1 Federalismo e Políticas Sociais: contribuições da experiência brasileira recente ao debate Guilherme Stolle Paixão e Casarões 1 Resumo: O presente trabalho tem como objetivo realizar, a partir do caso brasileiro, um teste das hipóteses enunciadas por Pierson (1995) a respeito da relação entre federalismo e políticas sociais. Busca-se, ao mesmo tempo, compreender em que medida a experiência brasileira corrobora os efeitos, devidamente previstos pelo autor, das relações entre Estado federativo e suas unidades constituintes e das políticas públicas decorrentes de tais interações, bem como empreender uma revisão bibliográfica acerca do que foi produzido no Brasil sobre o tema. Espera-se demonstrar, à guisa de conclusão, que a experiência federativa brasileira confirma os efeitos em termos de policy esperados pelas hipóteses. Palavras-chave: federalismo; neo-institucionalismo; políticas sociais; Brasil Em Ciência Política, tratar instituições como variáveis intervenientes no processo político não é algo novo, e simplesmente reiterar sua centralidade soaria por demais repetitivo. Ao longo da última década, uma série de trabalhos (Pierson, 1995; Pierson, 2004) têm representado avanços teóricos sensíveis já considerando, devidamente, a importância das instituições como premissa, não como conclusão. Não obstante, o desenvolvimento de argumentos “neo-institucionalistas” vem ocorrendo de forma, por assim dizer, irregular: ao passo que sistemas de governo, relações entre poderes, sistemas eleitorais e configurações partidárias já foram esmiuçadas à exaustão, especialmente por meio de estudos comparativos, tanto internacionalmente quanto no próprio Brasil, algumas questões centrais que compõem a agenda de pesquisa institucionalista não foram submetidas a igual tratamento. Este trabalho identifica três lacunas na literatura neo-institucionalista e busca, de alguma forma, prestar modesta contribuição para uma avaliação mais meticulosa de tais áreas ainda cinzentas. A primeira delas é a carência observada com respeito a estudos comparados sobre federalismo (Pierson, 1995). Destaco aqui o elemento comparativo, tendo em mente que obras sobre o federalismo norte-americano, por exemplo, são abundantes (ver, por exemplo, Peterson, 1995). A segunda diz respeito às relações entre federalismo e políticas sociais, as quais Pierson 1 Mestrando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Agradeço os comentários da Profa. Marta Arretche, dos quais certamente me beneficiei, ressalvando que as opiniões aqui contidas são de inteira responsabilidade do autor. E-mail: [email protected] 2 (1995) rotula de “não-existentes” (p. 450). A terceira é a escassez de produção que, informada por essa literatura, busque se debruçar sobre o caso do federalismo brasileiro. Nesse sentido, contribuições valiosas têm sido feitas por Almeida (1995; 2005), Arretche (1999; 2000; 2002a; 2002b; 2004), Arretche e Rodden (2004) e Souza (1997; 1998; 2001; 2004). Com isto em mente, este trabalho tem como objetivo realizar, a partir do caso brasileiro, um teste das hipóteses enunciadas por Pierson (1995). Seu estudo busca identificar os efeitos do federalismo sobre a formulação de políticas sociais, a partir de uma abordagem comparativa. Sem dúvida, aponta para questões cruciais dentro da literatura neo-institucionalista, que não havia conferido atenção suficiente, até então, às diferenças e aos efeitos levados a cabo pelas instituições federativas. Ainda que signifique contribuição relevante para o estudo do federalismo no contexto das instituições e da formulação de políticas sociais, todavia, falta ao artigo aporte empírico mais aprofundado: os exemplos estão centrados, em sua maioria, no Canadá e nos Estados Unidos, e marginalmente na experiência alemã. Acreditamos que uma análise mais detida sobre o federalismo brasileiro – que em muitos respeitos se distingue da experiência norte-americana ou européia – representa exercício crucial para o avanço teórico em torno das conclusões enunciadas por Pierson. O que importa, aqui, não é refutar ou corroborar um modelo analítico específico, ou quaisquer de suas hipóteses: as próprias conclusões do autor já são indicativas da diversidade de padrões a partir dos quais o federalismo influi no desenvolvimento de Estados de bem-estar (Pierson, 1995, pp. 472-3). Pretende-se, em vez disso, conferir mais fôlego empírico a um modelo cujas bases restam, justamente, no estudo comparado, jogando luz sobre quais os efeitos do federalismo para as políticas sociais no caso brasileiro. A divisão deste texto será dada em três partes: em primeiro lugar, sistematizamos os principais argumentos, hipóteses e conclusões de Pierson (1995). Num segundo momento, buscamos avaliar tais proposições teóricas à luz da experiência brasileira recente. Por fim, uma breve conclusão pretende sumarizar os resultados obtidos. Neo-institucionalismo, federação e políticas sociais: o trabalho de Pierson (1995) 3 O artigo de Paul Pierson busca avançar na contribuição da “importância das instituições para a vida política” por meio de um estudo comparado sobre um arranjo institucional particular, o federalismo, em uma série de contextos políticos. Seu argumento principal é que “as regras institucionais dos sistemas federativos possuem grandes implicações para a formulação de políticas sociais” (p. 450). Quais são essas implicações e como elas se colocam? Essas respostas não são dadas pela análise de casos particulares de Estados de bem-estar. O que Pierson pretende mostrar, portanto, vai além da existência de efeitos da configuração federativa sobre políticas sociais, e relaciona-se com suas características fundamentalmente “complexas e bidirecionais” (p. 472). Para tanto, ele divide seu artigo em duas partes: na primeira delas, tenciona indicar os principais efeitos institucionais trazidos pelo federalismo, de uma forma geral, sobre o policymaking; na segunda seção, empreende uma análise comparativa entre Canadá e Estados Unidos para mostrar determinadas variações de resultados em diferentes contextos sócio-políticos (p. 451). Três são as amplas categorias de efeitos institucionais observados em sistemas federais, conforme apontados pelo autor na primeira parte de seu artigo: (1) mudanças nas preferências sobre políticas, estratégias, e influência de atores sociais; (2) emergência de novos atores políticos relevantes – as unidades constituintes (UCs) da federação; e (3) um conjunto de dilemas previsíveis ligados ao compartilhamento da autoridade de formação de políticas entre múltiplas jurisdições (p. 450). A respeito da primeira delas, Pierson aponta que, num contexto federativo – onde necessariamente relacionam-se as questões de “o que regular” com “em que nível regular [políticas]” – “atores sociais estarão ansiosos para deslocar o processo decisório político para a arena mais propensa a favorecer seus próprios interesses” (p. 452). Isso quer dizer que tais atores, uma vez confrontados com esse tipo de escolha, poderão transitar entre níveis decisórios e definir suas preferências e estratégias a partir de onde se encontram. Em sistemas que combinem, por exemplo, integração econômica com autoridade territorialmente dispersa, há a criação de oportunidades do que Pierson denomina desregulamentação competitiva. Esse termo se refere à possibilidade de que firmas operando onde a regulamentação governamental é limitada podem ser capazes de trabalhar com preços abaixo daqueles dos seus concorrentes, forçando empresas 4 de alto custo a relocar, pressionar autoridades locais para reduzir encargos, ou sair do mercado (p. 452). Esse cenário traria, no limite, uma situação de espiral decrescente de provisão social, ou seja, a busca de um “menor denominador comum” de oferta de políticas sociais de forma que cada unidade federativa possa ser, em si, uma arena atrativa para negócios. Tal competição entre as UCs torna-se um fator estratégico para o setor privado, que se mostra capaz de conter a expansão de políticas sociais e cuja possibilidade de jogar com sua própria saída amplia seu próprio poder de barganha e voz (p. 453). Da mesma forma que sistemas federais apresentam essa possibilidade às empresas, eles são também capazes de gerar determinados realinhamentos de coalizões sociais, em especial alianças inter-classes (cross-class coalitions). O exemplo óbvio é o