Impressões digitais: linhas de identificação de um professor de língua portuguesa Ana Isabel Mata Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,CLUL Pensar hoje os problemas e desafios que se colocam à formação matricial dos professores de língua portuguesa no séc. XXI implica, para mim, olhar e ouvir em volta para tentar: • relacionar o lugar da oralidade e da literacia no mundo em que vivemos com as funções centrais desempenhadas pelos professores; • compreender que conhecimentos e competências lhes subjazem; • e derivar daí linhas de identificação fundamentais para a educação dos professores e o seu desenvolvimento profissional. Dito de outro modo: com esses sentidos, procurar determinar como dar forma às impressões digitais dos professores em função do impacto destas na qualidade das aprendizagens escolarizadas dos alunos. 1. Um mundo de comunicação Embora as impressões digitais da maioria dos professores de Português formados hoje revelem, fundamentalmente, as marcas de uma literacia ancorada na tradição cultural que iniciámos no século XV com Gutemberg, os seus futuros alunos estão a crescer numa sociedade marcada por novas tecnologias de informação e comunicação (TIC) e a adaptar capacidades à vida num “mundo pós-tipográfico” — expressão que se supõe ter sido introduzida há 42 anos por McLuhan (1962) e que é usada por Reinking et al. (1998) para sugerir um mundo “em que as tecnologias de impressão não serão mais a forma dominante de comunicação escrita”, entendendo por tipográfico “qualquer texto exposto sobre uma folha de papel ou outra superfície material, estática” e por pós-tipográfico qualquer texto “em forma digital, apresentado electronicamente em superfícies dinamicamente alteráveis como o ecrã de um 75 computador” (Reinking, 1998: xx-xxi. Tradução minha). Neste mundo nosso, com uma economia assente nos serviços e na informação, as competências linguísticas tornam-se cruciais para o bem-estar dos cidadãos e adquirem um valor acrescido no mercado da comunicação global, sendo o valor social do capital escolar –no domínio da(s) língua(s) (cf. Block & Cameron, 2001) – bem como o desenvolvimento profissional dos professores para a promoção desse capital indubitavelmente reconhecidos (cf. Coolahan, 2002; OECD, 2001). O impacto que as tecnologias digitais têm no modo como vivemos e aprendemos é um dado não escamoteável. Em última análise, elas dão novos fôlegos à escrita – escrevemos cartas por e-mail e mensagens de texto por telemóvel; dialogamos por escrito em directo através de IRC (chat); discutimos por escrito em fóruns; há circulação de informação através de listas de distribuição de correio e grupos de discussão,... – e, como tal, exigem que se saiba ler e escrever. Pedindo emprestadas as palavras de Eco (1996): “neste sentido, pode-se dizer que o computador nos fez regressar a uma galáxia de Gutemberg”. É curioso notar até que está em curso o desenvolvimento de uma habilidade específica da espécie humana (o que costumava levar muitas gerações a concretizarse!...) envolvendo o uso dos dedos polegares para comunicar por escrito. Enquanto nós adultos usamos normalmente o dedo indicador, os jovens, que cresceram no entusiasmo das novas tecnologias de comunicação móvel, já usam mais o polegar (ou os polegares) para ler e escrever mensagens, rápida e eficientemente, quase sem olhar para o teclado. De acordo com a divulgação pela BBC News (25 de Março de 2002) dos resultados de um estudo realizado na Unidade de Investigação de Cultura Cibernética, da Universidade de Warwick, os dedos polegares dos jovens estão a fortalecer-se muscularmente e a tornar-se mais ágeis, podendo concluir-se que “a relação entre as tecnologias e os seus utilizadores é mútua”. Há até quem já tenha chamado a esta nova geração mensagem de texto “tribo do polegar”. Dado que ser jovem é um dos atributos dos professores dos Ensinos Básico e Secundário português – pois, de acordo com informação disponibilizada pela OCDE, em Portugal a percentagem de professores com 50 anos ou mais