Claudio Eugenio Marco Waks TOXICOMANIA E PSICANÁLISE O fim da picada. A clínica psicanalítica da toxicomania. Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Psicologia Clínica, sob a orientação do Professor Doutor Manoel Tosta Berlinck. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 1998 BANCA EXAMINADORA _____________________ _____________________ _____________________ 2 AGRADECIMENTOS Ao CNPq que, através de uma bolsa de estudos, possibilitou a realização deste trabalho. Ao meu amigo e orientador Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck, que considero como um pai que apostou no filho. Ao meu pai José Waks, que legou-me o senso de responsabilidade e perseverança. À minha mãe Sara Silberleib, que transmitiu-me a alegria de viver. Ao meu irmão Mário Daniel Waks, que considero meu primeiro mentor intelectual. À minha irmã Viviana Patrícia Waks, cujo amor incondicional sempre foi uma fonte essencial de apoio. A todos meus colegas do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP, e particularmente a Ana Cecília Magtaz Scafuzca, Ana Cleide Guedes Moreira, Maurício Garrote, Marta Conte, Rubens Marcelo Volich e Antônio Ricardo Rodrigues da Silva. Aos meus filhos Daniel e Jonas com quem aprendi muito sobre mim mesmo. Aos meus sogros Sulamita e Boris que me acolheram generosamente. À minha ex-mulher Heidi Tabacof, que me proporcionou a estrutura afetiva necessária para meu desenvolvimento. À minha companheira atual, Angela Rangel cuja companhia me é essencial. Ao Dr. Luiz Mário Frenkiel que, além de outorgar-me sua prezada amizade, fez também importantes contribuições para este trabalho. Ao meu eterno amigo Ernesto que magnanimamente apresentou-me a terra brasileira. À Maria Carolina de Medina que sempre se mostrou disposta a ajudar-me resolver problemas de toda ordem. A todos os meus pacientes com os quais aprendi muito e que sem os mesmos esta dissertação não teria sido possível. 3 ÍNDICE Resumo ........................................................................................................... 005 Introdução ....................................................................................................... 006 Da cocaína ao sonho ...................................................................................... 028 Às vezes um charuto não é meramente um charuto ....................................... 043 Supostos saberes nosográficos ...................................................................... 056 O lixo clínico .................................................................................................... 100 Um ponto além da favela ................................................................................ 114 Conclusão ....................................................................................................... 126 Bibliografia .................................................................................................... 128 4 RESUMO Na introdução desta dissertação faço um relato autobiográfico do meu percurso em relação a toxicomania e psicanálise. Questiono a eficácia do ponto de vista da psicopatologia psicanalítica clássica no tratamento desta manifestação psicopatológica, propondo o ponto de vista da psicopatologia fundamental como alternativa. Os dois primeiros capítulos tentam elucidar os motivos que poderiam esclarecer a enigmática ausência de um estudo dedicado especificamente à toxicomania na obra freudiana. Avento a hipótese desta ausência ser produto, por um lado, de situações traumáticas vividas por Freud durante seu envolvimento com a cocaína, e por outro, da possibilidade que ele tenha considerado a toxicomania como um fenômeno psicopatológico além da eficácia terapêutica da psicanálise. O terceiro capítulo traz uma revisão crítica da literatura psicanalítica pondo em foco questões etiológicas e nosográficas relacionadas à toxicomania, a partir de artigos de autores contemporâneos de Freud e outros mais recentes. O quarto capítulo descreve as particularidades de meu trabalho clínico com esta patologia, para logo apresentar, no capítulo seguinte, um caso clínico como ilustração. Conclui-se que o corpo teórico da clínica psicanalítica da toxicomania é ainda bastante incipiente, visto que o número de toxicômanos que procura tratamento de orientação psicanalítica é reduzido, assim como o número de psicanalistas que se dispõem a trabalhar com este tipo de patologia. 5 INTRODUÇÃO Esta dissertação resulta de um longo percurso de investigação e contato com as drogas, seus efeitos e o tratamento clínico das manifestações psicopatológicas associadas à dependência. Nesta introdução apresentamos o desenvolvimento de nossas indagações através de um relato autobiográfico dos momentos mais relevantes para, a partir destes, apresentar os temas abordados nos capítulos seguintes. Consumir drogas corresponde a uma prática humana milenar e universal. Não existe sociedade sem drogas sendo o padrão, espécie e freqüência de consumo um importante revelador da sua organização, crenças e mitos. Embora o uso de drogas seja pautado desde os primórdios da história por objetivos comunitários, há períodos onde, em conseqüência de crises sociais, grupos podem recorrer às drogas como manifestação ideológica de revolta e contestação da ordem estabelecida. No final dos anos sessenta e começo dos anos setenta tivemos a oportunidade de participar do movimento Hippie no local considerado como seu berço, a cidade de Berkeley na Califórnia, EUA, onde estudamos Psicologia. Durante aquele momento da história o consumo de drogas irrompeu como uma síndrome mundial associada a uma ideologia — a esperança de operar transformações nos valores reinantes de consumismo e individualismo representados pelo chamado american way of life. 6 A proposta era drop out and tune in, cair fora do modelo competitivo proposto pelo sistema vigente para sintonizar-se nos novos valores que surgiam da Era de Aquário: irmandade, harmonia e compreensão. Era a camiseta psicodélica contra o terno cinza. Drogar-se significava ser contra, ser anticapitalista, antiimperialista, antiautoritário, antiracista, "antitudo" que a sociedade de massa representasse. O Leitmotiv deste movimento social da contracultura era a resistência à Guerra do Vietnã, seu estandarte, a droga, e seu slogan "paz e amor". Surgiram apóstolos do psicodelismo (Timothy Leary, Abbie Hoffman, Aldous Huxley e outros) que preconizavam a desconstrução da realidade para atingir níveis mais elevados de consciência, de percepção do universo, da vida, da interioridade humana. É importante ressaltar que esta proposta de mudança não trazia em seu bojo a destruição tanática dos valores vigentes, mas sua desconstrução erótica. O consumo de drogas não era um elemento desintegrador e destrutivo, não se tratava de um consumo tanático. As drogas, especialmente a maconha e o LSD, eram o sacramento de um rito de passagem erótico para transcendência social. O fim da Guerra do Vietnã, conjuntamente com a capacidade do capitalismo neoliberal de conviver com a contracultura transformando-a num negócio lucrativo, aliadas ainda à evolução negativa da conjuntura econômica das sociedades ocidentais trouxe mudanças profundas neste quadro. 7 O consumo de drogas usado ideologicamente pelo flower power como meio de transcendência social perde sua qualidade teleológica, convertendo-se em um fim em si mesmo; uma atividade tanaticamente autoerótica. A dinâmica efervescência contestatória cede a um desencanto cada vez mais radical, chegando a suscitar, ao invés de prazer e transcendência, violência e auto-destruição. Desiludido com o retorno do modelo consumista e a falta de ideais, o movimento Hippie desarticula-se, mas seu legado de sex, drugs and rock'n' roll permanece. Como expressão da falta de ideologia, do sentimento de vazio, sofrimento e depressão surgem novos movimentos (Punks, Skin heads, dentre outros) que herdam aquele mesmo legado Hippie, mas suplantam as drogas suaves de amor e beleza pelas "drogas duras" (heroína, cocaína e mais recentemente, crack) trazendo em sua bagagem a decadência física e moral, a violência e a marginalização, a solidão e o suicídio. As "drogas ideológicas" são suplantadas pelas "drogas duras", duras como a realidade concreta que tentam evitar, e não transformar. Nossa experiência clínica tem demonstrado que após a "lua de mel" das primeiras descobertas, dependendo do contexto e da pessoa, estas drogas e este tipo de consumo aumentam o vazio e o desespero. O consumo então requer um ritmo mais acelerado entrando em múltiplas misturas com álcool, medicamentos e outras drogas podendo tornarse uma atividade praticamente exclusiva na vida do indivíduo. A tentativa de evitar a realidade e seu esquecimento acaba inexoravelmente falhando dando lugar a uma intolerável consciência de decrepitude moral e física. 8 É este o quadro clássico do toxicômano grave que constitui-se em refugo social, entulho da sociedade e "lixo clínico" para a psicanálise, como descrevemos no capítulo dedicado à clínica psicanalítica da toxicomania nesta dissertação. Continuando com o percurso de nossa pesquisa, dez anos mais tarde, tivemos o primeiro contato com o abuso de drogas no Brasil. Este deu-se através do trabalho social de cunho psicanalítico (Associação para o Desenvolvimento do Cidadão) com "meninos de rua", menores abandonados que viviam em condições infra humanas tentando sobreviver graças à mendicância, biscates ou delinqüência. Entre seus hábitos, destacava-se o de "cheirar cola de sapateiro", ato este que despertou nossa curiosidade e levou-nos a considerar a possibilidade desta prática ter alguma significação psíquica. Estes precoces usuários de drogas revelaram-nos a extrema versatilidade dos lugares que a droga pode ocupar; além de um relativo prazer naquele contexto de miséria física e psíquica, a droga cumpria a função de satisfazer, mesmo que imaginariamente, as necessidades básicas de um cidadão: casa, comida, família ... A "cola" era necessária, um meio de subsistência vital. Desta maneira, começamos a perceber que no terreno da toxicomania o elemento volitivo é secundário à peremptoriedade da necessidade. 9 Os próximos anos foram dedicados à nossa formação em psicanálise durante a qual o tema da clínica psicanalítica da toxicomania esteve sempre presente. Decidimos aprofundar a pesquisa sobre o tema e foi assim que um anúncio no jornal chamou nossa atenção para um curso breve promovido pelo IMESC (Instituto de Medicina Social e Criminologia) sob o título "Curso de capacitação para prevenção do uso indevido de drogas". Seguindo a concepção de Olievenstein (1986) - que considera três determinantes articulados no estabelecimento de toxicomania - o curso era divido em três módulos: droga, indivíduo e contexto sócio-cultural. No intuito de compreender melhor o percurso de nossa pesquisa, consideramos relevante apresentar algumas questões que surgiram naquela época. Um profissional especializado no tratamento de adolescentes toxicômanos apresentou considerações muito instigantes a respeito da sua prática clínica. Ouvi-lo declarar que fazia uso da sedução como tática terapêutica para atrair e manter seus pacientes no tratamento foi surpreendente; para nossa incipiente prática psicanalítica isto era sinônimo de heresia. Embora neste momento o tratamento clínico da toxicomania parecesse dificilmente abordável do ponto de vista psicanalítico, começamos a vislumbrar a necessidade de uma prática psicanalítica sem que a "ortodoxia fundamentalista" limitasse a versatilidade que a clínica deste fenômeno 10 psicopatológico parecia demandar. O manejo destes pacientes parecia também apontar para a necessidade de uma modificação na técnica psicanalítica que veio confirmar-se posteriormente, como é descrito no capítulo dedicado a clínica neste livro. Avançando no curso e no nosso percurso, indagações apresentadas numa palestra sobre a personalidade do toxicômano tiveram um forte impacto sobre nós, não tanto pelo seu conteúdo, mas pela atitude do apresentador. Sua postura levou-nos a considerar ser necessário assumir uma boa dose de humildade e ignorância teórica ao lidar com a toxicomania, tentando abordar a clínica de um ângulo mais fenomenológico do que pelo prisma de rígidas fórmulas pré-estabelecidas. A classificação nosográfica estrutural proposta pela psicopatologia psicanalítica clássica parecia estar aquém do fenômeno levando-nos a considerar a hipótese que a toxicomania fosse um sintoma que poderia manifestar-se nas neuroses, nas psicoses ou nas perversões. Entrar em contato com os escritos de Kalina (1985) sobre o 1 consumo de drogas na adolescência levou-nos, em contraposição a ele, a diferenciar o uso recreativo, exploratório ou abusivo de entorpecentes. Para este autor, todo e qualquer jovem usuário de drogas é um desajustado que em seu desespero apela às drogas para aliviar tensões 1Kalina D., Os jovens tomam drogas - Por que? (1985). In: Aos pais de adolescentes; São Paulo, Francisco Alves, 1985, p. 60 - 61. 11 oriundas de conflitos familiares e do processo de crescimento. A droga é uma espécie de anestésico criado pela sociedade para apaziguar aqueles que mais a contestam. Para tentar justificar sua posição, Kalina lança mão de um exemplo que consideramos infeliz: o Festival de Rock Woodstock de 1972 nos EUA. A única maneira que, segundo Kalina, milhares de jovens poderiam passar três dias juntos sem violência seria estando totalmente anestesiados pela droga. Ora, a proposta do encontro era justamente a vivência do "paz e amor"; teria sido só por causa das drogas que estes jovens teriam convivido pacificamente durante o evento ? Não estaria Kalina escamoteando a questão da diversidade de usos de droga ? Apesar de considerarmos as afirmações de Kalina bombásticas e categóricas, concordamos com ele quando no mesmo texto afirma que a "toxicomania não é uma rebeldia mas uma submissão; não é um projeto de vida mas sim de morte" . Esta declaração pode considerar-se como sendo válida para 2 o consumo abusivo de drogas, mas não necessariamente para seu uso recreativo ou exploratório. Esta distinção fez-se necessária e essencial para nosso trabalho clínico posterior quando procurado por pais de adolescentes extremamente aflitos por terem descoberto que o filho experimentara ou consumia drogas esporadicamente. Consideramos que uso de drogas não representa, necessariamente, uma manifestação psicopatológica. Este ponto é abordado em outros capítulos deste livro. 2 Idem. P. 62 12 Desta maneira, o curso do IMESC representou o começo do percurso da nossa pesquisa teórica, aumentando o interesse pela sua continuidade. Inconformados com o fim do curso e ávidos por mais conhecimento em relação à toxicomania, propusemos aos participantes continuar o estudo por nossa própria conta. Foi assim que fundamos e coordenamos o NEST (Núcleo de Estudos Sobre Toxicomania), espécie de foro onde podia-se pensar e discutir abertamente temas relacionados à toxicomania. O núcleo veio preencher uma lacuna na cidade de São Paulo como espaço de reflexão e ponto de referência para o qual convergia informação e do qual emanavam questionamentos relacionados ao tratamento, prevenção e elaboração teórico-clínica sobre o fenômeno toxicomaníaco. Foram três anos e meio durante os quais, todo segundo sábado do mês, uma população itinerante reunia-se para uma variada série de atividades. Assistimos vídeos, lemos e discutimos textos, fizemos algumas visitas técnicas a clínicas de desintoxicação e ouvimos o relato do funcionamento de outras no Brasil e no exterior, convidamos palestrantes, comentamos congressos e conferências, discutindo também casos clínicos. Se por um lado estas atividades suscitaram ainda mais indagações em relação a qual seria o papel da psicanálise na clínica da toxicomania, por 13 outro aumentaram nossa suspeita que a toxicomania não se manifesta exclusivamente em uma das estruturas psicopatológicas propostas pela psicanálise. Muito pelo contrário, a medida que nosso conhecimento ampliavase o toxicômano parecia ser, cada vez mais, um pouco de tudo: um pouco psicótico, um pouco perverso, um pouco neurótico, um pouco maníacodepressivo, um pouco homossexual... O perigo, segundo Olievenstein (1985), reside justamente em tratarmos somente daquele "pouco" que nos é familiar, o pouco que se enquadra em alguma das três grandes estruturas de base negligenciando o singular enigmático. Isto implicava numa revisão da nosografia psicanalítica clássica. Considerando que o percurso da nossa pesquisa não tinha nos propiciado, até esse momento, a possibilidade da escuta clínica deste fenômeno psicopatológico, decidimos treiná-la em espaços onde pudéssemos entrar em contato com o discurso da toxicomania. Com este propósito, passemos a freqüentar um grupo de Toxicômanos Anônimos e oferecemos nossos serviços como voluntários em um ambulatório público especializado no tratamento de farmacodependências, ambos na cidade de São Paulo. A experiência no grupo de Toxicômanos Anônimos estendeu-se por oito meses, sendo extremamente profícua e reveladora. Apesar de não ser 14 em um setting clínico, estávamos, finalmente, em contato com o discurso toxicomaníaco. Os depoimentos apresentavam uma certa uniformidade, mas dentre todos, um chamou nossa atenção marcando-nos profundamente e sendo inclusive, a fonte de inspiração para o subtítulo deste livro: "O fim da picada". Após apresentar-se como é de praxe, como "um toxicômano em vias de recuperação que reconhece sua impotência perante as drogas", o depoente anônimo passou a relatar o horror em que sua vida tinha se transformado enquanto fazia uso endovenoso de cocaína. Concluiu seu escatológico depoimento comentando que só agora percebia que o abuso de drogas não era seu problema, era a "solução" que tinha achado para não entrar em contato com a "enfermidade que sou eu mesmo." Picar-se — injetar cocaína na veia — não era o problema, era a solução! Parar de picar-se, o fim da picada, era o território do desconhecido e assustador; quem sabe até pior! O relato da fragilidade e extremo desamparo vividos no processo de interrupção do uso endovenoso de cocaína levou-nos a tentar compreender este fenômeno. Recorremos ao dicionário em busca da definição da palavra picada achando as seguintes definições: 1. ato ou efeito de picar(se). 2. Trilha ou atalho estreito, aberto no mato a golpes de facão . Associei com pica-pau e imaginei a 3 3 Buarque de Holanda, A., Novo Dicionário da Língua Portuguesa Aurélio, 2º Edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1324. 15 seringa/agulha-penis irrompendo inefavelmente, gozo um no orgástico eu-pele para incomparável; propiciar, a infalível concretização e da humanamente impossível cópula hermafrodítica. Se nada podia ser tão avassalador, intenso e genuinamente indubitável, porque desejar o fim desta picada? Para desviar-se rumo a trilhas mais incertas? Entendemos que embora estreita, a picada é uma trilha clara, certa, evidente... No emaranhado mato psíquico a picada serve como eficaz atalho para o retorno ao gratificante auto-erotismo. O paraíso perdido é recuperado, só que neste retorno o tabu do fruto proibido é negado. Vive-se trepado na macieira saboreando gulosamente aquilo que elimina a diferença entre desejo e gozo. Sem limites nem interditos, o gozo reina despoticamente. Desejar é sinônimo de gozar. Constatamos mais tarde, que seres que trilham esta picada portam marcas indeléveis que não se limitam aos traços deixados nos seus sulcos sangüíneos, carregam também marcas mnêmicas de onipotência e gozo pleno que norteiam seus percursos. O fim da picada representa uma impotente desorientação em um mato fechado, sem facão nem bússola e sem diploma de sobrevivência na selva. Um verdadeiro estado de choque. Nossa experiência posterior demostrou-me que o tratamento de seres em condições de subsistência tão precárias requer um savoir-faire muito 16 particular. Primeiramente, deve-se entender que indivíduos em estado de choque precisam de pronto socorro. Isto implica que para estes indivíduos — que se encontram "em um mato sem cachorro" — um dos papéis que cabe ao psicanalista é o do "mais fiel amigo" do frágil desorientado. Existe um investimento e apoio incondicional, mesmo quando este "fiel amigo" é sadicamente atacado pelo seu "amo". As freqüentes recaídas, actings-out e faltas devem ser compreendidas como tentativas de defender-se do vínculo transferencial. O lugar que consideramos necessário que o analista ocupe no tratamento psicanalítico da toxicomania é abordado no capítulo dedicado à clínica nesta dissertação.. Voltemos aos depoimentos nas reuniões dos Toxicômanos Anônimos. Seus discursos pareciam convergir para um consenso geral no qual drogar-se seria um mecanismo de autodefesa contra a angústia criada pelo amplo hiato entre aquilo que se é e aquilo que se gostaria ou deveria ser. O caminho da recuperação dependia, segundo eles, de poder verse mais humildemente, de ter a coragem de enfrentar-se sem pretensões mirabolantes; poder enfrentar a voz crítica de um superego sádico e persecutório. A importância de abordar a problemática da toxicomania do ponto de vista dos conflitos superegóicos ficou desta maneira, evidente e levou-nos a considerar transformar as sessões de análise em palco de uma ruidosa confrontação verbal entre as instâncias psíquicas. Para poder lidar com o inimigo nada melhor do que conhecê-lo, dando-lhe voz ! 