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PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO E EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR
ENTRE OS KADIWÉU
GT-1
Marina Vinha
UCDB
[email protected]
Sônia Maria de Araújo Ramos
SEE/MS
[email protected]
Resumo
Este artigo trata do processo de construção do Projeto Político Pedagógico (PPP), com ênfase na
Educação Física Escolar, da Escola Municipal Indígena Ejiwajegi localizada em Terras Kadiwéu,
jurisdicionadas ao município de Porto Murtinho, Mato Grosso do Sul. O objetivo do estudo é
historicizar a construção do PPP da referida Escola com vistas a buscar sustentação para pensar a
Educação Física Escolar, entre os Kadiwéu. A pesquisa foi desenvolvida com levantamento
bibliográfico e, neste caso, houve priorização dos dados empíricos, obtidos via procedimentos
etnográficos com a técnica de “grupo focal”. O Projeto Político Pedagógico é um documento de
fundamental importância para a escola, por ser o elemento norteador da organização de seu
trabalho. A elaboração da proposta pedagógica pela escola deve ser vivenciada em todos os
momentos e por todas as pessoas envolvidas no processo educativo. Isto se justifica, pois a proposta
pedagógica da escola é política e posiciona -se quando expressa seu compromisso com a formação
do cidadão, no caso o cidadão Kadiwéu. Nas considerações finais estão apontados aspectos que as
autoras consideram ser imprescindível para a continuidade da elaboração do documento, entre eles,
tornar disponível um acompanhamento sistematizado e teoricamente sustentado por meio de
pesquisa e capacitação continuada.
Palavras -chave: projeto político pedagógico, educação física escolar, indígenas Kadiwéu.
INTRODUÇÃO
Este artigo trata do processo de construção do Projeto Político Pedagógico (PPP),
com ênfase na Educação Física Escolar, da Escola Municipal Indígena Ejiwajegi – Pólo,
localizada na Aldeia Bodoquena e a extensão, sala Campina, localizada na Aldeia Campina,
ambas em Terras Kadiwéu, jurisdicionadas ao município de Porto Murtinho, Mato Grosso
do Sul.
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O objetivo do presente estudo é historicizar a construção do Projeto Político
Pedagógico (PPP) da Escola Ejiwajegi com vistas a buscar sustentação para pensar a
Educação Física Escolar, entre os Kadiwéu.
O tema do trabalho está referendado em um primeiro projeto iniciado no período de
2004-2005, através do Programa de Incentivo à Bolsa de Iniciação Científica (PIBIC)
financiado pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Os dados da pesquisa de
campo, relativos ao período supracitado, estão registrados em relatórios e fundamentaram
um segundo projeto cujo teor pautava -se no aprofundamento das questões educacionais
Kadiwéu visando atingir a Educação Física Escolar.
Todos os trabalhos envolveram professores indígenas e a comunidade, refletindo
sobre a realidade sócio-cultural e educacional do próprio grupo. Da totalidade dos projetos
foi realizado um recorte metodológico que possibilitou a escrita deste artigo, por duas
autoras de instituições envolvidas no processo.
A pesquisa foi desenvolvida com procedimentos bibliográficos e empíricos. A
metodologia adotada para obtenção dos dados em campo pautou-se por procedimentos
etnográficos, em estudo de caráter predominantemente qualitativo, centrando-se nos
significados que os sujeitos Kadiwéu atribuem à suas práticas educativas tradicionais e
escolares. (ANDRÉ, 1995).
A obtenção dos dados empíricos, obtidos na Aldeia Bodoquena foi referendada com
a técnica de “grupo focal”, segundo Gatti (2205). O procedimento de discussão e escrita
coletiva de alguns itens do PPP consistiu em definir previamente os temas a serem
trabalhados e, à medida que iam sendo discutidos oralmente, tanto na língua Kadiwéu
quanto em Português, a escrita era passada simultaneamente no quadro de giz e todos
anotavam. Os dados foram obtidos no prédio da escola Ejiwajegi.