é baixa (16%, em 1992, 76 para os dois níveis da educação secundária (“lower secondary education” e “upper secondary education”), só no sector público; 12%, em 2000, apenas para o nível mais baixo da educação secundária, mas abrangendo os sectores público e privado), muito inferior comparativamente a outros países (Alemanha, Itália, Suécia, Holanda, Finlândia, França, Irlanda, entre outros), e consequentemente também o será a percentagem de reformas dos professores previstas para os próximos anos (cf. OECD, 2002) – não podemos deixar de esperar deles flexibilidade, apetência para a inovação nas práticas educativas. Como é óbvio, porém, os fundamentos exigidos para esse efeito, só uma formação adequada os pode providenciar. 2. Impacto das novas tecnologias na educação Quanto ao impacto das novas tecnologias na educação, apesar das grandes disparidades no acesso a- e uso de TIC em contexto educativo (cf. OCT, 2002), e da sublinhada necessidade de mais investigação sobre o efectivo impacto destas na aprendizagem da literacia (cf. Andrews, 2004), a Internet tem vindo lentamente a mudar a face da aprendizagem e a sua importância para o futuro não deixa de ser continuamente explicitada (cf., por exemplo, diSessa, 2000; Warschauer & Kern, 2000; Reinking et al. 1998). Lembro, a propósito, a seguinte afirmação de Crystal sobre o futuro linguístico da Internet: Netspeak is a development of millennial significance. A new medium of linguistic communication does not arrive very often, in the history of the race. As a new linguistic medium, Netspeak will doubtless grow in its sociolinguistic and stylistic complexity to be comparable to that already known in traditional speech and writing. (Crystal, 2001: 238-239) Uma das principais motivações para a integração da Internet no ensino das línguas será assim, e de acordo com Warschauer & Whittaker (1997), “a de se acreditar que a aprendizagem de capacidades de uso do computador é essencial para o sucesso 77 futuro dos alunos; o que sugere não se tratar apenas de usar a Internet para aprender a língua mas também de aprender a língua para saber funcionar com a Internet”. Procurando conjugar estes objectivos, a abordagem da “literacia electrónica”, proposta por Shetzer & Warschauer (2000), considera três áreas fundamentais para o seu desenvolvimento em contexto de ensino: 1) comunicação – que envolve novas formas de interagir e de cooperar através de comunicação mediada por computador (CMC); 2) produção – que abrange novas formas de apresentar a informação escrita em hipertexto; 3) pesquisa – onde se inclui a leitura e a avaliação crítica da informação disponível on-line. Os indicadores estatísticos do Observatório das Ciências e Tecnologias para a Sociedade de Informação, entre 1995 e 2001, revelam o investimento que Portugal também tem feito para integrar as novas tecnologias de Informação e Comunicação em todas as escolas (cf. OCT, 2002). Porém, como um relatório recente da OCDE vem demonstrar, as TIC encontram-se claramente sub-aproveitadas pelo Ensino Secundário em muitos países, o que se deve, por exemplo, a dificuldades na sua integração em actividades de ensino regulares e a falta de formação dos professores para esse efeito (cf. OECD, 2004). Como se sabe, a utilização da Internet em ambiente educativo não garante por si só um bom ensino. Mas sendo um meio de comunicação linguística, proporcionando um ponto de encontro com a(s) língua(s) e os seus usos, e com informação sobre a própria língua, ela pode ajudar a criar instrumentos e actividades interessantes e relevantes para a promoção das aprendizagens necessárias no domínio da escrita. O estudo de Duarte et al. (2003), sobre propriedades linguísticas dos diálogos por escrito através de IRC (chat) em contexto escolar português, sublinha o interesse educativo destes enunciados para a compreensão e a sistematização das diferenças entre o oral informal e o escrito. Resumidamente (e passo a citar): Incluem-se neste objectivo: a observação e sistematização de aberturas e fechos de