17 O trabalho voluntário no ambulatório público do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo teve grande relevância no percurso da nossa pesquisa sobre a toxicomania. Nos dois anos que fizemos parte do GREA (Grupo Interdisciplinar de Estudos do Alcoolismo e Farmacodependências) cumprimos várias funções no setor de Psicodinâmica cujo referencial teórico era a psicanálise e tinha objetivos de pesquisa, ensino e tratamento. Como responsáveis pela área de ensino organizamos um grupo de estudos sobre psicanálise e toxicomania tendo assim a oportunidade de investigar a literatura existente relacionada ao tema e de comprovar sua escassez. Ao mesmo tempo esta pesquisa revelou-nos que não existe nos escritos freudianos um trabalho dedicado especificamente à toxicomania. Consideramos enigmático o fato de Freud não ter refletido psicanaliticamente sobre o tema - pelo menos nas obras publicadas - uma vez que ele teve experiências com o uso de drogas. Tento decifrar este enigma em dois capítulos desta dissertação em que avento a hipótese desta ausência ser produto, por um lado, de situações traumáticas vividas por Freud em relação à cocaína e por outro, a possibilidade dele considerar o fenômeno da toxicomania como sendo inanalisável. Dedicamos outro capítulo aos escritos teóricos de diversos autores contemporâneos e posteriores a Freud, onde discutimos questões etiológicas e 18 nosográficas que surgem da tentativa de enquadrar a toxicomania como fenômeno psicopatológico característico de uma estrutura psíquica em particular. Através da experiência na função de supervisor médico-paciente, tornou-se cada vez mais evidente a importância do vínculo transferencial no tratamento da toxicomania. O material clínico era apresentado por estudantes de medicina que se associavam voluntariamente ao GREA para um estágio extracurricular no tratamento desta manifestação psicopatológica. A ênfase do nosso trabalho recaía na tentativa evitar a assepsia médica que ignora os mecanismos psíquicos no surgimento das patologias, acentuando a dimensão subjetiva implicada no adoecer e no tratamento. Tentamos também transmitir a noção do relacional no processo terapêutico, a idéia que a doença circula na relação terapêutica e não se reduz às manifestações sintomatológicas. Procuramos ressaltar a necessidade de uma postura clínica mais aberta, um deixar-se afetar pelo fenômeno psicopatológico ao invés de defensivamente enclausura-lo nosograficamente. No setor de tratamento, o "Projeto Enfermaria" possibilitou-nos acompanhar, como parte de uma equipe interdisciplinar, vários pacientes internados na instituição. Esta oportunidade revelou que certos casos manifestam necessidades terapêuticas que o tratamento psicanalítico em consultório não pode conter, sendo imprescindível trabalhar sinergicamente com outros profissionais. 19 Esta experiência ajudou-nos posteriormente a conduzir casos desta índole na minha clínica particular. O caso clínico que apresentamos neste livro levanta, entre outras, questões relacionadas ao trabalho multidisciplinar com um paciente toxicômano internado numa clínica de desintoxicação. As indagações que surgiram do percurso de todas estas atividades conjuntamente com aquelas oriundas da nossa experiência clínica, aumentaram, consideravelmente nossos questionamentos em relação à clínica psicanalítica da toxicomania. Considerações de ordem etiológica, nosográfica e metodológica. Afinal, a toxicomania seria característica da estrutura inerente às neuroses de transferência, neuroses atuais ou neuroses narcísicas, psicoses ou perversões, psicopatias ou ainda, às estruturas border-line ? Constituiria a toxicomania uma entidade nosográfica autônoma ? Poderia se falar de um caráter toxicomaníaco ou de um modo específico de funcionamento mental ? Haveria então necessidade de cunhar uma nova nosografia ? A possibilidade da toxicomania ser um fenômeno psicopatológico autônomo, ou seja, que não se enquadra nos quadros clínicos clássicos da psicanálise, impediria que fosse abordada do ponto de vista da teoria psicanalítica ? 20 Tratar-se-ia de um sintoma que poderia manifestar-se em qualquer estrutura psíquica, ou seria um problema econômico, um problema de intensidades, que perpassaria a noção de estrutura ? O mero uso de certos produtos de forma sintomática seria suficiente para constituir uma organização psicopatológica específica ? Haveria necessidade de modificar a técnica psicanalítica no manejo destes pacientes ? Quais seriam as considerações metapsicológicas necessárias para fundar um discurso psicanalítico a respeito da toxicomania ? Seria necessário rever o próprio ponto de vista da psicopatologia psicanalítica ? Na tentativa de abordar clinicamente este fenômeno do ponto de vista da psicanálise, observamos que a toxicomania não se reduz a uma classificação ou estrutura psicopatológica unívoca. As categorias nosográficas e estruturas psíquicas propostas pela psicanálise me parecem reducionistas e insuficientes perante o polimorfismo inerente ao fenômeno. Notei que enquanto problemática clínica, a toxicomania remete a psicanálise à questão de seus limites, pondo em xeque tanto a teoria como a técnica analítica. Por outro lado, esta manifestação psicopatológica leva a pensar no possível desenvolvimento da psicanálise, uma vez que a atividade de teorização só tem sentido enquanto acompanha os movimentos que a clínica lhe impõe. 21 Com o propósito de acompanhar os desafios apresentados pela prática clínica no tratamento da toxicomania, ingressamos no Programa de Mestrado da PUC e passamos a fazer parte do Laboratório de Psicopatologia Fundamental, coordenado pelo Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck. A partir dos estudos lá realizados compreendemos que as considerações acima colocadas surgem como conseqüência do ponto de vista ou posição da psicopatologia psicanalítica clássica. Segundo esta, toda manifestação psicopatológica do psiquismo deve, necessariamente, encaixar-se em uma das estruturas nosográficas específicas por ela proposta e abordadas conforme técnicas e regras fundamentais. A psicopatologia da clínica cotidiana, não obstante, demonstra que a concepção estrutural da psicopatologia psicanalítica é uma classificação psicopatologicamente perversa, visto que limita a multiplicidade da riqueza psicopatológica subjetiva à uma interpretação unívoca deixando de fora o inédito e singular. Abordar clinicamente o fenômeno psicopatológico da toxicomania do ponto de vista da psicopatologia psicanalítica clássica promove no analista sensações de fracasso, marginalidade e perplexidade. A primeira deve-se as dificuldades intransponíveis na tentativa de reduzir e classificar o fenômeno dentro dos quadros clínicos clássicos; a sensação de marginalidade surge da prática clínica onde as regras técnicas tradicionais precisam ser freqüentemente transgredidas e a terceira sensação, 22 resulta das outras duas, pois sem estruturas ou leis rígidas surge o enigmático singular que produz perplexidade. Um ponto de vista diferente da psicopatologia psicanalítica clássica que inclua este enigmático singular inerente a todo caso clínico e que, possivelmente, permita uma prática clínica menos persecutória para o analista, requer um posicionamento mais flexível com relação ao método ortodoxo da psicanálise; um compromisso essencial com a prática clínica. A respeito, diz Olievenstein (1989): "Não existe legitimidade senão na referência clínica, não há referência clínica senão a constatada na prática e constantemente corrigida pela experiência." 4 Trata-se de considerar uma posição mais flexível cujo objetivo não é aprender psicopatologia, mas "observar, questionar, analisar e pensar psicopatologicamente." 5 Para compreender melhor a diferença implicada nestas duas posições é importante que abramos um parêntese explicativo, que rompe um pouco com o curso desta introdução. Detenhamo-nos, brevemente no conceito de posição e seu desenvolvimento através da história. Na civilização grega, especialmente na Atenas de Péricles, existiam várias posições que implicavam modos diferentes de relação com a polis. 4Olievenstein C., A clínica do toxicômano, Porto Alegre, Artes Médicas, 1989, p. 116. K., Psicopatologia Geral (1913) In: Drogas e drogadição no Brasil. Bucher R., Porto Alegre, Artes Médicas, 1992, p. 207. 5Jaspers 23 A primeira posição, orthos, — em grego, "irrepreensível", e fonte etimológica da palavra "ortodoxo" — implicava uma forma de fidelidade total no cumprimento de uma doutrina, na intransigência em relação ao inédito e na rejeição de novas idéias ou princípios. Esta posição era transmitida nos meios acadêmicos atenienses como meta a ser atingida pelos cidadãos na busca da retidão, da postura impecável perante toda e qualquer circunstância. Além desta posição, existiam pelo menos duas outras manifestas na polis: a do historiador e a do teatro-medicina. A posição do historiador não era "irrepreensível"; era a posição da testemunha que olha, escuta, anota e relata o ocorrido para estabelecer, principalmente, a memória e as diferenças entre os gregos e os estrangeiros. A terceira posição, encontra suas origens no teatro e na medicina durante o chamado "século de Péricles". Esta posição se opõe à orthos pois não pretende convencer o interlocutor da "irrepreensibilidade" da sua posição e sim apresentar um discurso mito-poiético-epopéico que produza experiência mental. O teólogo Burkett (1997) resume o contraste entre estas duas posições da seguinte maneira: "Mythos, como oposto de logos, que deriva de leigen, quer dizer "reunir", ou associar fragmentos de indícios, de fatos verificáveis; logon didonai, significa prestar contas diante de uma audiência crítica e desconfiada; mythos é contar uma história sobre a qual 24 não se tem responsabilidade: ouk emos ho mythos, não inventei isso, apenas ouvi falar por aí." 6 A medicina no século de Péricles — segundo Platão no diálogo sobre As leis — era praticada por dois tipos diferentes de médicos, dependendo de quem fosse o paciente. Por não saberem falar, os escravos e estrangeiros eram medicados em silêncio após minuciosa observação; os cidadãos, sabendo falar, eram medicados após narrarem numa linguagem mito-poiética-epopéica os percursos daquilo que os fazia sofrer no corpo, seu pathos. Como relato subjetivo sem responsabilidade de acurado, pathos opõe-se a orthos. Assim, deste ponto de vista, da posição do teatro e da medicina na época de Péricles, o conceito "psicopatologia" — psyché, pathos, logos (discurso associativo relacionado ao sofrimento da alma) — não faz parte do logon didonai baseado no discurso racional ortodoxo e irrepreensível, mas do pathos na sua dupla dimensão de paixão e sofrimento passivamente experimentado que pode levar ao conhecimento. Esta formulação é claramente proposta por Fédida (1988) referindo-se a um dos grandes poetas e tragediógrafos do século de Péricles: "Na tradição do poeta Ésquilo emprega-se a expressão pathei matos para designar o que é pático, o que é paixão, o que é vivido. Aquilo que pode se tornar experiência ... 'Psicopatologia' 6Berlinck M. T. O que é psicopatologia fundamental ? In: Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. 1, n° 1, março de 1998, São Paulo: Escuta, pg. 52 25 literalmente quer dizer: um sofrimento que porta em si mesmo a possibilidade de um ensinamento interno. Como paixão, torna-se uma prova, e como tal, sob a condição que seja ouvida por alguém, traz em si mesma o poder de cura. Isso coloca imediatamente a posição do terapeuta. Uma paixão não pode ensinar nada, pelo contrário, conduz à morte se não for ouvida por aquele que está fora, por aquele que é estrangeiro, por aquele que pode cuidar dela." 7 A leitura esquiliana da psicopatologia inaugura a concepção de uma Psicopatologia Fundamental que se constitui como uma posição clínica específica interessada em suscitar uma experiência que seja compartilhada pelo sujeito. A posição clínica da Psicopatologia Fundamental é o cuidado das paixões, do pathos, colocando ênfase na relação transferencial. Berlinck (1998) define esta posição com as seguintes palavras: "Desde que a posição da Psicopatologia Fundamental é tal que se dispõe sempre a escutar um sujeito que porta uma única voz que fale do pathos que é somático e que vem de longe e de fora, ela é sempre objeto da transferência, ou seja, de um discurso que narra o sofrimento, as paixões, a passividade que vem de longe e de fora e que possui um corpo onde brota, para um interlocutor que, por suposição, seja capaz de transformar com o sujeito, essa narrativa numa experiência. Esta palavra, aqui, adquire o sentido preciso de enriquecimento, ou seja, a experiência é a possibilidade de se pensar aquilo que ainda não foi pensado." 8 7Fédida P., Amor e morte na transferência. In: Clínica psicanalítica: estudos. São Paulo, Escuta, 1988), p. 38 8Berlinck M. T., op. cit. p. 57. 26 ` A compreensão ortodoxamente rígida das estruturas clínicas propostas pela psicopatologia psicanalítica clássica torna-se um empecilho na escuta do discurso mito-poiético-epopéico que narra o sofrimento. Com isto, não estamos querendo sugerir que as entidades clínicas típicas devam ser postas de lado; não se trata de abandonar ou ignorar a tradição mas de enriquecê-la pela pluralidade de pontos de vista. A partir da posição da Psicopatologia Fundamental a classificação nosográfica e o diagnóstico são indeterminados, abertos a mudanças. A nosografia trabalha a favor do tratamento do singular em vez de aprisioná-lo e domesticá-lo. O fiel da balança nesta posição não é um diagnóstico estrutural, mas a escuta da fala do sujeito na relação transferencial. A Psicopatologia Fundamental propõe um retorno às origens da investigação psicanalítica tal como foi conduzida por Freud nos seu primórdios: o teórico-genérico é secundário ao prático-singular. Assim, embora a teoria freudiana aponte para a natureza estrutural dos fenômenos psicopatológicos — neuroses, perversões e psicoses — aponta também para uma abertura na compreensão diagnóstica fundamentada num ponto de vista estritamente clínico. Esta abertura é manifesta na análise do "Caso Dora" e em "Dostoievsky e o parricídio" onde existe uma simultaneidade de diagnósticos de neurose e perversão. 27 A posição proposta pela Psicopatologia Fundamental implica, como qualquer outra posição, uma dis-posição — um prévio estar implicado com algo, e consigo mesmo. A disposição qualifica a posição abrindo a possibilidade de que, através da disposição de escutar a voz que fala do seu pathos, se dê experiência. A esta qualificação da posição Freud deu o nome de Übertragung, e nós de transferência. É esta a posição a partir da qual consideramos que toda e qualquer manifestação psicopatológica deveria ser abordada, inclusive a toxicomania. Fechando esta digressão, concluímos a introdução para passar para uma breve pesquisa na obra freudiana a respeito da toxicomania. Da cocaína ao sonho Quando começamos a interessar-nos pelo tema da toxicomania volteimo-nos novamente para a obra freudiana na esperança de achar respostas 28 às nossas indagações. Achavamos que o aforismo lúdico "Freud explica" se aplicaria também a esta questão. Ficamos muito surpresos ao ver frustrado nosso desejo de achar na sua obra um estudo dedicado especificamente à toxicomania. A surpresa gerou uma pergunta: por que Freud teria se abstido de desenvolver um corpo teórico sobre este tema, assim como o fez sobre tantos outros fenômenos psicopatológicos na clínica e na vida cotidiana ? Aventas a hipótese que a problemática da toxicomania seria quase inexistente na sua época ou, possivelmente, que o fenômeno não o interessaria. Pesquisamos diferentes biografias de Freud e constatamos que esta ausência não é mera coincidência, mas um fato verdadeiramente paradoxal, dada a importância que a droga e a toxicomania tiveram na sua vida pessoal e no desenvolvimento da psicanálise. Consideramos esta lacuna na obra freudiana um sintoma — um dos não-ditos — na história da psicanálise e, seguindo as recomendações da técnica psicanalítica que aconselha prestar atenção as omissões, propusemonos investigar os antecedentes que poderiam desvendar a origem desta ausência. Hoje, pouco mais de 100 anos após Freud ter interpretado psicanaliticamente o primeiro sonho, esta ainda é uma questão obscura. A seguir, tentaremos elucidar os conflitos e experiências traumáticas que poderiam ter instituído esta sintomática ausência na obra 29 freudiana. Estas originam-se no que poderia chamar-se de período "pré- histórico" da psicanálise, relacionadas especificamente ao encontro de Freud 9 com a cocaína, a nicotina e a toxicomania. A primeira fonte de antecedentes que poderia elucidar esta ausência remonta a 1882 quando Freud desenvolve sua vocação de pesquisador no Instituto de Fisiologia de Viena sob a direção do professor Brücke. Após vários anos de trabalho neste instituto, Freud é levado a perceber pelo seu professor que continuar a carreira de pesquisador é inviável dada sua precária situação econômica. Surge assim a conflitiva, mas financeiramente necessária, decisão de trocar as pesquisas científicas pela incerta prática médica. Seu próprio relato: "O momento decisivo ocorreu em 1882, quando meu professor, por quem eu nutria a mais elevada estima possível, corrigiu a generosa improvidência do meu pai, aconselhando-me enfaticamente, em vista de minha má situação financeira, a abandonar minha carreira teórica. Segui seu conselho, deixei o laboratório de fisiologia e ingressei no Hospital Geral." 10 Estava abandonando sua vocação, à qual tinha se dedicado durante os seis anos anteriores, para ocupar-se com uma nova atividade para qual estava despreparado e que, em princípio, não lhe atraia. No posfácio da Questão da análise leiga, Freud (1927) declara: 9 Consideramos o período analítico começa partir do sonho da "injeção feita em Irma" (24 de julho de 1895). 10 Freud S. Autobiografia (1923) In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: Edição Standard Brasileira. 2ª ed., Rio de Janeiro: Imago, 1969, vol 20, p. 20-21 (doravante abreviada SB) 30 "Depois de quarenta e um anos de atividade médica, meu auto conhecimento me diz que eu nunca fui um verdadeiro médico. Ingressei na profissão porque fui obrigado a desviar-me do meu propósito original, e o triunfo da minha vida reside precisamente em que, depois de um largo rodeio, voltei a encontrar minha primitiva orientação. Desde minha infância não tenho nenhuma lembrança de haver sentido a necessidade de socorrer a humanidade no seu sofrimento. Minha disposição sádica inata não era muito grande; de modo que nunca tive necessidade de desenvolver este seu derivado. Também não me dediquei a brincar ‘de médico’; minha curiosidade infantil enveredouse por outros caminhos. Na juventude apoderou-se de mim a onipotente necessidade de compreender alguma coisa acerca dos enigmas do mundo em que vivemos e de contribuir, talvez, para sua solução. O ingresso na faculdade de medicina parecia ser o caminho mais promissor para conseguílo." (Grifo meu) 11 Em 1882, Freud desliga-se de sua função no Instituto de Brücke e ingressa, a contragosto, como residente no Hospital Geral de Viena, permanecendo até 1885. É durante estes três anos, nos quais Freud tenta desenvolver sua incipiente prática médica, que acontece o encontro com a cocaína; assunto que era, nas suas próprias palavras, "Um interesse secundário, embora profundo ..." 12 Um artigo publicado em 12 de dezembro de 1883 na revista Deutsche Medizinische Wochenschrift pelo médico militar Theodor Aschenbrandt sobre os efeitos fisiológicos provocados pela cocaína, chama a atenção de Freud e o estimula a estudar seus efeitos em si mesmo assim como em outras pessoas. 11Freud 12Freud S., Questão da análise leiga. (1927), SB, Rio de Janeiro: Imago, 1976 vol 20, p. 287 S., Autobigrafia (1923), SB, Rio de janeiro: Imago, 1976 vol 20, p. 25 31 Obtendo amostras da substância da mesma fonte empregada por Aschenbrandt - o laboratório Merck - Freud experimenta cocaína pela primeira vez no dia 30 de abril de 1884 e descreve seus efeitos: "Durante uma ligeira depressão produzida pela fadiga, ingeri pela primeira vez 0.05 gramas de cloruro de cocaína em uma solução com água à 1% ... Após alguns minutos, senti de repente sensações de alegria e tranqüilidade." 13 Durante os próximos meses Freud experimenta a cocaína dezenas de vezes ficando, progressivamente, mais entusiasmado com seus efeitos. Nesse mesmo texto, declara que após cada uso sente-se: "(...) a mesma alegria e euforia duradouras que não se diferenciam em absoluto da alegria e euforia normais... Se percebe um aumento do autocontrole e adquire-se maior vitalidade e capacidade de trabalho... Em outras palavras: a pessoa sente-se simplesmente como quando está em seu estado normal; fica difícil acreditar que se está sob os efeitos da droga... É possível realizar qualquer tipo de trabalho mental ou físico, por mais intenso ou prolongado que seja, sem sentir fadiga... Os efeitos da droga não produzem nenhuma ressaca desagradável como as que acompanham a alegria obtida por meio de bebidas alcoólicas... E esta assombrosa droga não cria hábito. Depois da primeira vez que é usada — assim como depois do seu uso reiterado — não sente-se nenhum desejo de continuar a usá-la; na verdade sente-se uma inexplicável aversão a ingeri-la." (Grifo meu) 14 13 Freud S., Über coca (1884), In: Escritos sobre la cocaína. Robert Byck Editor (1974), Bernfeld S., Los estudios de Freud sobre la cocaína (1953), Barcelona: Anagrama, 1980, p.312. 14 Freud S., Über coca (1884), In: Escritos sobre la cocaína. Robert Byck Editor (1974), Bernfeld S., Los estudios de Freud sobre la cocaína (1953), Barcelona: Anagrama, 1980, p. 312. 32 Nos meses seguintes, Freud passa a usá-la regularmente, recomendando seu uso a colegas, amigos, noiva e familiares. Comentando tamanha indiscriminação e exaltação Jones (1953), biógrafo oficial de Freud, considera que, desde o ponto de vista atual em relação à droga: " ... Freud estava se tornando rapidamente uma ameaça pública." 15 Entusiasmado com a regularidade dos resultados positivos e convicto de que a substância não criava dependência, Freud mergulha na literatura existente na época a respeito da cocaína. As investigações sobre a cocaína despertaram grandes esperanças em Freud. Ele esperava que seu uso clínico propiciasse o estabelecimento de sua incipiente e conflitiva prática médica, que sua precária condição financeira conseqüentemente melhorasse e o ajudasse a angariar sua tão desejada fama além de prestígio no meio médico vienense. Isto fica evidente num trecho da carta escrita por Freud para sua noiva Martha Bernays, no dia 25 de maio de 1884 — menos de um mês após ter experimentado a cocaína pela primeira vez ! "Se tudo correr bem, espero escrever um ensaio sobre a cocaína e espero que venha obter seu lugar na terapêutica, ao lado da morfina e superior a esta. A cocaína faz nascer em mim outras esperanças e outros projetos. Tomei com regularmente, doses muitas pequenas dela contra a depressão e ingestão, com o mais brilhante sucesso. Espero que ela possa acabar com o vômitos mais intratável, mesmo quando se deve a uma dor intensa; em suma, apenas agora sinto que sou médico, já que ajudei um 15 Jones E., A vida e a obra de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1989, vol. 1, p. 92) 33 paciente e espero ajudar outros mais. Se as coisas prosseguirem desse modo, não precisamos ter preocupações quanto a podermos nos unir e ficar em Viena." (Grifo meu) 16 No seu trabalho sobre a cocaína Freud foi, pela primeira vez em sua vida, alguém que traçava um caminho independente. As pesquisas que tinha realizado no Instituto de Fisiologia e seus trabalhos relacionados à neurologia clínica foram, essencialmente, conservadores enquadrando-se dentro dos ensinamentos de seus mestres. Os estudos que realizou sobre a cocaína foram feitos sem a orientação nem o apoio de ninguém, podendo ser considerados como "seu primeiro intento para abrir caminho para sua independência intelectual." 