de um país onde exista uma distinção geográfica entre áreas de altos e baixos salários: empregadores e empregados de cada uma dessas regiões tenderão a se mobilizar conjuntamente em torno de interesses particulares e distintos das demais regiões (pp. 453-454). Ainda que um estudo comparativo demonstre que instituições federativas não são condição suficiente para a emergência de coalizões inter-classes baseadas territorialmente, Pierson alega que elas podem fomentar uma estrutura coalizacional de duas diferentes maneiras: (1) ao oferecer canais institucionais para a representação territorial, o federalismo facilita a tradução de interesses regionais em processos políticos; e (2) ao prover um conjunto de alternativas políticas, como centralização/descentralização de políticas sociais, o federalismo torna clivagens do tipo regiões de altos salários/baixos salários especialmente convidativas (p. 454). Um terceiro conjunto de atores sociais cujo comportamento é particularmente afetado pelas dinâmicas do federalismo são os grupos étnicos ou raciais. A idéia é que “diferentes grupos étnicos [ou raciais, como no caso dos EUA] tentarão deslocar o processo de formulação de políticas em direção a qualquer arena que parece mais favorável aos seus interesses” (p. 454). Naturalmente, tais processos dependerão do contexto institucional dentro do próprio federalismo. O que Pierson pretende demonstrar, com isso, é que o papel e o comportamento de tais grupos tende a variar sensivelmente entre sistemas unitários e federais (p. 455). Emergência e autonomia de novos atores institucionais: as unidades constituintes 5 Não somente atores e grupos sociais são afetados pela estrutura institucional do federalismo. Os interesses e atividades das unidades constituintes também jogam um papel central nesse contexto. Elas são “sítios autônomos de autoridade política, com a capacidade de perseguir (pelo menos algumas) opções de políticas por si próprios e de influenciar as possibilidades de busca por políticas sociais no centro” (p. 455). A dinâmica que as caracteriza é a do competitive statebuilding, isto é, da utilização da provisão social como elemento de conflitos e acordos potenciais entre centros concorrentes de autoridade política. Debates em sistemas federais, em função disso, são freqüentemente centrados não no conteúdo das políticas a serem formuladas ou implementadas, mas no locus do controle político (p. 455). À idéia do competitive state-building vincula-se o conceito de preempted policy space, que na verdade é uma aplicação da concepção de dependência da trajetória à alocação de políticas em diferentes níveis decisórios: “[e]m um sistema federativo, a vinculação inicial de políticas num nível descentralizado pode limitar as opções disponíveis às autoridades na esfera central (...). Programas estabelecidos geram custos intrínsecos e redes de interesses políticos que tendem a reduzir as perspectivas de reforma radical” (p. 456). Outro efeito da descentralização competitiva é a possibilidade de inovações e emulações políticas por parte das UCs, tornando-as verdadeiros “laboratórios” de implementação de determinadas políticas, que eventualmente podem se difundir para as demais partes e para o próprio centro. Apesar das possibilidades geradas pelo sistema federal em termos de políticas sociais, as externalidades inerentes ao próprio policy making e aos policy outcomes potencializam os efeitos deletérios da mobilidade de trabalho e capital entre unidades. Onde se empreendem políticas de grande caráter redistributivo, por exemplo, “o federalismo competitivo pode passar a significar desregulamentação competitiva, e as unidades constituintes tenderão a “inovar” somente no sentido da redução de esforços” (p. 457). Assim, Pierson constata a dualidade dos efeitos da competição inter-jurisdicional, apontando tanto para as causas positivas – inovação, distribuição racional de recursos, e auto-disciplina, como também para a possível “espiral decrescente” da provisão social. Dentro desse último cenário, as UCs podem vir a reclamar uma participação maior da autoridade central na provisão de políticas sociais (petitioning) ou, numa situação de 6 busca por mais austeridade fiscal, passar os custos dos cortes sociais (blame avoidance) para diferentes níveis de governo (p. 458). Por fim, é possível asseverar que “a expansão dos círculos de policy-making para incluir múltiplas autoridades políticas com interesses e capacidades distintos criará complicações para a formulação, implementação e modificação de políticas sociais” (p. 459). Nesse sentido, três resultados dos arranjos institucionais que incorporem o processo decisório compartilhado são possíveis: (1) uma tendência em direção a políticas de “menor denominador comum”, uma vez aumentadas as pressões para se obter acordos mutuamente aceitáveis; (2) a incorporação de políticas de proteções institucionais, que podem gerar ineficiências e rigidez de políticas; e (3) a busca contínua por mecanismos de escape, ou seja, opções alternativas de políticas ou reformas institucionais que evitem a necessidade da decisão compartilhada (pp. 459-462). Diferenças dentro de instituições federativas: estudos de caso Enquanto a primeira parte do artigo é devotada à demonstração, em linhas gerais, de como as instituições federativas transformam (ou podem transformar) as dinâmicas do desenvolvimento de políticas sociais, na seção seguinte Pierson empreende uma análise comparativa entre sistemas federais. Ele busca demonstrar, com isso, que os impactos do federalismo vão variar em função da sua própria interação com os processos sociais já existentes, como identidades, interesses ou recursos dos atores (p. 463). Para tanto, aponta três características institucionais do federalismo que são de extrema importância para a lógica da provisão social: (1) o grau de reserva de poderes específicos às unidades constituintes; (2) a forma como os interesses dos vários níveis de governo são representados no centro; e (3) o grau de compromisso com a equalização fiscal ao longo das UCs. Em primeiro lugar, tem-se que “um aspecto importante do desenho federativo é o grau com que áreas de políticas [policy areas] – ou responsabilidades particulares dentro de processos de políticas (como a implementação) são reservadas para os membros constituintes em vez de alocadas no centro” (p. 463). Quando policy areas específicas estão reservadas para os membros constituintes, o mecanismo de preempção de políticas (policy preemption) por parte destes é 7 encorajado, como se dá no caso canadense (p. 464). Caso essa relação não seja altamente institucionalizada, contudo, há grande possibilidade de intromissão das autoridades centrais nos poderes locais. Isso faz com que grande parte dos sistemas federais adote não uma reserva de poderes, mas sim jurisdições compartilhadas em domínios políticos específicos, como acontece na Alemanha. Essa forma, também conhecida como marble-cake federalism, é particularmente suscetível às “armadilhas das decisões compartilhadas”. Os EUA apresentam um caso particular de evolução de um sistema de federalismo dual, ou layer-cake, onde níveis diferentes são responsáveis por áreas e temas de políticas distintos, para o sistema de compartilhamento decisório. No que tange à natureza da representação dos interesses das unidades constituintes no centro, Pierson pondera que “quanto mais forte e direta for essa representação, mais provável que os interesses dos membros constituintes sejam respeitados” (p. 465). Assinala, igualmente, a importância da capacidade de uma minoria de unidades dispostas territorialmente em bloquear a ação do centro. Isso faz com que nos Estados Unidos as UCs, ainda que não tenham uma representação extremamente segura e forte junto ao governo federal (como na Alemanha), sejam capazes de atuar como veto players de relevo em função do desenho institucional norteamericano. Por fim, uma terceira diferença na estrutura dos sistemas em questão diz respeito ao grau de comprometimento, entre as unidades constituintes, com a equalização fiscal. Muitas das dinâmicas do federalismo são, destarte, influenciadas pelas regras que regem a distribuição de recursos financeiros entre as várias jurisdições políticas. Como as UCs geralmente dependem de fontes de renda móveis, reduz-se a chance de seu envolvimento em