conversas (por oposição, por exemplo, às aberturas e fechos rotinizados de cartas); as propriedades sintácticas de unidades conversacionais constituídas por 78 (sequências de) pares pergunta-resposta (por oposição às propriedades sintácticas da unidade parágrafo de um texto escrito); a utilização dos dêicticos, recuperáveis pelo contexto situacional (por oposição às estratégias de fixação e manutenção de referentes no texto escrito); a reflexão sobre o tipo de vocabulário admitido na conversa espontânea (por oposição às exigências quanto ao estilo (ou registo), a precisão e a diversidade exigidos no escrito); a reflexão sobre as propriedades fonéticas e fonológicas do oral, com base na observação de diferentes versões gráficas usadas por um mesmo aluno para um mesmo alvo lexical, o que permite sistematizar processos de oralidade (supressões de vogais e de consoantes, acento fonológico e entoação); a sistematização de informação relativa a normas do código escrito (entre outras, acento gráfico, pontuação e utilização de maiúsculas). (Duarte et al., 2003: 13) Reconhecendo a importância do papel da formação inicial de professores para o sucesso da integração da Internet no repertório de recursos e métodos dos professores de Língua Portuguesa, ao serviço do ensino e da promoção das aprendizagens neste domínio, o projecto Netlíngu@* levou a cabo a experimentação de modalidades de uso (Web, chatting, e-mail, fórum de discussão) e estratégias de integração da Internet (como recurso para a pesquisa, a produção e a comunicação – três áreas já referidas como fundamentais para o desenvolvimento da literacia electrónica) em actividades de ensino no âmbito das disciplinas da área da Didáctica do Português, na FLUL, e da disciplina de língua materna, nos Ensinos Básico e Secundário (cf. Mata, Santos & Costa, 2002). 3. Importância da oralidade na escola Por outro lado, os jovens sabem bem da importância socio-cultural que o domínio da oralidade tem para nós. Segundo a tese de mestrado apresentada à FLUC, em 2000, por D. Santos, a maioria considera-o prestigiante e “acha que se deve falar bem em todo o lado”, ao mesmo tempo que se auto-avalia de um modo inequivocamente negativo, o mesmo se passando com os professores (cf. Santos, 2002). Neste trabalho, intitulado Prestígio linguístico e ensino da língua materna, Santos * O projecto Netlíngu@ (www.uarte.mct.pt/activ/netlingua/) foi desenvolvido pela equipa de docentes da área da Didáctica do Português – Língua do Departamento de Linguística Geral e Românica da FLUL em parceria com a uARTE-MCT, entre Janeiro de 2001 e Agosto de 2002. Embora o projecto esteja formalmente encerrado, o trabalho prossegue no âmbito do programa de formação da área na FLUL. 79 mostra que, para os alunos, do ensino secundário e do ensino superior, são fundamentalmente factores que dependem da escola e da educação linguística – “facilidade de comunicação e simpatia”, em primeiro lugar (59,33%); “habilitações literárias e profissionais”, em segundo (37,33%); “escrever bem”, em terceiro (28%) – e não factores de ordem social e físicos – “boas relações sociais e poder” surge em quarto lugar (26,67%); “origem familiar e riqueza”, tal como “boa apresentação e beleza física”, em sexto (32% e 36%, respectivamente) – que determinam o prestígio dos cidadãos, destacando-se a capacidade de comunicação oral como a mais relevante para efeitos de prestígio linguístico, muito mais relevante do que a capacidade de escrita (o que não deixa de me surpreender!), a qual, por sua vez, e comparando os resultados, não me parece ser muitíssimo mais valorizada pelos professores (o que já me deixa perplexa!). E quais são, de acordo com os 150 jovens – 90 do Ensino Secundário e 60 do Superior – e os 30 professores – 19 do Ensino Secundário e 11 do Superior – inquiridos por esta autora, os factores que mais contam para a excelência das produções orais (“falar bem”)? Dada a seguinte lista de opções (e passo a citar): “1. Correcção (segundo as regras gramaticais); 2. Vocabulário (rico