17 Durante as leituras preliminares para o artigo, Freud entra em contato com informes em uma publicação médica, Detroit Medical Gazette, à respeito do uso da cocaína no tratamento da desintoxicação de morfinômanos. Esta informação aumenta seu entusiasmo tornando a cocaína ainda mais interessante, visto que abria a possibilidade de ajuda para um dos seus colegas e amigo cuja dependência à morfina era uma fonte de preocupação para Freud. Este amigo, Ernst Von Fleischl (1846-1891), seu colega no Laboratório de Fisiologia em Viena, contraiu uma infecção aos vinte cinco anos no decorrer de uma pesquisa de anatomia patológica. 16 Trecho de carta de Freud a Martha Bernays, In: Avida e a obra de Sigmund Freud. Jones E., (1942): Imago: Rio de Janeiro, 1989, vol. I, p. 91 - 92. 17 Freud, S., Über coca (1884), In: Escritos sobre la cocaína, Robert Byck Editor (1974). Bernfeld S., Los estudios de Freud sobre la cocaína (1953), Barcelona: Anagrama, 1980, p. 310. 34 Foi salvo da morte pela amputação do polegar da mão direita, mas o tumor que tinha se produzido no nervo continuava crescendo e reiteradas intervenções cirúrgicas não aliviaram sua dor insuportável. Fleischl se viu obrigado a recorrer à morfina como medida extrema para aliviar a dor mas, ao mesmo tempo, colocou em marcha a implacável engrenagem da dependência; tornou-se morfinômano. Em junho do mesmo ano, Fleischl precisa submeter-se à primeira de uma longa série de desintoxicações que se estenderão pelo resto da sua curta vida. Com o consentimento do Dr. Breuer — médico da família Fleischl — Freud recomenda experimentar a desintoxicação da morfina à base de cocaína. É assim como Fleischl converte-se no "primeiro dependente da morfina no continente europeu a ser desintoxicado utilizando cocaína", e por recomendação de Freud. Estimulado pelo sucesso inicial deste tratamento, 18 Freud publica no número de julho de 1884 da revista Centralblatt, o artigo sobre a cocaína sob o título Über Coca. É interessante notar que, enigmaticamente, este trabalho junto com outros quatro relacionados ao tema, nunca foram incluídos em suas obras completas, seja em alemão (Gesammelte Werke), em inglês (Standard Edition), em espanhol (Biblioteca Nueva) e (Amorrortu Editores), ou em português (Imago). 18 Freud, S., Über coca (1884), In: Escritos sobre la cocaína, Robert Byck Editor (1974). Bernfeld S., Los estudios de Freud sobre la cocaína (1953), Barcelona: Anagrama, 1980, p. 339. 35 Byck (1974), editor do livro Escritos sobre a cocaína, comenta na introdução que, exceto uma tradução abreviada de Über Coca publicada em dezembro de 1884 no The Saint Louis Medical and Surgical Journal, "os artigos sobre a cocaína não podiam ser encontrados nem em inglês, nem em nenhuma outra língua que não fosse o alemão, sendo mesmo nesta língua difícil de achalos". 19 É só no ano de 1963 que Strachey traduz ao inglês os textos em sua íntegra, sendo publicados pela Dunquin Press de Viena na forma de um livro com o título: The cocaine papers. A falta de difusão desta edição condenou os escritos novamente ao desaparecimento, passando a ser de verdadeiro domínio público, somente, a partir da edição compilada por Byck em 1974. Os escritos sobre a cocaína provocaram reações extremas na época da sua publicação, sua ausência sistemática é o saldo desses eventos conflitivos. Tal exclusão, que obedece tanto razões de pudor quanto de censura, deve ser apontada como um dos sintomas da pré-história do movimento psicanalítico. 20 Escrita no melhor estilo freudiano — um verdadeiro panegírico quase poético muito diferente da aridez dos seus escritos científicos sobre fisiologia e anatomia — a monografia Über Coca faz um relato histórico da planta da coca e a descoberta da cocaína, apresenta os resultados de suas pesquisas e recomenda seu uso clínico: 19 20 Idem p. 13-14. Cesarotto O., Um affair freudiano. Iluminuras, São Paulo, 1989, p.18. 36 a) como estimulante nos estados neurastênicos; b) para tratamento da indigestão; c) para desintoxicar morfinômanos e alcoólatras; d) para tratar doenças como: renite, asma e sífilis; e) como afrodisíaco; f) como anestésico local. Pode considerar-se que o encontro de Freud com a cocaína tenha promovido sua incipiente prática médica, seu desejo de curar a si mesmo da depressão e problemas psicossomáticos e à curar outros das mais variadas 21 manifestações psicopatológicas. Freud começa, então, a receitar a cocaína amplamente na sua prática médica acreditando que, equipado com esta "panacéia", estará menos desamparado clinicamente perante a demanda de seus pacientes. Em uma apresentação no dia 5 de março de 1885 para Associação Psiquiátrica de Viena, Freud recomenda o uso da cocaína para o tratamento das doenças consideradas como "fraquezas e depressões do sistema nervoso central sem lesões orgânicas" ; referindo-se a casos de histeria, hipocondria e 22 depressão. Em relação ao tratamento dos dependentes da morfina Freud pronunciou as seguintes palavras: "Sem dúvida alguma aconselharia ministrar a cocaína em injeções subcutâneas de 0.03 a 21 Anzieu D., A auto-análise de Freud e a descoberta do inconsciente. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989, p. 75. 22 Bernfeld S., Los estudios de Freud sobre a cocaina. In: Escritos sobre la cocaína. Robert Byck, Editor (1974), Barcelona: Anagrama, 1980. p. 335. 37 0.05 gramas sem temer a acumulação das doses". 23 Suas investigações sobre o uso clínico da cocaína são interrompidas em 1885 com sua saída do Hospital Geral e viagem a Paris, onde estuda o fenômeno da histeria com Charcot. Ao retornar da França, seis meses depois, Freud depara-se com um elemento completamente imprevisto na psicopatologia; a dependência de cocaína. Fleischl, primeiro morfinômano no continente europeu a ser "curado" pela cocaína, tinha se tornado cocainômano. Embora Freud tivesse recomendado apenas a administração oral da cocaína, Fleischl passou imediatamente a administrá-la a si mesmo sob a forma de injeções subcutâneas criando tolerância à droga, chegando a precisar um grama por dia. Veio a falecer na mais abjeta das condições psíquicas sete anos após Freud ter recomendado o tratamento de "desintoxicação". Em sua biografia Freud, Gay (1988) declara que este sabia do uso que Fleischl fazia das injeções subcutâneas e "na época, não levantou objeções a tal procedimento." Na mesma nota de rodapé, ao referir-se a este método de 24 administração da cocaína, Gay conclui: "Mais tarde Freud recuou e negou que algum dia o tivesse defendido." 25 Não demorou muito para que na literatura médica mundial surgissem informes sobre psicoses tóxicas provocadas pelo abuso da cocaína. 23 Bernfeld S., (1953), In: Escritos sobre la cocaína. Robert Byck Editor (1974). Los estudios de Freud sobre la cocaína, p. 346. 24 Gay P., Freud. Uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das letras, 1989, p. 57. 25 Idem. 38 O mais critico e severo destes surgiu em maio de 1886, quando o renomado psiquiatra alemão Erlemeyer publica um trabalho sobre a dependência de cocaína: Üeber Cocainsucht, onde a considera perigosamente venenosa, dado seu inquestionável potencial de criar dependência. Erlemeyer alertava que a cocaína deveria ser considerada o "terceiro flagelo da humanidade", depois dos dois anteriores: o álcool e a morfina. Dois anos após ter experimentado a cocaína pela primeira vez, Freud — quem tinha "redescoberto" a cocaína — foi o alvo de duras críticas. Nas palavras de Jones (1953) no capítulo "O episódio da cocaína" em sua biografia sobre Freud: "O homem que tentara beneficiar a humanidade, ou em todo caso, criar reputação através da cura da "neurastenia" era agora acusado de desencadear o mal pelo mundo. Muitos devem tê-lo olhado pelo menos como um homem imprudente em seus critérios. E se sua sensível consciência formulou a mesma sentença, ela seria confirmada por uma triste experiência um pouco posterior, quando, supondo que se tratava de uma droga inócua, recomendou uma grande dose dela a um paciente que em conseqüência veio a sucumbir. É difícil dizer até que ponto todo o episódio afetou a reputação de Freud em Viena: tudo que ele próprio posteriormente disse a respeito foi que o episódio acarretou "graves censuras." 26 Em 9 de julho de 1887, Freud publica na Weiner Medizinische Wochenschrift seu último artigo relacionado à cocaína: Observações sobre o 26Jones E., A vida e a obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989, vol. 1, p.104 39 Cocainísmo e a Cocainofobia, onde tenta defender-se das duras críticas apresentando duas linhas de defesa. A primeira destas, inovadora para a época, argumenta que nem a cocaína nem nenhum outro produto químico poderia, por si mesmo, produzir dependência, aventando, implicitamente, a hipótese da existência de fatores psíquicos envolvidos no processo. Esta linha de defesa - baseada na idéia que a instauração da dependência não é efeito direto do veneno mas, que deve-se alguma peculiaridade do indivíduo - não foi desenvolvida mais extensamente, nem neste texto, nem em nenhum outro na totalidade da obra freudiana. Na época, esta linha de raciocínio foi acolhida pelos críticos como mera racionalização. 27 A segunda linha de autodefesa baseava-se na via de administração da substância. Apelando para o preconceito geral da época, Freud tenta eximirse de qualquer responsabilidade em relação aos efeitos nocivos da cocaína, argumentando nunca ter recomendado a aplicação de injeções subcutâneas que seriam, estas sim, a verdadeira fonte de dependência e intoxicação. Este argumento contradiz as palavras proferidas pelo próprio Freud durante a conferência acima mencionada, ministrada para a Associação Psiquiátrica de Viena dois anos antes de publicar sua autodefesa. 27 Bernfeld S., op. cit. p. 344. 40 Além da contradição, é importante notar que, neste artigo, Freud omitiu qualquer referência à conferência embora tenha se referido a todos seus trabalhos anteriores sobre a cocaína. O texto da conferência de 1885 onde Freud "advogara vigorosamente as injeções perniciosas" teve um destino desconhecido. Não foi 28 incluído por ele na lista de textos que teve que compilar dez anos mais tarde, em 1897, quando requereu o título de professor, e não aparece em nenhum outro lugar das suas obras, não existindo, sequer, no seu fichário pessoal. “Parece ter sido completamente suprimido.” 29 Esta omissão poderia considerar-se como uma questão sem importância, um mero esquecimento sem relevância, ou ainda, como uma manifestação de desonestidade científica. Mas, considerando a integridade ética de Freud e aplicando à sua obra as recomendações da técnica psicanalítica propostas por ele mesmo, esta "supressão" configura-se como um ato psíquico, onde a tentativa inconsciente de desalojamento (Verdrängung) expressa-se através de um lapso. Este lapso reflete um conflito inconsciente que manifesta-se nos sonhos de Freud onde o tema das injeções ocorre, mais de uma vez, ligado ao da culpa. 28 Idem. p. 106 29 Bernfeld S., op. cit. p. 346. 41 Cabe ressaltar que o sonho inaugural da psicanálise - na madrugada de 24 de julho de 1895 — o "sonho da injeção feita em Irma", contém elementos que condensam justamente as dificuldades vividas por Freud com a cocaína. Estas encontram-se resumidas num tom de admoestação na penúltima frase deste sonho: "Não se fazem tais injeções descuidadamente!" 30 Freud abandona totalmente o uso pessoal ou terapêutico da cocaína onze anos após tê-la experimentado pela primeira vez. Esta data, 1895, coincide com a primeira interpretação psicanalítica de um sonho, com o começo da sua auto-análise e o alvorecer da história propriamente dita da psicanálise. Através desta breve incursão nos primórdios da psicanálise tentamos evidenciar que tanto a droga quanto a toxicomania tiveram grande relevância na vida de Freud e no desenvolvimento da psicanálise. O encontro de Freud com a cocaína promoveu o desejo de ser médico, de curar a si mesmo e aos outros. O primeiro "outro" deste desejo é um toxicômano (Fleischl) constituindo-se também como seu traumático primeiro fracasso terapêutico. Sem embargo, para a futura elaboração da psicanálise, este foi o mais fértil dos fracassos. A respeito, diz Anzieu (1959): "É o símbolo antecipador do fracasso de todas as drogas e um sinal do longo, difícil e inevitável desvio que Freud deverá fazer para ele mesmo e para seus doentes, através da decifração dos encadeamentos psíquicos inconscientes. A hipnose e a sugestão que são, como sabemos, as soluções as quais Freud recorre 30 Idem. p. 55. 42 em 1885, são uma etapa intermediária: modos de ação estritamente psicológicos que se limitam a suprimir os sintomas. Estes meios participam também deste mesmo fantasma de onipotência terapêutica que conduz à utopia quimioterapêutica... Este fantasma nunca abandonará completamente Freud; do que subsiste nele, estaremos tentados a ver algo irredutível para todo aquele que se dedique ao exercício da psicanálise. Embora denegado por alguns, o desejo de curar... " 31 O fracasso de Freud com a cocaína marca uma ruptura: o abandono de toda substância como suporte da tentativa de cura. Sua inicialmente conflitiva prática médica passou a ser uma prática de curar sem medicamentos, que deu lugar a uma solução criativa. Tratar as manifestações psicopatológicas através de uma prática inédita: a psicanálise. No começo deste capítulo nos propusemos tentar elucidar os antecedentes que poderiam desvendar a origem da sintomática ausência de um estudo profundo sobre a toxicomania na obra freudiana. O trauma associado ao fracasso de Freud com o uso da cocaína como elemento terapêutico pode ser uma das possíveis fontes desta surpreendente ausência. Passemos agora para uma outra fonte de antecedentes que possa elucidar esta ausência. 31 Anzieu D., A autoanálise de Freud e a descoberta da psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas. 1989. 43 Às vezes um charuto não é meramente um charuto 12 de fevereiro, 1929 Comecei fumar com idade de 24 anos, primeiramente cigarros mas logo exclusivamente charutos; continuo ainda fumando (com idade de 72 anos e meio), e sou bastante relutante em restringir-me a este prazer. Entre as idades de 30 e 40 anos tive que deixar de fumar, durante um ano e meio, por causa de um ataque do coração que pode ter sido (devido ao) efeito da nicotina, mas que provavelmente era uma seqüela de influenza. Desde então, tenho sido fiel ao meu hábito ou vício, e acredito que devo ao charuto uma grande intensificação da minha capacidade para o trabalho e uma facilidade para meu autocontrole. Meu modelo nisto foi meu pai, que era um fumante dos mais inveterados e que assim permaneceu até o seu 81° ano. 32 32 Carta escrita em resposta a um questionário dirigido a várias figuras contemporâneas proeminentes em relação aos seus hábitos de fumar. Arents Collection, New York Public Library. In: Schur M., Freud: vida e agonia, Rio de Janeiro: Imago, 1981, p. 76. 44 Sigmund Freud A segunda fonte de antecedentes que poderia ser o determinante da ausência na obra freudiana de um estudo dedicado especificamente à toxicomania é a dependência de Freud da nicotina. Embora esta dependência o tenha acompanhado por praticamente toda sua vida, hei de concentrar-me em ainda um outro "episódio" do antes chamado período "pré-histórico" da psicanálise que praticamente coincide com o momento do fim do uso da cocaína. Trata-se do que o biógrafo Schur (1973) chamou de "Episódio cardíaco de Freud." 33 O vínculo de Freud com Wilhem Fliess e a sua extensa correspondência são uma rica fonte de informação deste momento que estendese de 1893 até 1895 - período durante o qual Freud sofre uma perturbação da função cardíaca. Nessa época, Fliess torna-se seu médico de confiança e atribui os sintomas cardíacos a seu hábito de fumador inveterado insistindo firmemente que deixe de fumar por acreditar que a nicotina exacerba seus sintomas. Esta recomendação desencadeia uma infindável série de tentativas malsucedidas para abster-se da nicotina que demostra a grande intimidade pessoal de Freud com a problemática da toxicomania. Numa carta a Fliess de 18 de outubro de 1893, Freud escreve: " (...) Não tenciono em absoluto ignorar meus problemas cardíacos. No momento eles vão bem melhor — não por qualquer mérito meu, pois tenho fumado muito, devido a todas as dificuldades, que tem sido 33 Idem, p. 49. 45 muito numerosas ultimamente. Creio que logo tornarão a dar sinal de vida, e dolorosamente. No que concerne ao fumo, seguirei escrupulosamente uma receita sua; já fiz isso antes numa ocasião em que você me deu sua opinião a respeito (estação ferroviária durante período de espera). Mas, realmente, senti muita falta dele. ..." 34 Na próxima carta datada de 27 de novembro de 1893 o tema do fumo reaparece novamente expressando o penoso conflito suscitado pela necessidade de deixar de fumar. "Não tenho obedecido a sua ordem de não fumar; você realmente considera um privilégio notável viver muitos anos num tormento?" "Não estou obedecendo às suas proibições quanto ao fumo; será que você considera como grande dádiva viver a gente muitos e muitos anos num estado miserável ?" 35 Sem nicotina, sem sua droga, Freud vislumbra uma longa vida desnecessariamente atormentada e miserável. Não seria melhor viver menos, mas bem, do que mais e mal ? Se estivesse mesmo sofrendo de uma doença cardíaca incurável, não seria melhor "aproveitar" a vida enquanto esta durasse? Em sua biografia sobre Freud, Rodrigué (1995) chama atenção para o raciocínio implícito nesta carta como sendo "uma variante clássica do discurso dos toxicômanos" caracterizado por racionalizações de toda índole que 36 justifiquem as dificuldades inerentes aos esforços de abstinência. 34 Masson J., A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhem Fliess. Rio de janeiro: Imago, 1986, p. 59. 35 Incluo duas traduções da mesma carta para ressaltar a dramaticidade do momento vivido por Freud. Estas são: Masson J., op. cit. p. 60 - 61 e Schur M., op. cit. p.52 36 Rodrigué E., Sigmund Freud. O século da psicanálise. São Paulo: Escuta, 1995, vol. 1. p. 325. 46 A previsão de Freud que os sintomas cardíacos tornariam a "dar sinal de vida, e dolorosamente" confirma-se exigindo dele uma tentativa de abstinência mais eficaz. Trechos de uma longa carta a Fliess de 19 de abril de 1894 descrevem este momento: "Já que todos precisam da influência sugestiva de alguma outra pessoa para conseguir uma suspensão temporária das próprias críticas, de fato não coloquei nada aceso entre os lábios desde então (faz hoje três semanas). Hoje, já consigo observar os outros fumando sem invejá-los, e até voltar a imaginar a vida e o trabalho sem esse esteio. Não faz muito tempo que atingi esse ponto além disso, o sofrimento da abstinência tem sido muito maior do que eu imaginava — mais isso, naturalmente, é obvio." 37 O trecho da carta acima citado revela a surpresa experimentada por Freud em relação ao grau de sua dependência nicotínica, assim como uma crescente familiaridade com os processos mentais inerentes à abstinência. Existiam duas hipóteses diagnosticas divergentes sobre a condição cardíaca de Freud. Cada uma delas era representada por figuras extremamente importantes na sua vida e obra. As questões em torno dos diagnósticos divergentes entre Breuer e Fliess mostram que Freud estava disposto a lutar pela sua necessidade de fumar. Queria saber se estava sofrendo de uma intoxicação nicotínica, diagnosticada por Fliess ou de uma miocardite crônica que não poderia suportar a nicotina, diagnosticada pelo seu antigo médico Breuer. 37 Masson J., op. cit. p. 67. . 47 Embora diferentes, ambos diagnósticos apontavam para o doloroso reconhecimento que o ato de fumar era extremamente nocivo para sua saúde. Se o diagnóstico da miocardite crônica proposta por Breuer estivesse certo, Freud poderia ter uma boa racionalização para alimentar sua dependência. Na mesma carta acima mencionada Freud diz que suportará com dignidade uma vida curta mas plenamente "desfrutada": "(...) suportarei com dignidade a incerteza e a expectativa de vida abreviada, ligadas ao diagnóstico de miocardite; ao contrário, poderia até tirar proveito disso, organizando o restante de minha vida e desfrutando integralmente do que me resta." 38 Por outro lado, o diagnóstico da intoxicação nicotínica proposto por Fliess significaria mais abstinência e o estado "miserável" que isto iria acarretar. Fliess era, nas palavras de Freud, "peremptório e rigoroso em sua proibição do fumo" , implacável na sua recomendação de abstinência. 39 Isto era particularmente difícil para Freud dada a importância que este tinha na sua vida e a dificuldade do momento pelo qual estava passando. Freud sentia necessidade de um "esteio", como ele mesmo o denominou, para enfrentar a luta contra sua doença, contra seu isolamento profissional e a solidão nas suas pesquisas acerca das neuroses. Nas palavras de Schur (1973), seu médico pessoal e biógrafo: 38 39 Masson J., op. cit. p. 68 Idem. p. 85 48 "A luta pedia, pelo menos, um mínimo de bem estar físico, e, afora os seus sintomas cardíacos, a abstinência da nicotina estava privando-o do estimulante externo que permaneceu essencial a ele durante toda sua vida." 40 Em 22 de junho de 1894 Freud escreve uma carta a Fliess "desde a profundidade do túnel da privação nicotínica" incapacidade de manter a abstinência 41 na qual tenta justificar sua através de racionalizações fundamentadas, supostamente, em suas observações clínicas: "Não tenho fumado há sete semanas, desde o dia da sua proibição. A princípio, como era esperável, senti-me abusivamente mal. Sintomas cardíacos acompanhados de depressão branda, além do terrível sofrimento da abstinência. Este último se dissipou depois de aproximadamente três semanas, enquanto a primeira cedeu após de cerca de cinco semanas, porém deixando-me completamente incapaz de trabalhar, derrotado. Decorridas sete semanas, apesar de minha promessa a você, recomecei fumar, influenciado por dois fatores: (1) Durante esse período examinei pacientes da mesma idade em estado praticamente idêntico, que nunca haviam fumado (duas mulheres) ou que haviam parado de fumar. Breuer, a quem afirmei repetidamente não considerar a indisposição como envenenamento por nicotina, finalmente concordou e apontou as mulheres. Assim, fiquei privado da motivação que você caracterizou tão habilmente numa de suas cartas anteriores: uma pessoa só consegue desistir de algo quando está firmemente convencida de que aquilo é a causa da sua doença. 