Foram realizadas duas viagens a campo, com permanência de dois dias e meio de
contato direto com a escola e a comunidade, em cada uma das viagens. Não obstante, a
apreensão do universo Kadiwéu vem de mais tempo e de outros estudos, do período em que
a coordenadora dos projetos realizou suas pesquisas em nível de mestrado e doutoramento
(1997 a 2004) e atuou no Núcleo de Educação Escolar Indígena, na Secretaria de Estado de
Educação, de Mato Grosso do Sul (1991 a 1996). De forma similar, a outra autora atua na
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Secretaria 1 de Estado de Educação, na Gestão de Processos em Educação Escolar Indígena
(2002 a 2006) e desenvolve pesquisa em nível de mestrado como outros povos indígenas do
Mato Grosso do Sul.
O referencial teórico fundamentou-se nas seguintes leituras: Marcel Mauss (1986),
por tratar das “técnicas corporais” e do conceito de “fato social total” que engloba os
aspectos fisiológicos e sociológicos contribuindo para compreender a Educação Física o
conceito de cultura (DAOLIO, 2004); Parecer 14/99 da CEB, que propõe normas para o
funcionamento e normatização do currículo em escolas indígenas; Resolução Nº 3 do CNE,
em que fixa Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas indígenas; Deliberação
Nº 6363/01 do CEE, que dispõe sobre o funcionamento da Educação Básica no Sistema
Estadual de Ensino no Mato Grosso do Sul; Deliberação do CEE/MS Nº 6363/02 que fixa
normas para a organização, estrutura e funcionamento das escolas indígenas e o Referencial
Curricular Nacional para Escolas Indígenas (RCNEI, 1998), que subsidia as práticas
pedagógicas, elaboração de projetos em escolas indígenas, de forma a melhorar a qualidade
do ensino e a formação dos alunos indígenas.
O Projeto Político Pedagógico é um documento de fundamental importância para a
escola, por ser o elemento norteador da organização de seu trabalho. A elaboração ou
adequação da proposta pedagógica pela escola deve ser vivenciada em todos os momentos
e por todas as pessoas envolv idas no processo educativo. Isto se justifica, pois a proposta
pedagógica da escola é política e posiciona-se quando expressa o compromisso com a
formação do cidadão, no caso o cidadão Kadiwéu.
No contexto da escola diferenciada, com a promulgação da Constituição Federal em
1988, os povos indígenas tiveram, pela primeira vez na história da educação brasileira, o
direito de viverem a sua diferença, ou seja, o direito à sua identidade étnica, negada durante
quase 500 anos. A Constituição Federal de 1988 estabelece no art. 231: “são reconhecidos
aos índios a sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-la,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
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Para elaboração do PPP recebemos orientação do professor Antônio Bento Pereira Paredes, da equipe de
Gestão de Processos em Educação Escolar Indígena/SEE/MS.
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Com os direitos adquiridos, entendemos que cabe aos pesquisadores e gestores em
educação contribuírem para que fique explicitado o modo de ser Kadiwéu, prioriza ndo
descrições fundantes de sua identidade. Para a continuidade do processo de construção do
PPP, neste caso apenas iniciado, mesmo passados dois anos desde o desencadear dos
estudos promovidos pelas instituições de educação, observamos maior envolvimento e
nítido interesse na efetivação de um documento representativo dos seus anseios.
Nas considerações finais estão apontados aspectos que as autoras consideram ser
imprescindível para a continuidade da elaboração do documento , como o de tornar
disponível um acompanhamento sistematizado e teoricamente sustentado por meio de
pesquisa e capacitação continuadas.
Construindo o PPP da Escola Ejiwajegi
Levantamentos documentais indicam que uma primeira capacitação continuada
voltada para a construção do PPP em escolas indígenas, no estado, foi realizada para todos
os representantes dos professores indígenas, no município de Aquidauna/MS, em janeiro de
2000. Participaram 120 pessoas, entre professores, lideranças e representantes da
comunidade, sendo sete professores Kadiwéu. Foram realizadas em duas etapas: uma
presencial e outra à distância, co m o objetivo de discutir sobre currículo e proposta
pedagógica para as escolas indígenas.
