Profª Doutora Louise Lage A comunidade é o espaço natural em que o homem concreto vive e respira. Qualquer que seja a organização política, econômica e social das áreas nacionais, terá que acomodar-se à dimensão cotidiana da vida. E, ainda que hoje se tenham dilatado os horizontes da convivência e, portanto, as possibilidades de expansão e contato dos grupos humanos através de novos meios de comunicação, há sempre um mínimo irredutível de atividades básicas, condicionadas ao espaço e limitadas à distância que um homem pode percorrer de casa para o trabalho, do lar à escola, ao centro de diversões, à igreja ou à fábrica. (FERREIRA: 1968) FERREIRA, Francisco de Paula. Teoria Social da Comunidade. São Paulo. Harder. 1968 O conceito de comunidade sempre foi alvo de diversos estudos, como objeto de análise para a compreensão das estruturas organizativas da sociedade civil. Alguns destes conceitos partem da limitação geográfica outros se situam a partir de um objetivo comum relevante, e outros, ainda, a partir da definição de um território. Numa visão estruturalista, compartilhada por alguns sociólogos, a comunidade seria um agregado consistentemente organizado de indivíduos que residem numa área ou localidade específica, dotada de autonomia política, mantendo instituições primárias (escolas, igrejas, família, etc), entre as quais se reconhecem certos graus de interdependência, incluindo aí os povoados, vilas e cidades. Já a partir de um ponto de vista funcionalista, a comunidade seria um processo de interação social que dá lugar a uma atitude e a uma prática de independência, cooperação, colaboração e unificação – isto é, socialização. O processo de interação social pode ser entendido como um conjunto de processos estabelecidos através de relações mútuas entre os indivíduos e os grupos, onde prevalecem a competição, o conflito além da cooperação. Ferdinand Tönnies identifica uma certa uniformidade de padrões em diversos fatos e acaba chegando à teoria de que o desenvolvimento social se explica por um movimento obtido através de uma organização, em que o controle é exercido por associações originadas em laços sentimentais, consangüíneos ou de interesses. Por isso, Tönnies acreditava que o nível de organização de uma comunidade está diretamente ligado ao desenvolvimento sócioeconômico de uma sociedade. Assim, para Tönnies, a associação pode ser compreendida como uma vida real e orgânica, ou seja, a essência da comunidade, e se refere a um agregado de pessoas cujas relações são íntimas e primárias, e entre as quais o controle social se baseia no que chama de folkways – costumes populares mais elementares - que definem como o indivíduo se comportará em relação ao outro na vida cotidiana. São as ações que tomam forma nas intercomunicações, e que também são estipuladas pelo que o autor chama de mores – ou costumes sociais que, por consenso geral consideram-se favoráveis à boa ordem social. Lembrando Weber, Tönnies afirma que, se há oposição entre comunidade e sociedade, também há confronto entre as relações societárias e as relações comunitárias. Tönnies conceitua relações societárias como aquelas próprias da comunidade urbana e metropolitana, onde os contratos sociais se baseiam, nos aspectos de uma sociedade impessoal. Para Tönnies, no meio urbano também existem relações de caráter comunitário entre as classes obreiras, onde os contatos secundários são limitados. Já as relações comunitárias são, para o autor, características da comunidade rural e têm sua ênfase no parentesco, na amizade e na familiaridade prolongada (hereditariedade). Portanto, para Tönnies a comunidade se origina na mais completa unidade de vontades humanas, de um estado primitivo e natural, institutivo que, apesar de sua separação empírica, se caracteriza conforme a natureza das relações necessárias. A origem destas relações seria de natureza biológica. Desta forma, Tönnies faz a seguinte analogia: liga as relações de sangue à comunidade de lugar; por sua vez, a comunidade de sangue estabelece relações de participação comum a este lugar. Esta seria, pois, a comunidade de espírito, uma vez que estes lugares comuns seriam lugares sagrados ou divindades adoradas. E, por último, a comunidade