40 41 Schur M., op. cit. p. 61. Rodrigué E., op. cit. p. 326. 49 (2) A partir dos primeiros charutos, consegui trabalhar e me assenhorei de meu estado de ânimo; antes disso a vida estava insuportável. Também não observei nenhum agravamento dos sintomas depois de um charuto. Tenho agora fumado com moderação e elevei lentamente o número para três por dia. ..." 42 No capítulo "Coração Partido", Rodrigué (1995) considera esta carta "um paradigma de conversa fiada" duvidando até, que Freud tenha achado, de fato, as duas pacientes "em estado praticamente idêntico" mencionadas na carta a Fliess, como justificativa para o fato de ter voltado a fumar. Rodrigué considera que a carta revela o discurso desesperado de um homem dependente "roendo-se nas trevas da abstinência". 43 Como réplica às novas racionalizações contidas na carta de Freud para justificar sua incapacidade de observar as recomendações do seu médico, Fliess mostra-se categórico e faz uma exigência ainda mais rigorosa quanto à necessidade de abstinência total do fumo. Manifestando humildade e obediência perante os severos ditames proibitivos do seu médico, Freud responde em uma carta que, estranhamente, não foi datada: "Caro Wilhem: Minha compreensão a respeito é pequena demais para que eu possa avaliar uma réplica tão segura, mas meu juízo me diz que tenho razões psicológicas suficientes para cumprir suas ordens, de modo que estou hoje iniciando um segundo período de abstinência — que, 42 43 Masson J., op. cit. p. 84. Rodrigué E., op. cit. p. 326. 50 segundo espero, durará até que nos venhamos a rever em agosto." 44 Em 14 de julho de 1894, Freud tenta justificar sua nova incapacidade de obedecer as ordens de Fliess em relação a abstinência total através da carta do "néctar": "Prezadíssimo amigo: Seus elogios são néctar e ambrosia para mim, pois sei perfeitamente como lhe é difícil tecê-los — não, para ser mais correto, como você fala a sério quando os tece. Desde então, tenho produzido pouco, preocupado que estou com a abstinência. A minha condição de saúde — sinto-me obrigado agora a não despertar a suspeita de que talvez queira esconder algo — é a seguinte: desde sua carta, há duas semanas, abstinência, que durou por 8 dias; na quinta feira seguinte, num momento indescritivelmente desolado, um charuto; depois novamente, 8 dias de abstinência; na quinta feira seguinte, mais um; desde então, paz. Em suma, estabeleceu-se um padrão: um charuto por semana para comemorar sua carta, que mais uma vez roubou-me o prazer do tabaco. Na prática, isso talvez não difira tanto da abstinência." 45 Comentando o conteúdo destas cartas, Rodrigué (1995) refere-se a elas como o produto de um paciente dependente que manifesta o típico "discurso do viciado" caracterizado pela tentativa de sedução através da "fala vã de amor." 46 Freud precisava de pelo menos um charuto semanal e parecia disposto a conceder qualquer "ambrosia" para obter a permissão para consegui-lo. Considerando a intensidade do sofrimento e as tremendas dificuldades vividas por Freud durante suas reiteradas tentativas infrutíferas para abster-se do fumo, torna-se então paradoxal que Jones (1953) possa ter 44 Masson J., op. cit. p. 86 - 87. Idem. 46 Rodrigué E., op. cit. p. 327. 45 51 declarado, referindo-se ao vínculo de Freud com as drogas: "é preciso uma predisposição especial para que se desenvolva um vício em drogas, e felizmente Freud não tinha esta predisposição." 47 Com seu estilo contundente e mordaz, Rodrigué (1995) comenta a declaração de Jones manifestando perplexidade: "não dá para acreditar, parece uma piada." 48 Esta afirmação é possivelmente verdadeira no que concerne o vínculo de Freud com a cocaína, mas em relação à seu tabagismo existem evidências inquestionáveis que apontam para a dependência de Freud da nicotina. Além da correspondência com Fliess aqui abordada, existe também uma outra evidência que se manifesta como uma contradição na biografia de Jones quando este refere-se ao hábito de fumar de Freud: "Que se tratava mais de um vício do que um hábito, podia-se ver pela extensão de seu sofrimento quando esteve privado da possibilidade de fumar." 49 Freud consegue manter-se quase totalmente abstinente por quatorze meses — fumava 1 charuto por semana, o "charuto das quintas feiras", dia em que Fliess teria feito o último interdito. Volta a fumar alegando ser isto uma necessidade essencial, de ordem "psíquica", dadas sua intensa angústia e melancolia. 47Jones E., A vida e a obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989, vol. 1, p. 92. E., op cit. p. 326. 49Jones E., op. cit. vol. 2, p.382. 48Rodrigué 52 Em 12 de junho de 1895 escreve à Fliess: "Tenho-me sentido I a IIa. Preciso de muita cocaína. Além disso, recomecei fumar moderadamente nessas últimas duas ou três semanas, desde que a convicção nasal se tornou óbvia para mim. Não observei nenhum prejuízo subseqüente. Se você voltar a proibir o fumo, terei de abandoná-lo outra vez. Mas pense bem se deve fazê-lo, caso se trate apenas de uma intolerância, e não da etiologia. Recomecei com isso porque me fazia falta constantemente (após 14 meses de tratar bem deste sujeito psíquico, ou então ele não trabalhará para mim. Exijo muito dele. A tortura, na maior parte do tempo, é sobre-humana." 50 51 Incontinente e indiferente perante esta elaborada argumentação onde Freud associa a dinâmica da abstinência à angústia e a melancolia, Fliess responde exigindo que continue totalmente abstinente. Desconsolado, Freud acata a exigência respondendo alguns dias depois; "Resmungo e volto a ficar dolorosamente privado, mas nada me resta senão obedecer-lhe." 52 para um mês mais tarde admite: "Estou tendo demasiados problemas com o vício de fumar." 53 50 I e IIa referem-se a subdivisões no Rascunho G sobre a melancolia que Freud teria enviado a Fliess no ano anterior numa carta datada 13 de setembro de 1894. O item 'I' refere-se ao estado geral da melancolia que segundo Freud, ocorreria "tipicamente, em combinação com intensa angústia". O item 'IIa' é mais específico: "O afeto correspondente à melancolia é o do luto — em outras palavras, o anseio por alguma coisa perdida. Portanto, na melancolia, deve tratar-se de uma perda, ou seja, uma perda na vida pulsional." In: Masson J., op. cit. p. 98 - 99. 51 Idem. p.133. 52 Masson J., op. cit. p. 133. 53 Schur M., op. cit. p. 107. 53 Duas cartas mais encerram o período do "episódio cardíaco" de Freud sem por isto implicar que tenham acabado suas agruras em relação à dependência nicotínica. Estas cartas ilustram as dificuldades que Freud continuará sofrendo até os últimos dias de sua vida. Em 16 de outubro de 1895 escreve a Fliess tentando aplacá-lo: "Mais uma vez, abandonei completamente o fumo, para não ter que me recriminar por meu pulso irregular e para me livrar dessa batalha deplorável contra o anseio pelo quarto e o quinto (charutos); prefiro lutar de vez contra o primeiro. Provavelmente a abstinência não é lá conducente à satisfação psíquica. ..." 54 Menos de um mês depois Freud declara-se novamente impotente perante seus desígnios em relação à abstinência total da nicotina; em 8 de novembro de 1895 escreve a Fliess: "Não pude manter a abstinência completa; sob o fardo de minhas preocupações teóricas e práticas, o aumento da hiperestesia psíquica tornou-se insuportável." 55 Os sintomas cardíacos de Freud foram atenuando-se gradativamente até desaparecerem por completo no fim do período aqui estudado, abrindo a possibilidade para que ele passasse a fumar inveteradamente. "Seu consumo diário era de vinte charutos." 56 54 Masson J., op. cit. p. 146. Idem. p. 151. 56 Jones E., op. cit. vol. 2. p. 382. 55 54 Era tese do próprio Freud, como vimos ele relatar na primeira carta apresentada neste capítulo, que a nicotina lhe propiciava uma grande intensificação da sua capacidade para o trabalho. Segundo Schur (1973), a utilização da nicotina por Freud denota uma inquestionável dependência, ou como tanto ele como o próprio Freud preferiam denominar: um "vicio." 57 Para justificar tamanha afirmação, Schur remete o leitor ao autoexame "infalivelmente honesto" de Freud sobre o assunto numa carta enviada a Fliess em 22 de dezembro de 1897: "Despontou em mim a descoberta intuitiva de que a masturbação é o grande hábito, o 'vício primário', e de que é apenas como substitutos sucedâneos dela que os outros vícios — o álcool, a morfina, o fumo e coisas parecidas — passam a existir. O papel desempenhado por esse vício na histeria é imenso, e talvez seja aí que se encontra, no todo ou em parte, meu grande obstáculo ainda por superar. E nesse ponto, é claro, surge a dúvida entre saber se um vício dessa espécie é curável, ou se a análise e a terapia devem deter-se nesse ponto e contentar-se em transformar a histeria em neurastenia." 58 O grande obstáculo ainda por superar mencionado por Freud pode ser interpretado como tendo duas vertentes, intrinsecamente relacionadas entre si: uma de ordem pessoal e outra de ordem teórica. 57 58 Schur M., op. cit. vol. 1, p. 75 - 76 - 77. (“Laster” em alemão). Masson J., op. cit. p. 288. 55 Como sabemos, muito da obra freudiana encontra-se permeada por este tipo de complementaridade, particularmente, aquilo que foi teorizado durante o período da sua auto-análise que coincide com o momento em que esta última carta foi redigida. Em termos pessoais, da sua auto-análise, Freud reconhece que seu "vício" possa representar um obstáculo permanentemente insuperável, uma espécie de limite — umbigo — do analisável em si, por si mesmo. Este limite pode ter, conseqüentemente, coibido Freud a penetrar nos meandros inconscientes inerentes a toxicomania, refletindo-se na ausência de uma obra teórica dedicada especificamente à este fenômeno psicopatológico. Trata-se de uma área do seu psiquismo onde Freud parece não ter conseguido obter o que ele denominou "a supremacia do ego"; área esta onde sua fórmula do objetivo terapêutico da psicanálise "Wo es war, soll ich werden" 59 não foi alcançada. Estes dois episódios - “episódio da cocaína” e “episódio cardíaco” podem ser, na nossa opinião, os antecedentes determinantes da enigmática ausência de um estudo dedicado especificamente à toxicomania na obra freudiana. Nossa hipótese em relação a esta sintomática ausência, é que deva-se, por um lado, às situações traumáticas vividas por Freud durante seu envolvimento com a cocaína, e por outro, à possibilidade que Freud tenha 59 Freud S., Obras Completas de Sigmund Freud, Nuevas lecciones introductorias al psicoanalisis (1932), Madri; Biblioteca Nueva, 1996. Lição XXXI, vol 3, p. 3146. "Onde era isso, o ego há de advir.” 56 considerado a toxicomania como um fenômeno psicopatológico inanalisável, além da eficácia terapêutica da psicanálise. A hipótese da inanalisabilidade pode indicar ainda, que Freud tenha percebido a toxicomania como estando à margem da dimensão da linguagem e o sentido, obedecendo a outros dispositivos diferentes dos que operam no recalque. É como se o toxicômano dispensasse a dialética entre necessidade, desejo, demanda e falta, constituindo outro tipo de subjetividade. Supostos saberes nosográficos Enfoquemos agora as questões etiológicas e nosográficas. Embora não exista na obra freudiana um trabalho dedicado especificamente à toxicomania, reflexões ocasionais formuladas no decurso de seus múltiplos estudos são de indiscutível valor para tentar compreendê-la sob o ponto de vista psicanalítico e, possivelmente, responder a nossas indagações de ordem etiológica e nosográfica em relação a este fenômeno psicopatológico. A primeira destas data, novamente, do período que nós denominamos "pré-histórico" da psicanálise surgindo em um artigo dedicado às psiconeuroses de defesa: Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa, onde Freud (1896) descreve os mecanismos psíquicos atuantes na neurose obsessiva e histérica. Na descrição teórica da neurose obsessiva, enumera uma série de sintomas secundários de defesa que se originam da luta entre o ego e o sentimento de culpa. 57 Dentre estes, inclui a dipsomania que através do entorpecimento 60 da mente livra o ego do desprazer da autocensura, mas torna-se uma necessidade compulsiva ou mania (toxicomania). "A defesa secundária contra os afetos obsessivos leva a um conjunto ainda mais vasto de medidas protetoras capazes de serem transformadas em atos obsessivos. Estes podem ser agrupados de acordo com seu objetivo: medidas penitenciais (cerimoniais opressivos, observação de números); medidas relacionadas ao medo de delatar-se (colecionar aparas de papel, misantropia); ou para assegurar o entorpecimento da mente (dipsomania)." 61 Comentando um caso clínico em uma carta a Fliess — 11 janeiro de 1897 — Freud retoma o fenômeno toxicomaníaco como um sintoma, relacionando sua gênese à repressão de uma pulsão sexual que é substituída por outra a esta associada criando uma "compulsão substitutiva". Nesta mesma carta propõe que esta dinâmica de substituição pulsional está também presente no sintoma da mania pelo jogo, sugerindo que qualquer objeto ou ato pode ocupar o lugar do tóxico, existindo manifestações toxicomaníacas sem tóxicos. "Ora, até adoecer, esse homem fora pervertido e, por conseguinte, sadio. Sua dipsomania surgiu pela intensificação, ou melhor, pela 60 Impulso mórbido periódico e irresistível que leva a ingerir grande porção de bebidas alcoólicas. In: Buarque de Holanda, A. Novo dicionário da língua portuguesa Aurélio. 2º Edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 593. 61 Freud S., op. cit., 1976, vol. 3, p. 199. 58 substituição do impulso sexual associado por esse impulso. (Provavelmente, o mesmo se aplica à mania de jogar do velho F.)." 62 É interessante ressaltar que Freud considera patológica a substituição do objeto de gratificação original da pulsão e não a escolha de objeto em si; que seria contingencial. Enquanto o paciente gratificava-se "perversamente", não surgiram sintomas substitutivos. Em trecho de outra carta Freud mantém a relação entre desvios substitutivos da pulsão sexual e o surgimento do sintoma da toxicomania. Nela, refere-se a dependência de morfina, álcool ou tabaco como substitutos da masturbação infantil — considerada por ele como 'vício primário' ou 'protomania' . 63 Considerar, conjuntamente com Freud, que toda dependência é um sintoma deslocado substitutivo da masturbação infantil, remete-nos à ligação entre toxicomania e auto-erotismo e as dúvidas por ele apresentadas, nesta mesma carta, em relação à possível "inanalisabilidade" deste fenômeno psicopatológico. Neste período de elaboração teórica, Freud consideraria a toxicomania como manifestação sintomática da neurose atual. A partir de 1914, com a introdução do conceito de "narcisismo", Freud passa a considera-la como 62 Masson J., op. cit. p. 223. 63 22 de dezembro de 1897, carta já mencionada no capítulo anterior, p. 54. 59 sintoma de uma neurose narcísica, aquém da possibilidade de transferência e conseqüentemente além da eficácia terapêutica da Psicanálise. Em A sexualidade na etiologia das neuroses, Freud (1898) propõe uma terapêutica para neurastenia (neurose atual) baseada na desintoxicação forçada — "através do controle de hábitos masturbatórios em instituições sob supervisão médica" — que poderia estender-se a qualquer outra forma de dependência. A masturbação e o abuso de drogas são considerados como deslocamentos sintomáticos resultantes da insatisfação sexual. Portanto, nem todo usuário de drogas tornar-se-á, necessariamente, toxicômano; o lugar que o tóxico passa a ocupar na economia sexual do indivíduo é o fator determinante no desenvolvimento do processo de dependência. "Abandonado a si mesmo, o masturbador se acostuma, sempre que acontece alguma coisa que o deprime, a retornar à sua cômoda forma de satisfação. O tratamento médico, nesse caso, não pode ter nenhum outro objetivo que o de levar o neurastênico, que agora recobrou sua força, de volta ao intercurso sexual normal. Pois a necessidade sexual, uma vez que tenha sido despertada e satisfeita por um longo período, não pode mais ser silenciada; pode apenas ser deslocada por outro caminho. Aliás, o mesmo se aplica a todos os tratamentos para quebrar um vício. Seu sucesso será apenas aparente, na medida em que o médico se contentar em privar seus pacientes da substância narcótica, sem se importar com a fonte da qual brotava sua necessidade imperativa. O ‘hábito’ é um mero arranjo de 60 palavras sem nenhum valor explicativo. Nem todos aqueles que têm oportunidade de tomar por um lapso de tempo morfina, cocaína, hidrato de cloral, e assim por diante, por algum tempo, adquirem dessa forma um 'vício'. Uma pesquisa mais minuciosa mostra usualmente que esses narcóticos pretendem servir, direta ou indiretamente, como substituto para uma falta de satisfação sexual; e quando a vida sexual não pode ser restabelecida, podemos prever, com certeza, uma recaída." 64 Vale lembrar as torturantes experiências descritas no capítulo anterior, vividas por Freud nas suas tentativas de abandonar seu 'hábito' de fumante. Suas recorrentes recaídas apontam para a possível incapacidade de restabelecer satisfatoriamente sua vida sexual. Na nossa prática clínica temos comprovado que, de fato, as recaídas dos pacientes toxicômanos estão intrinsecamente ligadas à sua insatisfação sexual. Não obstante, é importante notar que o restabelecimento da vida sexual é muito mais abrangente do que uma atividade erótica satisfatória. A noção 'vida sexual' abarca um leque mais amplo de fatores onde um projeto de vida significativo e a afetividade desempenham papéis de extrema importância. No Chiste e sua relação com o inconsciente, Freud (1904) escreve sobre a relação entre intoxicações e inibições, antecipando as futuras elaborações da relação entre toxicomania e conflitos superegóicos: "O bom humor que surge endogenamente ou é provocado pelos tóxicos debilita as forças 64Freud S., op. cit. 1976, vol 3, p. 302 -303. 61 inibidoras, entre elas a crítica, fazendo assim acessíveis fontes de prazer sobre as quais atuava a repressão. Sob o efeito dos tóxicos o adulto se converte novamente em criança." 65 Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905) propõe que a intensidade constitucional da oralidade tem um papel fundamental na instauração dos 'vícios'. Esta hipótese será desenvolvida amplamente por outros autores contemporâneos e posteriores a Freud. Isto sugere que a predisposição congênita - uma erogeneidade excessiva da zona labial, associada à fixação na fase oral do desenvolvimento libidinal, pode ser um fator etiológico no desenvolvimento da toxicomania. A partir de observações de crianças que chupam o polegar e da sua própria experiência com o tabagismo, Freud sugere que nestes indivíduos: "(...) a importância erógena da zona labial se encontra constitucionalmente reforçada. Se esta importância é conservada, tais crianças chegam a ser, quando adultos, ávidos apreciadores do beijo, tenderão a beijos perversos ou, se forem homens, estarão poderosamente inclinados a beber e fumar excessivamente." 66 Em Contribuição a psicologia da vida amorosa, Freud (1912) retoma o questionamento proposto em A sexualidade na etiologia das neuroses, de por que nem todo indivíduo que tenha experimentado e sentido prazer com tóxicos desenvolve, peremptoriamente, sintomas toxicomaníacos. Para ampliar a noção do lugar ocupado pelo tóxico na economia libidinal e responder à indagação, Freud descreve o vínculo objetal peculiar ao 65Freud 66 S., op. cit. 1976, vol 7, p. 202. Freud S., op. cit. 1989, vol. 7, p. 170. 62 toxicômano (ao alcoólatra, no caso). Este é caracterizado por uma falha na capacidade de elaboração psíquica que inibe o acesso à "série infinita de objetos substitutivos" e interrompe o luto necessário para elaborar perdas objetais, posteriormente, mantendo fixações em objetos infantis idealizados. A viscosidade libidinal constitucional torna-se um obstáculo para a diversidade nas escolhas objetais e o objeto da pulsão deixa de ser contingencial, mas especificamente fixado. A fixação como padrão de vinculação objetal é, na nossa opinião, o maior obstáculo para o 'restabelecimento da vida sexual' do toxicômano. Podemos considerar que aquilo que caracteriza o "patológico" na toxicomania seja justamente, esta fixação da pulsão em um objeto unívoco; fixação tão excludente que poderia ser caracterizada como uma "perversão da pulsão" 67 A pulsão é "pervertida" na sua essência fundamental: a contingência do objeto. O objeto não é mais subordinado na sua contingência à pulsão; na drogadição parece ser a pulsão que submete-se a primazia do "objeto-droga." 68 Introduzindo o termo "drogadicção" como sinônimo de toxicomania, é interessante lembrar aqui o significado da palavra adicto. A origem etimológica provém do latim (addictum) e remonta-se aos tempos da República romana onde o termo designava o homem que, para pagar uma dívida, se convertia em escravo por não dispor de outros recursos para cumprir o compromisso contraído. 67 68 69 69 Ocampo E., Droga, psicoanálisis y toxicomania, !988, Buenos Aires: Paidós, p. 23. Gurfinkel D., A pulsão e seu objeto-droga, 1995, Rio de Janeiro: Vozes, p. 101 - 106. Kalina E., Drogadição, Indivíduo e Sociedade, 1983, Rio de Janeiro: Francisco Alves, p. 23. 63 A ausência de recursos e o tornar-se escravo descrevem bem, como na toxicomania, o destino da pulsão é o de ser escravizada a um único objeto. Retomando a indagação freudiana em relação aos traços distintivos na vida sexual do usuário de drogas e do futuro toxicômano, vemos que a fixação exclusiva ao objeto é determinante. Aulagnier (1979) descreve sucintamente esta diferença: "(...) quando falo da relação passional entre o sujeito e o objeto droga não me refiro ao fato de que, para certos sujeitos a droga esteja entre os objetos ou atividades fontes de um prazer, que não se torna por isso um prazer exclusivo. O sujeito, neste caso, continua desejando outras formas de prazer e investindo outros objetos e outras finalidades." 70 Em Luto e melancolia, Freud (1917) postula que, por causarem elação e euforia, as intoxicações pertencem ao grupo dos estados mentais maníacos. No caso da toxicomania, estes estados seriam atingidos "toxicamente" propiciando um rebaixamento no gasto energético requerido para a manutenção do recalque. Níveis maiores de energia antes empregados no esforço de "desalojamento", tornam-se agora acessíveis ao ego. No artigo O humor, Freud (1927) refere-se novamente à intoxicação associando-a a uma série de métodos que a vida psíquica lança mão na tentativa de evitar a dor resultante das dificuldades apresentadas pela 70 Aulagnier P., Os destinos do prazer, !985, Rio de Janeiro: Imago, p. 150-151. 