DECISÃO HABEAS CORPUS VERBETE Nº 691 SÚMULA EXCEPCIONALIDADE VERIFICADA. DA - PRISÃO PREVENTIVA FUNDAMENTOS INSUBSISTÊNCIA RELEVÂNCIA ARTICULAÇÃO LIMINAR DEFERIDA. DA - 1. Com a longa inicial de folha 2 a 23, acompanhada dos documentos de folhas 26 a 207, busca-se demonstrar a insubsistência da prisão preventiva e a erronia, a ponto de configurar constrangimento ilegal, do ato do ministro relator do Habeas Corpus nº 50.143/SP em que indeferida a medida acauteladora. Afirma-se que o paciente, réu primário e portador de bons antecedentes, integrado a família estruturada com a qual reside há mais de dez anos no mesmo endereço, foi denunciado como incurso na prática dos crimes de atentado violento ao pudor - artigo 214, combinado com o artigo 224, alínea “a”, ambos do Código Penal - e cárcere privado - artigo 148, cabeça e § 2º, do Código Penal -, estando o processo em curso na 14ª Vara Criminal de São Paulo - Controle nº 969/05. Sustenta-se que o decreto de prisão baseou-se em duas premissas - a necessidade de garantir a ordem pública em face do desassossego da sociedade, do clamor provocado por crime da natureza do que imputado ao paciente, e a garantia da aplicação da lei penal, porquanto evadira-se ele do distrito da culpa tão logo assentada a prisão temporária. Alude-se a precedentes do Tribunal quanto à flexibilização do Verbete nº 691 da própria Súmula e à impossibilidade de se proceder a verdadeira execução da pena antes de formada a culpa. O paciente, ordenada a prisão provisória, apresentara-se, assistido por defensor, ao Juízo da 14ª Vara Criminal do Fórum da Barra Funda. Discorre-se a respeito, ressaltando-se que a preventiva já se projeta no tempo, por cerca de cinco meses. São mencionados depoimentos sobre o perfil do paciente, requerendo-se a concessão de liminar que viabilize a liberdade até o julgamento do habeas pelo Superior Tribunal de Justiça, vindo-se, alfim, a confirmar a providência. Distribuído o processo, o ministro Cezar Peluso deu-se por impedido de atuar “por razões de foro íntimo”. O Presidente da Corte despachou à folha 213, determinando a redistribuição. 2. Reafirmo a óptica sobre o Verbete nº 691 da Súmula desta Corte e em relação ao qual mantenho profunda reserva. A harmonia, se possível, com a Lei Fundamental direciona ao estabelecimento de exceções. É que, como consignado no julgamento do Habeas Corpus nº 85.185-1/SP, o habeas corpus é ação de estatura ímpar, visando a proteger bem maior do cidadão - a liberdade. Então, a adequação da medida ocorre uma vez constatado o ato de constrangimento ilegal e existente órgão capaz de apreciá-lo. É justamente isso que se verifica no presente caso, no qual, de início, as premissas da prisão preventiva não se sustentam, e, na pirâmide do Judiciário, acima do Superior Tribunal de Justiça, está o Supremo. Nem se diga, como aconteceu na Corte de origem, que a liminar em habeas é criação jurisprudencial. Trata-se de providência que se mostra ínsita à atuação jurisdicional, agindo o órgão investido do ofício judicante de forma imediata para impedir dano pior. Está compreendida na cláusula asseguradora do acesso ao Judiciário para evitar lesão ou ameaça de lesão a direito - inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal. Ante a quadra vivenciada, com avalancha de processos nunca vista, aguardar-se o desfecho de ação para, mediante a entrega da prestação jurisdicional, consertar-se a situação, é passo incompatível com o Estado Democrático de Direito. Cumpre examinar, incontinente, as premissas do decreto de prisão. Aludiu-se a elementos que se mostram praticamente neutros e, diria melhor, inerentes a qualquer ato de constrição penal, ou seja, a materialidade do crime e os indícios da autoria. Por si sós, não são suficientes a respaldar algo que, a todos os títulos, afigura-se excepcional, isto é, a preventiva. Em passo seguinte, aduziuse que o crime imputado ao paciente é daqueles que “colocam a sociedade em desassossego”, remetendo-se ao clamor provocado pelo modo como foi