de lugar também estaria ligada à relação de pertencimento através da posse do solo e da terra. Estes três níveis organizativos, para o autor, ligam-se estreitamente no tempo e no espaço. Já a sociedade, para este autor, é pública e passageira. Ele acredita que sociedade é apenas um grupo de homens que, vivendo e permanecendo uns ao lado de outros, não são ligados organicamente, mas organicamente separados. Tönnies define como sociedade um agregado que é compreendido como a soma de indivíduos cujas vontades e domínios residem em associações numerosas, permanecendo entretanto, independentes uns dos outros, e sem ação interior recíproca, fruto da vontade arbitrária, que considera uma unidade artificial, isto é, um produto próprio do pensamento, da razão. Onde quer que existam homens que dependam uns dos outros por suas vontades e se aprovem reciprocamente, haverá comunidade. Esta comunidade poderá, então, ser 1. de parentesco tem a residência como lugar e corpo; 2. de vizinhança é o caráter geral da vida comum da aldeia, onde a proximidade das casas ou o limite das terras determinam numerosos contatos entre os homens; 2. a amizade se distingue das duas formas anteriores, pela identidade das condições de trabalho e das maneiras de pensar que delas se originam. Portanto, para Tönnies, a base da comunidade é a família, isto é, a comunidade surge da vontade orgânica, que é o princípio da unidade da vida. E é do compartilhamento de sentimentos comuns e associados, enquanto vontade própria da comunidade, da compreensão do viver em comum é que surge o consenso (ou consensus), que depende de uma estrutura e uma dinâmica. A teoria de Tönnies, desenvolvida em meados do século XIX, coincide exatamente com o período descrito por Paul Singer como o de transição entre o capitalismo industrial e o neoliberalismo. Os Estados - Nação passam, nesta fase, por uma reestruturação econômica e a livre concorrência é o motor da nova sociedade. As comunidades, nesta época, ainda se caracterizam pelo local que ocupam. Ou são rurais, ou são urbanas. O êxodo rural começa a se tornar uma constante, mas ainda não estabelece a configuração atual de metrópole. Em fins do século XIX, a economia rural sofre um duro golpe com a baixa dos preços, chegando a influenciar as instituições rurais, que entram em decadência, principalmente nos Estados Unidos. O geógrafo Milton Santos explica que a urbanização moderna nos países subdesenvolvidos, como é o caso do Brasil, foi concomitante à sua modernização atual, isto é, foi paralela ao processos de substituição das importações. Para o autor, as cidades latino-americanas, que nascem a serviço das relações de dependência internacionais com os países mais evoluídos e fundavam-se na expansão agrícola e na exploração mineira, eram responsáveis pelo comércio que alimentava a vida urbana daquela época. SANTOS, Milton. A Urbanização Desigual: especificidades do fenômeno urbano em países subdesenvolvidos. Petrópolis. Vozes. 1982. Conforme vimos anteriormente, duas características parecem marcar este período, do ponto de vista da organização social: as comunidades que se formatam em torno das indústrias ( e o surgimento da organização sindical) e as comunidades de economia familiar (meio rural). Este fenômeno é comum em todo o mundo, neste período. No Brasil, apesar do estabelecimento tardio do processo de industrialização, acelerado durante a ditadura militar, também acontece o mesmo. No Brasil, em 1968, a população rural representava 63% da população. Se retomarmos a análise de Tönnies, que baseia-se na diferença entre comunidade rural e urbana, poderemos dizer que a comunidade rural é um agrupamento humano, localizado em área determinada, vinculado pelos mesmos interesses, problemas, costumes, etc., cuja vida está condicionada pelas atividades rurais, cujos elementos constitutivos essenciais são a sua localização em zona rural e as atividades ligadas à agricultura e à pecuária. Assim como o conceito de comunidade e sociedade evoluíram com o processo histórico, assumindo diversas classificações, também o conceito de rural passa por este mesmo processo, por estar intrinsecamente ligado às outras duas definições. Dois fatores, no entanto, contribuíram