O Ciclo de Cinema Escravatura e Tráfico de Seres Humanos Entre os dias 6 e 9 de maio de 201, realizou-se na delegação de Lisboa co CES, promovido pelo Comité português do projeto da UNESCO “A Rota do Escravo”, em colaboração com o CES de Coimbr e o CEsA do ISEG, um ciclo de cinema “Escravatura e Tráfico de Seres Humanos: Ontem e Hoje. Uma dúzia de filmes e dois debates constituíram o programa deste ciclo, que contou com a participação de várias dezenas de pessoas. Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 103 Qual o sentido deste ciclo de cinema, próximo das comemorações do dia de África a 25 de Maio. Tráfico de pessoas humanas é um fenómeno presente. Todos sabemos. O Esquecimento é outro fenómeno que afecta as sociedades do norte, aquelas que mais se envolveram no fenómeno histórico do tráfico negreiro. Um tráfico que favoreceu uma determinada acumulação de capital num sistema précapitalista. Uma alavancagem para a acumulação do norte. E qual o efeito do fenómeno da escravatura nas sociedades do sul. Das novas sociedades constituídas com o contributo e integração destes escravos. Terá o fenómeno da dupla consciência de Paul Jilroy um oposto no fenómeno do esquecimento analisado por Jung, Lacan e Riceur? Vale a pena acentuar algumas questões que este ciclo levantou. Em primeiro lugar a pertinência dum ciclo de cinema para discutir fenómenos históricos. Sabemos que muitas das reconstituições do passado são meras reinvenções. Conhecemos descrições sobre as condições de captura e transporte dos cativos. Sabemos e imaginamos o que pode ser o ser humano considerado como mercadoria. Como valor de uso e de troca, ultrapassando a sua dimensão ontológica. Mas mais recentemente podemos olhar para o cinema, quer na sua dimensão estética, quer na sua dimensão de documentário como um processo narrativo de denúncia. Deixem-me subir à palmeira, filmado em Moçambique nos anos finais do colonialismo mostra, através duma narrativa poética essa tensão entre o mundo tradicional, o filha da terra que parte para a cidade e regressa para o funeral. Já por seu lado, o Amistad, do realizador Steven Spliberg, reconstrói através da gramática de Hollywood a violência e o sofrimento do tráfico. Ensaia mesmo uma releitura sobre a fundação da nação americana, com base nesse combate pela liberdade do ser escravo. Por seu lado, o documentário “Not my live” mostra a dimensão atual do fenómeno. Uma visão mais moralista, mês nem por isso menos violenta do que é o fenómeno do tráfico de seres humanos na atualidade. Em suma. O filme como documento e o debate como processo de consciência. Uma segunda questão que mercê ser acentuada, esta de natureza mais histórica, relaciona-se com a análise do fenómeno da escravatura. Em regra este fenómeno inclui três dimensões do problema: A questão da escravatura como sistema; o tráfico de escravos; e o abolicionismo. No primeiro caso temos uma análise dum fenómeno que acompanha a história dos grupos e das comunidades de forma mais ou menos persistente. Seja como cativo de guerra, seja por nascimento, milhões de seres humanos foram escravizados ao serviço de grandes estados ou pequenas comunidades. Trata-se da análise dum sistema complexo e durável que leva um ser humano a reduzir outro ser a um objeto. No segundo caso, falamos dum fenómeno que alicerça um processo de concentração de capital. O tráfico organizado, Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 103 transatlântico de milhões de seres humanos, destinado a serrem usados como mão-de-obra em numa economia de plantação nas terras americanas e caribeanas. Um trafico que é organizado pelos europeus, que se alicerça numa pratica antiga, mas que ganha formas próprias no âmbito da formação do sistema económico capitalista. marcado pela barbaridade e pela violência. Com efeito o “Tráfico” é uma forma de comércio que está intimamente ligada às políticas mercantilistas europeias. É um fenómeno que deve ser analisado no âmbito das responsabilidades (europeia e das chefatura africanas), no quadro duma organização económica que forma um sistema mundo (comércio triangular), com um objetivo de acumular capital na lógica dos interesses europeus. Finalmente no terceiro caso, o fenómeno do abolicionismo, que é não poucas vezes tratado como que um processo de branqueamento do fenómeno. Uma forma de expiação da culpa. Depois do reconhecimento do mal, valoriza-se o processo de abolição, como que através do reconhecimento da “nobreza do ato concedido” se procura o perdão. Um perdão