Impressões digitais: linhas de identificação de um professor de língua
portuguesa
Ana Isabel Mata
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,CLUL
Pensar hoje os problemas e desafios que se colocam à formação matricial dos
professores de língua portuguesa no séc. XXI implica, para mim, olhar e ouvir em volta
para tentar:
• relacionar o lugar da oralidade e da literacia no mundo em que vivemos com as
funções centrais desempenhadas pelos professores;
• compreender que conhecimentos e competências lhes subjazem;
• e derivar daí linhas de identificação fundamentais para a educação dos
professores e o seu desenvolvimento profissional.
Dito de outro modo: com esses sentidos, procurar determinar como dar forma às
impressões digitais dos professores em função do impacto destas na qualidade das
aprendizagens escolarizadas dos alunos.
1. Um mundo de comunicação
Embora as impressões digitais da maioria dos professores de Português formados
hoje revelem, fundamentalmente, as marcas de uma literacia ancorada na tradição
cultural que iniciámos no século XV com Gutemberg, os seus futuros alunos estão a
crescer numa sociedade marcada por novas tecnologias de informação e comunicação
(TIC) e a adaptar capacidades à vida num “mundo pós-tipográfico” — expressão que
se supõe ter sido introduzida há 42 anos por McLuhan (1962) e que é usada por
Reinking et al. (1998) para sugerir um mundo “em que as tecnologias de impressão não
serão mais a forma dominante de comunicação escrita”, entendendo por tipográfico
“qualquer texto exposto sobre uma folha de papel ou outra superfície material,
estática” e por pós-tipográfico qualquer texto “em forma digital, apresentado
electronicamente em superfícies dinamicamente alteráveis como o ecrã de um
75
computador” (Reinking, 1998: xx-xxi. Tradução minha).
Neste mundo nosso, com uma economia assente nos serviços e na informação, as
competências linguísticas tornam-se cruciais para o bem-estar dos cidadãos e adquirem
um valor acrescido no mercado da comunicação global, sendo o valor social do capital
escolar –no domínio da(s) língua(s) (cf. Block & Cameron, 2001) – bem como o
desenvolvimento profissional dos professores para a promoção desse capital
indubitavelmente reconhecidos (cf. Coolahan, 2002; OECD, 2001).
O impacto que as tecnologias digitais têm no modo como vivemos e aprendemos
é um dado não escamoteável. Em última análise, elas dão novos fôlegos à escrita –
escrevemos cartas por e-mail e mensagens de texto por telemóvel; dialogamos por
escrito em directo através de IRC (chat); discutimos por escrito em fóruns; há circulação
de informação através de listas de distribuição de correio e grupos de discussão,... – e,
como tal, exigem que se saiba ler e escrever. Pedindo emprestadas as palavras de Eco
(1996): “neste sentido, pode-se dizer que o computador nos fez regressar a uma galáxia
de Gutemberg”.
É curioso notar até que está em curso o desenvolvimento de uma habilidade
específica da espécie humana (o que costumava levar muitas gerações a concretizarse!...) envolvendo o uso dos dedos polegares para comunicar por escrito. Enquanto nós
adultos usamos normalmente o dedo indicador, os jovens, que cresceram no
entusiasmo das novas tecnologias de comunicação móvel, já usam mais o polegar (ou
os polegares) para ler e escrever mensagens, rápida e eficientemente, quase sem olhar
para o teclado. De acordo com a divulgação pela BBC News (25 de Março de 2002) dos
resultados de um estudo realizado na Unidade de Investigação de Cultura Cibernética,
da Universidade de Warwick, os dedos polegares dos jovens estão a fortalecer-se
muscularmente e a tornar-se mais ágeis, podendo concluir-se que “a relação entre as
tecnologias e os seus utilizadores é mútua”. Há até quem já tenha chamado a esta nova
geração mensagem de texto “tribo do polegar”.