64 realidade externa e a compulsão ao sofrimento. Além do humor, esta série inclui a neurose e o delírio, o uso de tóxicos, o ensimesmamento e o êxtase. Em um texto publicado no ano seguinte, Dostoievsky e o parricídio, Freud (1928) retoma as idéias expressas trinta anos antes na sua correspondência com Fliess: a mania pelo jogo como substituição da compulsão a masturbação. A paixão desenfreada pelo jogo é considerada como uma forma de adição sem tóxicos que serve como método de autopunição em resposta aos sentimentos inconscientes de culpa. "O 'vicio' da masturbação é substituído pela inclinação ao jogo... A natureza irresistível da tentação, as resoluções solenes, que, não obstante, são invariavelmente rompidas, de nunca fazê-lo de novo, o prazer entorpecedor e a consciência má que diz ao indivíduo que ele está se arruinando (cometendo suicídio) — todos esses elementos permanecem inalterados no processo de substituição." 71 Os sentimentos inconscientes de culpa ocupam um lugar de destaque na etiologia da toxicomania, merecendo atenção especial. Geralmente, pacientes que manifestam este fenômeno psicopatológico chegam às consultas com níveis exacerbados de culpa em relação a seu consumo abusivo de drogas. Parecem identificar-se com o discurso moralista associado a isto: “Eu não presto”, “Sou um bosta”, “Não sirvo 71Freud S., op. cit. 1974, vol. 21, p. 222. 65 para nada”... como se suas dificuldades mentais fossem um problemas de cunho delinqüencial, um crime que só a repressão poderia sanar. Este ponto de vista é conveniente tanto para as famílias que escolhem estes indivíduos como bodes expiatórios para a problemática familiar, como também, paradoxalmente, para os próprios “escolhidos”. Colocar uma tangível, de conteúdos moralistas, no lugar do sentimento inconsciente de culpa, proporciona alívio mental. Em Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico, Freud (1916) introduz a relação entre criminalidade e sentimento inconsciente de culpa: “O trabalho analítico trouxe então a surpreendente descoberta de que tais ações eram praticadas principalmente por serem proibidas e por sua execução acarretar, para seu autor, um alívio mental. Este sofria de um opressivo sentimento de culpa, cuja origem não conhecia, e, após praticar uma ação má, essa opressão se atenuava. Seu sentimento de culpa estava pelo menos ligado a algo.” 72 Em o Ego e o id, Freud (1923) retoma esta relação entre criminalidade e sentimento inconsciente de culpa: “Constitui uma surpresa descobrir que o aumento nesse sentimento de culpa ics. pode transformar pessoas em criminosos. Mas isso indubitavelmente é um fato. Em muitos criminosos, especialmente nos principiantes, é possível detectar um sentimento de culpa muito poderoso que existia antes do crime, e, portanto, não é o seu resultado, mas sim o seu 72 Freud S., op. cit. 1974, vol. 14, p. 375. Parte III. Criminosos em conseqüência de um sentimento de culpa. 66 motivo. É como se fosse um alívio poder ligar esse sentimento de culpa a algo real e imediato” 73 O “crime” da toxicomania encobre “crimes” piores para a consciência. Se por um lado, retirar os conteúdos moralistas em relação ao consumo abusivo de drogas pode desencadear uma exacerbação no abuso podendo tornar-se um festival orgástico - por outro, abre a possibilidade de lidar com os conteúdos originalmente recalcados. Trata-se de um risco calculado que o analista e seu paciente precisam correr para aumentar a possibilidade de elaboração dos conflitos mentais. Em Mal-estar na cultura, Freud (1930) associa a toxicomania à mania e faz uma longa discussão sobre aquilo que chamou "O programa do princípio do prazer". Ampliando a relação dos diferentes métodos empregados na tentativa de evitar o desprazer mencionados no artigo O humor, Freud referese aos narcóticos como "amortecedores" que tornam-nos insensíveis aos sofrimentos da vida. Ao comparar o consumo de drogas com outros métodos de influenciar o psiquismo para evitar o desprazer, Freud considera o primeiro: "O mais brutal, porém mais eficaz desses métodos de influência é o químico: a intoxicação. Eu acredito que nada penetra o organismo, mas é um fato que, por sua presença no sangue e nos tecidos, certas substâncias estranhas ao corpo nos proporcionam sensações agradáveis, imediatas que modificam as condições de nossa sensibilidade a ponto de tornar-nos inaptos a 73 Freud S., op. cit. 1974, vol. 21, p. 68 - 69. 67 toda sensação desagradável. No entanto, é possível que haja substâncias na química de nossos próprios corpos que apresentem efeitos semelhantes, pois conhecemos pelo menos um estado patológico, a mania, no qual uma condição semelhante à intoxicação surge sem a administração de qualquer droga intoxicante. É extremamente lamentável que até agora esse lado tóxico dos processos mentais tenha escapado ao exame científico. O serviço prestado por veículos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um benefício, que tanto indivíduos quanto povos lhes concederam um lugar permanente na economia de sua libido. Devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse 'amortecedor de preocupações', é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade. Sabe-se igualmente que é exatamente essa propriedade dos intoxicantes que determina seu perigo e sua capacidade de causar danos. São responsáveis, em certas circunstâncias, pelo desperdício de uma grande quota de energia que poderia ser empregada para o aperfeiçoamento do destino humano." 74 São estas as referências e observações na obra freudiana que poderiam contribuir para uma compreensão psicanalítica do fenômeno toxicomaníaco. São estas as referências e observações na obra freudiana que poderiam contribuir para uma compreensão psicanalítica do fenômeno toxicomaníaco. 74 Freud S., op. cit., 1974, vol. 21, p. 96 - 97. 68 Resumindo poderíamos dizer que em termos freudianos: — a toxicomania é um sintoma secundário de defesa que torna-se uma mania compulsiva; — a adição é um sintoma, uma compulsão substitutiva do ato sexual, existindo ligação com a masturbação, a mais antiga forma de dependência; — em certos casos, a viscosidade libidinal manifesta na oralidade constitucionalmente intensa pode explicar a ligação entre adições e fixação; — os tóxicos podem ocupar o lugar do objeto primordial promovendo pobreza nas escolhas objetais; — existem adições sem drogas como o jogo, onde atua a auto-punição; — existem semelhanças entre os estados de intoxicação e a mania. A verdadeira contribuição de Freud para esta pesquisa não é através de elucidações ou referências específicas em relação a toxicomania propriamente dita, mas seus aportes sobre a dinâmica da oralidade: a intolerância à frustração, necessidade de gratificação imediata, fixação e regressão. As resistências atuantes na obra freudiana para elaborar um trabalho especificamente dedicado à toxicomania mencionadas nos dois capítulos anteriores não se aplicam a outros psicanalistas contemporâneos e posteriores a Freud. 69 Existem cinco grandes revisões bibliográficas da literatura psicanalítica relacionadas às questões etiológicas e nosográficas presentes na toxicomania: Crowley (1939), Rosenfeld (1961), Yorke (1970), Mijolla & Shentoub (1973) e Ferbos e Magoudi (1986). Baseado nestas, a seguir, faremos um resumo sintético das contribuições e opiniões de alguns destes autores incluindo, também, outros que consideramos relevantes. As primeiras publicações psicanalíticas a abordar diretamente o tema da toxicomania referem-se à dependência de uma droga específica — na maioria dos casos, do álcool. Com As relações psicológicas entre a sexualidade e o alcoolismo, Abraham (1908) inaugura a investigação psicanalítica do alcoolismo sugerindo que, ao suprimir as inibições e sublimações, a intoxicação alcoólica incrementa tanto a sexualidade genital como a perversa polimorfa infantil, libertando inclinações antes reprimidas como o exibicionismo e a homossexualidade. Em um artigo posterior A primeira fase pré-genital da libido, Abraham (1916) procura no desenvolvimento libidinal uma fundamentação etiológica para o papel desempenhado pela oralidade constitucionalmente intensa no processo da instauração do alcoolismo, ressaltando sua avidez oral insaciável. Ferenczi (1911), contribui para o estudo da psicopatologia do alcoolismo com dois textos publicados no mesmo ano: O álcool e as neuroses e O papel da homossexualidade na psico-gênese da paranóia nos quais sugere que o alcoolismo é um sintoma — uma tentativa de auto-cura — e não a causa do conflito psíquico. 70 Concordamos plenamente com esta posição visto que nossas observações clínicas têm nos demonstrado que o abuso de substâncias tóxicas não é a fonte da patologia, mas sua conseqüência; a droga não faz o toxicômano, é o toxicômano que faz a droga. Este autor propõe o tratamento psicanalítico do alcoolismo como o único recurso terapêutico verdadeiramente eficaz, uma vez que é só através deste que pode revelar-se as motivações inconscientes que levaram a instauração da manifestação psicopatológica. A homossexualidade inconsciente é considerada por Abraham e Ferenczi como um dos fatores etiológicos fundamentais que permeia a problemática do alcoolismo. Baseado nas pesquisas destes dois autores, Juliusberger (1912) realizou várias contribuições para a compreensão da dinâmica do alcoolismo, particularmente da dipsomania, destacando, novamente, os mecanismos homossexuais inconscientes combinados com uma tendência ao auto-erotismo e auto-destruição. Retomando a relação estabelecida originalmente por Freud entre os estados mentais maníacos e as intoxicações, os psicanalistas Clark (1919) e Kielholz (1924) pesquisaram a relação entre alcoolismo, narcisismo e depressão. 71 Este último propõe a primeira classificação nosográfica do fenômeno psicopatológico, considerando o alcoolismo uma neurose narcísica relacionada com a psicose maníaco-depressiva. Segundo Kielholz, nesta patologia a dissociação entre o ideal do ego e o ego é tão vasta e intolerável que o indivíduo precisa manter-se constantemente intoxicado para não vivenciar uma profunda melancolia. O aspecto persecutório do ideal do ego é silenciado ao ser diluído em álcool. Até os meados da década de 20, a única publicação na literatura psicanalítica a abordar o alcoolismo conjuntamente com o abuso de outras drogas é um trabalho de Sachs (1923) a respeito da gênese da perversão. Na sua pioneira pesquisa na busca da etiologia comum a ambas manifestações, este autor propõe uma classificação psicopatológica intermediária entre as neuroses compulsivas e as perversões, introduzindo o conceito "neurose-perversão" como referência nosográfica. Esta flexibilidade classificatória ilustra a posição da Psicopatologia Fundamental mencionada na introdução. Uma década mais tarde, como veremos mais adiante, Glover avançara neste sentido propondo ampliar as categorias do diagnóstico estrutural introduzindo os "estados transicionais." Uma das maiores contribuições para o esclarecimento da etiologia do fenômeno toxicomaníaco surge a partir dos extensos escritos de Rado (1926, 1933, 1953). Este autor é o primeiro psicanalista a interessar-se global e especificamente pelo problema da toxicomania separado do alcoolismo. 75 75 A partir deste momento ao referir-nos a "toxicomania" estaremos incluindo o alcoolismo e outras formas de dependência que serão mencionadas explicitamente, se for necessário. 72 Rado considera que na base de todo tipo de toxicomania existe uma "depressão tensa" caracterizada por uma "grande ansiedade dolorosa" associada a um grau elevado de intolerância ao sofrimento. O conceito de "orgasmo alimentar" é introduzido por este autor para descrever a sensação de elação experimentada primeiramente pelo lactante em relação ao seio e revivida, posteriormente, pelo toxicômano com a droga através do chamado "orgasmo farmacogênico". A busca desenfreada da repetição desta experiência resulta na "farmacotimia" — base de toda manifestação toxicomaníaca. Rado considera que por gerarem satisfação e euforia, as drogas inicialmente neutralizam o sofrimento, restabelecendo a satisfação narcísica. Não obstante, este alto nível de auto-estima produzido quimicamente se desvanece com o passar do efeito tóxico e dá lugar a depressões cada vez mais profundas e devastadoras para o ego. Nossas observações clínicas confirmam estas afirmações, visto que no começo do tratamento, pacientes com este tipo de patologia encontramse sujeitos a uma verdadeira "gangorra psíquica" caracterizada pelos altos mágicos e os baixos trágicos nos seus estados anímicos. Rado concorda com Kielholz, Juliusberger e Clark em relação à importância do narcisismo e a depressão na etiologia da toxicomania e com as idéias de Freud e Kielholtz ao destacar seus aspectos maníacos. 73 Em termos nosográficos, Rado divide as toxicomanias em três grupos: o grupo psico-neurótico (de tipo maníaco-depressivo), o esquizofrênico e o psicopático. Simmel (1929, 1930), quem teve uma larga experiência com pacientes internados em uma clínica especializada em desintoxicação — Schloss Tegel, em Berlim — é conhecido por uma célebre frase repetida freqüentemente por autores posteriores: "O superego do alcoolista é solúvel em álcool." Neutralizando o superego, o ego reencontra a auto-estima perdida e seu funcionamento mental passa a ser regido, quase que exclusivamente, pelo princípio do prazer, tornando o paciente uma criança cada vez mais narcísica. Em termos nosográficos, Simmel considera que a toxicomania pode começar sob o domínio dos mecanismos obsessivos mas com a experiência reiterada da intoxicação transforma-se numa neurose narcísica do tipo maníaco-depressivo. Considera também que a toxicomania pode surgir como defesa contra a melancolia, podendo considerar-se uma "mania artificial". Simmel concorda com Kielholtz, Juliusberger, Clark e Rado na importância dada à relação entre toxicomania e depressão, ressaltando seu caráter maníaco, perspectiva que comparte com Freud, Kielholtz e Rado. 74 Este autor tenta elucidar a relação entre a dissolução do superego pelo efeito das drogas e a conseqüente progressiva manifestação de pulsões destrutivas, acreditando que o efeito da droga age e concentra-se no superego. A investigação psicanalítica da etiologia e nosografia dos fenômenos toxicomaníacos ganha novo impulso com os trabalhos de Glover (1926, 1932) quem concentrou seus estudos na fase e o caráter oral na tentativa de elaborar uma teoria abrangente da toxicomania. Suas observações clínicas demonstraram que o sistema classificatório proposto pela psicopatologia psicanalítica clássica é ineficiente para compreender a dinâmica desta patologia. Desenvolvendo as idéias de Sachs (1923), este autor propõe que a toxicomania não é característica de uma estrutura psicopatológica específica, situando-a na fronteira dos territórios da neurose e a psicose, constituindo um "estado transicional". Glover (1926) refere-se ao fenômeno com uma "neurose narcísica circunscrita" e introduz a noção de "reação específica", mecanismo inerente a toxicomania caracterizado por tipos de reações que beiram a psicose; nas suas palavras: "... whose reactions border closely on psychotic mechanisms." 76 Em um artigo onde apresenta um esquema classificatório dos distúrbios mentais, Glover (1932) coloca a toxicomania num lugar especialmente diferenciado — no limite entre a psicose e a neurose. Refere-se à toxicomania 76Blanc J., Caractére et limite: evolution de termes. In: Narcissisme et état-limites. 1986. Paris: Presses de L'Universite de Montreal, p. 74. 75 como um estado "borderline" onde o indivíduo tem um "pé nas psicoses e o outro nas neuroses." Este quadro psicopatológico origina-se nos estados paranóides mas, ocasionalmente, um elemento melancólico pode passar a dominá-lo. Contudo, estes estados encontram-se suficientemente do lado neurótico do desenvolvimento como para poder preservar uma relação relativamente adequada com a realidade, exceto na relação com as drogas que está sujeita aos mecanismos paranóides. Em seu livro Análise do caráter, Reich (1933) declara que a toxicomania é freqüentemente uma manifestação psicopatológica inerente ao caráter "fálico-narcisista sádico". Esta categoria nosográfica é autônoma e independente situando-se intermediariamente entre as neuroses compulsiva e histérica. Na sua descrição deste caráter, Reich propõe que trata-se de indivíduos totalmente identificados com o falo e incapazes de regredir a estágios mais primitivos do desenvolvimento psico-sexual, permanecendo firmemente fixados na fase fálica para proteger-se da regressão à passividade e analidade. Estes indivíduos evitam seus impulsos anais e homossexuais passivos com ajuda dos tóxicos e da agressão fálica. Os escritos de Knight (1937, 1946) a respeito da dinâmica do tratamento de alcoólatras e suas considerações etiológicas em relação a patologia revelam concordância com as idéias de Glover. 76 O alcoolismo é considerado mais como um sintoma do que uma instância mórbida, não sendo característico de uma estrutura psíquica específica. Nosograficamente, este autor também situa o alcoolismo a meio caminho entre as neuroses e psicoses, considerando-o uma tentativa de autocura para o conflito psíquico. Knight considera imprescindíveis certas modificações técnicas no manejo clínico destes pacientes, sugerindo que o analista deve ser muito mais ativo, evitando adotar uma atitude crítica ou condenatória em relação ao álcool ou qualquer outro objeto de dependência. Sugere conjuntamente uma série de sessões com o paciente sentado para tentar estabelecer um bom vínculo inicial. A primeira revisão da literatura psicanalítica a respeito do alcoolismo e toxicomania foi redigida por Crowley (1939) na qual critica Rado e Simmel por darem tanta importância ao "orgasmo alimentar" e por situá-lo numa fase do desenvolvimento anterior à formação do aparelho psíquico. Por achar que não existe uma etiologia específica na toxicomania, este autor critica a "reação específica" proposta por Glover e sustenta que este fenômeno psicopatológico pode manifestar-se nas neuroses, psicoses ou perversões. Em seu livro A neurose de base, Bergler (1949) destaca a importância dos fatores orais precoces e a inclinação à auto-punição masoquista presentes no alcoolismo. Em termos nosográficos considera o alcoolismo como uma neurose classificada por ele na categoria das "neuroses orais" para as quais uma estratégia terapêutica alternativa torna-se necessária. 77 Assim como Knight, este autor também indica a necessidade de uma mudança na técnica psicanalítica clássica onde o analista precisa "dar, dar, e dar palavras" para o vazio associativo do paciente. Bergler comenta que esta mudança na postura do psicanalista torna o trabalho muito mais cansativo do que com as outras neuroses empregando a técnica clássica. Em seu clássico tratado A teoria psicanalítica das neuroses, Fenichel (1945) introduz uma visão da toxicomania que constitui uma espécie de síntese das opiniões nos meios psicanalíticos até aquele momento. Não se trata de uma teoria original, mas de um inventário organizado das idéias dos psicanalistas que trataram do tema até então. No capítulo Toxicomanias, Fenichel faz uma distinção entre as toxicomanias propriamente ditas, as toxicomanias sem drogas e, entre estas duas, o abuso do álcool, que pode ser considerado como um simples euforizante sem ser obrigatoriamente tóxico, e o alcoolismo crônico que constitui uma doença. O toxicômano é definido por este autor como aquele indivíduo que tem disposição a reagir aos tóxicos de maneira tal que tenta aproveitar seus efeitos para simultaneamente satisfazer um desejo sexual infantil, um desejo de segurança e um desejo de manter a auto-estima. Estes indivíduos encontram-se fixados a um objetivo narcisista passivo estando sempre interessados em obter satisfação em detrimento dos outros. 78 Sob a influência dos tóxicos, as satisfações eróticas e narcisistas incrementam a auto-estima de forma extraordinária. Em determinadas adições, particularmente ao álcool, Fenichel também destaca o desaparecimento do superego. Fenichel acredita que em toda toxicomania estão presentes comportamentos próprios do caráter patologicamente impulsivo que tenta através do acting out aliviar a culpabilidade, a depressão e a angústia. Este autor diferencia o que ele chama de "neuroses impulsivas" das neuroses compulsivas por serem as primeiras ego-sintônicas. A compulsão a repetição nas neuroses impulsivas é, pelo menos inicialmente, uma fonte de prazer e não um fastidioso ritual defensivo que tenta compulsivamente evitar o desprazer. O melhor momento para começar uma análise é, segundo Fenichel, durante ou imediatamente depois do processo de desintoxicação, alertando que não se pode pretender que o paciente se mantenha abstinente durante o tratamento. Considera as recaídas como formas de resistência à análise e recomenda conduzir o tratamento inicial, preferencialmente, em uma instituição fechada. 77 Fenichel concorda com Rado, Simmel e Glover ao destacar a relação existente entre a toxicomania e os estados maníaco-depressivos. Está de acordo também com Simmel em relação à importância dada ao desaparecimento do superego, lembrando-nos que é a parte da mundo mental 77 Nossa posição em relação à abstinência, recaídas e início do tratamento aproxima-se à deste autor e será abordada mais amplamente no capítulo dedicado à clínica. 