A segunda capacitação continuada, com o objetivo de atender professores indígenas,
foi realizada no Instituto Missionário São José, em Campo Grande/MS, em agosto de 2004,
atendendo 60 professores de todas as etnias do estado e aproximadamente sete professores
Kadiwéu. O objetivo foi discutir currículo no contexto escolar indígena, articulando
orientações oficiais à especificidade dos povos indígenas, nas diversas etnias presentes, na
perspectiva da interculturalidade e da identidade étnica e cultural.
A Escola Ejiwajegi adota um PPP padrão, elaborado pela Secretaria Municipal de
Educação de Porto Murtinho, com referencial padronizado para escolas da zona rural, o
qual não menciona e não identifica a identidade Kadiwéu. Assim, o foco do projeto foi
problematizar elementos constitutivos da identidade Kadiwéu. São estes elementos
identitários que darão o norte para a elaboração de um projeto político pedagógico para a
escola diferenciada, como preconiza a legislação e os direitos conquistados.
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Os relatos obtidos com o procedimento de “grupo focal” explicam que uma criança
Kadiwéu com muita saúde acorda bem cedo, entre 4h e 30 e fica gesticulando, brincando na
cama, na esteira ou na rede. É neste momento que os pais conversam com as crianças para
transmitir a educação tradicional. Atualmente, alguns disseram que não adotam mais esse
procedimento tradicional, explicando que os próprios netos não dão mais atenção aos avôs
e avós, que em tempos anteriores dedicavam um tempo, antes de dormir e na madrugada,
ou até bem cedo, ao acordarem, para contar histórias dos guerreiros Mbayá e Kadiwéu.
Hoje, os avós sentem vontade de contar essas histórias e muitos Kadiwéu não
querem mais ouvir. O jovem Kadiwéu mudou, disseram. Talvez não queiram mais saber as
histórias contadas pelos idosos. Este fato fez emergir uma preocupação dos Kadiwéu atuais,
em relação ao idoso, o qual, estando próximo de findar sua existência levará consigo muitas
narrativas, e estas se perderão.
Com relação ao ensino da língua materna, alguns jovens Kadiwéu pensam não
serem importantes as aulas em língua Kadiwéu, que hoje constam na matriz curricular da
Escola eEjiwajegi. No discurso apontaram que, por já falarem a língua não necessitam mais
do que isso. Por exemplo , questionam o estudo da gramática da língua Kadiwéu não vendo
nisso uma necessidade. Todos chegam à escola falando o idioma Kadiwéu e a grande
maioria é bilíngüe. Assim, a língua Kadiwéu como conteúdo escolar é de pouca aceitação,
mostrando desinteresse por parte dos jovens.
Na busca de compreender mais o universo dos jovens, a técnica “grupo focal” fez
emergir dados relacionados a vários elementos constitutivos do modo de ser Kadiwéu. A
menina- moça, a qual passa pela “festa da moça”, caracterizada pela chegada da menarca,
ou niganake, que a autoriza ao casamento e a ter prole. Quanto ao menino, a muda nça da
voz, aproximadamente aos 13 anos, marca a transição de criança para jovem e depois para a
vida adulta. Os jovens recebem instruções para algumas danças especiais e aqueles que se
interessam continuam a dançar. Alguns jovens escolhem não dançar, também não fazem
Educação Física, nem mesmo jogam bola depois que entram em uma determinada religião.
As igrejas influenciam muito dentro da comunidade, alteram o comportamento dos
estudantes e, muitas vezes, algumas igrejas isolam as crianças não permitindo que elas
pratiquem nenhuma brincadeira com bola ou tradicional.
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A vida do adulto Kadiwéu é acordar por volta das 4h da manhã para tomar mate e se
preparar para o serviço da lavoura de arroz, feijão, milho, banana, melancia e mandioca.
Pela manhã muitos comem o “quebra torto ” que é o mesmo alimento do jantar anterior ou
um composto de carne e arroz feito na hora; frita bolinho de trigo ou frita mandioca e,
outros, comem pão, café, bolo e chá. Cabe à mulher levar os filhos maiores, acima de
quatro anos, meninos e meninas, para participarem na colheita. Na caça, os homens buscam
queixada, jabuti, tatu, cateto, uma vez que a mata que circunda a aldeia está preservada. Os
pais educam os filhos no dia-a-dia. O dia se encerra aproximadamente às 21h.