ainda mais para a confusão no estabelecimento do conceito de rural e urbano: o primeiro fator, econômico, foi o êxodo rural, que aumentou consideravelmente no período de implantação das indústrias brasileiras, nas grandes cidades; o outro, foi o avanço tecnológico das comunicações, que veio a facilitar a interrelação e aumentar a proximidade entre estes dois mundos. Apesar de ainda permanecer a idéia de todo grupo de localidade representar uma comunidade, cuja essência está na participação, na tomada de consciência e na ação comum, as distinções entre cidade, bairro, vila, balneário e periferia estão ligadas às classes sociais das pessoas que habitam estes lugares. Aqui são levadas em conta as categorias adotadas por Tönnies – família ou laços consangüíneos, vizinhança e amizade - para o estabelecimento de suas definições. Para o homem do campo, por exemplo, bairro é todo e qualquer conjunto de casas suficientemente próximos para que se estabeleçam contatos entre seus moradores. É uma parte da comunidade onde existem certos tipos de parentesco ou vizinhança. Já a vila é o local onde se concentra a atividade comercial. Outra característica importante: também no Brasil, a vizinhança é constituída por um pequeno número de famílias que vivem em propriedades rurais das redondezas, cujos integrantes mantém contato direto uns com os outros e que estabelecem um sistema de auxílio mútuo entre si. No sul do país, principalmente, formam-se as colônias – áreas ocupadas pelo conjunto das propriedades rurais pertencentes aos filhos de imigrantes de uma origem comum. Assim, a comunidade rural , no Brasil, apresenta-se de duas formas: a vila, onde ficam as moradias dos agricultores e serve de centro de negócios, serviços, etc; e a vizinhança, formada por famílias rurais que vivem próximas. Francisco de Paula Ferreira afirma ainda que, do ponto de vista da realidade sócio-histórica brasileira, o conceito de comunidade rural tem as seguintes características (p.92): .área geográfica consistindo num centro comercial e nas propriedades rurais e vizinhanças cujas instituições convergem para este centro; .área na qual existe uma consciência geral por parte desta população de pertencer ao mesmo grupo ou, pelo menos, identificar-se com a vizinhança em que vive, ou com a comunidade maior onde estão localizadas suas propriedades e/ou trabalho; .consenso de opinião entre o grupo de pessoas que vive nessa área contígua que forma o local da comunidade ao qual as posses de cada indivíduo da localidade se acham intimamente ligadas e afetas ao bem estar de toda a comunidade. Já a comunidade urbana brasileira tem outras características. Conforme Milton Santos o desenvolvimento urbano no Brasil foi uma conseqüência imediata da combinação entre a localização do poder político- administrativo e a centralização correspondente dos agentes e das atividades econômicas. Entre 1945 e 1950 a indústria brasileira ganha um novo ímpeto e a modernização do país, iniciada por Getúlio Vargas vai facilitar a concentração econômica e espacial do país. O golpe de 1964 vai ser um marco na internacionalização da economia brasileira e inicia um processo de aprofundamento da concentração do poder econômico nas regiões sul e sudeste do Brasil. Entre os anos de 1950 e 1980, resumindo, conforme Milton Santos, o Brasil conhece altas taxas de emigração líquida. Como, ainda segundo o autor, apesar da industrialização, o Brasil conservou uma série de condições de subdesenvolvimento como, por exemplo, disparidades regionais profundas, enormes desigualdades de renda e uma tendência ao empobrecimento crescente das classes subprivilegiadas, pode-se dizer que o capital comanda o território, tornando o trabalho algo abstrato que representa um papel indireto,. Por isso, as diferenças regionais tornam-se diferenças sociais. SANTOS, Milton. O Brasil território e a sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record. 2001. Ao mesmo tempo em que iam se formando no meio rural no meio urbano estas comunidades, inicia-se também uma organização sindical no entorno das fábricas e indústrias. Também neste período há uma expansão da informação e das finanças, que passam a ser dados importantes na arquitetura social.