e pouco comum); 3. Facilidade de expressão (fluidez do discurso); 4. Fonética (boa pronúncia); 5. Sintaxe (frases bem elaboradas); 6. Clareza (linguagem simples)” — a primazia é atribuída à “facilidade de expressão” (i.e. à fluência do discurso), tanto pelos alunos do Ensino Secundário e do Ensino do Superior como pelos professores, cabendo ao “uso de vocabulário rico e pouco comum” e à “fonética” (i.e. à questão da “pronúncia”) os papéis menores. Em lugares intermédios, e a alguma distância do factor colocado em primeiro plano – a fluência discursiva – surgem a “clareza” e a “sintaxe”, sendo que “falar com clareza, usando uma linguagem simples, se revela mais importante para os alunos do que para os professores” e o inverso tende a acontecer relativamente à boa estruturação das frases a nível sintáctico. Quanto à “correcção”, factor também ele decorrente do conhecimento linguístico, há uma grande dispersão das respostas dos alunos, tanto do Ensino Secundário como do Superior — o que não equivale a dizer que, para eles, não tem valor seguir as regras gramaticais quando se fala! Os professores expressam-se de modo mais claro quanto ao 80 peso do seu contributo para a excelência das produções orais, situando-a num plano intermédio (cf. Santos, 2002: 116). O que estes resultados indiciam é que, também no que à oralidade diz respeito, o conhecimento reflexivo sobre a língua não corresponde ao nível de desenvolvimento pressuposto depois de concluída a educação obrigatória (no que aos outros domínios diz respeito, consulte-se a análise comparativa dos resultados de 2001 a 2003 das Provas de Aferição do Ensino Básico em http://www.portugal.gov.pt/NR/rdonlyres/C2BBB51A-FFD2-4E16-A092CC3907D8D0A8/0/Provas_de_Afericao.pdf). Podemos pensar que um desenvolvimento do conhecimento explícito da organização estrutural da língua, um melhor conhecimento dos elementos e padrões que a caracterizam, bem como das funções que desempenham nas produções orais – e na diferenciação entre estas e as produções escritas – ter-se-ia traduzido numa maior convergência das respostas, numa mais nítida valorização do papel dos aspectos gramaticais acima mencionados (“correcção - segundo as regras gramaticais” e “sintaxe - frases bem elaboradas”). É que a clareza e a fluência do discurso dependem crucialmente de se saber como dar forma ao que se diz, o que implica um nível superior de conhecimento sobre a língua e um comando de estratégias de uso da língua adaptadas a diferentes situações – nomeadamente as formais, públicas, específicas e planeadas – que correspondem (como os próprios alunos já perceberam!) a produtos de aprendizagem escolarizada, necessários ao seu sucesso, escolar e profissional, no futuro. A interacção oral e a exposição oral – actividades triviais no contexto educativo para trocar conhecimentos e desenvolver aprendizagens (porque a escrita, obviamente crucial, nunca foi o único meio de expressão e de acesso à informação na escola) – são altamente estruturadas, contribuindo de modo não negligenciável para essa estruturação – e para a compreensão por parte do ouvinte – um complexo de diferentes mecanismos linguísticos. Afirmei já em outras ocasiões que, na verdade, em contextos formais, nomeadamente “em contexto de aprendizagem formal na escola, não é suposto as palavras serem como as cerejas, como acontece normalmente nas interacções em 81 contextos não-profissionais. Ou seja, a liberdade dos participantes nas actividades é menor, não podendo eles, em princípio, falar tão livremente do que lhes apetecer, nem dispersar-se sobre tópicos gerais e variados, nem afastar-se dos objectivos determinados.” Quanto à exposição em contexto escolar, “para além da capacidade de falar sobre um tema delimitado à partida, uma exposição escolar pressupõe ainda a capacidade de produzir individualmente um maior número de enunciados, estruturando claramente a forma do discurso e organizando explicitamente a informação que se quer apresentar a um público” (Mata, 1999: 6). Estes são aspectos relevantes