Quando as pessoas Kadiwéu vão envelhecendo, os filhos querem que os idosos
fiquem em casa, mas eles são teimosos, tem ânsia de viver e querem continuar trabalhando
nos afazeres do dia -a-dia. Ainda assim, os idosos diminuem as atividades na roça e nos
trabalhos de casa. Nesta idade começam a conversar com as crianças e jovens contando,
repassando, a história de seu povo.
A aldeia Bodoquena é uma das cinco aldeias que compõem as terras Kadiwéu. Esta
denominação é recente, pois anteriormente recebia o nome de aldeia Alves de Barros em
homenagem ao tenente Joaquim Alves de Barros. Este tenente ajudou na demarcação das
terras Kadiwéu, em um período que os professores não souberam definir. A aldeia passou a
ser chamada de Bodoquena, não em homenagem ao município de Bodoquena, que em
tempos anteriores era chamado “Campão”. A denominação “aldeia Bodoquena” é, sim,
uma homenagem à Serra da Bodoquena, por se constituir em sua área. Por sua vez, a aldeia
Campina recebeu esse nome porque está localizada em uma região geográfica de campina.
O primeiro prédio para funcionar a escola foi construíd o na aldeia Bodoquena pela
comunidade Kadiwéu, em data que os professores não souberam precisar. Na seqüência, o
município de Porto Murtinho assumiu legalmente a escola. O prédio da aldeia Campina foi
construído como extensão da escola Pólo Ejiwajegi, em período não preciso.
Atualmente, aproximadamente 250 alunos estão matriculados na escola Ejiwajegi
pólo e extensão, sendo oferecidos os níveis fundamental e médio. Indiretamente, a pólo e a
extensão atendem aproximadamente 150 pessoas por meio de projetos sociais, a exemplo
do “Programa de Erradicação do Trabalho Infantil” (PETI ). Talvez por isso, professores
participantes e membros da comunidade Kadiwéu afirmaram que, dentre os fatores que
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ajudam a formar as pessoas, na comunidade, estão a igreja, os projetos, o esporte e a
educação.
Outros dados gerais sobre o povo Kadiwéu, obtidos através dos procedimentos
metodológicos, mostraram que a denominação Caduéu ou Kadiwéu são formas de escrever
o nome do povo Kadiwéu, sendo esta última a grafia adotada no consenso do grupo. A
origem desse povo vem dos povos chaquenhos, da região do Chaco Paraguaio e argentino.
A língua Kadiwéu é do tronco guaicuru, considerada como língua isolada.
As terras indígenas Kadiwéu foram conquistadas pelos próprios e são fruto do
“Tratado de Eterna Paz e Amizade”, firmado com a Coroa Portuguesa. No total são
538.536 hectares localizados entre os municípios de Bodoquena, Bonito e Porto Murtinho,
jurisdicionadas ao município de Porto Murtinho. Sobre os membros do grupo que não
possuem terra, foi discretamente mencionado que alguns dos descendentes dos antigos
cativos, que lutaram ao lado dos senhores Kadiwéu, participando na linha de frente dos
combates guerreiros, estão hoje buscando na memória o feitos dos seus antepassados com a
intenção de solicitar um pequeno pedaço de terra ao atual representante dos senhores
Kadiwéu.
Em um outro segmento da pesquisa, ao ser perguntado “o que é ser índio?” O grupo
posicionou-se afirmando que ser índio é quando a pessoa se reconhece sendo índio e, ao
mesmo tempo, é reconhecido pela comunidade que se diz pertencer. “O que é ser índio
Kadiwéu? ” Afirmaram que é a pessoa que se reconhece e é reconhecido como índio, tendo
que ter em sua história raiz familiar nos antepassados Kadiwéu, podendo ser do pai ou da
mãe. Os debates não se aprofundaram, mas foi mencionado que a sociedade Kadiwéu, foi
sendo formada pelos casamentos interétnicos, principalmente entre Kadiwéu e Terena,
Kadiwéu e Alemão, Kadiwéu e Espanhol, Kadiwéu e Guarani, entre outros.