Dado que ser jovem é um dos atributos dos professores dos Ensinos Básico e
Secundário português – pois, de acordo com informação disponibilizada pela OCDE,
em Portugal a percentagem de professores com 50 anos ou mais é baixa (16%, em 1992,
76
para os dois níveis da educação secundária (“lower secondary education” e “upper
secondary education”), só no sector público; 12%, em 2000, apenas para o nível mais
baixo da educação secundária, mas abrangendo os sectores público e privado), muito
inferior comparativamente a outros países (Alemanha, Itália, Suécia, Holanda,
Finlândia, França, Irlanda, entre outros), e consequentemente também o será a
percentagem de reformas dos professores previstas para os próximos anos (cf. OECD,
2002) – não podemos deixar de esperar deles flexibilidade, apetência para a inovação
nas práticas educativas. Como é óbvio, porém, os fundamentos exigidos para esse
efeito, só uma formação adequada os pode providenciar.
2. Impacto das novas tecnologias na educação
Quanto ao impacto das novas tecnologias na educação, apesar das grandes
disparidades no acesso a- e uso de TIC em contexto educativo (cf. OCT, 2002), e da
sublinhada necessidade de mais investigação sobre o efectivo impacto destas na
aprendizagem da literacia (cf. Andrews, 2004), a Internet tem vindo lentamente a
mudar a face da aprendizagem e a sua importância para o futuro não deixa de ser
continuamente explicitada (cf., por exemplo, diSessa, 2000; Warschauer & Kern, 2000;
Reinking et al. 1998).
Lembro, a propósito, a seguinte afirmação de Crystal sobre o futuro linguístico da
Internet:
Netspeak is a development of millennial significance. A new medium of linguistic
communication does not arrive very often, in the history of the race. As a new
linguistic medium, Netspeak will doubtless grow in its sociolinguistic and stylistic
complexity to be comparable to that already known in traditional speech and
writing.
(Crystal, 2001: 238-239)
Uma das principais motivações para a integração da Internet no ensino das
línguas será assim, e de acordo com Warschauer & Whittaker (1997), “a de se acreditar
que a aprendizagem de capacidades de uso do computador é essencial para o sucesso
77
futuro dos alunos; o que sugere não se tratar apenas de usar a Internet para aprender a
língua mas também de aprender a língua para saber funcionar com a Internet”.
Procurando conjugar estes objectivos, a abordagem da “literacia electrónica”,
proposta por Shetzer & Warschauer (2000), considera três áreas fundamentais para o
seu desenvolvimento em contexto de ensino: 1) comunicação – que envolve novas
formas de interagir e de cooperar através de comunicação mediada por computador
(CMC); 2) produção – que abrange novas formas de apresentar a informação escrita em
hipertexto; 3) pesquisa – onde se inclui a leitura e a avaliação crítica da informação
disponível on-line.
Os indicadores estatísticos do Observatório das Ciências e Tecnologias para a
Sociedade de Informação, entre 1995 e 2001, revelam o investimento que Portugal
também tem feito para integrar as novas tecnologias de Informação e Comunicação em
todas as escolas (cf. OCT, 2002). Porém, como um relatório recente da OCDE vem
demonstrar, as TIC encontram-se claramente sub-aproveitadas pelo Ensino Secundário
em muitos países, o que se deve, por exemplo, a dificuldades na sua integração em
actividades de ensino regulares e a falta de formação dos professores para esse efeito
(cf. OECD, 2004).
Como se sabe, a utilização da Internet em ambiente educativo não garante por si
só um bom ensino. Mas sendo um meio de comunicação linguística, proporcionando
um ponto de encontro com a(s) língua(s) e os seus usos, e com informação sobre a
própria língua, ela pode ajudar a criar instrumentos e actividades interessantes e
relevantes para a promoção das aprendizagens necessárias no domínio da escrita.
