Ainda
dentro da pedagogia, Abbagnano diz que contemporaneamente Dewey tem
insistido no valor do interesse, que atribui caracteres ao interesse, que
seriam: a atividade, para o qual o interesse é dinâmico e impele a ação; a
projetividade, em que o interesse projetaria sua finalidade fora de si, em
algum objeto ou escopo ao qual ele se liga; e a propulsividade, que seria a
realização interna de um sentimento ou valor. Essa concepção do interesse,
calcada na pedagogia de Dewey, estaria influenciando, segundo Abbagnano,
a teoria e a prática educacional em todos os países do Ocidente.
(ABBAGNANO, 1982, 549-550).
Dentro do campo da pedagogia, há que se destacar a obra de Paulo Freire
(1987, p.77-86), especialmente quando, ao iniciar o capítulo sobre a
dialogicidade da educação, procura abordar aspectos referentes à essência do
diálogo.
5 $HVVrQFLDGDGLVWLQomRHQWUHGLUHLWRHLQWHUHVVH
Parece-me que a noção de interesse diferencia-se da de direito em função do
momento em que ambas se efetivam e realizam.
36
37
O homem não vive isolado e a existência de direitos a ele atribuídos
pressupõe que haja um reconhecimento, uma aprovação, uma repercussão na
esfera social, de um interesse manifestado pela parte.
Enquanto manifestação unilateral de uma necessidade, um poder, uma
faculdade perante um bem da vida, a pessoa tem apenas um interesse.
A partir do momento em que seus interesses são manifestados e encontram
respaldo na sociedade, são reconhecidos e respeitados na esfera de terceiros,
podemos falar que temos um direito.
O direito pressuporia um processo de validação racional da manifestação do
interesse da parte em face do ordenamento jurídico. Somente a partir do
consenso e do respeito sobre a manifestação do interesse da parte e da
previsão legal no ordenamento é que podemos falar em direitos.
O interesse, por outro lado, é uma manifestação, a vinculação de um sujeito a
um bem, que pode ou não ser tutelado em lei e pode ou não interferir na
esfera de terceiros.
O interesse é sempre individual, porque pertence à esfera psíquica que liga
um sujeito a um bem.
Já o direito pressupõe um processo de reconhecimento, de validação da
coletividade, que filtra o interesse manifestado pela parte e confere a ele o
respeito decorrente do consenso.
Quando se fala de interesse coletivo ou difuso a expressão, via de regra, é
equívoca, porque o interesse é sempre individual.
O que pode ser admitido como difuso ou coletivo é o número dos indivíduos
que, de modo indeterminado ou agrupado, possuem interesses individuais
manifestados num mesmo sentido e se encontram em face de um fato, numa
mesma situação.
Por outro lado, os direitos pressupõem um reconhecimento de que esses
interesses difusos e coletivos pertencem àquele grupo de indivíduos e devem
ser observados em face do ordenamento jurídico.
Não há interesse difuso, mas uma indeterminação difusa de interessados.
Tanto isso é verdade que os chamados interesses difusos podem ser sempre
manifestados na esfera individual dos interessados. Quando ocorre a ação
judicial de entidades na defesa coletiva de direitos, isso sempre dependerá de
37
38
autorização legal para a representação. E o que estará sendo discutido é o
direito, e não o interesse difuso, visto que essas entidades, instituídas com a
finalidade de tutela de direitos dos consumidores, do meio ambiente, etc.,
somente receberam da lei a legitimação para atuarem dentro da esfera
delimitada em seus estatutos, e após o reconhecimento de que um fato
atingiu um número indeterminado de pessoas, causando prejuízos
merecedores de reparação. Esses entes agem como representantes das partes
interessadas, como forma de facilitar o acesso à Justiça, mas nunca serão
partes, porque não sofrerão os efeitos do provimento. O fato de se reconhecer
à entidades a defesa de interessados indeterminados não elimina a
legitimação individual desses interessados, que sempre manterão seus
interesses particulares.
O interesse nasce e se exaure na intenção do sujeito, em sua manifestação
perante as outras pessoas, na sua esfera privada. Os interesses manifestados
são afirmações da vontade do sujeito em face de um bem. Não ocorre a sua
transformação em direitos. Estes não pertencem à esfera privada de
manifestação da parte, mas sim à esfera pública. Os direitos são tipicamente
um fenômeno social. Não existe direito sem que haja o reconhecimento pelo
Estado, pelos outros sujeitos, de que os poderes ou faculdades exercidos pela
parte sobre o bem são legítimos. A partir do momento em que há o
reconhecimento social, o respeito às faculdades e poderes exercidos pelo
sujeito sobre o bem, estabelece-se o consenso de que aquele é o titular
legítimo de um direito.
E mesmo quando não haja o consenso sobre um interesse manifestado pela
parte, se o titular o afirma em juízo, pleiteando o reconhecimento judicial da
prevalência desse interesse e o juiz assim o acata, então não teremos mais um
mero interesse, mas um direito assim declarado.
Os direitos nascem da aceitação, do consenso sobre as manifestações dos
interesses dos sujeitos, ou do reconhecimento compulsório da validade do
interesse manifestado pelo sujeito e admitido pelo juiz em uma sentença.
Os interesses são fase pré-lógica, antecedente, e nunca se confundirão com
os direitos, que exigem um processo de validação, de legitimação dos
interesses na sociedade para que possam ser chamados de direitos.
$LPSRUWkQFLDGDGLVWLQomRHQWUHRVLQWHUHVVHVHRVGLUHLWRV
Qual a importância de uma distinção entre os interesses e direitos? Seria uma
mera questão formal ou terminológica?
38
39
É de fundamental relevância, que a terminologia sobre determinada matéria
seja bem delimitada e conhecida, sob pena de não haver o entendimento e a
unificação do discurso, e não ser possível o consenso.