praticado, a despertar indignação na comunidade. Mais uma vez, levou-se em conta fator que não esteia a prisão preventiva, a inversão da ordem natural das coisas, no que, à luz dos ditames constitucionais, é preciso contar-se, para clausura do cidadão, com a culpa formada e imutável na via recursal - inciso LVII do artigo 5º da Carta Federal. Digo que o momento vivido pela sociedade brasileira é realmente de desassossego, considerada a criminalidade. Esse aspecto, todavia, não pode servir, presente subjetividade maior, a ter-se como respaldada a prisão preventiva, principalmente quando se cuida de réu primário e de bons antecedentes. Apontou-se, mais, a necessidade de se preservar campo propício à aplicação da lei penal, com enfoque na circunstância de, tão logo decretada a prisão temporária, haver o paciente deixado o distrito da culpa. Esse dado também não é de molde a servir de alicerce à preventiva. O cidadão conta com o direito natural de não se sujeitar a ordem que, de forma procedente, ou não, entenda discrepante do arcabouço normativo. Nada obstante, a peça de folhas 36 e 37 revela a apresentação do paciente, acompanhado de defensor, a autoridade constituída, quando foi conduzido à carceragem da delegacia de polícia. Transcrevo o entendimento sintetizado na ementa do acórdão prolatado quando do julgamento do Habeas Corpus nº 83.943-6/MG, perante a Primeira Turma, publicado no Diário da Justiça de 17 de setembro de 2004: PRISÃO PREVENTIVA - EXCEPCIONALIDADE. Em virtude do princípio constitucional da nãoculpabilidade, a custódia acauteladora há de ser tomada como exceção. Deve-se interpretar os preceitos que a regem de forma estrita, reservando-a a situações em que a liberdade do acusado coloque em risco os cidadãos. PRISÃO PREVENTIVA SUPOSIÇÕES IMPROPRIEDADE. A prisão preventiva tem de fazer-se alicerçada em dados concretos, descabendo, a partir de capacidade intuitiva, implementá-la consideradas suposições. PRISÃO PREVENTIVA NÚCLEOS DA TIPOLOGIA IMPROPRIEDADE. Os elementos próprios à tipologia bem como as circunstâncias da prática delituosa não são suficientes a respaldar a prisão preventiva, sob pena de, em última análise, antecipar-se o cumprimento de pena ainda não imposta. PRISÃO PREVENTIVA - PRESERVAÇÃO DA ORDEM PÚBLICA. O bem a ser protegido a esse título há de situar-se no futuro, não no passado, a que se vincula a pretensão punitiva do Estado. PRISÃO PREVENTIVA - APLICAÇÃO DA LEI PENAL - POSTURA DO ACUSADO - AUSÊNCIA DE COLABORAÇÃO. O direito natural afasta, por si só, a possibilidade de exigir-se que o acusado colabore nas investigações. A garantia constitucional do silêncio encerra que ninguém está compelido a auto-incriminar-se. Não há como decretar a preventiva com base em postura do acusado reveladora de não estar disposto a colaborar com as investigações e com a instrução processual. PRISÃO PREVENTIVA - MATERIALIDADE DO CRIME E INDÍCIOS DA AUTORIA - ELEMENTOS NEUTROS. A certeza da ocorrência do delito e os indícios sobre a autoria mostram-se neutros em relação à prisão preventiva, deixando de respaldá-la. PRISÃO PREVENTIVA - CLAMOR PÚBLICO. A repercussão do crime na sociedade do distrito da culpa, variável segundo a sensibilidade daqueles que a integram, não compõe a definição de ordem pública a ser preservada mediante a preventiva. A História retrata a que podem levar as paixões exacerbadas, o abandono da razão. 3. Defiro a medida acauteladora para afastar a prisão do paciente que foi implementada pelo Juízo de Direito da 14ª Vara Criminal de São Paulo no Processo cujo número de controle é 969/05. Consigno que esta concessão não obstaculiza a seqüência do Habeas nº 50.143/SP, em curso no Superior Tribunal de Justiça, mesmo porque o pedido formalizado na inicial visa a preservar a liberdade até que a medida venha a ser apreciada. 4. Estando no processo as peças indispensáveis à análise do tema, colha-se o parecer do Procurador-Geral da República. 5. Publique-se. Brasília, 12 de dezembro de 2005. Ministro MARCO AURÉLIO Relator