O estudo de Duarte et al. (2003), sobre propriedades linguísticas dos diálogos por
escrito através de IRC (chat) em contexto escolar português, sublinha o interesse
educativo destes enunciados para a compreensão e a sistematização das diferenças
entre o oral informal e o escrito. Resumidamente (e passo a citar):
Incluem-se neste objectivo: a observação e sistematização de aberturas e
fechos de conversas (por oposição, por exemplo, às aberturas e fechos rotinizados de
cartas); as propriedades sintácticas de unidades conversacionais constituídas por
78
(sequências de) pares pergunta-resposta (por oposição às propriedades sintácticas da
unidade parágrafo de um texto escrito); a utilização dos dêicticos, recuperáveis pelo
contexto situacional (por oposição às estratégias de fixação e manutenção de
referentes no texto escrito); a reflexão sobre o tipo de vocabulário admitido na
conversa espontânea (por oposição às exigências quanto ao estilo (ou registo), a
precisão e a diversidade exigidos no escrito); a reflexão sobre as propriedades
fonéticas e fonológicas do oral, com base na observação de diferentes versões gráficas
usadas por um mesmo aluno para um mesmo alvo lexical, o que permite sistematizar
processos de oralidade (supressões de vogais e de consoantes, acento fonológico e
entoação); a sistematização de informação relativa a normas do código escrito (entre
outras, acento gráfico, pontuação e utilização de maiúsculas).
(Duarte et al., 2003: 13)
Reconhecendo a importância do papel da formação inicial de professores para o
sucesso da integração da Internet no repertório de recursos e métodos dos professores
de Língua Portuguesa, ao serviço do ensino e da promoção das aprendizagens neste
domínio, o projecto Netlíngu@* levou a cabo a experimentação de modalidades de uso
(Web, chatting, e-mail, fórum de discussão) e estratégias de integração da Internet (como
recurso para a pesquisa, a produção e a comunicação – três áreas já referidas como
fundamentais para o desenvolvimento da literacia electrónica) em actividades de ensino
no âmbito das disciplinas da área da Didáctica do Português, na FLUL, e da disciplina
de língua materna, nos Ensinos Básico e Secundário (cf. Mata, Santos & Costa, 2002).
3. Importância da oralidade na escola
Por outro lado, os jovens sabem bem da importância socio-cultural que o domínio
da oralidade tem para nós. Segundo a tese de mestrado apresentada à FLUC, em 2000,
por D. Santos, a maioria considera-o prestigiante e “acha que se deve falar bem em
todo o lado”, ao mesmo tempo que se auto-avalia de um modo inequivocamente
negativo, o mesmo se passando com os professores (cf. Santos, 2002).
Neste trabalho, intitulado Prestígio linguístico e ensino da língua materna, Santos
* O projecto Netlíngu@ (www.uarte.mct.pt/activ/netlingua/) foi desenvolvido pela equipa de docentes da área da
Didáctica do Português – Língua do Departamento de Linguística Geral e Românica da FLUL em parceria com a
uARTE-MCT, entre Janeiro de 2001 e Agosto de 2002. Embora o projecto esteja formalmente encerrado, o trabalho
prossegue no âmbito do programa de formação da área na FLUL.
79
mostra que, para os alunos, do ensino secundário e do ensino superior, são
fundamentalmente factores que dependem da escola e da educação linguística –
“facilidade de comunicação e simpatia”, em primeiro lugar (59,33%); “habilitações
literárias e profissionais”, em segundo (37,33%); “escrever bem”, em terceiro (28%) – e
não factores de ordem social e físicos – “boas relações sociais e poder” surge em quarto
lugar (26,67%); “origem familiar e riqueza”, tal como “boa apresentação e beleza
física”, em sexto (32% e 36%, respectivamente) – que determinam o prestígio dos
cidadãos, destacando-se a capacidade de comunicação oral como a mais relevante para
efeitos de prestígio linguístico, muito mais relevante do que a capacidade de escrita (o
que não deixa de me surpreender!), a qual, por sua vez, e comparando os resultados,
não me parece ser muitíssimo mais valorizada pelos professores (o que já me deixa
perplexa!).
E quais são, de acordo com os 150 jovens – 90 do Ensino Secundário e 60 do
Superior – e os 30 professores – 19 do Ensino Secundário e 11 do Superior – inquiridos
por esta autora, os factores que mais contam para a excelência das produções orais
(“falar bem”)?