79 solúvel em álcool, e com Juliusberger, Clark, Kiehlholtz, Simmel e Bergler em relação aos distúrbios narcísicos operantes no psiquismo do toxicômano. Weijl (1945) faz várias contribuições para o tratamento psicanalítico do alcoolismo ressaltando a importância do princípio do prazer na dinâmica desta patologia. O álcool é empregado acima de tudo para diminuir a tensão e dor geradas pela influência de um superego arcaico, sádico e persecutório. Através da ingestão de álcool, o superego perde sua influência sobre o ego que então pode ser ilimitadamente magnificado, podendo assim, intoxicar-se com sua própria perfeição e auto-suficiência, até o surgimento da cíclica fase depressiva. O estado de intoxicação é considerado por este autor como um estado maníaco seguido pela depressão do coma alcoólico, sugerindo uma imitação da morte como castigo pelo pecado original. Weijl aponta para a importância do álcool em certos costumes e rituais e sugere que este tem um duplo significado simbólico, representando tanto a mãe quanto o pai; é o símbolo do leite desejado que converte-se no substituto da mãe e da comida totêmica, do pai da horda primitiva assassinado. O alcoolismo representa assim, uma tentativa de concretização do complexo de Édipo (assassinato do pai e união com a mãe). Em termos nosográficos, este autor considera a dependência do álcool como manifestação de uma psicose maníaco-depressiva "artificial", em escala reduzida. Como modificação técnica no tratamento psicanalítico, Weijl considera importante neutralizar os sentimentos de inferioridade do alcoólatra reconstituindo seu ego. Concordando com a maioria dos autores, relaciona o 80 alcoolismo com os estados maníaco-depressivos, concordando também com Simmel, Fenichel e outros ao destacar o ataque do álcool ao superego. Em Êxtase artificial, Merloo (1952) diferencia a psicodinâmica do alcoólatra daquela do toxicômano. Enquanto a maioria dos alcoólatras é maníaco-depressivo de tipo oral, a maioria dos toxicômanos é do tipo esquizóide, habitando um mundo mágico e infantil. Nossa participação nos grupos de auto-ajuda Alcoólicos Anônimos e Toxicômanos Anônimos comentada na introdução deste livro, confirma esta diferenciação. Enquanto os depoimentos dos alcoólicos versam sobre dor, miséria psíquica e impotência, aqueles dos toxicômanos relatam, inicialmente, façanhas onipotentes com as drogas beirando delírios de grandeza. Merloo propõe três mecanismos mentais fundamentais presentes em qualquer tipo de dependência: um veemente desejo de experimentar o êxtase, uma intensa manifestação da pulsão de morte e uma forte dependência oral. Este autor acredita que, através do torpor narcótico, o toxicômano vivência a união com o seio, podendo assim comparar-se com o paciente maníaco, embora se diferencie deste por necessitar dos tóxicos para por em marcha seus mecanismos de defesa. O êxtase experimentado pelo toxicômano é considerado uma "pseudo-elação" que silencia a voz hostil e severa do superego e induz a sensações oceânicas de fusão com o universo. 81 Sawitt (1954, 1963) explicita claramente que a toxicomania não corresponde a uma estrutura psicopatológica específica, tratando-se de um complexo sintomatológico em oposição a uma entidade psíquica em particular. Esta pode manifestar-se numa ampla gama de distúrbios mentais como a esquizofrenia, os estados depressivos, as psiconeuroses, as perversões, os estados borderline ou os distúrbios de caráter. Segundo este autor, independentemente da estrutura na qual a toxicomania se manifesta, o denominador comum a todas as manifestações é a impulsividade. Este ponto de vista concorda com Fenichel em relação as "neuroses impulsivas" e discorda da especificidade apresentada por Glover no conceito de "estados transicionais". Em um trabalho apresentado como requisito para admissão na Société Psychanalytique de Paris, Favreu (1952) discute o tratamento psicanalítico da toxicomania num ambiente hospitalar. Para este autor a toxicomania é "um sintoma" dentre outros e deve ser tratado como tal pelo psicanalista. Este sintoma adquire valores muito diversos dependendo da estrutura psíquica na qual se manifesta. Diferentemente da maioria dos sintomas clássicos tratados pela psicanálise, a toxicomania é considerada em si mesma como uma passagem ao ato, uma reação de tipo perversa que leva a considerar um ego frágil, mais psicótico do que neurótico. Uma das contribuições mais esclarecedoras neste campo de pesquisa psicopatológica é a que está resumida nos artigos escritos pelo 82 psicanalista kleiniano Rosenfeld (1960,1964) Sobre la adicción a las drogas e Psicopatologia de la drogadicción y el alcoolismo no livro Estados psicóticos. Como a maioria dos autores mencionados até aqui, este também vincula à toxicomania distúrbios relacionados às questões edípicas, homossexuais e maníaco-depressivas. Rosenfeld não acha, porém, que este fenômeno psicopatológico seja idêntico aos distúrbios maníaco-depressivos; a diferença reside numa fraqueza egóica muito maior no caso do toxicômano. Concordando com Merloo (1952), este autor declara que enquanto o maníaco-depressivo tem recursos egóicos para acionar os mecanismos de defesa maníacos, o toxicômano precisa do combustível propiciado pela droga para pô-los em marcha. Desta maneira, a droga representa um objeto ideal que pode ser incorporado concretamente para reforçar a onipotência dos mecanismos maníacos de negação e splitting. Para Rosenfeld, este fenômeno psicopatológico não se deve apenas à regressão e fixação oral, mas também a uma excessiva divisão do ego e objetos internos, constituindo uma extrema fragilidade egóica. Fixados na posição esquizo-paranóide, estes indivíduos tentam, a qualquer custo — através do uso da droga — evitar a posição depressiva já que esta representa a incorporação de seus temidos aspectos dissociados. Para o imaginário do toxicômano, a possibilidade desta incorporação representa a desintegração total do seu ego. O toxicômano 83 procura nos tóxicos um recurso quimicamente efetivo que, ilusoriamente, ajudao a superar sua fragilidade egóica e evitar a desintegração psicótica. É o que nos chamamos ficar mutcho louco para não enlouquecer. Em um trabalho intitulado Psychopathologie des toxicomanies, Frécourt (1972) destaca a busca de tóxicos como uma necessidade na toxicomania. Não se trata de uma mera busca de prazer como gostariam de acreditar os não-toxicômanos, usuários de drogas lícitas que podem procurá-las com esse fim. Para este autor, a problemática inerente a toxicomania gira em torno da distância entre aquilo que o toxicômano sente que é, e aquilo que gostaria de ser; entre aquilo que ele acha que não tem e deveria ter: um ideal do ego inatingível. O tóxico é uma "prótese evanescente" que promete tudo e dá nada, constituindo-se como um grande engodo. Apoiado numa vasta experiência clínica, Wurmser (1982) declara no seu artigo The question of specific psychopathology in compulsive drug abuse que jamais encontrou um único usuário compulsivo de drogas que não fosse profundamente perturbado emocionalmente e que não tivesse passado pelas agruras dos conflitos e dificuldades inerentes aos estados borderline ou psicótico. Este autor propõe que a toxicomania freqüentemente manifesta uma equação causal subdividida em várias condições determinantes: précondições, causas específicas, causas contribuintes e causas precipitantes. 84 Wurmser faz uma síntese de traços característicos e sempre presentes nos toxicômanos que tratou: - defeito na defesa contra os afetos aliado a uma tentativa de auto-medicação (conjuntamente, um estado depressivo, uma raiva assassina, vergonha, solidão, sensação de vazio, ausência de pensamentos e falta de interesse); - superego e ideal do ego patológicos. O ideal do ego é arcaico e os aspectos mais maduros surgem na adolescência para não aparecer jamais; - capacidade reduzida de simbolização e dependência de um objeto arcaico; - auto-destrutividade; - gratificação regressiva; - crise narcísica. Um dos autores que mais se dedicou à pesquisa da personalidade do toxicômano é Bergeret (1970,1981, 1983, 1986, 1988). Em vários escritos ele afirma que não existe nenhuma estrutura específica da adição, demonstrando a impossibilidade de se falar dos toxicômanos de maneira global. Segundo o autor, a cada categoria estrutural clássica definida pela psicopatologia corresponde uma possibilidade de funcionamento toxicomaníaco. Baseado neste princípio, Bergeret distingue três tipos de personalidade toxicômana: os de estrutura neurótica, psicótica e depressiva. Embora esta última seja estatisticamente a mais freqüente, não corresponde realmente a uma estrutura, em oposição as duas primeiras que são estabelecidas graças às integrações identificatórias durante a adolescência. A 85 forma depressiva resulta de uma dificuldade em estruturar-se pela falta da interiorização de imagens estáveis e confiáveis, produzindo assim pessoas imaturas com um permanente fundo depressivo. Sem entrar na discussão destas três formas, vejamos as constatações que este autor apresenta "numa síntese sobre a reflexão estruturológica" no seu livro sobre toxicomania e personalidade: 1. Não existe uma estrutura psíquica profunda, estável e específica dos comportamentos de dependência. Isto significa que qualquer estrutura mental pode dar origem a comportamentos de dependência (sejam estes manifestos ou latentes). 2. O comportamento de dependência jamais altera a natureza específica da estrutura psíquica profunda, mas somente seu funcionamento secundário. 3. A dependência de um produto tóxico é buscada pelo sujeito, enquanto tentativa de defesa e de organização contra as deficiências ou as falhas ocasionais que a estrutura profunda possa apresentar. 78 A partir das propostas e considerações deste autor cabe perguntar: se é impossível evidenciar uma estrutura toxicômana "típica", por que então referir-se a três grupos nosográficos clássicos falando deles de estruturas — ou de "estrutura desestruturada", no caso da forma depressiva ? Não significa este procedimento forçar o raciocínio para encontrar, não uma única, mas três estruturas "típicas", ali onde talvez não existe estrutura nenhuma ? 78 Bergeret, J. Toxicomania e personalidade. 1983, Rio de Janeiro: Zahar Editores. 86 Embora não seja considerada como uma estrutura específica, o conceito de toxicomania é mantido por Bergeret para denominar certas particularidades: organizações econômicas parciais; resposta direta da cólera original, ausência de secundarização mental e libidinal da violência natural, dificuldades identificatórias, pobreza no imaginário e predileção dos atos em detrimento das elaborações mentais. Em Addiction and ego function, Zinberg (1975) privilegia os fatores externos como fonte etiológica para a toxicomania e critica veementemente a noção de estruturas pré-estabelecidas. Para este autor, considerar a toxicomania como resultado de conflitos precoces mal resolvidos é sinônimo de falsificação retrospectiva. A base da sua argumentação é a evolução clínica de soldados que usaram e ficaram dependentes da heroína durante a Guerra do Vietnã. Zinberg acredita que o fator determinante desta dependência foi a situação intolerável daquela guerra pois após seu retorno, 90% destes soldados não apresentou manifestações toxicomaníacas. Em Drogue et langage, Oury (1977) diferencia a psicose da toxicomania mas não propõe uma classificação psicopatológica específica. Na toxicomania existe um evitamento da linguagem, da comunicação, como se a droga substituísse artificialmente o "Outro". A regressão estrutural imposta pela intoxicação provoca a falha de uma categoria essencial para a autoconstituição do sujeito: a categoria "do ter". 87 Segundo este autor, a presença desta categoria é imprescindível para possibilitar a introjeção; característica que estaria ausente no toxicômano. Oury descreve o mundo do toxicômano como um mundo fechado e auto-erótico que possibilita o gozo sem ter que dar conta da palavra. Em um trabalho dedicado ao tema do prazer, Aulagnier (1979) refere-se à toxicomania como uma modalidade de relação — a relação de assimetria — cujo protótipo é a paixão. "O investimento do objeto passional é caracterizado como assimétrico, porque o sujeito é inexistente para o objeto investido passionalmente. A droga não é dotada de nenhum desejo, de nenhuma intencionalidade para e por aquele que a absorve." 79 A relação do toxicômano com o objeto de sua dependência é uma relação passional na qual o objeto droga torna-se fonte exclusiva de todo e qualquer prazer; prazer este que adquire a qualidade de necessidade. A transformação do objeto de prazer em objeto de necessidade — de necessidade vital — libera o ego de toda responsabilidade no registro da escolha. Surge assim, o questionamento se o toxicômano tem necessidade de prazer ou, prazer na necessidade unívoca que é infalível e momentaneamente satisfeita. Em relação ao funcionamento mental característico deste fenômeno psicopatológico, Aulagnier (1979) descreve as dificuldades da ordem do pensamento: 79 Aulagnier P., Os destinos do prazer. 1985, Rio de Janeiro: Imago, p. 151. 88 "Se continuarmos no registro do pensamento, diria que a toxicomania é um compromisso entre: o desejo de não mais pensar a realidade e a recusa ou impossibilidade de recorrer à reconstrução delirante desta realidade, ou ainda, a toxicomania é um compromisso entre o desejo de preservar e o desejo de reduzir ao silêncio a atividade de pensamento do Eu." 80 Em relação ao enquadramento da toxicomania em alguma estrutura nosográfica específica, Aulagnier propõe que dada a forma e qualidade do vínculo que o sujeito instaura com o objeto, não é possível situá-la nem no campo das neuroses, nem no campo das psicoses, nem no campo das perversões — embora comparta certos pontos em comum com esta última. No livro Le psychanalyste à l'écoute du toxicomane Fain (1981), apresenta um texto no qual articula sua argumentação a partir do conceito de ‘neonecessidades’. "Eu vejo em inúmeros casos de toxicomania uma doença da civilização... A civilização atual transformou a auto-estima na materialidade, a sociedade de consumo sustenta o indivíduo diretamente de modo a produzir um narcisismo primitivamente secundário." 81 Como ilustração das ‘neonecessidades’, este autor se vale do exemplo de um bebê a quem é dado uma chupeta para acalmá-lo, em vez de permitir que se acalme usando seus próprios recursos, chupando seu polegar. As “neonecessidades” contém a ilusão da ausência total de conflito constituindo uma forte recusa da castração. Idem. p. 152. Fain M., Approche métapsychologique du toxicomane. In Le psychanalyste à l'écoute du toxicomane. 1981, Paris: Dunod, p. 33. 80 81 89 Nessa mesma coletânea de artigos, Gammil (1981) apresenta Narcissisme, tout puissance, dépendance no qual considera a toxicomania como uma patologia do objeto transicional, onde o objeto droga possibilita a negação da importância do objeto humano evitando, assim, o contato com a ambivalência. O toxicômano tem dificuldades para elaborar a posição depressiva — inicialmente em relação ao seio materno e tudo que este representa — o que produz, como formação reativa, um sentimento de onipotência. Seu ideal do ego apresenta uma falha fundamental e o aspecto persecutório do superego é primitivo, cruel e sádico precisando ser apaziguado à qualquer preço: as drogas são o meio de operar este apaziguamento. A droga é um "objeto parcial e patológico que confere ao drogado uma ilusória sensação de onipotência." Segundo este autor, a toxicomania deveria ser considerada "uma defesa massiva contra todo e qualquer sentimento de culpa." 82 Estas considerações psicopatológicas propostas por Gammil aproximam-se daquelas de Rosenfeld em relação à importância dada aos conflitos superegóicos. Embora não se considere psicanalista, Olievenstein (1983) lança mão de alguns conceitos psicanalíticos para investigar o fenômeno psicopatológico da toxicomania. Segundo este autor, a complexidade da 82 Gammil, J. Narcissisme, toute puissance e dépendance. In: Le psychanalyst à l’écoute du toxicomanee. Paris: Dunod, 1981. 90 toxicomania não é redutível nem à neurose obsessiva, nem à psicose maníacodepressiva, nem à perversão; não existe o toxicômano "típico": "O toxicômano sempre se assemelha um pouco a alguma coisa que ele (o terapeuta) já conheceu: um pouco do psicótico, um pouco do maníaco depressivo, um pouco do perverso, um pouco do homossexual, etc." 83 Em termos etiológicos, Olievenstein considera que a toxicomania surge da confluência de um conjunto dinâmico de três fatores: o produto, a personalidade do usuário e o momento sociocultural. Quando os três fatores estão presentes de maneira particularmente desfavorável, seu encontro leva a instalação da dependência. A fragilidade egóica joga um papel fundamental na personalidade do toxicômano. Para descrevê-la, Olievenstein empresta a metáfora lacaniana do "Estádio do espelho como formador da função do eu, tal como nos é revelado na experiência psicanalítica” e a modifica para o "Estádio do espelho partido". Segundo esta versão modificada da metáfora, no futuro toxicômano ocorrerá algo intermediário entre uma formação egóica bem sucedida e outra estilhaçada; quase impossível. Este momento é descrito com as seguintes palavras : "Nesta passagem em que se deve constituir um ego diferente do ego em fusão com a mãe, tudo se passa como se existisse simultaneamente esse cara a cara com o espelho, essa descoberta de si e da imagem de si. Só que nesse preciso instante o espelho se parte, refletindo, ao mesmo tempo uma 83 Olievenstein C., A vida do toxicômano. 1983, Rio de Janeiro, Zahar, p. 12. 91 imagem, porém uma imagem fragmentada e uma incompletude representada pelas fendas deixadas pela ausência do espelho ..." 84 Para Olievenstein, a droga constitui uma espécie de cimento que completa as fendas e refaz essa efêmera imagem de um ego não fragmentado. A dependência é para o sujeito uma “maneira de ser no mundo” que o protege de sua angústia fundamental: angústia mortífera de desintegração. Diante do duo toxicômano - droga, este autor propõe uma estratégia terapêutica especial; trata-se de dispositivos terapêuticos "transicionais" divididos em três fases sucessivas. Inicialmente, há o "desmame" físico, após o qual entra a fase de isolamento do meio onde predomina a cultura toxicomaníaca e o terceiro passo, a psicoterapia específica. A proposta desta terapia específica, a "psicoterapia perversa", não é absolutamente a mesma de um tratamento psicanalítico tradicional, tendo características próprias. Trata-se de uma espécie de sedução onde a escuta — ao contrário da analítica — não pode ser silenciosa, já que não há ainda possibilidade de espera. Embora o analista manipule estrategicamente a transferência para, gradualmente, ocupar o lugar da droga, não se trata de trocar uma dependência por outra, pois o objetivo final desta técnica terapêutica é a independência psíquica do sujeito. 84 Olievenstein C., A vida do toxicômano. 1983, Rio de Janeiro, Zahar, p. 16. 92 Kalina (1980) é um dos raros autores que tem se dedicado ao estudo da toxicomania que a considera como manifestação psicopatológica de uma estrutura unívoca. Para este autor, a toxicomania "é sempre uma conduta psicótica e tem a estrutura de um estado delirante." 85 McDougall (1984, 1987) propõe a existência de uma "estrutura adictiva" onde a atuação (no sentido psicanalítico) representa uma maneira compulsiva de evitar um transbordamento afetivo. Os toxicômanos são considerados como "des-afetizados;" pessoas para quem qualquer emergência 86 de emoção é imediatamente dispersa pela ação. O que caracteriza a "personalidade adictiva" é a constante procura, fora de si mesmo, de soluções para problemas que são internos. O objeto (veículo da solução) pode ser o mais variado, já que o importante é o modo de se relacionar com ele: "A 'solução' encontrada pode ser uma substância: álcool, comida, droga... ou então a utilização ativa de outros (o que faz parte dos problemas ditos narcísicos da personalidade), ou ainda uma utilização adictiva da sexualidade; isto é, numa relação sexual em que o objeto tem pouca importância ou deve mudar constantemente." 87 85 Kalina E.,Drogadição, família e sociedade, 1983, Rio de Janeiro: F. Alves, p. 36. McDougall J., The 'dis-affected' patient: reflections on affect pathology. 1984, Psychoanal. Q., LIII: 386 - 409. 87 Idem. Conferências Brasileiras, 1987, Rio de Janeiro: Xenon, p. 136. 86 93 Como o objeto da dependência é uma tentativa de resolução dos conflitos internos, seu efeito é sempre transitório, e a atividade toxicômana tem de ser renovada constantemente. McDougall denominou este objeto de "objeto transicional patológico" (utilizando o pensamento de Winnicot), já que se trata de um objeto que nunca completa a transição para o registro da linguagem ou do pensamento. Em termos nosográficos, McDougall utiliza o modelo da toxicomania para compreender a perversão, propondo para esta última a expressão "sexualidade adictiva". Na concepção desta autora, o funcionamento mental do toxicômano apresenta um déficit de simbolização assemelhando-se ao funcionamento mental das personalidades psicossomáticas: o "pensamento operatório" e a "alixitimia". McDougall levanta a hipótese de que as defesas narcísicas e a toxicomania serviriam como proteção contra regressões psicossomáticas. No seu livro Toxicomania y psicoanálisis: las narcosis del deseo, Le Poulichet (1987) define dois eixos da "montagem toxicômana" como tentativas de fuga do "sofrimento insuportável" presente na toxicomania: as dimensões de substituição e suplemento. A primeira destas, segundo a argumentação da autora, visa substituir —ou, ao menos escorar— a deficiência da instância simbólica diante dos assaltos sofridos ao nível do real. Pelo recurso à droga, tenta-se organizar um circuito pseudopulsional fechado, com o intuito de proteger-se contra invasão por um Outro vivido como absoluto, isto é, não castrado mas impondo uma castração real. 94 Enquanto "formação narcísica" a toxicomania opõe-se, portanto, ao suposto gozo do Outro e ao horror intolerável que inspira, pelo fato de implicar em castração. Para evitar esta última recorre-se à "operação do farmakon" que anestesia ou narcotiza o desejo; o sujeito fica exilado do seu desejo e passa a funcionar na ordem da necessidade. No caso da dimensão de suplemento, o sujeito engaja-se numa competição fálica, lançando mão de dispositivos perversos para assegurar-se de um saber (e não um ser) que possa permitir-lhe uma autosustentação. Pela suspensão do desejo próprio, o sujeito oferece-se como instrumento do gozo do Outro apoiando-se na recusa da castração —mas abrindo mão, simultaneamente, de sua condição de sujeito pela dependência castradora do corpo. Melman (1992), em Alcoolismo, delinqüência e toxicomania: Uma outra forma de gozar sustenta que a etiologia da toxicomania tem duas vertentes: a primeira, sugere que qualquer um pode tornar-se toxicômano, até mesmo acidentalmente e a segunda propõe que é uma causa social que facilita seu surgimento. Estas duas vertentes estão entrelaçadas pois a "sociedade de consumo" repousa sobre um ideal de consumo encarnado pelo toxicômano. O sonho de todo fabricante é produzir um objeto sem o qual ninguém poderia passar, objeto que dentre suas qualidades, seria capaz de apaziguar todas as necessidades e desejos, constituindo assim, uma perfeita dependência. 