Comentários ao Relatório do Grupo de Trabalho para a Avaliação da Situação da Prestação de Cuidados de Saúde Mental e das Necessidades na Área da Saúde Mental Agosto de 2014 Através do Despacho nº 3250/14 de 19 de fevereiro de 2014, foi criado um grupo de trabalho com a incumbência de avaliar a situação da prestação de cuidados em saúde mental e as necessidades nessa área. No mesmo despacho é feita a integração dos comportamentos aditivos no âmbito dos cuidados integrados em saúde mental. A Agência Piaget para o Desenvolvimento - APDES, na qualidade de ONGD que desenvolve a sua ação em torno de vários fenómenos, em particular o do uso de drogas e que milita pelo envolvimento da sociedade civil no desenho das políticas públicas, considera ser sua obrigação a emissão de comentários a propósito desse documento. Assim, aproveitando o momento de consulta pública que agora decorre, a APDES vem por este meio expor algumas considerações a propósito do reenquadramento que tem vindo a ser feito do fenómeno Droga nas políticas públicas nacionais. É de salientar que os elementos avançados para a discussão radicam em anos de experiência interventiva junto dos utilizadores problemáticos e recreativos de diversas drogas (como a heroína ou a cocaína, mas também das chamadas “novas drogas”), em diversos meios (nas ruas das margens socio-espaciais de várias cidades, mas também em festivais de Verão ou em contextos de diversão noturna) e na discussão destas temáticas em redes nacionais e internacionais de ação e de investigação. Um primeiro comentário dirige-se ao próprio despacho nº3250/14 de 19 de fevereiro de 2014. Este vem institucionalizar uma vontade política de diluição da resposta aos comportamentos aditivos que foi sendo desenhada em Portugal ao longo das últimas três décadas. Os seus contornos assentam num processo de aperfeiçoamento e especialização que permitiram a criação de serviços de qualidade, integração e complementaridade assinaláveis. De facto, o agora extinto Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) foi o resultado de anos de 1 esforço de adaptação ao fenómeno das dependências e sua evolução e constituía, por isso mesmo, uma resposta adaptada, especializada e compreensiva. Evidentemente, havia ainda muito para fazer no sentido do seu aperfeiçoamento, mas o seu desmantelamento corresponde à perda de todo um capital do saber-fazer construído no quotidiano da convivência com o fenómeno das dependências. A autonomia desse organismo traduzia, não só a sua especificidade, como a complexidade com que as respostas nesta área devem ser moldadas. O sucesso do “Modelo Português” apontado no contexto internacional não será, com certeza, alheio a esse nível de autonomia, de especialização e de integração territorial que permitiu uma abordagem realmente compreensiva do problema. A par disso, o enquadramento do uso de drogas na esfera da saúde mental está longe de ser consensual. A toxicodependência, tal como a conhecemos hoje, é um fenómeno recente na história da humanidade, apesar do consumo de drogas ser uma constante antropológica. Por outras palavras, o Homem sempre usou substâncias psicoativas, mas só no século XIX é que o abuso massivo se instalou. Isto impõe uma verdade sociológica: o problema das drogas tem na sua raiz uma complexa combinação de fatores biopsicossociais na qual as condicionantes associadas à dimensão social assumem um papel de relevo. A sua classificação como uma questão de saúde mental é redutora e perigosa, somando às condições sociológicas de produção do fenómeno o estigma como fator de agravamento da condição do sujeito. Esse estigma está profundamente conectado com a marginalização e esta contribui significativamente para o aumento dos riscos associados ao uso de drogas e que ameaçam a saúde pública (por exemplo, o risco de contágio de infeções como o VIH, as hepatites víricas ou a tuberculose; ou o risco de morte por overdose). Além disso, como já está cientificamente estabelecido, a esmagadora maioria dos sujeitos que contacta com drogas, lícitas ou ilícitas, não desenvolve consumos abusivos, pelo que perspetivar o uso dessas substâncias como uma perturbação da conduta significa ignorar uma parte considerável da população e que beneficia de intervenções especializadas, nomeadamente de redução de riscos, dificilmente enquadráveis na área da saúde mental. Dito isto, passaremos a tecer alguns comentários a propósito do relatório em questão. Em primeiro lugar, há uma observação transversal a todo o documento que se impõe: mais do que um relatório de avaliação, trata-se de um relatório de monitorização, que se limita a apresentar um quadro descritivo de alguns indicadores interessantes, sem os abordar de forma crítica e interpretativa ou sem dar os elementos suficientes para que o leitor possa proceder a esse trabalho analítico. Por exemplo, quando, na página 28, se apresentam os 2 números relativos às pessoas que frequentaram grupos socioterapêuticos, seria necessário perceber quais os benefícios associados e a qualidade desses serviços. Por si mesma, esta informação não tem valor. O mesmo pode ser dito relativamente aos outros indicadores, como o da integração profissional das pessoas sem emprego. Quais os moldes dessa integração? Em que medida trouxe benefícios ao sujeito? Para se considerar, tecnicamente, este um trabalho de verdadeira avaliação seriam necessários mais dados, interpretações a propósito desses dados e, ainda, outro tipo de dados, nomeadamente os que derivassem de uma auscultação dos beneficiários destas respostas. Eles são os atores mais importantes no processo avaliativo. Com vista a um conhecimento realmente frutífero para a melhoria do funcionamento do dispositivo da saúde mental é imprescindível investir na realização de uma avaliação noutro formato. Impõem-se ainda comentários mais específicos decorrentes de uma leitura de pormenor do relatório. Parece, apesar da escassez de dados que pode enviesar o ponto de vista do leitor, ter havido progressos a assinalar, mas também há dados preocupantes como o facto de mais de metade das pessoas com necessidades de habitação permanecerem sem uma solução. O relatório aponta com clareza essas fragilidades, pelo que não nos alongaremos nelas. Estamos de acordo com as reflexões feitas a propósitos dos Centros de Respostas Integradas (CRI) e que defendem a manutenção, no essencial, do modelo interventivo que tem vigorado. No entanto, ainda assim, defendemos um reforço da aposta nas medidas de redução de riscos que traduza na prática o discurso político da sua importância. As evidências científicas mostram a sua eficácia e a sua valiosa relação custo-benefício, pelo que é necessário conferirlhe, em definitivo, um estatuto autónomo no seio das respostas ao uso de drogas, em particular do tratamento e da prevenção, dos quais se distingue claramente quer do ponto de vista do enquadramento teórico que lhe subjaz, da abordagem no terreno e das estratégias interventivas utilizadas. Complementaridade distingue-se em absoluto da sobreposição. 3