Dada a seguinte lista de opções (e passo a citar): “1. Correcção (segundo as regras
gramaticais); 2. Vocabulário (rico e pouco comum); 3. Facilidade de expressão (fluidez
do discurso); 4. Fonética (boa pronúncia); 5. Sintaxe (frases bem elaboradas); 6. Clareza
(linguagem simples)” — a primazia é atribuída à “facilidade de expressão” (i.e. à
fluência do discurso), tanto pelos alunos do Ensino Secundário e do Ensino do Superior
como pelos professores, cabendo ao “uso de vocabulário rico e pouco comum” e à
“fonética” (i.e. à questão da “pronúncia”) os papéis menores. Em lugares intermédios,
e a alguma distância do factor colocado em primeiro plano – a fluência discursiva –
surgem a “clareza” e a “sintaxe”, sendo que “falar com clareza, usando uma linguagem
simples, se revela mais importante para os alunos do que para os professores” e o
inverso tende a acontecer relativamente à boa estruturação das frases a nível sintáctico.
Quanto à “correcção”, factor também ele decorrente do conhecimento linguístico, há
uma grande dispersão das respostas dos alunos, tanto do Ensino Secundário como do
Superior — o que não equivale a dizer que, para eles, não tem valor seguir as regras
gramaticais quando se fala! Os professores expressam-se de modo mais claro quanto ao
80
peso do seu contributo para a excelência das produções orais, situando-a num plano
intermédio (cf. Santos, 2002: 116).
O que estes resultados indiciam é que, também no que à oralidade diz respeito, o
conhecimento reflexivo sobre a língua não corresponde ao nível de desenvolvimento
pressuposto depois de concluída a educação obrigatória (no que aos outros domínios
diz respeito, consulte-se a análise comparativa dos resultados de 2001 a 2003 das
Provas
de
Aferição
do
Ensino
Básico
em
http://www.portugal.gov.pt/NR/rdonlyres/C2BBB51A-FFD2-4E16-A092CC3907D8D0A8/0/Provas_de_Afericao.pdf).
Podemos pensar que um desenvolvimento do conhecimento explícito da
organização estrutural da língua, um melhor conhecimento dos elementos e padrões
que a caracterizam, bem como das funções que desempenham nas produções orais – e
na diferenciação entre estas e as produções escritas – ter-se-ia traduzido numa maior
convergência das respostas, numa mais nítida valorização do papel dos aspectos
gramaticais acima mencionados (“correcção - segundo as regras gramaticais” e “sintaxe
- frases bem elaboradas”). É que a clareza e a fluência do discurso dependem
crucialmente de se saber como dar forma ao que se diz, o que implica um nível
superior de conhecimento sobre a língua e um comando de estratégias de uso da
língua adaptadas a diferentes situações – nomeadamente as formais, públicas,
específicas e planeadas – que correspondem (como os próprios alunos já perceberam!)
a produtos de aprendizagem escolarizada, necessários ao seu sucesso, escolar e
profissional, no futuro.
A interacção oral e a exposição oral – actividades triviais no contexto educativo
para trocar conhecimentos e desenvolver aprendizagens (porque a escrita, obviamente
crucial, nunca foi o único meio de expressão e de acesso à informação na escola) – são
altamente estruturadas, contribuindo de modo não negligenciável para essa
estruturação – e para a compreensão por parte do ouvinte – um complexo de diferentes
mecanismos linguísticos. Afirmei já em outras ocasiões que, na verdade, em contextos
formais, nomeadamente “em contexto de aprendizagem formal na escola, não é
suposto as palavras serem como as cerejas, como acontece normalmente nas interacções em
81
contextos não-profissionais. Ou seja, a liberdade dos participantes nas actividades é
menor, não podendo eles, em princípio, falar tão livremente do que lhes apetecer, nem
dispersar-se sobre tópicos gerais e variados, nem afastar-se dos objectivos
determinados.” Quanto à exposição em contexto escolar, “para além da capacidade de
falar sobre um tema delimitado à partida, uma exposição escolar pressupõe ainda a
capacidade de produzir individualmente um maior número de enunciados,
estruturando claramente a forma do discurso e organizando explicitamente a
informação que se quer apresentar a um público” (Mata, 1999: 6). Estes são aspectos
relevantes para o efectivo conhecimento de um repertório de fala mais amplo,
fundamentais para o prestígio social a que os alunos legitimamente aspiram e que
entendem depender da sua educação linguística na escola.