95 Em relação aos determinantes, o autor considera que a maioria das pessoas se torna toxicômana porque a droga circula no seu meio e porque esta tem uma inscrição na cultura de seu tempo. Melman considera que o desejo do toxicômano desaparece para transformar-se em necessidade, necessidade de um produto idealizado e incorporável. Embora esta descrição leve a associações com o falo e com a estrutura perversa, Melman não situa a toxicomania em nenhuma estrutura psíquica em particular. No seu lugar, ele propõe uma modalidade de gozo específica e particular à nossos tempos, o gozo ilimitado. Este gozo não se realiza no momento da satisfação, mas, paradoxalmente, no momento da privação, no estado de tensão desejante. Este paradoxo surge no toxicômano como resultado da ausência do registro simbólico da falta. Esta falha, por sua vez, conduz a tentativa de compensação através da inscrição de uma falta real no próprio corpo. Melman alerta que este processo seria diferente no caso do alcoólatra por este sofrer ao acreditar que estão privando-o de um gozo. O alcoólatra tenta fazer uma compensação através da ingestão continua do líquido. Seu gozo, portanto, não acontece durante a privação, mas no momento da incorporação. Para Melman, o toxicômano sofre de uma capacidade de simbolizar a falta. Fugindo da angústia de castração, o toxicômano coloca no 96 lugar da falta insustentável, um objeto que venha apazigua-la; um objeto real: a droga. Em termos de modificações recomendáveis na técnica psicanalítica clássica para lidar com este tipo de paciente, Melman (1981) propõe o reforço narcísico do paciente para estimular o desenvolvimento da transferência. O artigo de Petit (1990), Função paterna e toxicomania no livro A clínica do toxicômano se propõe pesquisar a função da "necessidade" da droga. No processo de abstinência, quando é a droga que falta, surge a dor, e é somente quando esta dor desaparece que surge a angústia. Portanto, a angústia sobrevem quando a "necessidade" começa a faltar ... a "necessidade" e não a droga. Segundo este autor, a angústia surge porque uma vez abstinente falta-lhe a "necessidade" que servia de ancora identificatória. É da falta de dependência que sofre o sujeito desintoxicado. Este autor descreve o momento que consideramos ser o mais difícil e crucial no tratamento do toxicômano. É o momento em que sua "necessidade" lhe causa horror pois percebe que é possível passar sem a droga, mas o fato é que ele ainda não sabe verdadeiramente deixar de ter "necessidade" dela. Está ainda acostumado a que a "necessidade" obture o lugar do desejo. A este paradoxal momento no tratamento de toxicômanos onde um sujeito desejante pode surgir, Olievenstein (1989) denominou a "falta da falta" e nos "o fim da picada". Trata-se de um momento perigoso de penosa e gradual metamorfose rumo a experiência da não-dependência. É o momento de maior sofrimento para o sujeito desintoxicado que ainda não tem experiência nos assuntos da subjetividade. 97 Olievenstein considera este momento do tratamento o mais perigoso existindo risco de suicídio, uma vez que o sujeito passa por um período de falta de amor por si mesmo e perde a ilusão de uma "solução". Chegar ao "fim da picada", ou seja, sentir falta da falta da droga, implica o enfrentamento com a falta fundamental inerente à condição humana. Neste momento o futuro do toxicômano se torna instável, não se espera grande coisa dele, exceto o não retorno a um limiar insuportável de sofrimento. Parece uma "pobre vida" limitada e retraída, mas o significado desta insignificância é uma vitória sobre a morte e a loucura. É verdadeiramente surpreendente acompanhar este processo e perceber que, as vezes, alguns pacientes conseguem abandonar a certeza da repetição e a fantasia do desejo, para tornar-se sujeitos desejantes. Calligaris (1991) apresentou durante um seminário sobre a neurose obsessiva, importantes contribuições para elucidar a toxicomania. Para situar este fenômeno na modernidade, o autor retoma o conceito hegeliano do desejo: "Para Hegel, o próprio do desejo humano é que ele é desejo de desejo; desejo no outro seu desejo. O desejo humano não teria como desejar um objeto externo, sem a mediação do desejo do outro." 88 88Calligaris C., Seminário sobre neuroses obsessiva, manuscrito não publicado. 98 É interessante notar que esta colocação é rigorosamente freudiana, uma vez que em 1915, no artigo Pulsões e destinos de pulsões, Freud já falava à respeito da contingência do objeto que satisfaz a pulsão. Quando acreditamos ter conquistado o objeto do nosso desejo, este já encontra-se em algum outro lugar. Continuando com Calligaris à respeito de Hegel: "O que se encontra na origem deste desejo humano é a animalidade da qual saímos, que se caracteriza em ter desejo do objeto que se satisfaz no consumo, na anulação do objeto, no gozo. Há uma oposição entre desejo e gozo. O gozo é próprio do animal. O acento dado na contemporaneidade é do lado do gozo, do consumo imediato de um produto qualquer, portanto, não é do lado do desejo. Neste sentido, a toxicomania não é patológica. A toxicomania é uma espécie de figura do espírito da contemporaneidade, figura exemplar da escolha pelo gozo." Calligaris não considera a toxicomania como fuga individual mas, como sintoma social. Neste sentido, é surpreendente que a sociedade ofereça aos toxicômanos centros de recuperação para que possam sair da dependência promovida pela própria sociedade. Por outro lado, este autor aventa a hipótese da toxicomania ser uma tentativa de resolver o sofrimento neurótico. Nas suas palavras: "A toxicomania é uma tentativa de sair da neurose pela fascinação do objeto. Deste ponto de vista, o laço social de um grupo de toxicômanos não é diferente de um grupo de consórcio de carros, já que o objetivo destes grupos é celebrar o objeto na civilização. Não se trata de reparar a castração, graças a um sacrifício, se trata que os objetos são representantes do Outro e é pelo acesso aos objetos que se alcança significação. Neste quadro, não há reconhecimento da castração; portanto, apoderar-se do objeto tem como objetivo não se submeter aos deveres fálicos. A saída toxicomaníaca é uma invenção deste século." 99 Bucher (1992) Drogas e drogadição no Brasil, considera a toxicomania como resposta à falhas identificatórias que repercutem na vivência corporal e na economia narcísica do toxicômano. Estas falhas acarretam deficiências na função simbólica. A pobreza simbólica alimenta a procura de um acesso direto ao corpo, acesso este não contaminado pelo desejo do Outro e, portanto, fora da linguagem. O drogado outorga-se o objeto droga para provar sua auto-suficiência, para comprovar a ideia que não lhe falta nada e não depende de ninguém. Isto é, não há limites nem castração. Este resumo bibliográfico permite notar formulações divergentes, por vezes contraditórias, ou pelo menos heterogéneas em relação às considerações etiológicas e nosográficas do fenômeno psicopatológico da toxicomania. Os autores podem ser divididos essencialmente em dois grupos no que concerne a classificação nosográfica: enquanto o primeiro grupo formula a idéia que a toxicomania é uma manifestação psicopatológica característica de uma estrutura psíquica específica, o segundo propõe que a toxicomania é um comportamento ou conjunto sintomatológico que pode manifestar-se nas neuroses, nas perversões, nas psicoses ou nos estados borderline. No que concerne as considerações etiológicas, parece haver um relativo consenso entre os autores visto que a maioria deles refere-se à importância dos fatores orais, homossexualidade latente, auto-erotismo, sadismo, impulsividade e fragilidade egóica. Não obstante, alguns dos autores 10 aqui apresentados consideram que a fonte etiológica da toxicomania encontrase nas estruturas sociais, sendo estas reflexo da contemporaneidade. O elemento que mais chama nossa atenção neste resumo bibliográfico é a profusão de neologismos nosográficos apresentados pelos diversos autores como tentativa de descrever o fenômeno psicopatológico da toxicomania; entre outros: "borderline", "neurose oral", "neurose-perversão", "mania artificial", "pseudo perversão", "neurose impulsiva", "estrutura adictiva", "montagem toxicomaníaca" e "formação narcísica." Este tipo de elasticidade diagnostica e nosográfica permite que as patologias estejam em criativa busca de nomenclaturas — uma descrição — em oposição aos nomes ou categorias rígidas em busca de patologias específicas. Um grande número de autores considera a toxicomania como um mecanismo de defesa que permite silenciar um superego particularmente sádico. Nossa experiência clínica tem demonstrado que, de fato, o consumo abusivo de drogas é uma tentativa de "cura" de um superego excessivamente severo, que esmaga o ego com as exigências de um ideal inatingível. Como foi colocado anteriormente, a toxicomania é uma "solução", uma saída criativa para um ego totalmente esmagado. Pode-se discutir a eficácia desta "cura", mas não deve negar-se a função estruturante e o elemento de criatividade presente durante, pelo menos, os primeiros estágios da instauração desta patologia. 10 Por outro lado, não deve subestimar-se a precariedade de tal "cura", caindo em um "elogio" a droga, pois trata-se de uma repetição compulsiva destinada, quase que exclusivamente, a libertar o ego da tirania opressora do superego; impossibilitando qualquer tipo de desenvolvimento. Passemos, então às particularidades da clínica psicanalítica da toxicomania. O lixo clínico Como fenômeno que resiste à classificação nosográfica clássica, a toxicomania pareceria pertencer ao território da ignorância, ao lugar do excluído e marginalizado; uma espécie de lixo clínico. Isto não se aplica exclusivamente às psicologias em geral, mas particularmente à psicanálise, visto que são raros os psicanalistas que aceitam em análise o que chamamos de pacientes (não política) mas "psicanalíticamente incorretos." Acreditamos que esta resistência seja alimentada — não só pela já mencionada sintomática ausência na obra de Freud de um texto específico sobre a toxicomania, mas também pelas características do funcionamento mental da maioria destes pacientes. Seu mundo mental esta geralmente dominado por um tipo de pensamento para o qual coisas e comportamentos tem muito mais relevância do que conceitos. Sua falta de imaginação e incapacidade de associar denotam um mundo mental empobrecido e precário, limitado ao fatual e atual; assemelha-se ao pensamento operatório descrito por Pierre Marty (1990) nas suas pesquisas sobre o mundo mental* de pacientes com desordens psicossomáticas. 10 A imagem que gostamos de evocar para ilustrar este tipo de funcionamento mental é a de um caminhão "Concremix". São aquelas betoneiras que estão sempre misturando os mesmos quatro elementos básicos — areia, pedra, água e cimento — para formar o concreto que despejam onde forem requisitadas. São pacientes que apresentam uma espécie de falha na capacidade de simbolização que revela-se na sua dificuldade de produzir associações e no fato que o mundo das representações lhes é totalmente estranho. São pacientes que faltam constantemente, se afastam da análise por longos períodos, procuram o analista fora dos seus horários de sessão, atrasam o pagamento, enfim; são pacientes que se expressam através de uma constante atuação, criando certa instabilidade na clínica. Mas, afinal, a clínica psicanalítica da toxicomania difere da clínica de outras psicopatologias? O que teria de particular? Para responder estas indagações lançamos mão da nossa prática clínica. Uma das particularidades da clinica psicanalítica da toxicomania é que, diferentemente de outras psicopatologias, o sintoma serve como substrato de identidade e é geralmente prazeroso, evocando uma certa semelhança com a clínica das perversões. No entanto, difere desta última, visto que na toxicomania o fetiche não é da ordem do simbólico ou do imaginário, mas da ordem do real. Na toxicomania, a droga é um significante sem significância. 10 O tratamento ameaça não só escancarar os conflitos que o paciente tenta evitar através do abuso dos tóxicos, mas também destruir a sua quase exclusiva fonte de alívio, prazer e suporte narcísico. Os únicos grupos sociais que sentem orgulho em relação à seu sintoma são os fanáticos religiosos e os toxicômanos. Não é raro que estes pacientes — em vez de manifestarem uma genuína demanda de análise — procurem tratar-se sob pressão de familiares, de instâncias sociais ou jurídicas, o que dificulta ainda mais um pedido pessoal assumido. Não é muito comum que tal demanda se expresse uma vez que o uso que o toxicômano faz do seu objeto corresponde a uma tentativa de dispensar o circuito da demanda e da comunicação. É o que eu chamo de "demanda de análise (não para inglês, mas) para familia ver". A tarefa principal de uma série de entrevistas preliminares é tentar detectar ou, se for preciso — e geralmente o é — despertar uma demanda pessoal de análise. Durante estas entrevistas preliminares costumo aventar a hipótese que as drogas não constituam o problema do paciente, mas a "solução" possível para problemas dos quais o paciente parece não ter a mínima noção — e eu menos ainda — e que o irresistível impulso à drogar-se seja necessário para encobrir as verdadeiras razões do seu sofrimento. Tenho achado, quase sempre, muito útil praticar neste momento do tratamento, uma espécie de psicopedagogia psíquica para introduzir o paciente às noções elementares do mundo mental: mundo interno / mundo externo, conflito, representações, pensamentos, ... 10 No caso destes pacientes, uma genuína demanda de análise depende do nível de angústia e conflito nos seus vínculos com a droga no momento das entrevistas. Depende de terem atingido uma fase na qual o abuso de drogas passa a ser ego-distônico por criar-lhes sérios problemas afetivos, profissionais, legais, familiares ou por colocar em risco a própria vida. Este é o momento — chamado pelos Alcoólatras e Toxicômanos Anônimos de fundo do poço — no qual a lua de mel está acabada já faz algum tempo e o casamento com o tóxico resume-se a uma repetição compulsiva cujo objetivo já não é mais a obtenção de prazer, mas a necessidade de evitar o desprazer físico e mental que a falta da droga produz. Esta necessidade resulta na narcose do desejo (Poulichet, 1987) ou melhor, na necrose do desejo, e conjuntamente, na erradicação de qualquer traço de subjetividade. É o momento em que a prótese narcísica constituída pela droga não tem mais eficácia como maneira de ser no mundo que protege o toxicômano das suas angústias fundamentais. Não deve escamotear-se o elemento estruturante e voluntarista presente na dependência; o sujeito procura na sujeição um modo de subjetivação, porém o uso compulsivo daquele objeto real — inebriante e/ou anestesiante — é dessubjetivante, desencadeando a evacuação de todo vestígio subjetivo. A extrema fragilidade e fragmentação egoica destes pacientes produz um fenômeno transferencial muito particular. No começo do tratamento 10 estes pacientes manifestam um verdadeiro pavor do divã; precisam me ver, me sentir, me mastigar, me incorporar, me aplicar na veia ... É o que eu chamo de transferência canibal; oralmente ávida, voraz, indiscriminada e excessiva. Passo a ocupar o lugar de alter-ego, gurú; o ideal de seus egos, e assim me vejo, freqüentemente, sendo imitado nos meus hábitos, trejeitos e discurso. Trata-se de um lugar onde o analista entrega-se de corpo e alma para servir de continente ao vazio simbólico no paciente. A regra fundamental da associação livre é presa à incontáveis relatos repetitivos de façanhas com as drogas, denotando uma severa pobreza de discurso. É paradoxal que uma atividade supostamente libertária (o ato de drogar-se) esteja sujeita a uma repetitiva mesmice compulsiva. Atender vários pacientes toxicômanos em começo de análise, no mesmo dia, pode ser bastante perturbador para o analista. São sessões extremamente tóxicas onde a minúcia do relato de sensações e baratos pode atingir o analista. (grinfas, baque, overdose, sangue). No início do tratamento psicanalítico de toxicômanos sempre surge um elemento de importância crucial: a abstinência. É evidente que o trabalho do psicanalista torna-se mais difícil na medida em que não só trabalha com psiquismos rudimentarmente estruturados, mas tem que também lidar com estados confusionais provocados pela intoxicação. Que o paciente compreenda e aceite a importância de evitar estes estados mentais para que a análise possa se desenrolar, é inegável. Mas 10 caberia ao psicanalista exigir isto como condição sine qua non para que a análise possa acontecer? Para elaborar esta questão devemos remeter-nos à diferença entre a abordagem médica e a abordagem psicanalítica. A partir da minha experiência, posso afirmar que pacientes toxicômanos freqüentemente despertam no psicanalista a tentação de ordem médica de salvá-los ou curá-los. É como se a figura da droga representasse, imaginariamente, o mal a ser extirpado; uma espécie de tumor maligno. Sob o ponto de vista da medicina, abstinência e cura são sinônimos, refletindo os ideais de saúde dos médicos. Na abordagem psicanalítica, este impulso cirúrgico é substituído por uma tentativa de lentamente criar "um espaço que seja tempo de palavra" (Poulichet, 1987) através do qual o paciente possa progressivamente deixar de ficar a mercê do real, do não simbolizável, do inominável e arcaico. Tanto a abstinência quanto o consumo ou abuso de drogas deveriam ser, a meu ver, abordadas sob um ponto de vista dinâmico na relação transferencial. As propostas de abstinência, consumo moderado ou qualquer outra alternativa devem partir do paciente e não ser uma recomendação ou, menos ainda, exigência do psicanalista. Freud (1913) já nos alertou em Totem e tabu, que o interdito cria o desejo. Se aceitarmos a hipótese que a toxicomania é uma manifestação sintomática, podemos analogamente considerar o caso de uma histérica que é advertida pelo psicanalista que a condição para o tratamento é abster-se de toda 10 tentativa de seduzi-lo; ou um obsessivo a quem se recomenda abster-se do ritual de lavar as mãos antes e depois de cada sessão como condição para o bom andamento do tratamento. A abstinência na clínica psicanalítica da toxicomania não atinge exclusivamente o paciente; o psicanalista deve também abster-se para não ceder a uma série de tentações perturbadoras. Além da já mencionada tentação de salvar o paciente extirpandolhe o "tumor-droga", o psicanalista também sofre a tentação de tornar-se avalista das propostas de abstinência do paciente. Isto pode criar situações nas quais de avalista, o analista passa a ser uma espécie de fiscal superegóico cuja maior preocupação é a manutenção do contrato de abstinência com o paciente. Esta troca de funções — de analista para avalista-fiscal — promove a rescisão do contrato psicanalítico, transformando-se em um contrato sadomasoquista que conduz o tratamento para um inevitável impasse. Ou seja, se o analista ceder a esta tentação, estará aumentando, consideravelmente, a probabilidade que o paciente minta omitindo recaídas e outros acontecimentos que possam decepcionar ou trair seu avalista. Que na verdade é seu analista. Não cedendo a esta tentação, o analista abre a possibilidade de considerar as recaídas como material de análise passível de interpretação como resistências ao vínculo transferencial. O analista verdadeiramente abstinente, aquele que não visa nem a abstinência nem qualquer outro objetivo normativo em relação ao paciente, pode constituir-se como observador neutro. Sem este 10 espaço de sincera observação neutra, além do bem e do mal, é praticamente impossível que o ato psicanalítico possa acontecer. Outra tentação que surge freqüentemente no psicanalista é a de ocupar, peremptoriamente, o lugar da droga. Esta tentação tem sua origem na onipotência do analista e na necessidade do paciente de achar um objeto de dependência substitutivo que lhe propicie o mesmo alívio para seu sofrimento. Ceder a esta tentação pode ser muito pernicioso já que ter que ocupar o lugar da droga é, na nossa opinião, meramente um estágio do tratamento e não um fim em si mesmo. No começo do vínculo transferencial surge, no paciente, uma espécie de rivalidade interna entre a droga-em-si, a droga-do-analista e o analista-droga. analista À medida que a transferência ganha potência, a droga-do- constitui-se, progressivamente, em analista-droga, gradualmente ocupando o lugar da droga-em-si. Um paciente deixou bem claro esta substituição dizendo que estava trocando a cocaína injetável pela "Waksina" — corruptela com meu sobrenome que sugere uma vacina. O vínculo com o produto perde sua intensidade libidinal abrindo caminho para o investimento erógeno no vínculo transferencial. Deste lugar privilegiado, o analista pode inocular o paciente com o vírus que promova seu acesso ao simbólico, tornando assim sua queixa enigmática em vez de concreta. A vantagem do analista-droga sobre a drogaem-si é que enquanto o primeiro fala, representa e significa através da 10 linguagem, a segunda é silenciosa como a pulsão de morte e não representa nada além de si mesma. Esta configuração transferencial - contratransferencial, onde o analista se coloca no lugar da droga, é denominada por Olievenstein (1989) Psicoterapia Perversa, dada a qualidade fetichista do lugar ocupado pelo analista. Trata-se de aceitar funcionar por um certo tempo em duo com o toxicômano, como este funcionava com seu produto, estabelecendo um vínculo quase fusional. Para tanto, ele propõe que a intervenção do terapeuta, "toxicoterapeuta," seja de início constante; ele deve "contornar a resistência, seduzir, confortar, matraquear, fazer mal, partilhar, rejeitar, zombar. Em suma, deixar pouco lugar para angústia." 89 Com o avanço do tratamento, Olievenstein considera que deve estabelecer-se a evolução para a ortodoxia terapêutica o que implica que o paciente não poderá terminar seu percurso com o mesmo "terapeuta transicional." Quando a consolidação do "ego ortopédico" é suficientemente forte, o toxicômano se contenta com esta cicatrização ou vá adiante, fazendo a escolha de uma análise ortodoxa. A "glória e honra" do terapeuta transicional é, segundo este autor, parar aí, permitindo a partida do seu paciente. 89Olievenstein C., O cuidado com os toxicômanos: uma ética para uma psicoterapia perversa. In: A clínica do toxicômano. 1989. Porto Alegre: Artes Médicas, p. 121. 