Toda a base para o conhecimento de uma ciência reside na possibilidade de
que haja o entendimento sobre os termos que a compõem. Como estudar,
legislar, aplicar e interpretar uma ciência cuja terminologia é obscura e
vacilante?
A nossa legislação, em diversas oportunidades, utiliza-se das expressões
interesses e direitos, denotando um claro sentido de que não se tratam de
expressões sinônimas.
E expressões como direito subjetivo, direito objetivo, que ingressaram na
linguagem jurídica de diversos sistemas jurídicos, refletem uma perspectiva
dualista do ordenamento jurídico, como se existissem direitos fora do
processo e independentes da ação.
Satta e Punzi (2000, p.130) afirmam que, em verdade não existem os direitos
subjetivos. Existem interesses que surgem de determinados fatos e que,
enquanto a lei lhes reconheça e garanta, nós chamamos direitos. Para Satta e
Punzi (2000, p.130) a ação deve ser analisada numa visão integral do
ordenamento jurídico, do qual ela constitui o momento central e essencial.
Somente através da ação é que se pode, segundo Satta, falar de juridicidade
do ordenamento.
Para Satta e Punzi (2000, p.130), a concepção dualista parte da idéia de um
ordenamento constituído de um complexo de normas que regulam toda a
vida associada. A força dessa idéia é tão forte que ela se transforma em uma
realidade objetiva (o direito objetivo). E a essa realidade objetiva se faz
corresponder a idéia de direito subjetivo. Tudo isso na abordagem de Satta é
uma abstração que tem seu valor apenas do ponto de vista didático, mas que
se esquece de uma coisa: que o direito vive no concreto, é antes o concreto, e
a norma é ordenamento somente enquanto efetivamente uma ordem a
estabeleça, uma realidade se componha em uma certa ordem. Tanto o direito
objetivo quanto o subjetivo existem no que é concreto. A ordem se realiza
nos sujeitos e nas situações particulares dos sujeitos, que são as componentes
e resultantes dessa mesma ordem.
A distinção entre os interesses e direitos é de máxima importância, porque
muitas situações jurídicas não são hoje explicadas em função da tese de
Ihering, que equiparou essas duas expressões.
39
40
Segundo a concepção de Ihering, como pode ser explicado o fato de termos
interesses de certos sujeitos que às vezes se contrapõem aos seus próprios
direitos? Explicando melhor, consideremos que um empregado de uma
empresa aceite renunciar a direitos trabalhistas, trabalhar além de suas forças
e em horários e condições agressivas à sua saúde, com alterações danosas ao
contrato de trabalho antes vigente. E imaginemos ainda que, na hipótese, o
empregado assim age porque teve a ameaça de perder o emprego se não se
submetesse a essas condições.
Ora, teríamos no caso um interesse individual do empregado na manutenção
do emprego, que é o bem por ele considerado maior. Mas teríamos ainda
uma série de direitos oriundos da constituição e das leis ordinárias que teriam
sido ofendidos e que autorizariam inclusive ao sindicato e aos órgãos
fiscalizadores atuarem na repressão desses fatos, mesmo contra o interesse
do indivíduo.
Se acatássemos a definição de Ihering teríamos de admitir que essa situação
seria inconcebível, porque tanto o interesse individual e a pletora de direitos
seriam a mesma coisa, quando na verdade não o são.
Se admitirmos nossa concepção da cisão entre os conceitos de interesses e
direitos, o entendimento desse problema se torna de fácil explicação.
O fato de haver o interesse do indivíduo na manutenção do emprego não
significaria a sua transformação em um direito. A manifestação do interesse
teria de passar pelo processo de validação social em face do direito vigente.
Se o direito veda a possibilidade de que sejam renunciados direitos pelo
empregado, isso significa que esse interesse não poderia ser validado em face
do critério vigente para o seu reconhecimento como um direito. O interesse
individual no caso examinado não poderia ser legitimado pelo processo de
validação social e judicial.
O sujeito poderia manifestar o seu interesse na sociedade e mesmo
judicialmente, mas o modelo legal de tutela do trabalhador consideraria
válida a prevalência do critério legal sobre o interesse particular.
2VGLUHLWRVFROHWLYRVHGLIXVRVVHJXQGRQRVVRFULWpULR
Negamos em diversas oportunidades em nossa exposição a existência de
interesses coletivos e difusos. Sob o nosso prisma, os interesses são sempre
individuais e, se assim é, não há como reconhecer que a manifestação
individual do interesse de uma parte em face de um bem possa ser difusa. O
interesse é sempre identificável e relacionado a uma pessoa que manifesta
40
41
sua intenção. Até mesmo a difundida expressão “ interesses difusos” foi
idealizada tomando por pressuposto básico os sujeitos, para ressaltar que,
com relação a essa espécie de interesses não há como identificar cada um
daqueles possíveis interessados.
Entretanto, as circunstâncias, os fatos que atingem a diversos interessados,
podem gerar nesses interessados uma mesma vontade em face de um bem.
Perceba-se que não é possível identificar os diversos interessados, visto que
as repercussões do fato, suas circunstâncias, atingiram um número elevado
de interessados, não sendo possível identificá-los de plano. Mas o interesse
será sempre determinável e dependerá apenas da verificação se, o fato ou
suas circunstâncias, atingiu individualmente aquelas pessoas que se
manifestaram.
A rigor será sempre o fato e suas circunstâncias que determinarão se os
diversos interessados podem ser agrupados em interessados, homogêneos,
coletivos ou difusos. A doutrina tradicional, centrada na tese de Ihering, já
referida neste trabalho, sempre privilegiou o aspecto subjetivo como critério
de classificação dos interesses difusos. A explicação dos interesses difusos
sempre se fez a partir da indeterminação dos sujeitos, restando a
circunstância de fato como um dado secundário da definição. Entretanto, a
perspectiva que melhor esclarece o problema dos interesses difusos é a que
parte do fato, de sua repercussão social para a identificação dos diversos
sujeitos interessados e atingidos.