Deixem-me ilustrar como, quando falamos, não nos limitamos a concatenar sons
individuais, nem a justapor enunciados isolados. Incidirei apenas na variação da
entoação (de Fø ou variação de altura da voz), um aspecto estrutural básico da
prosódia do Português, uma vez que esta é um dos mais importantes mecanismos de
que os falantes dispõem para a estruturação sequencial e hierárquica do contínuo de
discurso e a adaptação a diferentes situações de oralidade. Apresentarei, para o efeito,
exemplos do Corpus de Português Europeu Falado por Adolescentes em Contexto Escolar
(CPE-FACES).
82
Figura 1. Representação de cerca de 17 segundos da exposição escolar da aluna SN
(adaptado de Mata, 1999)
20
Semitons
15
10
5
U19
U20
U23
U22
U21
U24
U26
U25
0
2200
U27
U28
U32
U30
U 33
U29
U31
2300
2400 2500
reconssílabas
tituição da acentuadas
curva de Fø
2600
2700
2800
movimento
associado à
última sílaba
tónica
2900
3000
3100 3200 3300 3400
Tem po (Cs)
movimento
associado a
sílabas prée postónicas
em posição
final
(RESPIRAÇÃO) ..
tínhamos que também pôr[ˆ]= (U22)
..
jogos de palavras (U23)
... aa (U24)
tínhamos que demonstrar[ˆ] (U25)
..
como é que era= (U26)
as partes também (U27)
do riso do castelhano (U28)
...(RESPIRAÇÃO) .. aam (U29) .. (CLIQUE) (RESPIRAÇÃO) ..
as partes em que ele se= (U30)
se declara= (U31)
..(RESPIRAÇÃO) .. aa (U33)
83
3600
3700
3800 3900
contorno
contorno
contorno
entre a
global de global de
posição
enunciado parágrafo
inicial e a
penúltima
sílaba
tónica de
unidade
entoacional
tínhamos que pôr as juras (U19)
...
os provérbios (U20)
..
as rezas (U21)
..
à constança (U32)
3500
4000
4100
Figura 2. Representação de cerca de 17 segundos do relato espontâneo da aluna SN
(adaptado de Mata, 1999)
20
Semitons
15
10
U18
U19
U23
U20
U17
U16
5
U24
U22
U25
U26
U21
0
1300
U28
U30
U27
U29
1400
1500
1600
1700
1800 1900
2000
2100
2200 2300 2400
Tem po (Cs)
..
praticamente só me deram <XassimX> os parabéns (U16)
e <XnãoX> sei quê= (U17)
..
eu não estava à espera de nada (U18)
...(RESPIRAÇÃO)
e então depois quando fui para casa (U19)
.. (CLIQUE) ..(RESPIRAÇÃO) aa (U20)
estava (U21)
..(LARINGALIZAÇÃO)
a minha sala (U22)
toda às escuras (U23)
.. (CLIQUE) (RESPIRAÇÃO)
e= quando eu fui para lá (U24)
..(LARINGALIZAÇÃO)
apareceram uma data de amigos meus cá da turma (U25)
..(RESPIRAÇÃO)
a fazer uma grande surpresa (U26)
..
eu não estava= (U27)
..
não estava à espera mesmo nada (U28)
..(RESPIRAÇÃO)
porque eles mentiram-me por tudo o que é que era= (U29)
..(LARINGALIZAÇÃO)
X (U30)
.. (CLIQUE) (RESPIRAÇÃO)
84
2500
2600
2700
2800
2900
3000 3100
3200
Estas figuras permitem uma leitura em paralelo da transcrição e da estilização de
contornos de Fø27 correspondente a dois pequenos excertos expositivos, um preparado
e outro espontâneo: na figura 1, uma aluna do 9º ano de escolaridade está a expor o
trabalho que o seu grupo fez sobre o Auto da Índia de Gil Vicente; na figura 2, a mesma
aluna está a contar a surpresa que os amigos lhe organizaram no dia do seu
aniversário.
Ambas tornam imediatamente visível o modo como os contornos de Fø
contribuem para dar forma ao contínuo de discurso, organizando-o em unidades
coesas de diferentes níveis (que não são necessariamente perturbadas por pausas e
respirações). Podem-se distinguir três níveis de estruturação entoacional: as unidades
entoacionais (U), definidas ao nível mais baixo, encontram-se claramente escalonadas
entre si, associando-se a um nível intermédio em enunciados entoacionais (linha a
tracejado negro), o mesmo acontecendo com estes a um nível superior, o do parágrafo
(linha fina a branco).