políticas sociais redistributivas ou inovações significativas e amplas. Suas fracas capacidades fiscais podem inclusive levá-las a requisitar auxílio das autoridades centrais ou mesmo demandar a nacionalização do controle daquelas políticas (p. 466). Ainda dentro da segunda parte do artigo, uma seção final busca empreender uma comparação mais direta entre Estados Unidos e Canadá, acerca de três pontos de divergência: lutas sobre um “salário social” nacional; reposta às demandas de grupos minoritários; e o papel da inovação política entre unidades constituintes (p. 467). A interação das estruturas federativas 8 com outros elementos da sociedade mostrou que, a despeito da existência de uma configuração institucional federativa, os outcomes podem ser opostos (bi-direcionais), ou mesmo multidirecionais, variando sensivelmente por outras características que conferem particularidade ao um contexto político específico (p. 472). Hipóteses de trabalho Das seções anteriores, pode-se sistematizar as hipóteses de trabalho propostas por Pierson (1995) a partir dos diversos efeitos institucionais engendrados pela descentralização federativa. As seguintes proposições constituem-se em hipóteses testáveis: 1. Instituições federativas acarretam mudanças nas preferências sobre políticas (policy preferences), estratégias e influência de atores sociais (p. 450); (1.1.a) O federalismo descentralizado aumenta a opção de políticas para empresas; (1.1.b) O federalismo descentralizado aumenta o poder de barganha das empresas; (1.1.c) A possibilidade de políticas baseadas territorialmente encoraja alianças interclasses; (1.1.d) A possibilidade de políticas baseadas territorialmente potencializa o poder de barganha de grupos étnicos (p. 452). 2. Instituições federativas implicam a emergência de novos e representativos atores políticos, isto é, as UCs (p. 450); (1.2.a) O federalismo descentralizado faz com que haja competição entre diferentes níveis de governo pela ocupação de certos espaços de políticas, numa dinâmica de “construção estatal competitiva” (competitive state-building) (p. 455); (1.2.b) A dinâmica de “construção estatal competitiva” constrange, no futuro, opções do governo central para eventuais reformas, uma vez que os espaços políticos já foram preenchidos pelas UCs (p. 456); (1.2.c) Múltiplas jurisdições, face a UCs dispostas a agir autonomamente, estimulam processos de inovação e emulação de políticas (p. 456); 9 (1.2.d) No caso particular de políticas sociais, há uma tendência sensível de “corrida para o fundo” em termos de provisão social, isto é, redução (e não eficiência) em sua formulação (p. 457); (1.2.e) Os possíveis efeitos negativos da competição inter-estados faz com que UCs demandem auxílio ao governo federal, na forma de intervenção na dinâmica competitiva (p. 457). (1.2.f) A possibilidade (impopular) de cortes em provisão social, em sintonia com o aumento da austeridade fiscal das UCs, conduz a uma política de “evitar a culpa” (blame avoidance), jogando-se a responsabilidade para outros níveis de governo (p. 458). 3. Instituições federativas trazem consigo um conjunto de dilemas previsíveis que dizem respeito ao compartilhamento de autoridade política (no sentido da formulação de políticas) entre múltiplas jurisdições (p. 450). (1.3.a) O processo decisório compartilhado entre múltiplas jurisdições cria uma tendência em direção a políticas de “menor denominador comum” (p. 459); (1.3.b) Decisões compartilhadas levam à incorporação de proteções institucionais nas políticas, gerando ineficiências e considerável rigidez de políticas (p. 459); (1.3.c) A possibilidade de arranjos políticos indesejáveis motivam UCs a buscar alternativas, ou rotas de escape, para evitar tais conformações (p. 461). Hipóteses à luz do caso brasileiro: confirmando os efeitos multi-direcionais? Antes de procedermos ao teste de hipóteses, é necessário clarificar que estamos tratando, neste trabalho, da relação entre instituições federativas e políticas sociais. É natural que haja interseções entre a provisão social e políticas econômicas ou fiscais que eventualmente sejam praticadas pelas múltiplas jurisdições governativas. Quando imprescindível em função do tipo de hipótese proposta por Pierson (1995), falaremos de temas ligados a políticas de outra natureza. No entanto, para transformar o escopo desse texto em algo factível, trabalharemos com foco no marco do Sistema Brasileiro de Proteção Social, que comporta as áreas de previdência, educação 10 fundamental, assistência social, saúde, saneamento e habitação popular e cuja estrutura organizacional vem sendo redesenhada no sentido da descentralização (Arretche, 2000, p. 15). Diferentemente dos casos estudados por Pierson (1995), o processo de descentralização da provisão social no Brasil é algo mais novo do que se pode pensar à primeira vista. Ainda que seja uma república nominalmente federativa desde 1891, o grau de autonomia/descentralização relativo às unidades federadas variou sensivelmente ao longo do tempo. Arretche (2006) aponta os três ”períodos de exceção” da história brasileira (Revolução de 30, Estado Novo e Regime Militar) como os momentos em que a supressão dos princípios federativos, em particular a autonomia de governadores e prefeitos, foi especialmente visível (p. 124). Assim, parece razoável apoderarmo-nos do momento da redemocratização, em 1985, como marco histórico a partir do qual podem-se discutir as implicações do federalismo brasileiro em termos de provisão social. Com efeito, argumenta Arretche (2002a), a década de 1980 presenciou a recuperação das bases do Estado federativo no país, quando se transformou a autoridade dos governos locais através do restabelecimento de eleições diretas e da descentralização fiscal estipulada pela Carta de 1988 (p. 29). A ampliação da autoridade das UCs deu-se, justamente, pela reconquista do voto popular direto, por um lado, e pela incorporação de certas prerrogativas tributárias, como controle exclusivo sobre o ICMS, no caso dos estados, e o IPTU, para os municípios. “Em suma, como em qualquer federação, no Brasil pós-88, a autoridade política de cada nível de governo [União, estados e municípios] é soberana e independente das demais” (Arretche, 2000, p. 47). É importante ressaltar que houve dois processos distintos, ainda que concomitantes, de descentralização. O primeiro deles começa em meados dos anos 80 e refere-se à descentralização fiscal, conforme devidamente identificado por Affonso (2000). Esse processo iniciou-se a partir da normalização eleitoral dos estados e municípios e partiu da vontade das próprias unidades constituintes em adquirir autonomia fiscal. O segundo processo de descentralização, relativa às políticas e aos programas de proteção social, dependeu em larga medida do desenvolvimento do primeiro, mas diferiu-se dele em dois aspectos fundamentais: ainda que iniciado a partir da promulgação da Constituição, em 1988, foi somente surtir efeitos com uma série de reformas levadas a cabo quase uma década mais tarde, mediante reformas conduzidas pelo governo Fernando Henrique Cardoso (Arretche, 2000; 2002a). 