“Como é contada a história dos Kadiwéu para as crianças?” Expressaram que
existem formas diferentes de contar, dependendo da visão de quem contou, ou da vivência
de cada um. Existem muitas versões da história Kadiwéu dependendo do ponto de vista que
assumem agora, responderam. Por vezes chegam a dizer que alguma pessoa da aldeia
“mente” quando diz certas coisas.
“Quais são as regras para as relações sociais, na aldeia?” Os pais são responsáveis
por seus atos e também dos filhos; respeitar o próximo, principalmente o idoso, não tomar
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bebidas alcoólicas em frente ao posto da FUNAI, FUNASA, escola e igrejas, observando
que, hoje, na aldeia existem três linhas religiosas. Em outras localidades é livre o uso da
bebida. Não roubar; não estuprar, não brigar quando sair de casa. “Existem punições para
pessoas que não cump rem regras na sociedade Kadiwéu?” As pessoas, quando as regras
não são cumpridas, recebem punições, por exemplo: se o pai possui uma área de terra e
alguns dos filhos fazem bagunça, como brigar, bagunçar na escola, tomam a área dos pais;
se tiver terra em parceria esta será tomada e os pais ficam sem esta fonte de renda. Com
relação à bebida alcoólica e às transgressões de onde pode ser ingerida a bebida, a punição
pode chegar à perda da área de terra.
Contudo, os Kadiwéu explicaram que sempre há uma oportunidade para recuperar a
pessoa faltosa, esta é aconselhada, o cacique conversa com a própria pessoa e com seus
pais, chama ndo a atenção. Dessa forma, o faltoso recebe um voto de confiança. No próximo
erro ele é punido. Quando a briga é muito séria, antigamente a pessoa era transferid a de
uma aldeia para outra. Hoje, a pessoa é expulsa da aldeia, desde que não seja parente das
lideranças, pois, se são parentes recebem algum respaldo.
Quando não há respeito pelas pessoas mais velhas, já é considerado briga, ou seja,
tem o mesmo peso valorativo que uma briga. Neste caso, o cacique conversa com as duas
partes. Tratando-se de abuso sexual, nunca houve na aldeia Bodoquena algum caso que
fosse relembrado pelos presentes, mas acreditam que há um forte temor, da parte dos
homens, de o pai da moça tomar uma decisão pessoal mais violenta, sem consultar o
cacique.
Quanto às potencialidades existentes nas aldeias, foram destacadas: abundância de
água de fontes naturais, sem, contudo estar estruturada para atender a escola; dispõem de
um sistema de captação de água, mas o encanamento não é bem cuidado, o que causa
avarias constantes. Dentre os problemas que os Kadiwéu enfrentam está a água, que não
está disponível na escola e a manutenção da limpeza na nascente e percurso do rio.
Especificidades da Educação Física
O trabalho com a Educação Física Escolar foi realizado parcialmente, visto termos
priorizado a compreensão da identidade e organização social, visando fundamentar o PPP.
Um outro fator que fez diminuir o tempo dedicado às reflexões sobre Educação Física foi a
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realização inesperada de uma reunião geral, com a presença de membros da FUNAI de
Brasília, para definição das atribuições da administração regional criada especialmente para
atender os Kadiwéu, tendo sede no município de Bonito.
Nas discussões do grupo, pudemos entender que a Educação Física é compreendida
como movimento corporal e que ajuda na socialização, por meio dos movimentos
realizados no conjunto das atividades físicas, explicou um dos participantes que trabalha
com a disciplina.
Ao perguntarmos “para que existe Educação Física na escola Ejiwajigi?”
Responderam: porque existe movimento corporal na cultura Kadiwéu, existe na dança, nas
corridas, existia na caçada, no correr em cima do cavalo e até me smo nadando. Na luta do
touro, dando soco no outro, no movimento da peteca, no arco e flecha, no arremesso de
lança, no jogo da mandioca, no laço do touro parado e queda de braço.