moral que confere dignidade a quem o reconhece, ao mesmo tempo que apela a quem foi vítima para se erguer a partir do ponto em que está. Um processo que por vezes procura apaziguar a memória dos fenómenos. Trata-se da formação dum sistema internacional e intercontinental que se tornou progressivamente autónomo, que criou os seus atores próprios produzindo um enriquecimento dos intermediários e das instituições de suporte. É um processo que paralelamente ao enriquecimento de uns se produz uma desumanização do outro. O escravo torna-se um objeto: Despersonalizado, dessacralizado, descivilizado, e desterritorializado. O escravo africano é retirado dos seus quadros de referência africanos e obrigado a recriar outras sociabilidades, noutros territórios, com outras comunidades. Quando não morre no processo de transporte, ou no processo de trabalho, torna-se ator de outras sociabilidades mestiças1. Um processo que é 1 Ver Claude Meillassoux (1986) Anthropologie de l'esclavage: le ventre de fer et d'argent Trata-se, para a fenomenologia da história duma questão que analisa o processo do tráfico negreiro como um processo que assegura a desumanização do ser. O ser humano passa a objeto. “A coisificação do se humano” como base dum processo social Estes três modos de abordagem conduzem-nos a um terceiro ponto que gostaríamos de acentuar: O fenómeno da transformação do ser humano em mercadoria. Trata-se duma questão da actualidade, sobretudo na análise das questões do trabalho. Sem procurar, nesta reflexão, abordar as questões do trabalho, interessa revelar os processo como, ao longo dos séculos, e ao longo dos diferentes processos a desvalorização do ser se confronta com a dignidade da afirmação do ser e das suas formas de ( 1991) trad. The Anthropology of Slavery: The Womb of Iron and Gold) Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 107 organização. O processo do tráfico negreiro é um exemplo do modo como se constituem ideias tipo (preconceitos) que perduram transformando o preto em escravo e em africano. No século XV, o preto que qualifica um ser pela sua forma (adjetivo) transformase num substantivo (confere-lhe substância pelo conteúdo). Tratase dum processo estruturante que mostra como a linguagem produziu a desubstancialização dos africanos. Um processo violento que retira valor e memória aos africanos, que está na génese de criação de preconceitos em relação aos outros, na recusa da aceitação da diferença, neste caso através da cor da pele. Um processo que nos conduz à questão da análise da memória. A análise da memória social revelanos mais as crenças do que as verdades. Ou por outra, a crenças na verdade. A Memória da escravatura remeto-nos para a análise dum fenómeno terrível, de visões divergentes de diferentes comunidades, de memórias de diferentes atores Situar os Estudos Africanos na análise do fenómeno da escravatura. A análise do discurso africano, da oralidade é situar a análise da palavra. O movimento da palavra que é ritualizada. A palavra é o exercício de símbolos. Os simbolos expressam a ligação com o mundo. A vida e a morte. A ligação à organização social, o poder da comunidade, mediado pela sua sacralização. A importância do parentesco. A família e os seus membros tem um lugar social. O estatuto dum indivíduo liga-se ao da sua família, e a sua família liga-se ao seu passado. A dimensão coletiva do poder africano está ligada ao processo da sua relalção com os antepassados. Os objetos do poder conferem prestígio e mostram a sua riqueza. (Tecidos, armas, conchs, espelhos) Apresentação de "La Route de l’escalavage dans l´océnan Indien2 Resumo : Uma viagem por lugares da memória para resgatar do esquecimento o tráfico negreiro no Oceano Índico. Este documentário mostra os resultados do projecto da UNESCO, entre 2004 e 2010, que levou á criação de jardins de memória em seis locais ligados entre si pelos laços do trato humano. Madagáscar, Reunião, Moçambique, Maurícias, Mayotte e Pondcherry na India. O oceano Índico é hoje um espaço de culturas mestiças. Espaço híbrido que resultou dos intensos movimentos de pessoas e mercadorias que deixaram marcas nos rostos e nos modos de ser e estar das gentes. Uma história feita de sofrimento no passado que este projeto mostra hoje como um grito de liberdade em defesa dos direitos humanos. 2 Documentário de 65 „:realização: Sudel Fuma e Vitor Randrianazary, produzido por : Cátedra da UNESCO da Ilha de Reunião, 2011 Revista de Praticas de Museologia Informal nº 2 Spring 2013 Página 107