para o efectivo conhecimento de um repertório de fala mais amplo, fundamentais para o prestígio social a que os alunos legitimamente aspiram e que entendem depender da sua educação linguística na escola. Deixem-me ilustrar como, quando falamos, não nos limitamos a concatenar sons individuais, nem a justapor enunciados isolados. Incidirei apenas na variação da entoação (de Fø ou variação de altura da voz), um aspecto estrutural básico da prosódia do Português, uma vez que esta é um dos mais importantes mecanismos de que os falantes dispõem para a estruturação sequencial e hierárquica do contínuo de discurso e a adaptação a diferentes situações de oralidade. Apresentarei, para o efeito, exemplos do Corpus de Português Europeu Falado por Adolescentes em Contexto Escolar (CPE-FACES). 82 Figura 1. Representação de cerca de 17 segundos da exposição escolar da aluna SN (adaptado de Mata, 1999) 20 Semitons 15 10 5 U19 U20 U23 U22 U21 U24 U26 U25 0 2200 U27 U28 U32 U30 U 33 U29 U31 2300 2400 2500 reconssílabas tituição da acentuadas curva de Fø 2600 2700 2800 movimento associado à última sílaba tónica 2900 3000 3100 3200 3300 3400 Tem po (Cs) movimento associado a sílabas prée postónicas em posição final (RESPIRAÇÃO) .. tínhamos que também pôr[ˆ]= (U22) .. jogos de palavras (U23) ... aa (U24) tínhamos que demonstrar[ˆ] (U25) .. como é que era= (U26) as partes também (U27) do riso do castelhano (U28) ...(RESPIRAÇÃO) .. aam (U29) .. (CLIQUE) (RESPIRAÇÃO) .. as partes em que ele se= (U30) se declara= (U31) ..(RESPIRAÇÃO) .. aa (U33) 83 3600 3700 3800 3900 contorno contorno contorno entre a global de global de posição enunciado parágrafo inicial e a penúltima sílaba tónica de unidade entoacional tínhamos que pôr as juras (U19) ... os provérbios (U20) .. as rezas (U21) .. à constança (U32) 3500 4000 4100 Figura 2. Representação de cerca de 17 segundos do relato espontâneo da aluna SN (adaptado de Mata, 1999) 20 Semitons 15 10 U18 U19 U23 U20 U17 U16 5 U24 U22 U25 U26 U21 0 1300 U28 U30 U27 U29 1400 1500 1600 1700 1800 1900 2000 2100 2200 2300 2400 Tem po (Cs) .. praticamente só me deram <XassimX> os parabéns (U16) e <XnãoX> sei quê= (U17) .. eu não estava à espera de nada (U18) ...(RESPIRAÇÃO) e então depois quando fui para casa (U19) .. (CLIQUE) ..(RESPIRAÇÃO) aa (U20) estava (U21) ..(LARINGALIZAÇÃO) a minha sala (U22) toda às escuras (U23) .. (CLIQUE) (RESPIRAÇÃO) e= quando eu fui para lá (U24) ..(LARINGALIZAÇÃO) apareceram uma data de amigos meus cá da turma (U25) ..(RESPIRAÇÃO) a fazer uma grande surpresa (U26) .. eu não estava= (U27) .. não estava à espera mesmo nada (U28) ..(RESPIRAÇÃO) porque eles mentiram-me por tudo o que é que era= (U29) ..(LARINGALIZAÇÃO) X (U30) .. (CLIQUE) (RESPIRAÇÃO) 84 2500 2600 2700 2800 2900 3000 3100 3200 Estas figuras permitem uma leitura em paralelo da transcrição e da estilização de contornos de Fø27 correspondente a dois pequenos excertos expositivos, um preparado e outro espontâneo: na figura 1, uma aluna do 9º ano de escolaridade está a expor o trabalho que o seu grupo fez sobre o Auto da Índia de Gil Vicente; na figura 2, a mesma aluna está a contar a surpresa que os amigos lhe organizaram no dia do seu aniversário. Ambas tornam imediatamente visível o modo como os contornos de Fø contribuem para dar forma ao contínuo de discurso, organizando-o em unidades coesas de diferentes níveis (que não são necessariamente perturbadas por pausas e respirações). Podem-se distinguir três níveis de estruturação entoacional: as unidades entoacionais (U), definidas ao nível mais baixo, encontram-se claramente escalonadas entre si, associando-se a um nível intermédio em enunciados entoacionais (linha a tracejado negro), o mesmo acontecendo com estes a um nível superior, o do parágrafo (linha fina a branco). As figuras evidenciam, assim, que o controlo dos níveis de Fø relativamente ao contexto prosódico adjacente se constitui como um mecanismo de fluência, crucial para o falante distinguir com clareza as unidades que compõem o seu discurso e o modo como