As figuras evidenciam, assim, que o controlo dos níveis de Fø relativamente ao
contexto prosódico adjacente se constitui como um mecanismo de fluência, crucial para
o falante distinguir com clareza as unidades que compõem o seu discurso e o modo
como organiza as relações entre essas unidades.
Para além disso, comparando o excerto da exposição preparada na figura 1 com o
da exposição espontânea na figura 2, torna-se ainda visível a maior unidade e
regularidade da primeira relativamente à segunda. Há no discurso preparado da aluna
uma partição em constituintes de maior extensão e regularidade, bem como uma
organização proporcionalmente mais harmoniosa dos padrões entoacionais usados.
Esta variação das estratégias de organização entoacional está relacionada com o grau
de planeamento e a especificidade da actividade de exposição escolar.
Os exemplos anteriores demonstram que, embora a maioria dos professores de
27 Não cabendo aqui uma explicação detalhada sobre a estilização de contornos apresentada nas figuras, direi apenas
que esta permite descrever os eventos tonais relevantes e o seu escalonamento intra e inter unidades entoacionais.
Consiste na interpolação entre os valores alvo de Fø das vogais acentuadas (círculos a branco), preservando a
informação relativa à sincronização dos movimentos de Fø com diferentes tipos de sílabas (traço a branco nas átonas,
traço a negro nas tónicas). Para dar conta das relações de associação entre unidades a diferentes níveis traçaram-se
ainda diferentes linhas de referência que fazem uma interpolação entre os valores das acentuadas mais altas a cada um
dos níveis. Para mais informações sobre o método de estilização adoptado na construção de partituras de melodia da
fala, veja-se Mata (1999).
85
Língua Portuguesa possa não ter disso consciência, está em curso, ao longo da
escolaridade, a apreensão de conhecimentos que importam para a fluência e a boaformação das produções orais, devendo o esforço que os alunos fazem para se adaptar
às exigências da escola e o nível de desenvolvimento das capacidades reflectidas nas
suas produções planeadas merecer uma avaliação mais positiva do que aquilo que os
próprios acham (e que é comum afirmar-se).
Evidências como as que acabei de apresentar, umas provenientes de estudos
aplicados ao ensino, outras de investigação sobre aspectos fundamentais da língua
portuguesa e sobre a sua variação (meros exemplos, pois muitas mais poderiam ser
referidas, provenientes de investigação sobre aquisição e desenvolvimento da
linguagem; de investigação sobre o impacto do conhecimento explícito no oral
preparado, bem como na escrita, …) são potencialmente relevantes para se conceber a
intervenção educativa e deveriam reflectir-se, de modo muito menos tímido do que é
habitual, para além das fronteiras da formação inicial de professores. Se quem está a
aprender revela saber de um modo não explícito, quem ensina tem de ter consciência e
quem forma quem ensina deve proporcionar o acesso a um corpo de conhecimentos e
princípios que favoreça práticas educativas fundamentadas, bem como o treino de um
conjunto de capacidades que possibilite o cumprimento de objectivos traçados com
elevado grau de exigência, sendo igualmente necessário, para esse efeito, um esforço
para organizar a formação dos profissionais em exercício de modo a desenvolver o seu
conhecimento metalinguístico das propriedades do Português.
4. Competências e funções de um professor de língua portuguesa
Não continua a comunicação com os alunos a ocupar um lugar privilegiado no
processo de ensino? Será o sucesso das aprendizagens dos alunos (completamente)
alheio ao sucesso da capacidade de comunicação linguística dos professores?
Aumentar a consciência dos professores relativamente a estas e outras dimensões
da organização estrutural da língua que eles manipulam na criação das suas próprias
produções orais talvez se reflectisse na fluência e na clareza do seu próprio discurso –
86
que os alunos valorizam! Poderá parecer trivial, mas como Fillmore e Snow nos
recordaram em 2000, “para comunicar com sucesso, os professores têm de saber como
estruturar a sua própria produção linguística com clareza e possuir estratégias para
compreender o que os alunos dizem, uma vez que compreender a produção oral dos
alunos é a chave para se analisar aquilo que os alunos sabem, como é que eles
compreendem e quais as estratégias de ensino a adoptar.” (Fillmore & Snow, 2000: 5) –
o que remete para uma outra função importante dos professores: a avaliação.