Se a abrangência do fato for tamanha que não se possa identificar o número
de interessados individuais no mesmo estaremos diante de interessados
difusos. Se o fato atingiu um número de interessados pertencentes a um
grupo organizado e associado teremos os interessados coletivos. Se, por
outro lado, o fato atinge um número determinável de indivíduos não
organizados ou associados, mas que manifestam de modo homogêneo os
interesses que se harmonizam, temos os interessados homogêneos.
Em quaisquer dessas hipóteses os interessados poderão agir individualmente
ou em litisconsórcio. Poderão ainda, de acordo com a legislação vigente,
admitir que a demanda seja movida por um legitimado que congregue os
poderes de representação de todos os atingidos pelos fatos danosos e suas
circunstâncias. Sem que haja a previsão legal da representação, por entidades
ou órgãos, dos diversos interessados, não poderemos admitir em juízo a
defesa desses interessados por esses representantes.
,QWHUHVVHVRXGLUHLWRVS~EOLFRV"
41
42
Poderíamos ser questionados ainda quanto ao chamado interesse público. O
que seria o interesse público? Ele não invalidaria os argumentos no sentido
de que o interesse seria sempre individual? Da mesma forma o chamado
interesse geral não teria o mesmo problema?
Não existe o interesse público ou interesse geral. O interesse será sempre
individual.
Dentro da esfera de atuação do órgão público, nas competências que recebe
da legislação, o agente político é o detentor dos poderes conferidos pelo
direito legislado de conduzir a administração pública no sentido de cumprir
as determinações legais e constitucionais.
Os administradores, os legisladores, os juízes, agirão sempre no sentido de
respeitar as normas às quais estão vinculados. Essas normas representam o
consenso da sociedade sobre os padrões de comportamento esperados e que
devem ser cumpridos pelos agentes políticos. O agente político é um
representante do povo, que o legitima no cargo para que ele cumpra as
determinações extraídas dos processos políticos de legitimação do poder.
O agente político não age, ou pelo menos nunca deveria agir, com base em
um interesse individual na condução e implementação das determinações
legais às quais se submete. Aliás, sequer há um interesse público.
Quando a doutrina tradicional menciona a expressão interesse público, em
verdade deveria se referir a direito público. E isso porque os agentes
políticos, nas atividades da administração, legislação ou julgamento, sempre
estarão vinculados à lei, e deverão agir no pressuposto de que a estão
cumprindo. O princípio da legalidade é princípio de direito administrativo
insculpido nas modernas legislações e em nossa Magna Carta.
A Constituição, as leis infra-constitucinais que organizam a estrutura de
funcionamento do Estado, estabelecem o consenso, o padrão de
comportamento que se deve esperar dos agentes políticos. Se o agente
político se distancia dos limites estabelecidos pelo direito vigente, ele não
age em nome do Estado, do povo ou vinculado ao direito vigente e sim em
nome próprio e deve arcar pessoalmente com as conseqüências de seus atos.
Sem dúvida que essa perspectiva abre um enorme campo de pesquisa para a
revisão da teoria da responsabilidade pelos atos administrativos, o que,
embora não seja o objetivo deste trabalho, demonstra o alcance e as
repercussões da distinção entre direitos e interesses.
42
43
A expressão interesse público é inconcebível em um sistema democrático
que pressuponha a vinculação dos agentes políticos ao consenso estabelecido
pela norma.
O agente público age, portanto, sempre com base no direito e não em seu
interesse pessoal, particular, não se podendo admitir a existência de interesse
individual, mas sim de direito público a reger a atuação do agente político.
Apesar de o agente político pretender sempre agir de acordo com a
legalidade, isso não significa que efetivamente o faça. De aí existir sempre a
possibilidade de impugnação dos atos dos agentes políticos. No plano
administrativo através da atuação em processos judiciais. No âmbito judicial
através do reexame dentro do processo pelo recurso. Na esfera legislativa
através do controle de constitucionalidade das leis.
([LVWHRFKDPDGRLQWHUHVVHJHUDO"
Os chamados interesses gerais também não existem. Se o interesse é sempre
particular, seria inconcebível imaginar que ele pudesse ser generalizado em
uma concepção racional idealizada.
Os chamados interesses gerais, no sentido como conceitua a doutrina, de
interesses de toda a sociedade, em verdade já se encontram respaldados na
legislação. É a lei, votada no congresso nacional segundo o devido processo
legislativo, que consubstancia os direitos admitidos em uma determinada
sociedade e que devem ser respeitados e aplicados de maneira geral.
O critério de se estabelecer, a priori e sem respaldo legal, o que seja o
interesse geral, é um tanto quanto perigoso. O chamado interesse geral
pressuporia análises subjetivas do interlocutor, que atribuiria à coletividade,
à sociedade, a interpretação de que estaria em vigor nessa comunidade um
certo interesse conforme ele o percebeu. Mas a análise subjetiva do
interlocutor dependeria de um alto grau de sensibilidade e imparcialidade, no
sentido de imaginar e interpretar corretamente a “ vontade geral” . Com
poderes quase plenipotenciários, esse interlocutor iria inferir que a soma de
todos os interesses individuais iria resultar no interesse geral por ele
percebido. E qual seria o critério para o reconhecimento desse interesse?
Qual seu âmbito de análise e aplicação? Quais fatores entrariam na formação
e influenciariam o interlocutor para a formação de seu julgamento?
Teríamos que imaginar um Deus, um visionário ou um déspota como aquele
que poderia ser o intérprete incontestável do chamado interesse geral.
43
44
É evidente que o interesse sendo individual não pode admitir a existência de
um conceito que generalize esse interesse, no qual ele passaria a ter uma
idéia supra-sensível e diferente do interesse individual.