organiza as relações entre essas unidades. Para além disso, comparando o excerto da exposição preparada na figura 1 com o da exposição espontânea na figura 2, torna-se ainda visível a maior unidade e regularidade da primeira relativamente à segunda. Há no discurso preparado da aluna uma partição em constituintes de maior extensão e regularidade, bem como uma organização proporcionalmente mais harmoniosa dos padrões entoacionais usados. Esta variação das estratégias de organização entoacional está relacionada com o grau de planeamento e a especificidade da actividade de exposição escolar. Os exemplos anteriores demonstram que, embora a maioria dos professores de 27 Não cabendo aqui uma explicação detalhada sobre a estilização de contornos apresentada nas figuras, direi apenas que esta permite descrever os eventos tonais relevantes e o seu escalonamento intra e inter unidades entoacionais. Consiste na interpolação entre os valores alvo de Fø das vogais acentuadas (círculos a branco), preservando a informação relativa à sincronização dos movimentos de Fø com diferentes tipos de sílabas (traço a branco nas átonas, traço a negro nas tónicas). Para dar conta das relações de associação entre unidades a diferentes níveis traçaram-se ainda diferentes linhas de referência que fazem uma interpolação entre os valores das acentuadas mais altas a cada um dos níveis. Para mais informações sobre o método de estilização adoptado na construção de partituras de melodia da fala, veja-se Mata (1999). 85 Língua Portuguesa possa não ter disso consciência, está em curso, ao longo da escolaridade, a apreensão de conhecimentos que importam para a fluência e a boaformação das produções orais, devendo o esforço que os alunos fazem para se adaptar às exigências da escola e o nível de desenvolvimento das capacidades reflectidas nas suas produções planeadas merecer uma avaliação mais positiva do que aquilo que os próprios acham (e que é comum afirmar-se). Evidências como as que acabei de apresentar, umas provenientes de estudos aplicados ao ensino, outras de investigação sobre aspectos fundamentais da língua portuguesa e sobre a sua variação (meros exemplos, pois muitas mais poderiam ser referidas, provenientes de investigação sobre aquisição e desenvolvimento da linguagem; de investigação sobre o impacto do conhecimento explícito no oral preparado, bem como na escrita, …) são potencialmente relevantes para se conceber a intervenção educativa e deveriam reflectir-se, de modo muito menos tímido do que é habitual, para além das fronteiras da formação inicial de professores. Se quem está a aprender revela saber de um modo não explícito, quem ensina tem de ter consciência e quem forma quem ensina deve proporcionar o acesso a um corpo de conhecimentos e princípios que favoreça práticas educativas fundamentadas, bem como o treino de um conjunto de capacidades que possibilite o cumprimento de objectivos traçados com elevado grau de exigência, sendo igualmente necessário, para esse efeito, um esforço para organizar a formação dos profissionais em exercício de modo a desenvolver o seu conhecimento metalinguístico das propriedades do Português. 4. Competências e funções de um professor de língua portuguesa Não continua a comunicação com os alunos a ocupar um lugar privilegiado no processo de ensino? Será o sucesso das aprendizagens dos alunos (completamente) alheio ao sucesso da capacidade de comunicação linguística dos professores? Aumentar a consciência dos professores relativamente a estas e outras dimensões da organização estrutural da língua que eles manipulam na criação das suas próprias produções orais talvez se reflectisse na fluência e na clareza do seu próprio discurso – 86 que os alunos valorizam! Poderá parecer trivial, mas como Fillmore e Snow nos recordaram em 2000, “para comunicar com sucesso, os professores têm de saber como estruturar a sua própria produção linguística com clareza e possuir estratégias para compreender o que os alunos dizem, uma vez que compreender a produção oral dos alunos