Por outro lado, o ensino continua a ser vital para o desenvolvimento do domínio
da língua materna e das aprendizagens escolarizadas da leitura e da escrita, mas
também da oralidade, o que implica uma função essencial dos professores na escola: a
de saber escolher os dados da língua sobre os quais é preciso fazer incidir a análise e a
reflexão dos alunos, constituir (e avaliar) os materiais didácticos a usar e definir a
sequência de actividades apropriada aos objectivos exigidos. Em última análise,
distinguir o que é pedagogicamente válido daquilo que o não é.
Para isso há que saber, por exemplo, que a fala espontânea não precisa de
intervenção educativa. Que fala espontânea, fala preparada e leitura oral apresentam
características bem distintas, determináveis a partir da estrutura entoacional, mas
também da estrutura temporal, sintáctica,... (cf. Duarte, 2000: 388-391), e que reside
precisamente aí uma base de dificuldade linguística para a aprendizagem dos alunos.
A leitura oral precisa, e muito, de ser treinada (quem trabalha sobre fala neste país
sabe-o bem, pois é difícil encontrar quem leia um texto fluentemente) e a exposição dos
alunos a produções orais de excelência precisa de ser promovida.
Como tal, este profissional não pode ser “profano” em áreas cruciais da sua
intervenção educativa: 1) na área do conhecimento sobre a oralidade, sobre os usos do
Português falado em contextos formais, em geral, e em ambiente educativo, em
particular; 2) na área do conhecimento sobre o português escrito (no “mundo em
papel”, mas também no “mundo pós-tipográfico”) e sobre as relações entre este e o
oral; 3) na área do conhecimento explícito da língua.
E se relacionarmos deste modo língua e funções centrais desempenhadas por
87
estes professores, a importância da Linguística para a Educação, para a matriz da sua
formação e desenvolvimento profissional torna-se evidente.
5. Para concluir
Enfim, contribuir para a qualidade da formação de professores pode representar
um esforço. Não lhe chamaria propriamente um problema, mas antes um desafio.
O desafio de ajudar a dar forma a impressões digitais que reflictam apetência,
competência e exigência:
• Apetência para a experimentação equilibrada de materiais, recursos e métodos
que propiciem uma inovação fundamentada das práticas educativas;
• Capacidade para integrar oralidade e “literacia electrónica” no corpo de
conhecimentos e competências que são o fundamental do ensino da língua
materna – em paralelo com as clássicas leitura, escrita e gramática;
• Exigência de uma formação ancorada em resultados de investigação – nas áreas
do conhecimento que são objecto fundamental da disciplina e, também, de
investigação aplicada ao ensino e à aprendizagem.
É neste sentido que estamos a trabalhar. Reflexo disso são os programas das
disciplinas que asseguramos no Ramo Educacional e que estão publicamente
disponíveis na página WWW da FLUL, bem como os projectos em que temos vindo a
envolver os formandos: na área da exploração das potencialidades educativas da
Internet e também na da intervenção/reflexão sobre a prática pedagógica relativamente
a oralidade, leitura, escrita e conhecimento explícito da língua.
Referências
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Block, D. & D. Cameron (eds.) (2001). Globalization and Language Teaching. London: Routledge.
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88
9d70e0f867cc1256c950053c48d/$FILE/JT00137131.PDF
Crystal, D. (2001). Language and the Internet. Cambridge: CUP.
diSessa, A. A. (2000). Changing Minds: Computers, Learning and Literacy. Cambridge,
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Duarte, I. (2000) Língua Portuguesa –Instrumentos de Análise. Lisboa: Universidade Aberta.
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Braga: Centro de Competência Nónio Séc. XXI da U. Minho.
Eco, U. (1996). From Internet to Gutenberg. Lecture presented at The Italian Academy for
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Fillmore, L. W. & C. E. Snow (2000). What Teachers Need to Know about Language. ERIC
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75 Impressões digitais: linhas de identificação de um professor