O que existe é o direito público que se aplica à generalidade das pessoas por
seu o processo de validação do interesse da parte.
,QWHUHVVHVXEMHWLYRGLUHLWRVXEMHWLYRGLUHLWRREMHWLYR
Alguns conceitos têm de ser revistos, como, por exemplo, a classificação dos
direitos em direito subjetivo e direito objetivo.
O direito subjetivo somente existe a partir do momento em que a sociedade
espontaneamente confere validade ao interesse da parte, ou quando o sujeito
consegue o reconhecimento judicial, através de um processo de validação de
seu interesse.
O que se tem antes desse momento é o interesse do sujeito, portanto um
interesse subjetivo que ainda não é direito subjetivo. Somente haverá o
direito subjetivo se o interesse do sujeito for validamente reconhecido pelos
processos de validação (reconhecimento espontâneo da sociedade ou
atividade substitutiva estatal – devido processo legal).
O direito objetivo é a lei posta como critério de conduta em uma determinada
sociedade. Vale para todos e pode ser invocado para a fundamentação das
manifestações de interesse dos sujeitos na vida social. Mas nunca poderão
ser impostos numa sociedade que tenha o modelo do Estado Democrático de
Direito como seu paradigma de conformação estatal, porque o direito é fruto
da convivência compartilhada, do confronto e do consenso entre as situações
da vida e a lei vigente.
2VLQWHUHVVDGRVHRUHFRQKHFLPHQWRGDH[LVWrQFLDGHYDORUHV
FRPXQV
2VYDORUHVFRPRSDUkPHWURGHDJOXWLQDomRGHLQWHUHVVHV
A aglutinação de interessados difusos ou coletivos em torno dos mesmos
objetivos contribuiu para o surgimento e posterior reconhecimento de
entidades intermediárias entre o Estado e o indivíduo. Essa não foi uma
conquista fácil.
44
45
Perceberam os indivíduos que caso se unissem para a defesa de seus
interesses teriam mais força na demonstração e conquista de seus objetivos
comuns.
Surgiram as corporações de ofício, posteriormente os sindicatos, associações,
cujo sentido de existência era exatamente a representação dos interesses de
seus associados. Essa idéia evoluiu, surgindo a noção de categoria, classe,
sujeitos indeterminados (difusos) e a defesa feita pelas entidades
intermediárias também passaram a beneficiá-los.
Mas nunca foram poucas as dúvidas sobre a extensão desses poderes
representativos das entidades intermediárias. As pessoas jurídicas criadas
para a defesa dos interesses dos associados e que em muitos casos também
defendiam indiretamente os interesses dos não associados sempre
engendraram
problemas
de
interpretação
sobre
os
limites
dessa
representação.
Como explicar que um sindicato de categoria profissional pode estabelecer
com um sindicato patronal, por convenção coletiva, condições de trabalho
que passarão a vigorar para toda a categoria e não apenas para os associados?
Ou seja, as cláusulas da convenção coletiva passarão a integrar as cláusulas
do contrato individual do trabalho, mesmo que aquele trabalhador não seja
filiado ao sindicato. O próprio conceito de categoria gera perplexidade e
insegurança na doutrina porque, se o sindicato representa também os não
associados, isso não aproximaria essa situação daquela atinente aos
interessados difusos? A alusão a uma categoria não indeterminaria em parte
os sujeitos abrangidos pela representação sindical? Ora os interessados
difusos são todos os que são afetados por um fato e os interessados coletivos
45
46
são todos afetados pela circunstância de pertencerem a um determinado ramo
de atividade produtiva...
Também no campo do direito difuso a questão aparece. Como entender que o
Movimento Mineiro das Donas de Casa, uma entidade associativa que
representa apenas seus associados, possa estabelecer por convenção coletiva
de consumo, cláusulas sobre preços de produtos com uma determinada rede
de supermercados, que evidentemente põe seus produtos à venda para todos
os consumidores e não apenas aos associados daquela associação?
Pensamos que o elo entre os interesses, que são a manifestação de um sujeito
em face de um bem, e o seu posterior reconhecimento como direitos
coletivos ou difusos são conformados a partir da existência de valores. No
plano jurídico esses valores são encontrados nas normas vigentes em um
dado momento na sociedade, segundo sua estrutura normativa e, ainda, nas
diversas atas, estatutos constitutivos de sociedades, associações, sindicatos
ONGs, que manifestam um objetivo comum para o qual são constituídas.
Os interesses, que são a manifestação da individualidade, em diversas
situações revelados na sociedade pelos sujeitos, gerarão processos de
aproximação desses sujeitos para uma organização comum que melhor
atenda à tutela de seus interesses. Mas isso só é possível porque existem
valores previstos objetivamente no sistema normativo e porque existe a
aceitação e aplicação desses valores pela sociedade. Somente existe o direito
coletivo de representação da categoria porque a lei define a possibilidade de
o sindicato agir em nome de pessoas que se aglomeram para a tutela dos
direitos trabalhistas previstos em lei. Somente é possível a tutela dos
interessados difusos porque a lei estabelece que eles podem ser representados
46
47
por entidades criadas com o objetivo da tutela em legitimação concorrente
desses interessados.
O processo argumentativo presente na sociedade revelará sempre sujeitos
que buscam o consenso com os demais sujeitos sobre os seus interesses
individuais manifestados e que tendem a ser aceitos pelo grupo em face dos
valores ali vigentes em confrontação com a norma jurídica válida.
Os valores são, segundo nosso entendimento, o eixo que permite o giro entre
a manifestação da individualidade e a sua projeção na esfera de diversos
sujeitos, que identificarão a possibilidade de se aglutinarem em torno da
defesa da prevalência de seus interesses individuais comuns sob a forma de
um ente que os represente. Os valores informam o legislador no momento de
elaboração da norma e são conformados dentro do ordenamento com o
reconhecimento dos direitos que formam o sistema jurídico positivo vigente.