Na seqüência fo i estudado o texto “Seleção de jogos, festas e brincadeiras
tradicionais Kadiwéu”, um estado da arte sobre o lúdico Kadiwéu, elaborado por Vinha
(1999; 2004). Os participantes checaram o texto com seus conhecimentos sobre o tema. Ao
perguntarmos “o que entenderam do texto?”, responderam: o texto fala das brincadeiras que
são jogos também; o texto traz muitas brincadeiras que não se usa mais entre os Kadiwéu.
Jogos com peteca, cavalo e outros ainda são usados.
Para levantar uma caracterização geral dos alunos, voltada aos diferentes níveis de
escolaridade, foi perguntado “como é a criança Kadiwéu de 5 a 6 anos?”, o que
responderam: 99% chega a escola falando Kadiwéu; alguns são muito tímidos. “Como é a
criança de 6 a 11 anos?” Os alunos são ainda tímidos, os professores pensam que muitas
vezes eles vêm de suas casas cheio s de medo dos pais e somente depois que os professores
conversam com as crianças, elas mudam. O problema , explicaram, é que muitas vezes a
escola é do branco, muito rígida, tendo o aluno que ficar quieto. “Como é de 11 a 15 anos?”
Continuam tímidos, embora mais soltos. “O que cada aluno traz para a escola?” A religião
interfere em todas as fases, limitando as ações das crianças e jovens.
Em um segundo momento , foi perguntado ao grupo de professores indígenas e
demais, quais movimento s ou atividades físicas observavam nos alunos, em seus diferentes
níveis de escolaridade. No que responderam: de 5 a 6 anos a criança chega andando,
acompanhada pela mãe, que o espera até o final da aula nos primeiros dias, é um período de
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adaptação; a criança corre, não pára na carteira, mexe com os colegas, imitam sons de
motores de carros e animais, sobem em tudo, pulam, têm habilidades com as mãos fazendo
muitas coisas com as linhas, têm facilidade para brincar com música e têm dificuldade de
reter a atenção. Cabe um parêntese para explicar que o uso das linhas foi observado na
primeira viagem a campo. A aldeia toda estava com essa brincadeira em que os fios de
linha são cruzados nos dedos e formam figuras das mais diversas.
As de 6 a 11 anos nadam, andam, correm, saltam, cantam, têm ritmo, sobem em
árvore, se empurram, buscam objetos, sabem onde querem, sentam na sala, prestam mais
atenção, têm concentração e andam a cavalo. De 11 a 15 anos andam contando os passos
quando vêm da escola, correm, saltam, andam a cavalo, jogam futebol, vôlei, fazem
“gracinhas” na sala usando gíria da própria língua Kadiwéu, por exemplo: usam uma
palavra da língua portuguesa com um outro significado diferente do conhecido, já tiram
dúvidas com os professores. No Ensino Médio, aumenta o gosto pelo vôlei e futebol,
dançam as danças culturais, tocam instrumentos musicais como a flauta e o violão, nas
igrejas, na comunidade, além de cantarem, dançam catchaka, vanerão e polca.
“Como organizar a Educação Física na escola diante dos temas discutidos? ” Uma
proposta, ainda sem reflexões mais criteriosas, foi elaborada tendo como segunda
referência o RCNEI/Educação Física (1998). A idéia de organizar em eixos foi apresentada
pela coordenadora do projeto. E esta primeira sugestão, embrionária, ficou assim definida.
O primeiro eixo seria o estudo do próprio corpo; um segundo seria a cultura corporal
Kadiwéu composta por danças, corridas, formas de nadar, de caminhar na mata, entre
outras; o terceiro eixo seria sistematizar as capacidades motoras de locomoção, de
equilíbrio de manipulação e as habilidades motoras de força, resistência, velocidade e
flexibilidade. Um quarto eixo seriam as danças de outras sociedades, adotadas por eles, as
confecções de brinquedos, o trabalho com o cavalo, os tipos de ginástica e o quinto seria o
estudo do fenômeno esporte, principalmente o futebol.