é a chave para se analisar aquilo que os alunos sabem, como é que eles compreendem e quais as estratégias de ensino a adoptar.” (Fillmore & Snow, 2000: 5) – o que remete para uma outra função importante dos professores: a avaliação. Por outro lado, o ensino continua a ser vital para o desenvolvimento do domínio da língua materna e das aprendizagens escolarizadas da leitura e da escrita, mas também da oralidade, o que implica uma função essencial dos professores na escola: a de saber escolher os dados da língua sobre os quais é preciso fazer incidir a análise e a reflexão dos alunos, constituir (e avaliar) os materiais didácticos a usar e definir a sequência de actividades apropriada aos objectivos exigidos. Em última análise, distinguir o que é pedagogicamente válido daquilo que o não é. Para isso há que saber, por exemplo, que a fala espontânea não precisa de intervenção educativa. Que fala espontânea, fala preparada e leitura oral apresentam características bem distintas, determináveis a partir da estrutura entoacional, mas também da estrutura temporal, sintáctica,... (cf. Duarte, 2000: 388-391), e que reside precisamente aí uma base de dificuldade linguística para a aprendizagem dos alunos. A leitura oral precisa, e muito, de ser treinada (quem trabalha sobre fala neste país sabe-o bem, pois é difícil encontrar quem leia um texto fluentemente) e a exposição dos alunos a produções orais de excelência precisa de ser promovida. Como tal, este profissional não pode ser “profano” em áreas cruciais da sua intervenção educativa: 1) na área do conhecimento sobre a oralidade, sobre os usos do Português falado em contextos formais, em geral, e em ambiente educativo, em particular; 2) na área do conhecimento sobre o português escrito (no “mundo em papel”, mas também no “mundo pós-tipográfico”) e sobre as relações entre este e o oral; 3) na área do conhecimento explícito da língua. E se relacionarmos deste modo língua e funções centrais desempenhadas por 87 estes professores, a importância da Linguística para a Educação, para a matriz da sua formação e desenvolvimento profissional torna-se evidente. 5. Para concluir Enfim, contribuir para a qualidade da formação de professores pode representar um esforço. Não lhe chamaria propriamente um problema, mas antes um desafio. O desafio de ajudar a dar forma a impressões digitais que reflictam apetência, competência e exigência: • Apetência para a experimentação equilibrada de materiais, recursos e métodos que propiciem uma inovação fundamentada das práticas educativas; • Capacidade para integrar oralidade e “literacia electrónica” no corpo de conhecimentos e competências que são o fundamental do ensino da língua materna – em paralelo com as clássicas leitura, escrita e gramática; • Exigência de uma formação ancorada em resultados de investigação – nas áreas do conhecimento que são objecto fundamental da disciplina e, também, de investigação aplicada ao ensino e à aprendizagem. É neste sentido que estamos a trabalhar. Reflexo disso são os programas das disciplinas que asseguramos no Ramo Educacional e que estão publicamente disponíveis na página WWW da FLUL, bem como os projectos em que temos vindo a envolver os formandos: na área da exploração das potencialidades educativas da Internet e também na da intervenção/reflexão sobre a prática pedagógica relativamente a oralidade, leitura, escrita e conhecimento explícito da língua. Referências Andrews, R. (ed.) (2004). The Impact of ICT on Literacy Education. London: RoutledgeFalmer. Block, D. & D. Cameron (eds.) (2001). Globalization and Language Teaching. London: Routledge. Coolahan, J. (2002). Teacher Education and the Teaching Career in an Era of Lifelong Learning. OECD Education Working Papers, Nº 2. Paris: OECD. http://www.olis.oecd.org/OLIS/2002DOC.NSF/43bb6130e5e86e5fc12569fa005d004c/5b71d 88 9d70e0f867cc1256c950053c48d/$FILE/JT00137131.PDF Crystal, D. (2001). Language and the Internet. Cambridge: CUP. diSessa, A. A. (2000). 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