É de extrema importância, portanto, que nos aprofundemos no estudo dos
valores, para que possamos posteriormente tentar explicar os limites que
devem prevalecer e os efeitos que deverão ser reconhecidos entre os
interesses dos indivíduos e do ente que os representa.
2VYDORUHV
O uso filosófico do termo “ valor” começou com os estóicos, quando houve a
sua generalização para indicar qualquer objeto de preferência ou de escolha
(ABBAGNANO, 1962, p.952). A retomada de sua noção no mundo moderno
se deu com Hobbes, que reaviva a noção subjetiva de bem (ABBAGNANO,
1962, p.952).
47
48
Kant havia identificado o bem com o valor em geral, ou seja, cada um
denomina bem aquilo que aprecia e aprova. Estaria no bem um valor
objetivo, sendo que tal fato se daria em relação a todos os seres racionais
(ABBAGNANO, 1962, p.952-953). Kant, entretanto, não aplicava a palavra
valor para a indicação do que é belo, prazeroso; limitando o conceito dentro
de uma perspectiva objetivista (ABBAGNANO, 1962, p.953).
Mas
foi
a
corrente
psicologista
do
kantismo,
e
especialmente
Windelband(1884), que introduziu a noção subjetivista de bem. E com
Nietzsche(1886/1887) a discussão dos valores atingiu o seu ápice, tornandose fundamental para a filosofia (ABBAGNANO, 1962, p.953). Nietzsche
propôs a inversão dos valores tradicionais, criticando a moral cristã, para
retirar do WRSRV XUDQRV os chamados “ valores eternos” e, em seu lugar,
colocar os “ valores vitais” , que seriam os valores próprios do homem
(ABBAGNANO, 1962, p.954). Os valores não seriam mais “ absolutos” e
sim “ relativos” .
Contemporaneamente os valores têm sido definidos como uma possibilidade
de escolha. Ela segue uma disciplina que permite identificar o caminho mais
inteligente e eliminar as opções nocivas, privilegiando a repetição das
escolhas
corretas,
que
tendem
à
permanência
e
universalidade
(ABBAGNANO, 1962, p.956).
Para Cabral de Moncada (1965, p.306-307) os valores projetam-se sobre a
vida em variadas combinações, que ficam registradas na alma das diferentes
épocas e culturas. Para o autor, a dignificação dos direitos positivados
decorre dessa projeção (MONCADA, 1965, p.307). Os princípios gerais que
ordenam juridicamente os Estados formam-se da combinação entre as
exigências das condições fundamentais da vida e da interpretação dos valores
48
49
que são positivados. E adverte que nenhum Estado pode subsistir sem uma
combinação dessa natureza, sob pena de se transformar em cultor de valores
meramente materiais, sem qualquer preocupação com valores mais altos
(MONCADA, 1965, p.307).
A fonte e condição de existência dos valores é a personalidade humana
(MONCADA, 1965, p.290). A positivação das condutas no ordenamento
jurídico implica em uma concepção tridimensional do Direito em três
diferentes planos: o fato, a norma e o “ valor” (MONCADA, 1965, p.288).
Falar em anseios da sociedade induz, necessariamente, a perquirir quais os
valores vigentes hoje em nosso corpo social, para que possamos, após essa
constatação, verificar qual o direcionamento dado na organização do Estado
brasileiro e qual a forma adequada de paradigma punitivo.
Para ressaltar a importância do estudo prévio dos valores, basta olharmos
para a experiência da Constituição americana, que por mais de duzentos anos
vem resistindo no tempo, justamente porque os valores atuais e fundamentais
da sociedade vêm influenciando a reinterpretação de seu texto. No Brasil
tivemos dentre outras a experiência do Código Civil, que vigorou desde 1917
e foi reinterpretado durante quase um século para a adequação aos novos
padrões valorativos da sociedade brasileira.
A nova dimensão trazida com o acatamento dos direitos coletivos e difusos
modificou a antiga matriz do individualismo e da autonomia da vontade
privada, que via no indivíduo o centro de todos os direitos. Ao lado dos
direitos individuais, foram reconhecidos neste século direitos que sempre
existiram, mas que não tinham espaço e eram abortados do ordenamento
jurídico (MACIEL JÚNIOR, 1996, p.35). Esses “ novos” direitos são
49
50
hauridos em uma nova atmosfera, coletivizada, ou muitas vezes
fragmentada, difusa, porque numa sociedade de massa muitas vezes não se
consegue identificar claramente todos os interessados atingidos por
determinado fato. Somente foi possível o acatamento desses direitos porque
houve uma disseminação dos Estados Democráticos de Direito, que
passaram a permitir e proteger a atuação das associações, ao invés de
combatê-las como se fossem perigosos inimigos que exerciam atividades
paralelas e concorrentes às do Estado (MACIEL JÚNIOR, 1996, p.34-36).
Norberto Bobbio (1992, p.6-7) esclarece que os direitos coletivos, chamados
de “ direitos de segunda geração” e os direitos difusos, chamados de “ direitos
de terceira geração” , não nascem de uma só vez. Eles decorrem de novos
carecimentos, que por sua vez aparecem em virtude das alterações nas
condições sociais e das aquisições do progresso técnico.
A perspectiva democrática do Estado e o aparecimento e reconhecimento de
direitos coletivos e difusos revelam o novo quadro fático, sob o qual novos
valores devem ser detectados e projetados.
A Constituição brasileira de 1988 acatou o modelo democrático como
parâmetro estatal, o que é ressaltado por Raul Machado Horta (1995, p.134135). Houve a recusa da sociedade brasileira a qualquer forma de
autoritarismo e de messianismo político, que conduzem à opressão do Estado
e à tirania (HORTA, 1995, 134-135).