O futebol chegou à aldeia aproximadamente nos últimos 30 anos. Hoje se configura
uma paixão. O acadêmico de Educação Física que fazia parte do projeto com plano de
trabalho voltado para o futebol realizou visita aos locais onde é praticado o futebol na
aldeia. São quatro campos, sendo um na escola. As condições eram precárias chegando a
ter pedras no meio e também o terreno muito irregular. Os outros dois campos estão
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localizados na casa de indígenas da aldeia Bodoquena. As medidas dos campos são
equivalentes a uma quadra de futebol- de-salão e as traves são de madeira. O último campo
estava em fase de construção, em um terreno que havia sido doado por um indígena
Kadiwéu que era amante do futebol, ele também é um “filho querido”, denominação para a
pessoa que detém a história oral do grupo.
Considerações finais
Os dados empíricos são muito ricos e não foi estabelecido, no presente estudo, um
diálogo com referências bibliográficas, tanto as clássicas quanto as contemporâneas, sobre
os Mbayá e Kadiwéu. Observamos que as relações de poder anteriores, oriundas da escola
fundamentada em parâmetro não indígena, parece ter engessado as críticas, assim como as
possíveis soluções que o grupo precisa tomar para se apropriar do seu espaço. O que nos
pareceu lento, que é a consolidação de uma escola diferenciada, segue um ritmo observado
em outros grupos indígenas, cujos processos de colonização e silenciamento abafaram seus
modos de ser e estar no mundo.
Tal fato é corroborado com a aparente ausência de dados da historicidade escolar, a
exemplo de saberem quem e em qual período foi construída a escola, os nomes atribuídos à
aldeia, as motivações das lutas guerreiras e das lutas atuais, cujas reivindicações têm outro
perfil. Os dados indicam a necessidade de maior rigor de nossa parte, no sentido de trazer
para a escola pessoas mais idosas e outros adultos que tenham essa memória, objetivando
dar novo rumo aos feriados escolares, aos temas selecionados para estudo da história,
dialogando com os jovens sobre o aprofundamento na escrita de sua língua materna e não
somente a fala, entre outros fatores.
Quanto à Educação Física, foi excelente termos compreendido melhor os aspectos
gerais dos alunos, através das descrições dos professores. Contudo, não foi concretizada
outra especificidade da disciplina por motivos de interrupção do curso para atender uma
reunião coletiva, de cunho político, envolvendo segmentos da organização interna e
externa, muito significativa para definir os novos direcionamentos sobre a terra e algumas
benfeitorias internas que estão em discussão.
De volta à academia, a equipe de pesquisadoras sente que certo distanciamento
contribui para a reflexão sobre os dados, da mesma forma que para o grupo Kadiwéu o
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distanciamento levanta questões não mencionadas durante a escrita inicial do PPP. Este
estudo é um exemplo deste primeiro passo, quando interagimos com as Secretarias de
Estado e Municipal de Educação, responsáveis pelo desencadear do processo de escrita do
PPP em escolas indígenas, atuando com projetos de pesquisa que atuam com intervenção,
visando retomar elementos da identidade, seu lugar na história e seu movimento rumo a
novas perspectivas que hoje vislumbram. Em vista dos fatos, solicitamos à agência
financiadora, UCDB, prorrogação de mais um ano de pesquisa, o que já está confirmado.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Por
que Estudar Educação Física nas Escolas Indígenas? In: ___ Referencial Curricular
Nacional para as Escolas Indígenas. Brasília, 1998, pp. 321-338.
DAOLIO, Jocimar. Educação Física e o conceito de cultura. Campinas, SP: Autores
Associados, 2004. (Coleção polêmicas do nosso tempo)
GATTI, Bernadete A. Grupo Focal na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Brasília:
Líber Livro Editora, 2005.
MAUSS, Marcel. Noção de Técnica Corporal. In:___ Sociologia e Antropologia : com uma
Introdução à obra de Marcel Mauss, de Claude Lévi-Strauss. São Paulo : E.P.U. e EDUSP,
1974, pp.211-233.
VINHA, Marina. Corpo-Sujeito Kadiwéu: jogo e esporte. Campinas, SP, 2004. Tese.
Universidade Estadual de Campinas.
VINHA, Marina. Memórias do Guerreiro, Sonhos de Atleta: jogos tradicionais e esporte
entre jovens Kadiwéu. Dissertação/FEF/UNICAMP, 1999.
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