11 No âmbito das políticas sociais, o processo de descentralização atingiu graus diferentes de sucesso em cada uma das policy areas que compõem o sistema brasileiro de proteção social. O governo federal, nesse processo, não encontrou grandes obstáculos à sua agenda de reformas (Arretche, 2002b). Em somente um dos quatro casos analisados pela autora – na tentativa de se privatizar as empresas estaduais de saneamento – houve barreiras reais por parte dos estados (Arretche, 2002b, p. 450). Nessa mesma linha, somente em um dos quatro casos – que trata da municipalização da educação básica – a aprovação de uma emenda constitucional foi a estratégia de descentralização escolhida (idem, p. 451). Nas outras, o processo se deu por meio da aprovação de portarias ministeriais, exigências para a efetivação de transferências federais ou desfinanciamento das empresas públicas (Arretche, 2002a, p. 46). “A estratégia do Executivo federal, em cada política particular, foi condicionada pelos objetivos da reforma e pelo modo como estavam estruturadas as relações intergovernamentais, que, por sua vez, são condicionadas por regras constitucionais, legado de políticas anteriores e o ciclo da política” (Arretche, 2002b, p. 451). Enfim, quer-se chegar na idéia de que o governo federal logrou êxito como fonte indutora do processo de descentralização das políticas sociais. Temos, então, um objeto de estudo peculiar, mas real: um federalismo recententemente descentralizado, com diversos processos ainda em marcha e diversas forças opostas convivendo em seu seio (Almeida, 2005). O federalismo brasileiro, cujas faces fiscal e social são, no limite, indissociáveis, será o elemento condutor dos testes a serem realizados nas próximas páginas. As hipóteses, elencadas na seção anterior, serão retomadas pontualmente, ora separadas, ora em conjunto, para fins de análise e discussão. Todo o trabalho a seguir deverá ser lido a partir deste pano de fundo breve, mas necessário. Hipóteses 1.1; 1.1.a; 1.1.b; 1.1.c; 1.1.d, 1.2.d Essas hipóteses podem ser tratadas conjuntamente. Muitos dos efeitos da descentralização para o comportamento das empresas e demais atores sociais relacionam-se com a noção de “guerra fiscal” praticada pelas UCs. Com a desmontagem da centralização autoritária vigente até meados dos anos 80, buscou-se deslocar o poder em favor dos estados e municípios. Ao conferir a cada 12 estado autonomia para fixar as alíquotas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), contudo, a Constituição de 1988 “estimulou uma espécie de anomia no que diz respeito ao quadro tributário no âmbito da federação (...), [preparando] o alicerce jurídico para as escaramuças da guerra fiscal” (Dulci, 2002, p. 96). Cada estado passou a utilizar o ICMS como fundamento estratégico para atração de investimentos, competindo entre si de forma agressiva, ou mesmo “predatória”. A “guerra fiscal” foi estabelecida a partir do processo constitucional de descentralização fiscal e seus reflexos podem ser observados em algumas áreas sensíveis da economia brasileira. Disputas no setor automobilístico, no de informática/eletrônica e na agroindústria têm sido particularmente salientes (Dulci, 2002, pp. 99ss). Casos emblemáticos são a disputa pelo Complexo Ford, entre Rio Grande do Sul e Bahia, e devidamente vencida pelo último após intervenção federal (idem, pp. 100-101)2 ; as querelas em torno dos setores de alta tecnologia e informática, devidamente polarizadas entre São Paulo e os demais estados (idem, pp. 101-103)3; e as controvérsias do setor agroindustrial, marcadas pela dispersão dos laticínios e frigoríficos, processo pelo qual Minas Gerais foi especialmente prejudicada, e pela transferência de investimentos no ramo de calçados, do RS para estados nordestinos como a Bahia e o Ceará (idem, pp. 103-104). Não raramente o mais profícuo palco da guerra fiscal é o Supremo Tribunal Federal (STF), e as batalhas se dão por meio das chamadas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs). Sem dúvida, a nova relação federativa estabelecida há quase duas décadas tem provocado mudanças no padrão de comportamento de empresas e também de atores sociais localizados regionalmente. Quanto aos primeiros, aumentam-se opções políticas e poder de barganha a partir de duas grandes clivagens delineadas no processo: enquanto grandes estados, de peso considerável no pacto federativo, têm disputado projetos de porte, geralmente advindos de multinacionais, as UCs menores têm competido por investimentos de capital doméstico em diversos setores produtivos (Dulci, 2002, p. 104). 2 “FHC ‘reorientou’ Ford a trocar o RS pela Bahia, diz Olívio Dutra”, Folha de São Paulo, 1999. Disponível em http://www.senado.gov.br/secs_inter/noticias/senamidia/historico/1999/7/zn072618.htm 3 Ver, por exemplo, a disputa judiciária entre Amazonas e São Paulo. “Amazonas Sofre Discriminação Fiscal de SP”, G1 Notícias, 12 de agosto de 2007. Disponível em http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL85680-5601,00.html 13 “Por efeito dessa competição, observa-se o deslocamento de setores e empresas pelo território nacional, atrás de vantagens fiscais comparativas, além de diferenciais em custos como salários mais baixos. A ocorrência dessa movimentação de “empresas ciganas” depende do setor de atividade. É bastante viável em setores que requerem instalações e insumos disponíveis em qualquer lugar, como as indústrias de confecções, calçados, cerâmica e laticínios” (Dulci, 2002, p. 105). Além das novas relações estabelecidas entre estados e empresas, mudam também as relações regionais. No contexto brasileiro, elas são mais importantes que clivagens étnicas, culturais ou religiosas. Nesse sentido, é necessária uma leve reformulação na hipótese de Pierson (1995) quanto aos grupos étnicos ou nacionais que, ainda que relevantes no contexto norteamericano ou canadense, perdem o sentido em federações que não possuem tais clivagens em evidência. Isso não significa dizer que não haja diferenças demográficas ou sociais no Brasil: Souza (1998) pondera, acuradamente, que nosso país “tem sido marcado, desde o início da sua história republicana, pela existência de profundas desigualdades regionais no interior da Federação”. Para além da divisão regional oficial, a autora argumenta ser possível “redividir” o Brasil em três zonas de diferentes índices de desenvolvimento humano, uma de elevado nível (RS-SC-PR-SP-RJ-ES-MS-DF), uma de nível intermediário (MG-MT-GO-RR-RO-AP-AM-TO) e uma de níveis reduzidos (BA-PE-PB-CE-RN-PI-MA-PA-AC-SE-AL). De modo geral, os principais contendores da “guerra fiscal” pertencem a diferentes “brasis”, quando analisados os casos de disputa por investimentos. Nesse sentido, é possível pensar que haja algum tipo de polarização que estimule alianças locais inter-classes, por exemplo, ainda que não se tenha chegado a evidências empíricas conclusivas sobre esse tipo de alianças e a despeito de outros fatores que talvez as desincentivem4 . Por outro lado, padrões de comportamento de atores pertencentes às diferentes clivagens regionais/sociais, estabelecidas analogamente aos que observa Pierson (1995) com respeito aos grupos étnicos ou raciais, não demonstraram recorrência. O poder de barganha de regiões ou grupos sociais é intermitente; enquanto estados e regiões deveriam encontrar aporte na representação parlamentar federal, com 4 Diniz (1992), por exemplo, aborda a tradição corporativa do Brasil – que, “[l]onge de favorecer a integração intraclasse ou os acordos interclasses, (...) está centrada na setorização dos interesses”. 14 certa coerência entre as zonas de diferentes IDHs, nem sempre deputados e senadores atuam diretamente em prol do segmento social que supostamente representam, mas sim de interesses específicos ou distritos eleitorais particulares (Ames, 2003)5 . Grupos sociais, por seu turno, se pensados em termos de classe, não possuem voz dentro da dinâmica federativa – sendo, antes, receptores passivos de transferências direta de renda, geralmente concentradas no governo federal (Almeida, 2005). A tendência paradoxal é que a experiência federativa brasileira, ao mesmo tempo em que expande as perspectivas democráticas e de governança para o país, “tem mostrado não só os limites da descentralização e do federalismo em países onde as disparidades regionais e sociais são muito profundas, mas também que a descentralização dificulta a redução das referidas desigualdades regionais pelo enfraquecimento político e financeiro do governo federal” (Souza, 1998). O teste das referidas hipóteses mostrou que, de fato, instituições federativas alteram o padrão de comportamento de atores sociais, ainda que esse impacto se dê em diferentes graus para empresas – geralmente alto e positivo – e para grupos sociais ou regionais, cujos sinais são mistos e, por vezes, negativos. É possível abrir um parêntese, à luz do que já foi discutido nesta seção, para tratar da hipótese 1.2.d, relativa à “corrida para o fundo”. A despeito de a descentralização ter sido conduzida, no caso do Brasil, à semelhança do processo norte-americano – isto é, por indução da autoridade central (Arretche, 2002, p. 45) – não observamos correlação, ao contrário do que indica Pierson (1995), entre a busca por novos investimentos decorrente da dispersão fiscal por parte dos estados e uma redução necessária das políticas de provisão social por parte destas UCs. Ainda que a lógica seja coerente, implicando que “[a] guerra fiscal entre os estados da federação, em geral, produz um processo de redução dos impostos e, conseqüentemente, do gasto público, para níveis inferiores àqueles que maximizam o bem-estar da federação” (Silva, 2005, p. 88), não encontramos estudos que tornem essa relação uma causalidade. 