11 Embora concorde com a proposta terapêutica no que tange o lugar ocupado pelo analista, minha experiência clínica leva-me a discordar deste autor em relação ao destino do terapeuta que seria, para ele, o mesmo que "a seringas de plástico que se usa uma vez e se joga fora." 90 A honra e glória do terapeuta, na minha opinião, é continuar o tratamento que pode até tornar-se mais "ortodoxo." Tenho acompanhado em análise, por um tempo bastante prolongado, vários pacientes toxicômanos graves junto aos quais observei a possibilidade da passagem da terapia transicional proposta por Olievenstein para uma atuação psicanalíticamente mais ortodoxa. De qualquer maneira cabe perguntar qual seria a relevância para o tratamento de um maior ou menor grau de ortodoxia? Voltando as tentações, a quarta tentação que ameaça quem se propõe trabalhar psicanalíticamente com este tipo de psicopatologia, é a de sentir um efeito de fascinação em relação ao discurso do toxicômano. Isto é muito perigoso pois pode levar à impotência terapêutica. É como se, a partir de sua neurose trivial simples (nada garante que seja tão simples nem trivial, mas ...) o analista secretamente invejasse e admirasse a qualidade intensa e supostamente plena do gozo perverso de seu paciente. Isto é uma idealização que não leva em conta nem a pobreza, nem o sofrimento psíquico inerentes ao gozo tanático na toxicomania. 90Idem. p. 123. 11 Estas quatro tentações: salvar cirúrgicamente, constituir-se avalista, ocupar o lugar da droga e fascinar-se pelo discurso devem remeter o psicanalista à sua própria abstinência. Para poder pensar o duplo problema da abstinência no contexto da clinica psicanalítica da toxicomania, deve considerarse uma dinâmica transferencial-contratransferencial na qual a abstinência do analista desempenha um papel de suma importância. Dada a complexidade destes casos, a capacidade de abstinência do psicanalista depende, também, do seu grau de onipotência terapêutica. É onipotente pensar que, via de regra, bastam três, quatro ou cinco sessões semanais de psicanálise para conter todas as necessidades terapêuticas dos pacientes. O reconhecimento dos limites terapêuticos da psicanálise implica, freqüentemente, associar-se à outros profissionais para um trabalho multidisciplinar. Pacientes em abstinência ou muito perturbados podem manifestar quadros clínicos que requerem cuidados psiquiátricos. A figura do psiquiatra ajuda o paciente na sua relação médico-biológica com o tóxico e o psicanalista a não cair na tentação de ordem cirúrgica na sua contra-transferência com o paciente. Sustentados pelo suposto saber médico, os psiquiatras e as instituições especializadas em desintoxicação podem exigir a abstinência em nome da salvação ou cura médica. São eles os verdadeiros avalistas do contrato de abstinência e como representantes da lei e do limite promovem um tipo de vínculo muito diferente daquele promovido pelo psicanalista 11 A inclusão da família no tratamento psicanalítico da toxicomania através da terapia familiar é de crucial importância. As famílias persistentemente manifestam resistências a este recurso terapêutico, uma vez que o sintoma é indispensável aos membros do grupo, propiciando vantagens secundárias tanto à família quanto ao paciente. Desvendar a cegueira familiar em relação aos lugares ocupados por cada membro ameaça revelar a necessidade de uma reorganização que é perigosa para paciente o tênue equilíbrio familiar. Mas sem esta reorganização, o muito provavelmente voltará a manifestar o sintoma, independentemente da eficácia do trabalho psicanalítico individual. Vemos assim que, através do trabalho multidisciplinar, o setting psicanalítico fica mais resguardado, aumentando a possibilidade que o psicanalista exerça sua abstinência perante as quatro grandes tentações antes mencionadas. Passemos agora para a descrição de algumas vinhetas de um caso clínico. Este caso foi escolhido para esta dissertação por reunir algumas das considerações apresentadas até o momento. 11 Um ponto além da favela “Desde que nasci, meus pais não sabem o que fazer comigo, onde me deixar. Sempre fui um ‘pestinha’. Sou o pior filho que pais poderiam ter, sempre aprontei.” Paco é um rapaz de 19 anos, primeiro filho de dois irmãos. Tem o mesmo nome do pai e do avô paterno. A mãe casa grávida aos 19 anos com o pai 11 anos mais velho que ela. Quando Paco tem 3 anos e seu irmão acaba de nascer, os pais separam-se mas permanecem amigos. Relata ter começado a usar drogas aos 11 anos após a leitura do livro Christiane F., com quem diz identificar-se. Entra na adolescência experimentando todas as drogas, sempre na companhia de pessoas mais velhas do que ele. Drogar-se lhe confere, imaginariamente, status de adulto. Por volta dos 15 anos, dois de seus melhores amigos e namorada morrem de overdose de cocaína injetada. “Sou o único que sobrou daquela turma. Eu era o mais louco, o que usava mais. Mas era o mais forte.” 11 Nas palavras de Paco, um relato sucinto sobre seus pais : “Minha mãe não sabe nada de mim. Nunca soube. Meu pai é um doidão que deu certo.” O pai, muito ausente, mora longos períodos no exterior e a mãe, jovem e ‘moderna’, não tem quase nenhum controle sobre Paco. Alguns meses antes de procurar-nos, Paco submete-se a àquilo que denominou ‘internação domiciliar voluntária’ durante três meses, na casa da avó materna. Esta medida visa interromper sua constante e compulsiva visita à favela para onde leva objetos da casa da mãe, trocando-os por ‘farinha’ (cocaína) para ‘picar-se’ freneticamente. A namorada, que o visita diariamente e fornece-lhe maconha, subitamente desiste do relacionamento, desencadeando uma séria tentativa de suicídio por overdose. Paco não suporta esta frustração, desiste da ‘internação’ e foge para a favela onde troca algum objeto da casa da avó por trinta gramas de cocaína. Ao voltar, senta no parapeito da janela do seu quarto no segundo andar para aplicar-se o último ‘pico’, para “morrer de prazer”. Mas, ao sentir o impacto de parte da dose da droga, cai de costas na vegetação do jardim e sobrevive. Para a entrevista inicial comparecem a mãe, o pai e Paco. Os pais se dizem desesperados; não sabem como conter suas incursões à favela. O pai acaba de pagar uma elevada soma para que a polícia não indicie seu filho; ele foi pego saindo da favela com maconha, cocaína, seringa e agulhas. 11 Paco comparece assiduamente às três sessões semanais durante dois meses. Chama-nos a atenção seu mundo mental: nada representa nada, não associa nada com nada; é a epítome da concretude. Seu discurso limita-se às drogas: incontáveis relatos das idas e vindas à favela, narrações repetitivas das ‘façanhas’ para fugir da polícia ou traficantes, minuciosas descrições escatológicas dos rituais, parafernália e sensações obtidas com as drogas. Durante o pouco tempo que não está drogado, Paco procura aliviar-se batendo a cabeça contra portas ou paredes. Preocupa-nos a displicência com a qual relata ter matado duas pessoas, supostamente, em legítima defesa. Surge então a pergunta se estaríamos diante de um psicopata. O primeiro sonho que Paco relata: “Estava no ginásio de um clube ou escola. Tinha mais gente. Estavam cheirando cocaína. Vi pessoas voando (literalmente). Beijei um cara e comecei a voar; adorei a sensação! Em pleno vôo, entendi que estava voando por causa do beijo e não por ter cheirado cocaína. Caí imediatamente. Acordei muito assustado.” Embora peça uma interpretação, Paco parece apreensivo. Ele que é tão másculo, tão musculoso, tão ‘machão’, tão cheio das meninas... Como poderia sonhar isso ? Não consegue fazer associações. Transcorridos os dois primeiros meses começa a faltar, desmarcar e confundir horários. Um mês mais tarde a família nos procura novamente; querem interná-lo. 11 Paco não tem mais nenhum controle; está indo diariamente à favela (até seis vezes num dia só) e aplicando-se altíssimas doses de cocaína nas veias. Seu rosto esta machucado, diz que foi seqüestrado, maltratado e drogado pelos traficantes da favela. Na verdade, ele mesmo machucou-se batendo a cabeça contra uma árvore para poder apresentar-se como vítima perante os pais. Soubemos a verdade semanas depois, só quando ele conseguiu parar de mentir-nos. Encaminhamos a família para uma equipe psiquiátrica e no dia seguinte Paco é internado. A seu pedido, freqüentamos a clínica de internação para atendê-lo três vezes por semana. Consideramos importante que o analista espere a demanda do paciente surgir antes de passar a visitá-lo. A internação é um recurso terapêutico cujo maior objetivo, na nossa opinião, deveria ser a continuidade do tratamento psicanalítico. No começo da internação Paco não consegue entender a diferença entre nosso trabalho e aquele da equipe psiquiátrica. Nós não sabemos quando terá saídas acompanhadas, se poderá receber visitas, o tempo da internação, etc. Estamos aí com ele para juntos observarmos seu mundo mental, seus conflitos; mas ele não tem a mais vaga noção do que isto possa ser. Adaptando-se rapidamente ao novo ambiente, Paco encontra novas fontes de prazer e fuga. Começam as atuações: cheira thinner, namora várias pacientes, bebe durante as saídas acompanhadas... Cada vez que está prestes a deprimir-se, aparece uma nova forma de defesa. 11 Embora raramente, alguns conteúdos depressivos surgem em seu discurso: “Me sinto um bosta, impotente, inferior.” Na primeira saída com acompanhamento terapêutico faz uma nova tatuagem no corpo (1000 agulhas furando sua pele). O motivo da tatuagem: “Diabinho E.T. dentro de mim.” Muito do que falamos aparece representado nos desenhos que cola nas paredes de seu quarto. Através do desenho parece poder vislumbrar e dar voz a seu mundo interno — um verdadeiro objeto transicional. Nossa estratégia terapêutica consiste em tentar ampliar sua percepção para incluir sua vida psíquica. ‘Martelamos’ noções de mundo interno/ externo, mundo mental, representações, conflitos, etc. Paco tenta ser bom aluno; às vezes repete como papagaio: “Meu mundo mental ..... ” “Isto representa ............ ” Quando isto acontece, desmascaro o conteúdo adaptativo / manipulativo e acabamos rindo juntos. O humor é um elemento importante durante nosso contato. Existem fugazes momentos de insights: através das constantes atuações consegue que seus pais o notem e voltem a estar juntos. De fato, o pai 11 aparece quase exclusivamente no momento das recaídas para colocar algum limite, fazer ameaças e novamente desaparecer. Durante a internação Paco começa a manifestar raiva e desprezo em relação a equipe psiquiátrica: “São uns mafiosos. Não entendem nada sobre drogas e drogados. O único que lhes interessa é a grana.” Por outro lado, nós somos idealizados. É só a nós que ele pode contar o que lhe acontece sem sofrer nenhum tipo de represália. Quando é externado, 53 dias depois, a dissociação está fortemente instaurada entre a equipe psiquiátrica (mafiosos / incompetentes) e nós (únicos interlocutores possíveis/angelicais). Isto chama minha atenção e preocupa-me. Externado, Paco volta a freqüentar assiduamente nosso consultório. Ele está muito preocupado com a possibilidade de recair por estar muito tempo longe da cocaína. Após meros três dias, recomeça tudo. A cada nova recaída, a culpa e o remorso crescem; o ‘fundo do poço’ parece aliviá-lo. É como se fosse um alívio poder substituir seu sentimento inconsciente de culpa por algo real e imediato. “Pronto, pior não poderia estar. Agora posso estudar.” 11 Absorto no seu novo frenesi de picos, Paco só consegue falar em centímetros cúbicos, prazer e overdoses. Tentamos indagar sobre algum sentido para este festival de prazer tanático. O que é que a cocaína representa? “Quando estou com ela não me falta nada.” “Vou escrever minha biografia. O título será: ‘Uma vida de prazeres’.” Sua capacidade de pensar fica seriamente comprometida, seu raciocínio vira tautológico: “Sou um bosta porque me pico / Me pico porque sou um bosta / ...” Paco retoma seu velho esquema: Favela / Farinha / Pico / Pica — Mulheres / Maconha / Manipula / Mente Mas alguma coisa inédita aconteceu. Paco não nos esconde mais o que vai lhe acontecendo: “Só aqui posso tirar a camisa.” Paco mostra-nos seus braços destroçados pelas agulhas e, angustiado, insiste para que olhemos bem de perto. Durante 50 minutos, três vezes por semana, parece conseguir descolar-se milimetricamente de suas atuações. Pasmos, às vezes horrorizados, observamos juntos o que vai lhe acontecendo. “Acho que hoje não agüento. ‘Tou’ indo pra favela.” 12 Este ponto neutro de observação conjunta, este milímetro entre impulso e ato parece propiciar um espaçamento cada vez maior no lapso de tempo entre recaídas com cocaína injetada. Passa trinta e cinco dias sem picarse mas abusa de outras fontes de alívio/prazer como substitutos: ‘baseados’, cervejas, whisky, ... Precisa ficar ‘mutcho loco’ para não enlouquecer! No dia do aniversário do pai tem nova recaída com cocaína injetada. São três overdoses não fatais em uma mesma noite; não morre porque é socorrido por colegas. Relata-nos este episódio vestindo uma camiseta da peça Les Misérables. É como se sente. O quadro piora novamente. Paco sente que consegue ludibriar todo mundo (pai/mãe/equipe psiquiátrica) e fica perplexo com a impunidade. Sente-se poderoso na sua capacidade de enganar e manipular. Não tem mais limites internos; os externos são ineficientes. Teme a overdose final. Entrementes, a equipe psiquiátrica insiste em saber se Paco está picando-se novamente. Nosso contato com os integrantes desta equipe é bastante freqüente pois trabalhamos no mesmo hospital da rede pública. Perante o questionamento ficamos em conflito; por um lado, queríamos manter o sigilo — resguardar a confiança que Paco tem depositada em nós — por outro, ele estava correndo um sério risco de vida. A terapeuta familiar comunicou-nos que a mãe está querendo saber se ele está se picando. Estabelece-se o seguinte diálogo: 12 TF: “A mãe quer saber se Paco está injetando cocaína na veia.” Nós: “Se você fosse mãe de um rapaz assim, o que você faria para saber se teu filho está se picando ?” TF: “Olharia os braços !” Nós: “E o pescoço e as pernas ?” A partir deste diálogo, a mãe e a equipe psiquiátrica percebem as recaídas subseqüentes. Paco sente-se cuidado, contido por algum limite; a mãe que olha o corpo do filho ... O pai decide tomar as rédeas do tratamento levando o filho para uma cidade onde uma vacina milagrosa, supostamente, impede o uso de qualquer droga. Obviamente, isto não funciona, mas tem o efeito de afastar a equipe psiquiátrica do tratamento. A família não está mais disposta a pagar pelos serviços de profissionais dos quais Paco tenta sempre esconder o que lhe acontece. Paco sente-se aliviado por terem acabado os acompanhamentos terapêuticos, consultas psiquiátricas, exames laboratoriais... Desde o desligamento da equipe ele não tem mais recaídas com cocaína injetável. Agora vigoram novas regras, desta vez vindas do pai, e muito claras: “Se tiver outra recaída, te interno em um hospício barato e te deserdo.” A relação de Paco com o tempo começa a modificar-se. Seu espaço mental amplia-se e seu futuro não é mais limitado às próximas três horas 12 e a alguma fonte de alivio/prazer. Começa a pensar no seu futuro profissional, embora ainda ligado a satisfazer ‘papai’. Paco falta pela primeira vez após a internação. Na sessão seguinte chega dizendo: “Não deu para vir porque estava na favela.” Comentamos que chama-nos a atenção a freqüência com que vai às favelas. Isto parece estar interferindo até com a possibilidade de chegar às sessões. Paco explica que nas favelas as drogas são de melhor qualidade, mais baratas e "melhor servidas". Respondemos que sabemos disto, mas achamos paradoxal, mesmo assim. Afinal de contas, o que tem a ver um ‘burguesinho’ com tanta favela ? Indagamos como se sente quando está na favela: “Perseguido e corajoso !” Aventamos a hipótese que sua freqüente visita às favelas sirva para confirmar que a perseguição que ele sente não é interna, mas externa. Além do mais, lá a lei é severa, infalível, clara, difícil de ludibriar. Não é como em casa com papai e mamãe, ou com a equipe psiquiátrica. Estar na favela representa um perigo tangível, quase palpitável, muito diferente daquilo que seu analista em apontar: o famigerado “mundo mental”. E estar em contato com a miséria externa das favelas parece aliviá-lo da sua própria miséria interna. 12 Paco não tem freqüentado mais as favelas onde era-lhe muito difícil resistir ao impulso de comprar cocaína. Arranjou um novo ‘ponto’ onde só vendem ‘fumo’ e compra quantidades que lhe duram mais tempo. “A favela já não é mais necessária. Acho que agora não terei mais recaídas com cocaína. ” No momento que escrevemos este relato, faz quarenta dias que Paco não injeta cocaína na veia. Isto lhe deixa muito satisfeito: “Quero quebrar meu recorde até nunca mais pensar nela.” Apresentei alguns recortes do meu trabalho com um paciente toxicômano para levantar algumas questões particulares a este tipo de trabalho: 1) O funcionamento mental do toxicômano está dominado por um tipo de pensamento onde coisas concretas e comportamentos têm muito mais relevância do que conceitos abstratos. A falta de imaginação e a incapacidade de associar revelam um mundo mental empobrecido e precário. Esta carência funcional requer uma modificação na técnica psicanalítica durante o começo do vínculo transferencial. Tenho achado, quase sempre, necessário praticar uma espécie de ‘psicopedagogia psíquica’ para introduzir o paciente às noções básicas do mundo mental, tais como: mundo externo / interno, conflitos, representações, pensamentos ... 12 2) Constituir um ‘ponto’ neutro de observação conjunta que não vise nem a abstinência nem qualquer outro objetivo normativo, é essencial para o desenvolvimento do vínculo transferencial com este tipo de paciente. Qualquer proposta de abstinência ou controle da ingestão de tóxicos deve ser de inteira e completa responsabilidade do paciente. 3) O trabalho multidisciplinar em equipe apresenta novos desafios para o psicanalista. Como retratado no caso clínico apresentado, a questão do sigilo adquire maior complexidade pois tem mais profissionais envolvidos no tratamento. O sigilo praticado pelo psicanalista em relação ao resto da equipe promove no paciente uma inevitável dissociação maniqueísta entre analista ‘angelical’ e equipe ‘mafiosa’. Paradoxalmente, isto facilita a construção do ponto neutro de observação conjunta. Trata-se de uma forma espúria de transferência positiva na qual o analista é visto como um salvador acima de qualquer suspeita, enquanto o resto da equipe é considerada como desprezível. O analista ‘angelical’ pode - a partir do ponto privilegiado em que se encontra - interpretar a transferência positiva em relação a sua pessoa e a negativa em relação ao resto da equipe. Passemos agora, então, para as conclusões. 12 Conclusão Este trabalho teve por meta apresentar as indagações que surgiram a partir dos desafios apresentados pela nossa prática clínica no tratamento da toxicomania. Nosso ponto de partida foi um relato autobiográfico do nosso percurso pessoal em relação a toxicomania e psicanálise. Nesta introdução levantamos questionamentos em relação à clínica psicanalítica da toxicomania, considerações de ordem etiológica, nosográfica e metodológica. Queríamos saber se a toxicomania seria um fenômeno psicopatológico que poderia manifestar-se em qualquer estrutura mental, ou se seria inerentes a alguma estrutura unívoca. A partir da nossa experiência clínica e da esmagadora maioria dos autores citados no capítulo dedicado à revisão bibliográfica deste livro, podemos sustentar que nossa hipótese nosográfica inicial é válida: parece não existir uma estrutura psíquica profunda e estável específica da toxicomania. Trata-se de um complexo sintomatológico que pode manifestar-se na estrutura inerente às neuroses de transferência, neuroses atuais, neuroses narcísicas, perversões, psicopatias, ou estruturas borderline. 12 Há um consenso entre os autores citados relacionando as questões etiológicas com o qual concordamos. A toxicomania é um sintoma secundário de defesa que torna-se uma mania compulsiva, substitutiva da masturbação, a mais antiga forma de dependência. A viscosidade libidinal manifesta na oralidade constitucionalmente intensa revela um elo entre toxicomania e fixação. Os tóxicos podem ocupar o lugar do objeto primordial promovendo pobreza nas escolhas objetais. O superego e ideal do ego do toxicômano são patológicos, manifestando exigências excessivas e severas. Em termos metodológicos, nossa experiência clínica nos leva a concordar com a maioria dos autores citados que considera necessárias certas modificações na técnica psicanalítica clássica. Estas envolvem o reforço narcísico para estimular a transferência e uma postura clínica, ao menos inicialmente, mais próxima da psicoterapia do que a psicanálise clássica. Terminamos o presente trabalho com um forte sentimento que apenas tocamos de leve nesta problemática. Muitas questões pertencem para serem examinadas em estudos futuros. A mais pungente destas, questiona-se o esforço terapêutico com estes indivíduos deveria orientar-se no sentido de neutralizar o conflito. Um toxicômano “curado é um ex-toxicômano neurótico ? Após o “fim da picada” e seu legado de “terra arrasada” o que pode oferecer-se a estes indivíduos a não ser “sangue, suor e lágrimas” ? 91 91 Expressão usada por WinstonChurchill em discurso ao povo inglês após a cidade de Londres ter sido arrasada pelo bombardeio nazista. 12 Para concluir estas reflexões gostaria de apontar que o corpo teórico a respeito da clínica psicanalítica da toxicomania é ainda bastante incipiente. Isto deve-se a já mencionada ausência na obra freudiana de um texto especificamente dedicado a esta manifestação psicopatológica. Também devese ao fato que o número de toxicômanos que procura tratamento de orientação psicanalítica é bastante reduzido, assim como também é o número de psicanalistas dispostos a trabalhar com o que eu denomino de “lixo clínico”. Este “lixo clínico” representa um desafio para a psicanálise a priori, comprometendo a possibilidade de desenvolver um trabalho clínico. É assim que surge a idéia que, enquanto problemática psíquica, a toxicomania se encontraria além da eficácia terapêutica da psicanálise, conseqüentemente, tratar-se-ia de uma manifestação psicopatológica “inanalisável”. Para expandir os limites da analisabilidade, mas também para entender melhor certas formas emergente de organização psíquica, cabe resgatar a dimensão originária da psicanálise, aquela de ser, antes de tudo, pesquisa permanente. 12 Bibliografia de referência e pesquisa Abraham, K. Teoria psicanalítica da libido. Rio de Janeiro: Imago, 1970. "Las relaciones psicológicas entre la sexualidad y el alcoholismo". In: Psicopatología y sexualidad. Buenos Aires: Hormé, 1973. "La primeira etapa pré-genital de la libido." In: Contribuciones a la teoría de la libido. Buenos Aires: Hormé, 1973. Anzieu, D. A auto-análise de Freud e a descoberta da psicanálise. Porto alegre: Artes Médicas, 1989. Aulanier, P. A violência da interpretação, do pictograma ao enunciado. 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