No Título I, do art.1o. ao 4o., a Constituição Federal de 1988 traçou os
princípios básicos sob os quais deve ser organizada a sociedade brasileira.
Nesses princípios podemos detectar claramente a opção valorativa que
50
51
ordenou a nossa estrutura constitucional. Encontramos os seguintes
princípios que interessam para esta monografia:
1-) Adoção do Estado Democrático de Direito; art.1o, CF/88;
2-) A dignidade da pessoa humana; item III, art.1o.,CF/88;
3-) Os “ valores” sociais do trabalho e da livre iniciativa; item IV,
art.1o.CF/88;
Ainda no Título I, mas como objetivos a serem atingidos, foram
adotados os princípios que se seguem:
1-) Construção de uma sociedade livre, justa e solidária; item I do
art.3o.,
CF/88;
2-) Atingir a igualdade sem preconceitos; itens III, IV do art.3o.,
CF/88.
O Título II da Constituição Federal de 1988 retoma a perspectiva
principiológica e traça os direitos e garantias fundamentais, bem como os
deveres, que precisam ser organizados na sociedade de modo coletivo ou
individual, mas sempre com respeito à inviolabilidade da vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade.
A Magna Carta de 1988 colocou a vida, a Justiça, a igualdade de condições,
a liberdade, a solidariedade, no vértice da pirâmide valorativa da organização
política brasileira.
Esses valores adotados em nossa Constituição são a luz que ilumina o
tortuoso trajeto rumo à efetividade dos direitos. Embora sejam sempre
cultuados, não significa que o homem consiga implantá-los. A vida tem
tratado de corrompê-los (MONCADA, 1965, 291), a despeito de ser
necessária a sua permanência como patrimônio do ideário que se pretende
51
52
efetivar, a fim de tirar o homem do reducionismo materialista ao qual não
deve ficar confinado.
Os valores nascem para que sejam efetivados, embora o homem muitas vezes
deles se esqueça e distancie. Os valores constituem uma fonte necessária de
idéias de aprimoramento do egoísmo humano, reavivando a memória
coletiva no sentido de harmonizar os interesses e possibilitar a convivência
social.
Os valores são a projeção da pluralidade dos interesses individuais
manifestados em uma sociedade e que terminam por se incorporarem nas
normas de um país segundo o processo legislativo vigente.
Os valores são a chave que permite a compreensão de como ocorre a
canalização dos interesses de cada indivíduo para uma síntese, uma simbiose
de interessados que se unem para a defesa comum de seus interesses.
Quando o indivíduo reconhece a projeção de seu interesse nos objetivos
estatutários e na atuação de determinada entidade intermediária, ele
convenciona, estabelece um consenso, no sentido de que aquela entidade
pode melhor atender à tutela de seus interesses.
Se uma associação, um sindicato, estrutura-se para a representação de seus
associados e de uma categoria, ele terá de obedecer a regras de constituição
segundo o direito vigente e receber a legitimação para agir em nome da
coletividade, nos termos da previsão legal de determinada sociedade.
Se não há a previsão legal, em certo sistema normativo, para que haja a
possibilidade da representação pela entidade intermediária, o indivíduo terá
de fazer valer seus interesses apenas através de suas reivindicações
individuais.
E isso pode ser facilmente constatado na evolução histórica das entidades
intermediárias entre o Estado e o indivíduo. Sempre existiram fatos que
afetaram a vida de um número indeterminado de pessoas, mas isso não
significou no passado que fossem reconhecidos direitos difusos. Somente
com a evolução da sociedade, a lenta conquista de direitos, a inserção desses
52
53
direitos pela defesa de novos valores para a sociedade, é que se pôde falar em
direitos coletivos e difusos. Isso se deu em função de um novo e inegável
patamar de valores que passaram a reger a vida moderna.
No universo jurídico, pairam as normas que regem as hipóteses de conduta
dos indivíduos e fixam valores que devem vigorar no convívio social. A
interpretação de cada um desses valores é individualizada em cada sujeito da
comunidade, que imprime, pela sua manifestação nessa sociedade, os seus
interesses. Entretanto, o reconhecimento desses interesses depende de um
processo de validação espontâneo ou judicial para que se tornem direitos. Ou
a sociedade espontaneamente resolve sobre a prevalência de consensos
fundados em valores que nela vigoram e irão orientar a fixação de
convenções sociais; ou há o recurso ao processo judicial, onde o Estado,
através do Juiz, irá conduzir um processo racional de estabelecimento de
qual interesse deve prevalecer no confronto sistemático das normas que
orientam aquele ordenamento jurídico.
2FRQFHLWRGHSURFHVVR
Se em nossa concepção os interesses são a manifestação de vontade de um
sujeito em face de um bem; se os interesses estão na base da formação dos
direitos, mas não se confundem com ele; se os direitos somente existem a
partir do momento em que ocorre um processo racional de validação através
do consenso, seja pela sociedade, seja pela atividade substitutiva estatal;
temos como próximo passo a enfrentar que definir o que é o processo.
A primeira constatação a ser ressaltada é que o processo é um instrumento
discursivo da racionalidade, presente na sociedade, que cria mecanismos
espontâneos de reconhecimento dos interesses dos diversos sujeitos nela
presentes. E o processo é também um conjunto de garantias asseguradas pelo
Estado, para que as partes solucionem o conflito de interesses não
pacificados espontaneamente.
Como tivemos a oportunidade de expor, quando um interesse manifestado
por um sujeito não encontra respaldo na sociedade, que não lhe reconhece
legitimidade, ele poderá invocar que, em face do direito vigente, o Estado,
através do juiz, lhe reconheça a validade. Esse interesse manifestado perante
o judiciário, se for reconhecido e julgado procedente, será transformado em
direito.