5 Vale lembrar que não estamos, aqui, abraçando a visão cataclísmica de Ames (2003) a respeito da governabilidade da democracia brasileira. Arretche e Rodden (2004) mostram a diversidade de estratégias legislativas adotadas pelos estados, que podem, em alguns casos, beneficiar ou ampliar o poder de barganha de alguns estados. Para que a hipótese de Pierson (1995) seja testada, é necessário pensar, contudo, não nos estados per se, mas em grupos sociais ou clivagens particulares que neles se configuram. Nesse caso, o resultado não nos parece positivo ou significativo. 15 Talvez seja possível afirmar que essa “corrida para o fundo” tenha sido sistematicamente coibida pelo próprio governo federal, tanto no momento da transferência das atribuições para os governos locais, realizada quando o governo foi capaz de arregimentar capacidade institucional suficiente para realizá-la (Arretche, 2002) e quase sempre negociada e submetida a cálculos racionais por parte dos receptores (Arretche, 2000), ou como instrumento de contenção da “guerra fiscal”, através de medidas como a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de 2000, ou a unificação do ICMS (Silva, 2005, p. 93). De qualquer forma, os dados coletados foram muito pouco conclusivos a esse respeito, convidando a pesquisas mais aprofundadas que sejam capazes de matizar esse movimento particular das políticas sociais no âmbito das unidades constituintes. Hipóteses 1.2, 1.2.a, 1.2.b A Carta de 1988 representou o ápice de um conjunto de reformas político-institucionais que, desde fins do período militar, buscavam retomar as bases federativas de nosso país. Aliada às eleições diretas para todos os níveis governamentais, instituídas em 1982, sua promulgação garantiu, por um lado, a descentralização fiscal e, por outro, o reconhecimento dos municípios como entes federativos autônomos (Arretche, 2000, p. 17). É fundamental ressaltar que, ao contrário do que advoga o estudo de Pierson (1995), as “unidades constituintes” no Brasil são não somente os estados, como também os municípios. Portanto, quando nos referirmos às UCs, estamos falando de dois estratos sub-nacionais distintos entre si. De qualquer forma, tanto estados quanto municípios surgem, a partir dos anos 90, como atores políticos representativos nas relações intergovernamentais. Nesse sentido, a proposição geral realizada por Pierson (1995) é intuitiva, para não dizer óbvia. Trabalhar, contudo, com a idéia de “construção estatal competitiva”, e com o processo dependente da trajetória de preenchimento de espaços governativos, exigirá um pouco mais de esforço em termos empíricos. Pode-se pensar em tais dinâmicas a partir de dois âmbitos distintos, embora por vezes interligados: no das políticas fiscais e no das políticas sociais. No que tange à tributação, Souza (1998) aponta que, antes da promulgação da nova Constituição, o governo federal mantinha em mãos aproximadamente metade de toda a receita pública. A partir de 1993, quando as reformas 16 previstas pela nova Carta foram plenamente implantadas, houve uma redivisão da arrecadação, como disposto na Tabela 1: Tabela 1 – Distribuição de Recursos Públicos (%) 1985-1993 Esfera de governo Federal Distribuição anterior à Constituição 1985 % PIB 446 67 Distribuição Pós-Constituição 1993 % PIB 365 57 Estadual 372 56 407 63 Municipal 182 27 228 35 Total 1000 151 1000 156 Fonte: Rezende (1990, p. 161) apud Souza (1998) Mesmo que a perda federal na disposição de recursos públicos tenha sido pequena, em termos de Produto Interno Bruto (PIB), a difícil situação das contas públicas e da economia nacional pós-Constituição fez com que o governo federal buscasse compensar as perdas fiscais da descentralização por outros meios. Arretche (2005) afirma que a cobrança de contribuições sociais, tributos não sujeitos à partilha obrigatória com estados e municípios, foi um dos principais instrumentos da autoridade central nesse sentido6 . A ampliação das alíquotas de algumas delas, como a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) e o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), bem como a criação de outras, como a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (IPMF/CPMF), engendrou maior arrecadação por parte do governo federal (Arretche, 2005, pp. 78-79)7. 6 O objetivo das contribuições sociais, a princípio, deveria ser o financiamento das políticas sociais. Nesse sentido, o regime tributário e o sistema de provisão social seriam duas faces da mesma moeda. Com o tempo, alguns tributos, como a própria CPMF, acabaram deixando de ser de uso exclusivo para áreas sociais específicas (Arretche, 2005, p. 79). De qualquer forma, o estabelecimento de um regime fiscal dual, com papel preponderante das contribuições, compatibilizou a descentralização fiscal com a manutenção, em níveis elevados, do gasto público federal: tais tributos, que representavam 4,9% das receitas federais totais em 1980, foram alavancadas para 20% em 2000 (Almeida, 2005, p. 34). 7 Na realidade, a lógica da tributação brasileira não segue uma base linear; Souza (1998) aponta para uma série de complexidades que marcam o sistema tributário nacional. Há, segundo a autora, mudança constante dos impostos e freqüentes aumentos em suas alíquotas, bem como a supressão de alguns impostos estaduais e municipais aprovados em 1988. “Essa característica do sistema tributário coloca o Brasil na contramão do paradigma fiscal defendido pelo chamado receituário neoliberal, que requer estabilidade nas regras do jogo fiscal. Todas essas transformações têm o objetivo de equacionar, muitas vezes apenas temporariamente, os problemas de caixa do governo federal” (Souza, 1998). 17 É especialmente atual a discussão sobre a reforma tributária e, nesse diapasão, a luta do governo federal pela extensão da CPMF por mais quatro anos. A tarifa sobre movimentações financeiras garante aos cofres da União, hoje, em torno de 36 bilhões de reais (aproximadamente 2% do PIB real). O valor é suficiente para que o governo faça acordos laterais com parlamentares, como aquele que prevê a anistia de parlamentares que mudaram de legenda após as eleições de 2006, como forma de manter intacta a contribuição. Prevê-se, igualmente, uma série de desonerações na proposta governista da reforma tributária para que os estados e municípios não sejam prejudicados no processo8. Disputas entre governo federal, estados e municípios em torno da tributação são, pois, elemento notável da “construção estatal competitiva” levada a cabo no Brasil. As dificuldades encontradas na manutenção do CPMF, por exemplo, mostram como uma decisão anterior, que previa um imposto provisório, geram impactos nas alternativas futuras dos governos, implicando altos custos políticos de qualquer reversão. Nesse sentido, o crescimento das contribuições, por exemplo, é “expressão da dificuldade em alterar o padrão da descentralização fiscal estabelecido pela Constituição de 1988. O governo federal expandiu as contribuições sociais porque tinha dificuldades em reduzir significativamente, em seu benefício, a parcela de receitas tributárias compartilhadas com estados e municípios” (Almeida, 2005, p. 35). Não obstante, é possível já identificar um tipo (ainda que rudimentar) de padrão que, inaugurado com a Nova República, decorre desse processo de competitive state-building no âmbito fiscal: um sistema marcado pela descentralização de receitas, com centralização da arrecadação no governo federal e acompanhadas de centralização da autoridade sobre decisões de gasto e tributação, coibindo a autonomia de estados e municípios para regulamentar a cobrança de impostos e o destino dos gastos (Arretche, 2005, p. 83). Seria possível identificar processo semelhante de disputa por espaços governativos na seara das políticas sociais? Em primeiro lugar, é imprescindível ressaltar que o sistema de provisão social descentralizado surgiu não de uma demanda endógena dos entes sub-nacionais, mas sim via indução do governo federal (Arretche, 2002; Souza, 2004). O processo de descentralização de políticas sociais “ocorreu quando o governo federal reuniu condições 8 “Pela CPMF, governo enterra reforma política”, o Estado