POSSO SER DURANTE 9 MESES SER APENAS UMA BARRIGA?
Não é novidade que as pessoas se deixem alugar e vender. É tão antigo quanto o mundo. Já
alugar barrigas é coisa contemporânea, devida, por um lado, aos avanços da ciência e, por
outro, a necessidades ou desejos de alguns. A Fundação Gulbenkian discute o tema e o
Parlamento prepara-se para tocar na Lei da Procriação Medicamente Assistida (PMA), no
sentido de se incluir essa possibilidade. Isto é, e números redondos: de passar a ser legal uma
mulher acolher no seu útero um óvulo de uma outra. Ao fim de 9 meses a primeira fica
obrigada a devolver à segunda o resultado da gestação. Deste especial aluguer (ou, porque
não arrendamento?), saber de quem é o “filho” não constituiria, por certo, problema para o rei
Salomão. Nós, de pena mais curta, tecemos algumas considerações, a ajudar ao debate, que
no essencial é mais simples que o ovo de Colombo. Que fique claro que não tratamos aqui das
intenções das partes, mas tão só do que está em causa objetivamente. Ou seja, por muito que
eu queira, de um envelope vazio não se conseguem tirar vinte euros.
Os avanços da Ciência demonstram magnificamente a sua categoria e a daqueles que a tem
construído desde que a razão é razão. Concomitantemente, a História possui capítulos de
menos elevação, nomeadamente, de quem não a soube utilizar de forma humana, mas apenas
como instrumentalização para um fim que nada tem a ver com os do Rei que soube descobrir,
(utilizando o seu sábio coração) das mães em disputa, qual a que falava verdade. Quer
queiramos quer não, o assunto das barrigas de aluguer (BA) não se desliga pois da concepção
que cada um tem da vida. E até aquele que defende que a concepção da vida sou “eu” que a
decido, ou que até não há concepção nenhuma do que seja a vida humana, e que somos todos
um nada (ou que para lá caminhamos, gota a gota), é mesmo assim que entende, isto é, é
assim que se percebe, a si e aos outros. Erroneamente, claro, porque para se ser “nada” é
preciso ser-se alguma coisa. Não preciso de me chamar Santo Agostinho para confessar que o
mal é um parasita do bem, tendo apenas realidade moral, e não ontológica. Do nada, nada
surge.
Eu posso querer acabar com a minha vida. Eu posso querer matar a vida de um outro. Eu posso
querer ter um filho, alugando ou não uma barriga (pode não me apetecer carregar a
encomenda, e pedir a outra que o faça). Mas no caso extremo – que é o que está em causa
agora - de querer muito tê-lo e a natureza não mo deixar, mesmo nesse caso, tudo se reduz a
algo muito simples: é pedir a alguém que seja, durante 9 meses apenas uma barriga. É fazer
um contrato – claro que por mútuo consentimento – em que se pede a alguém (pagando, ou
não pagando; até porque a generosidade não tem preço) que prescinda dos sentimentos e do
entendimento que durante 9 meses se geram entre uma mãe e um filho. Não parece um bom
negócio. Queres ser durante 9 meses apenas uma barriga? Poder podes, mas estou a pedir-te
o que ninguém merece.
Claro que a Ciência pode, a Ciência até pode pegar no bebé antes dos nove meses, e fazê-lo
viver. Não é isso. O que está em causa aqui é pedir a alguém que deixe de ser alguém. O
consentimento da alugada em nada anula o argumento, embora a sua liberdade seja
inviolável. E mais ainda, o que se passa durante o período de gestação na BA - e porque a vida
é uma constante surpresa - tem levado, em casos conhecidos, a que o consentimento inicial
“morra”. Isto é, a mãe alugada vê crescer o bebé no seu seio e transformam-se os dois. Não
há mãe que não se surpreenda na primeira ecografia, ou com o primeiro ponta pé que leva
daquele que nela começa a ter autonomia. Não há bebé (mais uma vez a Ciência a maravilhar)
que não reconheça (ainda na B) a voz e o toque da “dona” da barriga (e também a voz do pai).
Sendo um só, são dois. E sendo dois, são um só.
As BA não são um bom negócio para as pessoas envolvias. Parece, mas não. Queres ser
durante 9 meses apenas uma barriga? Poder podes, mas estou a pedir-te o que ninguém
merece. Estamos fartos de saber que o dinheiro não paga tudo e que brincar com os
sentimentos, as fragilidades humanas, não abona em favor do humano. Ousa saber, sim!
Agora, ousa fazer, nem sempre. Mesmo que eu deseje muito uma coisa, é preciso atender a
todos os interesses envolvidos, e, principalmente chamar as coisas pelo nome, e tratar as
pessoas como pessoas.
Por muito que se insista em “pedir” uma barriga, por muito que se insista em “dar” a barriga,
temos assistido ao filme, e à medicina que assim se comporta. E também às leis que tudo
enquadram. Não é famoso. Como gosta de repetir uma amiga minha: é um quadro de miséria.
Mortal, mesmo.
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