O processo, portanto, faz parte da formação do direito. Ele é a atividade
substitutiva de um processo espontâneo frustrado existente na sociedade e
que gerou um conflito de interesses. Em face disso, os interessados podem
53
54
recorrer ao Poder Judiciário para que, dentro de um processo judicial, haja a
solução da controvérsia existente.
O processo é de uma fundamental importância em uma sociedade, porque é
ele que vai definir o que é o direito para as situações conflituosas, impondo
uma decisão que deverá ser observada pelos contendores. A definição legal e
a observância do conjunto de garantias processuais e do modelo processual a
ser adotado definirão o grau de evolução e democracia presentes em uma
sociedade.
Podemos conceituar o processo como um conjunto de garantias estruturadas
em técnicas postas a serviço do homem para a manifestação de seus
interesses de forma ordenada e racional, no intuito de produzirem as provas
necessárias à confirmação desses interesses. O processo é uma atividade
substitutiva e que culmina na definição do direito para o caso concreto.
O pressuposto da existência de um processo é a manifestação de um interesse
que se quer ver reconhecida perante uma outra pessoa ou perante a
sociedade, e que resultou sem consenso através de um processo espontâneo
de reconhecimento de validação do interesse.
'XDOLGDGHRXXQLGDGHGRRUGHQDPHQWRMXUtGLFR
Não é nova a discussão sobre a unidade ou dualidade do ordenamento
jurídico. Para os autores que defendem a primeira tese, somente haveria
verdadeiramente o direito a partir do momento em que o juiz declara, em
sentença que um determinado sujeito tem direito a um bem em face de outro.
Para a teoria dualista, existem os direitos que são decorrentes de um
reconhecimento em um provimento jurisdicional, e direitos que são
reconhecidos espontaneamente pelos diversos sujeitos em uma sociedade.
A estruturação das sociedades em Estados, organizados em função de uma
ordem jurídica hierárquica, submeteu a todos, inclusive ao próprio Estado, a
um conjunto de normas que devem ser observadas para o convívio social.
É evidente que a ordem jurídica, que é estática, criada historicamente, em
dado momento, possui leituras variadas pelas diversas gerações que vão
conviver com as mesmas leis em épocas diferentes.
Para que uma lei sobreviva no tempo e possa ser útil em dada sociedade, é
óbvio que ela será adaptada ao seu tempo pelos sujeitos que dela se utilizarão
na prática em certo momento histórico e isso repercutirá nos processos
espontâneos de observância e reconhecimento dos interesses alheios e,
54
55
também, nos processos judiciais em que os interesses serão questionados em
face daquela lei vigente.
As pretensões de validade universais inseridas na norma para vigorar em
uma comunidade e que o legislador elabora LQDEVWUDWR para que abranja o
maior número possível de situações da vida, são uma mera ficção
racionalista, no intuito de estabelecer um critério de convivência segundo
processos de legitimação da lei e do poder.
Esse momento “ estático” do ordenamento não exaure, entretanto, a vida
social, como bem esclarece Habermas. É fundamental que se tenha a
perspectiva de que a “ aplicação” do direito legislado é tão ou mais
importante quanto a vigência formal da lei.
Os processos de validação dos interesses pela sociedade e os processos de
validação dos interesses através do processo são processos igualmente
válidos e fazem parte da criação do direito para o caso concreto.
Isso não significa que o ordenamento jurídico ou o direito esteja reduzido ao
processo. Essa afirmação seria o mesmo que incorrer no equívoco de Ihering
ao confundir os interesses com os direitos.
Os interesses são manifestações unilaterais de vontade dos diversos sujeitos
dentro de sua esfera de personalidade. Os direitos são o reconhecimento de
que os interesses dos sujeitos são válidos, o que pode ser obtido por
processos espontâneos de validação desses interesses ou pela via judicial. Já
o processo é a técnica pela qual as manifestações dos interesses, sejam
espontâneas na sociedade ou judiciais, serão canalizadas para uma
confrontação em contraditório.
Não se pode confundir a técnica pela qual o direito é formado, com o próprio
direito, nem com o ato de manifestação do interesse pelo sujeito.
O ordenamento jurídico tem, portanto, grande importância para a sociedade,
que nele tem um parâmetro de conduta. Entretanto, a sociedade não se exaure
nesse ordenamento e as diversas questões surgidas entre os sujeitos que a
compõem poderão ser resolvidas espontaneamente entre os envolvidos ou
através do processo de validação dos interesses manifestado perante o Estado
que, através de seus agentes, decidirá qual o sentido de interpretação deverá
ser impresso no caso concreto.
Ambos os processos, o espontâneo e o judicial, são igualmente importantes e
inerentes a uma sociedade organizada.
55
56
É evidente que esses processos sofrerão a influência da estrutura social na
qual foram idealizados e implantados. O direito processual tem passado por
transformações que são mais uma imposição das alterações sociais do que
propriamente uma contribuição de alguns teóricos do direito processual, que
entendem já haver um patamar de conceitos suficientes para o direito
processual.
O direito processual enquanto Ciência, não comporta respostas definitivas,
mas esclarecimentos necessários e permanentes de uma evolução constante.
Não pretendemos estabelecer um ponto de chegada, mas de partida, para uma
revisitação de conceitos que foram se formando entorno de bases
equivocadas e que hoje não se sustentam mais em face da realidade.
Evidentemente pretendemos que os processos de reconhecimento do direito
tenham uma configuração democrática e isso não se faz possível sem que se
pressuponha o diálogo entre seus atores, o que juridicamente se delineou no
conceito de contraditório.
2SURFHVVRHVWUXWXUDGRGHPRFUDWLFDPHQWH
Tanto o processo espontâneo de formação do direito, quanto o processo
judicial, deve pressupor, para uma estruturação em torno de princípios
democráticos, o estabelecimento do contraditório de modo pleno.
Não basta a garantia formal de um contraditório inodoro. É essencial que
esse princípio repercuta numa prática que assegure às partes a simétrica
paridade nas discussões sobre os interesses manifestados.