de São Paulo, 10 de agosto de 2007. Disponível em http:// www.estadao.com.br/nacional/not_nac32471,0.htm 18 institucionais para formular e implementar programas de transferência de atribuições para os governos locais” (Arretche, 2002, p. 45). O preenchimento induzido de espaços de política (policy spaces) faz com que a competição prevista por Pierson (1995) não necessariamente ocorra ou, ao menos, envolva menores tensões na hora de se alocar funções sociais específicas. Almeida (2005) realiza interessante mapeamento que diz respeito à forma como equacionaram-se, desde o início do processo de descentralização, papéis federal, estadual e municipal no sistema de provisão social. Na área da saúde, o governo central ocupa lugar prioritário no arranjo federativo, uma vez que controla o processo decisório sobre políticas, define as formas de cooperação e o destino dos recursos transferidos. Aos municípios, especiais destinatários da descentralização federativa, resta o papel de executores e gestores de políticas estipuladas no plano federal (Almeida, 2005, p. 38). No que tange à educação básica, o governo federal se vale do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental, o FUNDEF, para empreender a transferência do ensino fundamental em direção aos municípios – ainda que estados e cidades lançassem, esporadicamente, políticas de educação próprias fundadas em seus próprios recursos orçamentários (idem, p. 38). Por fim, em termos de assistência social, governos federal e estaduais repassam recursos, via fundos, para os municípios. Estes, munidos de ampla autonomia decisória, implementam políticas próprias, não raramente em parceria técnica com organismos não-governamentais (idem, pp. 38-39). Uma “nova geração” de programas sociais, cuja base é a transferência direta de renda, popularizaram-se a partir de meados da década de 90. Almeida (2005) aponta que, ainda que alguns tenham surgido como iniciativa de governos municipais ou estaduais, o governo Fernando Henrique Cardoso centralizou vários deles a partir de 1998. “A criação desses programas significou uma ruptura com o modelo prévio de federalismo cooperativo, predominante na área social, e uma volta clara à formas centralizadas de prestação de benefícios sociais. A justificativa da centralização, de acordo com autoridades federais, era a busca de formas eficientes de enfrentar a pobreza extrema, evitando a instrumentalização clientelista dos programas pelas elites locais” (Almeida, 2005, p. 40). A autora conclui seu argumento colocando que programas do governo atual, como o Fome Zero e o Bolsa-Família (unificação dos seis maiores programas de transferência de renda), 19 denotam a permanência de um modelo centralizado nessa área particular de transferência direta de renda (idem, p. 40). Está colocada, portanto, a tensão permanente entre tendências descentralizadoras, por um lado, e centralizantes, por outro, que convivem na dinâmica da provisão social no Brasil, e que constituem a lógica do competitive state-building no contexto nacional. Hipótese 1.2.c Processos de inovação de políticas ocorreram desde que se inaugurou, no Brasil, um novo momento de descentralização federativa. Souza (2004) aponta que políticas próprias, formuladas no âmbito dos municípios, têm atuado em prol de inovações no seio do sistema de proteção social nacional (p. 28). Aos municípios, aponta a autora, foi conferida autonomia em determinadas áreas de políticas, fazendo com que se criasse um sistema particular de governança local. Esse sistema, ainda que marcado pela desigualdade e pela incerteza derivada da disparidade social e econômica entre municípios, fomenta múltiplas formas de inovação. Por meio do “empoderamento” de segmentos específicos da comunidade e da promoção de accountability dos gestores públicos, “muitos governos locais estão implementando ou consolidando várias experiências participativas, que vão desde conselhos municipais setoriais voltados para a decisão, participação na gestão e fiscalização de políticas sociais e de pequenas obras públicas, até a incorporação de segmentos sociais marginalizados do processo decisório na alocação de parcela dos recursos orçamentários locais, através do que ficou conhecido como Orçamento Participativo – OP” (Souza, 2004, p. 38). Além dos Conselhos Municipais Setoriais, que são comumente constituídos em torno de políticas específicas ou da defesa de direitos individuais ou coletivos, e do Orçamento Participativo, que confere voz a interesses outrora marginalizados em assembléias locais, Souza (2004) também aponta como fruto de políticas de inovação os programas demand-driven, cujo objetivo é que a população decida quais obras deverão ser realizadas no âmbito local. Nenhum destes três formatos de prática política local está livre de críticas, por razões diversas; não cabe, contudo, enveredarmos em sua discussão, uma vez que o que está posto em questão é o estímulo 20 a inovações, que foi devidamente demonstrado9. Nessa mesma linha, Jacobi (1992) afirma que uma das principais características da inovação em políticas é a incorporação, por parte do Estado – e, em nosso caso, por parte de alguns municípios – da agenda dos movimentos sociais (p. 106), devidamente traduzida nas formas aqui elencadas de formulação e implementação. Um outro exemplo de inovação de políticas é dado por Suplicy e Margarido Neto (1995). Os autores buscam demonstrar, por um lado, como o Programa Comunidade Solidária, proposto pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, busca tão-somente alterar a forma de gerenciamento de programas sociais pré-existentes, sem auferir ganhos significativos em termos de redução da pobreza. Por outro lado, os autores propõem, alternativamente, uma discussão mais detida das bases do Programa de Garantia de Renda Mínima, que já demonstrava sucesso em algumas versões municipais e estaduais (Suplicy & Margarido Neto, 1995, p. 40). O Programa, da forma originalmente proposta, não logrou aceitação federal, sendo posteriormente aprovado com condicionalidades: vinculado à educação (Bolsa-Escola) e à saúde (Bolsa-Alimentação). Zimmermann (2007), argumenta que o Programa Bolsa Família, implementado pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2005, constitui-se também em variação do Renda Mínima. Importa dizer que, no limite, as variações desse programa foram implementadas no nível federal após observado seu sucesso em esferas sub-nacionais, conferindo a estas papel crucial de inovação e emulação de políticas. Hipóteses 1.2.e, 1.2.f O recurso das UCs ao auxílio federal tem sido feito sob diversas roupagens. Alguns são estabelecidos por definição constitucional ou por mecanismos legais, como o sistema de equilíbrio horizontal do sistema fiscal, que promove transferência de recursos via fundos de participação – o Fundo de Participação dos Estados (FPE) e dos Municípios (FPM). Ainda que haja, de fato, redistribuição da receita nacional que privilegie as regiões menos desenvolvidas, as regiões mais desenvolvidas são as principais beneficiárias e incentivos fiscais (Souza, 1998). 9 Para uma discussão mais detida sobre o papel dos governos locais na gestão de políticas sociais, recomendamos fortemente a leitura de Souza (2004). 21 A incapacidade deste sistema em reduzir, na prática, as disparidades regionais, fez com que negociações entre estados/municípios e União com vistas à equalização fiscal, por exemplo, fossem feitas com base em acordos informais entre as partes (Souza, 2003). Políticas de distribuição de recursos governamentais são comumente obtidas por meio da proposição de emendas ao orçamento, que podem ser apresentadas por parlamentares individuais, bancadas estaduais, coalizões regionais ou comissões, e negociadas com líderes partidários e relatores (Arretche & Rodden, 2004, p. 553). Por fim, a federalização de partes de dívidas locais também é algo comum na relação entre UCs e governo federal (Souza, 2003, p. 346) e geralmente envolvem grandes montantes, como extensamente demonstrado por Souza (1998). Pode-se considerar que o processo de descentralização de políticas sociais institucionalizou a possibilidade da “transferência de culpa” (blame avoidance), processo que merece um aparte em função da hipótese 1.2.f colocada por Pierson (1995). Arretche (2000) apresenta uma lógica impecável a respeito desse processo no caso brasileiro. A autora argumenta que a transferência de culpa, ou responsabilidade, se dá por meio de sucessivas barganhas federativas, a partir das quais pretende-se imputar a um outro nível administrativo a maior parcela dos custos políticos e financeiros da provisão social, enquanto reserva para si os bônus gerados por ela (p. 47). Como o mecanismo de descentralização das políticas sociais envolve a necessidade de adesão pelo nível receptor, decorre daí que os custos (políticos e/ou financeiros) da gestão de políticas sociais entrarão no cálculo por parte das unidades sub-nacionais, que poderão transferi-la para um outro nível de governo. Essa dimensão da barganha federativa faz com que o processo de descentralização somente se torne efetivo a partir da avaliação positiva da política pelos governos locais, que então abraçam sua gestão (idem, p. 48). É possível notar, portanto, que particularidades na dinâmica entre unidades constituintes e governo federal identificadas por Pierson (1995) são verdadeiras para o caso brasileiro. A competição entre UCs conduz, em parte dos casos, a efeitos perversos (como já demonstrado em seção anterior) e leva a que governos locais recorram ao Estado em busca de auxílio. Essa ajuda vertical pode ser garantida por vias constitucionais ou legais, como no caso dos Fundos de Participação, ou acordos informais, que implicam, em alguns casos, na renegociaçãofederalização das dívidas locais. Outra face da barganha federativa é a tentativa de lançar custos 22 de implementação ou gestão de projetos sociais para outros níveis administrativos, prática que balizou a lógica da descentralização do sistema brasileiro de proteção social nos últimos quinze anos. Hipóteses 1.3, 1.3.a, 1.3.b, 1.3.c Todo tipo de instância que preveja decisões compartilhadas entre diferentes níveis estará sujeita a dilemas decisórios. As observações de Pierson (1995) captam, de forma acurada, a forma como tais dilemas se colocam num arranjo federativo multi-jurisdicional. Pelo escopo proposto por este trabalho, e pela impossibilidade de empreender-se uma pesquisa empiricamente baseada para identificar os meandros das diversas políticas sociais no que tange a supostas proteções institucionais ou rotas de escape, optamos por não testar especificamente as hipóteses 1.3.a, 1.3.b e 1.3.c; decidiu-se, alternativamente, por abordar os entraves decisórios de forma mais abrangente, buscando pontuar, quando possível, impactos relativos a tais proposições. O trabalho de Affonso (2000) é particularmente convincente no que diz respeito às características particulares do federalismo brasileiro e suas decorrências decisórias. Há, segundo o autor, duas características marcantes na federação nacional: a acentuada disparidade socioeconômica entre suas unidades e um aparato estatal complexo, composto por administração direta, empresas estatais e sistema financeiro público, que permeia os três níveis de autoridade (Affonso, 2000, pp. 131-2). Três especificidades também marcam o processo de descentralização10 observado a partir dos anos 80: (1) a descentralização não foi iniciativa preponderante do governo federal, ao contrário do que ocorreu em outros países latinoamericanos; (2) o timing da abertura política foi diferente quanto aos estados/municípios e o governo central, ocorrendo primeiro nos níveis sub-nacionais e fazendo com que a descentralização ocorresse de forma descompassada, sem projeto de articulação ou coordenação estratégica; (3) pelo reforço da própria Federação, na medida em que ampliou as prerrogativas decisórias, fiscais e de competência de estados e municípios (idem, pp. 133-5). Vale notar que 10 Não entraremos na discussão, mas é importante ressaltar que há diferenças conceituais fundamentais entre federalismo e descentralização. Enquanto arranjos federais, cuja base é institucional, implicam certo grau de descentralização, esta pode ocorrer em configurações estatais diversas, como o Estado unitário (Affonso, 2000; Arretche, 2000). 23 enquanto a iniciativa de descentralização fiscal, a que Affonso (2000) se refere, tenha sido pressionada por parte das UCs, o processo de dispersão do sistema de proteção social ocorreu, preponderantemente, por indução do Estado (Arretche, 2000; 2002). Quais as implicações desses movimentos simultâneos e particulares para o processo decisório no arranjo federativo nacional? Em primeiro lugar, o descompasso da seqüência de descentralização no Brasil, aliada à dificuldade de se traçar competências específicas sobre gasto e receitas públicas, fez com que persistisse o conflito vertical, entre União e governos subnacionais (Affonso, 2000, p. 139). Em segundo lugar, há um processo concomitante de horizontalização das tensões federativas, materializada na disputa entre estados – via “guerra fiscal” – e municípios, na qual a emancipação desregulada de novos entes municipais, que podem se beneficiar dos repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), é alarmante (idem, pp. 140-2). Em terceiro lugar, são claras as dificuldades encontradas na redivisão de competências entre os três níveis de governo, potencializadas pela heterogeneidade socioeconômica regional e pela própria estrutura do poder político, cujos sistemas partidário e eleitoral têm “sua reprodução condicionada à intermediação de recursos federais para o nível estadual e o municipal” (idem, p. 143)11. Por fim, observa-se uma escalada da crise fiscal dos estados, que se evidencia pela inclusão de estados e municípios no déficit agregado do setor público e pelo endividamento destes frente à União (idem, p. 144). Essas características constituem o que Affonso (2000) chamará de “crise do federalismo brasileiro” e que é condicionada, em grande medida, às “armadilhas das decisões compartilhadas” identificadas por Pierson (1995). Conclusão: o Brasil na encruzilhada dos federalismos Este breve trabalho pretendeu conferir algum fôlego para hipóteses que haviam sido levantadas por Pierson (1995) em seu estudo sobre relações entre federalismo e políticas sociais. Como o próprio escopo da proposta não comportava uma pesquisa empírica de relevo, sucedida pelo devido tratamento de dados, optamos por realizar uma discussão mais abrangente e menos 11 Discussão fundamental das estratégias legislativas de estados e municípios é realizada por Arretche e Rodden (2004). 24 formalizada, fundamentada nos diversos estudos sobre federalismo brasileiro publicados nos últimos quinze anos. Dessa forma, múltiplas temáticas foram abordadas ao longo do texto. O vínculo com a formulação de políticas sociais foi, por vezes, marginal: algumas das hipóteses demandavam tratamento mais aprofundado de temáticas específicas, como o federalismo fiscal, que informam a discussão sobre políticas sociais. No mais das vezes, contudo, pretendeu-se colocar as políticas sociais e seu contínuo processo de descentralização no foco principal do texto. O fio condutor que liga as diversas facetas da experiência brasileira recente, seja nas especificidades de sua descentralização fiscal ou do sistema nacional de proteção social, relaciona-se com os condicionantes institucionais que conformam as relações federativas no país. Nesse sentido, pôde-se avaliar, em uma primeira abordagem, o estudo de Pierson (1995) à luz do caso brasileiro. A grande maioria das proposições enunciadas pelo estudo que nos serviu de baliza foram confirmadas pela análise empírica empreendida. Observou-se que a descentralização fiscal e social conduzida no Brasil transformou, de fato, as policy preferences, estratégias e grau de influência de empresas e segmentos regionais, ainda que essa mudança não tenha sido sempre positiva. Mostrou-se que, enquanto a “guerra fiscal” travada entre estados garantiu diversidade de opções e ampliação do poder de barganha das empresas (Dulci, 2002), o processo de descentralização não foi capaz de reduzir sensivelmente as desigualdades regionais e as clivagens sócio-econômicas que marcam tão fortemente o federalismo nacional (Souza, 1998; Affonso, 2000). A forte descentralização colocada em marcha a partir de 1988 fez emergir, no jogo político nacional, estados e municípios como atores centrais. A relação entre UCs e governo federal, marcada pela “barganha federativa” (Arretche & Rodden, 2004; Souza, 2003), foi caracterizada pela constante tensão entre níveis