Não é nova ou original a idéia de contraditório, que é inerente ao processo. E
ela se funda basicamente no discurso, na garantia que ele ocorra de forma
plena.
A participação pelo discurso é que possibilitará a formação de um processo
legítimo de criação do direito, seja no âmbito judicial ou não.
Enquanto nos processos espontâneos de formação do direito a interlocução
dos sujeitos se faz diretamente, normalmente sem intermediários; nos
processos judiciais há um interlocutor que induz as partes ao diálogo e que
tem a principal missão de assegurar que elas possam discutir seus interesses
em igualdade de condições.
56
57
Para o juiz, a missão conferida constitucionalmente para dirigir os trabalhos
em um processo, é tão importante quanto o ato final do julgamento.
O juiz não é aquele que julga, mas, antes de tudo, aquele que conduz ao
julgamento, assegurando, de acordo com o modelo legal, que as partes
tenham a oportunidade de afirmarem e provarem seus interesses no processo.
A perspectiva reducionista imposta historicamente aos juízes os reduz a
meros impositores de condutas a casos concretos. Modernamente essa visão
é insustentável. O juiz tem atribuições muito mais nobres no processo
democrático. Seu papel é hoje o de um interlocutor ativo, que participa,
ouve, fala, esclarece e é esclarecido pelas partes e garante que elas tenham
produzido suas provas em função dos ônus de prova de seus interesses
manifestados em juízo. A decisão é e deve ser vista como o ato final de um
processo pleno e rico de debates, onde as partes tenham exaurido suas
expectativas de confirmação de seus interesses.
2(VWDGRHRSURFHVVR
O processo é estreitamente vinculado à estrutura do Estado no qual existe.
Em um Estado autoritário o processo tende a cumprir uma missão meramente
pacificadora de litígios. O que importa é decidir para sepultar o litígio.
Partindo de uma perspectiva democrática de Estado, o processo deve ser um
canalizador de participações das partes envolvidas em um litígio, de modo
que elas tenham efetivamente a possibilidade de discutir e solucionar as
questões que lhes são submetidas.
O processo coletivo deve ser estruturado em bases diversas do processo
individual, sendo fundamental o papel da legislação processual na definição
dos limites de atuação dos legitimados para o processo, nos efeitos das
decisões proferidas, no modelo de execução das decisões coletivas, etc.
Definir as bases para o estudo do processo coletivo é de fundamental
importância para a evolução da Ciência Processual, visto que o Estado
Democrático de Direito trouxe novas exigências, que não se exaurem no
individualismo ou, mais precisamente, na limitação das funções estatais
apenas à proteção ao indivíduo contra o Estado.
57
58
&RQFOXVmR
O presente trabalho é a primeira parte dos estudos que venho
desenvolvendo sobre o tema dos direitos coletivos, desde 1991, quando
comecei a escrever a minha tese intitulada “ Convenção Coletiva de
Consumo” .
O primeiro capítulo de minha tese foi exatamente sobre “ direito e
interesse” , visto que é impossível escrever sobre o direito coletivo sem essa
abordagem prévia.
Pela limitação do tema da tese à época, centrei-me numa exposição
histórica das teorias existentes.
Dos estudos feitos restou apenas uma certeza e um emaranhado de
dúvidas.
A certeza é que o modelo de processo individual, idealizado para
possibilitar a ação do indivíduo em seu restrito âmbito de legitimação não
possibilitaria a tutela de situações novas, decorrentes da abertura democrática
e da nova configuração do Estado. E o processo formulado sob a estrutura de
múltiplas ações coletivas, representava a fragmentação do processo em
procedimentos especializados, quando a doutrina ainda não havia respondido
à pergunta sobre o significado dos direitos materiais coletivos.
Como poderemos construir uma teoria do processo coletivo sem
saber o significado do direito coletivo?
Sem que tenhamos um consenso, ou iniciemos os estudos sobre o
direito coletivo, todas as tentativas de construção de um processo coletivo
serão frustradas, porque estaremos construindo uma tutela sem saber ao certo
o que efetivamente tutelar...
E mais, os advogados, o cidadão, o Ministério Público, os juízes,
não saberão agir, porque perguntas simples referentes à legitimação para o
ressarcimento dos “ danos de massa” restarão sem resposta. E os direitos
coletivos ficarão sem execução eficaz. Qual a melhor forma de penalizar o
infrator de um dano de massa? Qual a melhor forma de ressarcimento? E os
efeitos da coisa julgada no processo coletivo?
Tudo, absolutamente tudo está aberto ao campo dos debates, e só o
estabelecimento de parâmetros científicos para o desenvolvimento de
58
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consensos sobre a disciplina permitirá a construção científica de uma teoria
do processo coletivo.
Nosso objetivo foi levantar perguntas e questionamentos, muito
mais do que buscar respostas, na certeza que somente os processos de debate
científicos poderão contribuir para o crescimento do direito processual
coletivo, que muita contribuição dará à participação do cidadão na vida
social.
Nossa convicção é no sentido de que o pano de fundo de todo esse
debate reside nos diferentes momentos das teorias que influenciaram o
direito. Ihering com seu brilhantismo difundiu a idéia fundamental do
individualismo e da afirmação do indivíduo perante o Estado forte e
centralizador. Atualmente, diante da perspectiva do Estado Democrático de
Direito, surge também o reconhecimento formal de tutelas aos consumidores,
ao meio ambiente, a participação coletiva em processos decisórios, como
fruto da desmistificação do Estado como o único foco do qual podem emanar
decisões.
Nosso próximo enfoque será no processo coletivo, tendo por
ponto de partida o que até agora apresentamos e que será, sem dúvida,
enriquecido pela valiosa contribuição crítica dos leitores.
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direito ou interesse (difuso, coletivo e individual homogêneo?)