de governo, seja pelas demandas de equalização fiscal (Affonso, 2000), seja pela indução errática de políticas sociais descentralizadas (Arretche, 2000), ou mesmo pelo convívio, num mesmo processo, de tendências descentralizantes e centralizadoras (Almeida, 2005). As implicações da emergência das UCs como atores relevantes e eventuais veto players na política nacional são múltiplas, e passam desde a possibilidade de se constituírem em loci de inovação de políticas sociais (Souza, 2004; Suplicy & Margarido Neto, 1995) até o 25 aumento de acordos informais na busca pelo auxílio central no sentido de conter a dinâmica competitiva negativa entre unidades (Souza, 1998; Arretche & Rodden, 2004). Espera-se que transferência de responsabilidades seja algo comum nesse processo, uma vez que o molde institucional estabelecido constitucionalmente tenha sido o das “competências concorrentes” (Arretche, 2004, p. 22), ainda que não tenha sido observada de forma consistente a partir desta pesquisa, em particular da bibliografia levantada. Que dizer dos dilemas decisórios frente a múltiplas jurisdições? Pela dificuldade de empreender um estudo comparativo com mais vigor, fizemos uma escolha deliberada por não verificar as implicações comparadas em cada uma das modalidades de política social, em busca, por exemplo, de políticas lowest common denominator ou escapes institucionais. De qualquer forma, a análise empreendida quanto aos dilemas decisórios apontou uma série de “nós” que não foram desatados pela Constituição de 1988 – ao contrário, mesmo criados por ela (Affonso, 2000; Arretche, 2004; Souza, 1998; 2004), e que perduram até hoje no processo de barganha federativa. É importante fazer nota à segunda seção do estudo de Pierson (1995), na qual ele leva a cabo uma análise comparativa com vistas a identificar variações entre os federalismos. Três características elencadas pelo autor implicam diferentes efeitos sobre o desenvolvimento de políticas sociais, conforme consta na Tabela 2: Tabela 2 – Características do Federalismo e Desenvolvimento de Políticas Sociais Característica Impacto sobre o desenvolvimento de Políticas Sociais Poderes reservados para as UCs Encoraja “construção estatal competitiva” Encoraja a preempção de políticas Representação sólida das UCs na Política Aumenta a influência das UCs sobre políticas Nacional Compromisso com a equalização fiscal Limita as possibilidades de “desregulamentação competitiva” Estimula inovações caras de políticas por parte das UCs Fonte: Pierson (1995, p. 467) Estas características não foram transformadas em hipóteses testáveis, em sintonia com as demais enumeradas anteriormente, em função do caráter “multidirecional”, e não estritamente causal ou probabilístico, que elas implicam (Pierson, 1995, p. 473). Além disto, muitas das questões levantadas pelo autor com base comparativa já faziam parte das hipóteses anteriores. De qualquer forma, as relações aqui colocadas merecem certa reflexão. Pierson (1995) argumenta 26 que um aspecto crucial da engenharia institucional federativa é o grau com que certas áreas de políticas são reservadas para as unidades constituintes, e identifica duas possibilidades, relacionadas, respectivamente, com a experiência canadense e norte-americana: a reserva de policy areas acarretaria, ou ao menos estimularia, a preempção de políticas, e lutas que marcariam o processo de construção estatal competitiva. Por outro lado, sistemas em que a responsabilidade por políticas é compartilhada, como nos EUA, tendem a gerar efeitos diferenciados, como políticas de menor denominador comum ou rotas de escape (pp. 464-465). No caso do Brasil, onde há responsabilidades compartilhadas em grande parte das policy areas, o resultado mais visível talvez seja, por um lado, a dinâmica da barganha política (Arretche, 2000) e, por outro, a tensão entre impulsos descentralizantes e centralizadores, que “é constitutiva e sempre presente nas relações intergovernamentais na federação brasileira e produz diferentes resultados de acordo com a questão de política pública em pauta” (Almeida, 2005, p. 39). Uma segunda característica diz respeito à natureza da representação dos membros constituintes no centro político. Nesse caso, os matizes e as conseqüências são mais diversas que no caso anterior. A tendência geral apontada por Pierson (1995) é a de que a natureza da representação territorial faz diferença em lugares onde há disputas de interesse entre as UCs e a autoridade central, especialmente em sistemas onde os estados representam veto players. No Brasil, identificaram-se interesses conflitantes entre níveis de governo e o poder dos estados – em particular dos pequenos – é particularmente grande no Congresso. A tônica dessa disputa tem informado diversos trabalhos sobre federalismo no país (Souza, 1998; Arretche, 2002a; Arretche & Rodden, 2004). A conclusão geral, contudo, distancia-se da previsão de Pierson (1995) a respeito das dificuldades de implementação de políticas descentralizadas caso o interesse das UCs fosse solidamente representado no centro: Arretche (2002a) analisa que a implementação das políticas sociais no Brasil “revela que a capacidade de veto dos governos locais é bem mais reduzida do que supõe a teoria política sobre o federalismo” (p. 46). No que concerne à equalização fiscal, Pierson (1995) alega que as regras que governam a distribuição de recursos fiscais é crucial para as estratégias dos atores econômicos e, por conseguinte, dos próprios membros constituintes. Estados ou municípios com baixa capacidade fiscal relutam em se valer de políticas redistributivas ou inovações significativas, e 27 freqüentemente vão ao governo federal em busca de recursos e de renacionalização do controle de políticas (p. 466). A experiência brasileira, entretanto, mostrou resultado diverso. As UCs brasileiras possuem grande autonomia fiscal, ainda que essa relação seja menos independente em termos de arrecadação. Ainda assim, a busca por recursos federais é uma constante nas relações federativas no Brasil. Por outro lado, em consonância com a relação estabelecida pelo autor, a razoável capacidade fiscal dos estados e municípios transforma-os em loci de políticas redistributivas e, em alguns casos, de inovação política. Sem dúvida alguma, o federalismo é fator crucial para o desenvolvimento de políticas sociais no Brasil e em outros países. Instituições federativas, vinculadas a um processo de descentralização induzido pelo Estado, são responsáveis pelo formato e pelo conteúdo das políticas de proteção social adotadas em âmbito nacional. As formas como o federalismo se coloca como variável interveniente, contudo, “são sensivelmente mediadas por outras características de um contexto político particular. Assim, os impactos do federalismo podem ser melhor compreendidos ao se colocar as experiências nacionais num contexto comparado” (Pierson, 1995, p. 472). O trabalho foi curto e adotou um procedimento pouco sistemático frente a tantas hipóteses a serem submetidas a teste. Não obstante, acredita-se que esse esforço de se mapear as formas como o federalismo implica o desenvolvimento de políticas sociais, e sistematizá-las mediante teste de hipóteses, é de interesse para o avanço do estudo do sistema brasileiro de provisão social, especialmente à luz de uma literatura neo-institucionalista. Mais do que representar qualquer conclusão a respeito do tema, esperamos que este texto tenha aberto janelas e suscitado questões a partir do diálogo com percepções cruciais sobre a forma como instituições importam na vida política. 28 Referências bibliográficas12: AFFONSO, Rui de Brito Álvares. “Descentralização e Reforma do Estado: a federação brasileira na encruzilhada”. In: Economia e Sociedade, Vol. 14, junho de 2000. ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. “Federalismo e Políticas Sociais”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 10, No. 28, 1995. _____________. “Recentralizando a Federação?”. In: Revista de Sociologia e Política, Vol. 24, junho de 2005. ARRETCHE, Marta.. “Políticas Sociais no Brasil: descentralização em um Estado federativo”. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 14, No. 40, junho de 1999. _____________. Estado Federativo e Políticas Sociais: determinantes da descentralização. 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