PROCRIAÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA UMA PERSPECTIVA DE DIREITO COMPARADO Doutora Marta Costa E-mail: [email protected] 1 Principal Legislação Portuguesa Art.67, n.º 2, e) CRP – PMA regulada de forma a salvaguardar a dignidade da pessoa humana Decreto-Lei 318/86 (provisório e restritivo) Lei 32/2006, de 26 de Julho, alterada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro Regulamentada pelo Decreto-Regulamentar n.º 5/2008, de 11 de Fevereiro 2 NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO LEGISLATIVA? Defensores de total liberdade para a prática científica – principais argumentos: – falta de amadurecimento da matéria; – inutilidade de qualquer lei pela sua quase imediata desactualização; – inconveniência da criação de um estatuto especial para uma certa categoria de filhos, susceptível de originar uma nova discriminação; – inexistência de acordo quanto aos assuntos a disciplinar. 3 Defensores da necessidade de legislar Principais argumentos: – Segurança jurídica; – Respeito pela ética e direitos humanos. 4 Primeiras legislações europeias As primeiras legislações europeias datam da década de 80 Exemplos: – Lei sueca: Act on Insemination de 1985; – Lei espanhola: Ley sobre Técnicas de Reproducción Asistida de 1988; – Leis bioéticas francesas de 1994; – Lei italiana: Norme in materia di procreazione medicamente assistita de 2004. 5 CONTRIBUTOS PARA A ACTUAL LEGISLAÇÃO 1986: – a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa recomendou aos Estados-membros que definissem os termos a respeitar na aplicação das técnicas de PMA Recomendação n.º 1046 sobre a utilização de embriões e fetos humanos para fins de diagnóstico, terapêuticos, científicos, industriais e comerciais; – Foi constituída, em Portugal, a Comissão para o enquadramento legislativo das novas tecnologias, sob a presidência de Francisco Pereira Coelho, responsável pela elaboração de um anteprojecto de lei relativo às matérias de procriação assistida. 6 A Comissão propôs ao Ministério da Justiça a adopção de um regime provisório e restritivo, que permitia: inseminação artificial homóloga; fertilização in vitro; e fertilização intra-tubária, com sémen fresco – DL n.º 318/86, de 25 de Setembro. A realização de inseminação heteróloga ou de qualquer outra técnica com recurso a sémen congelado necessitava da obtenção de uma autorização prévia do Ministro da Saúde. 7 1997: o Governo apresentou a proposta de lei n.º 135/VII, que foi convertida no Decreto n.º 457VII, de 1999. Este decreto foi aprovado (votos a favor do PS e do CDS-PP; votos contra do PCP e do Partido Os Verdes, e abstenção do PSD). Todavia, foi vetado pelo PR, por falta de consenso e de reflexão relativamente às soluções plasmadas em matéria de fecundação in vitro, de utilização de técnicas de diagnóstico préimplantação, de investigação em embriões e de protecção do direito à privacidade. 8 Assim, o Decreto n.º 318/86 manteve-se em vigor, não tendo a Comissão dado seguimento ao anteprojecto. Apenas em 2006 o acesso às técnicas de PMA foi então objecto de verdadeira lei – Lei n.º 32/2006. 9 Lei n.º 32/2006 Regula: – inseminação artificial; – fertilização in vitro; – injecção intracitoplasmática de espermatozóides; – transferência de embriões, gâmetas ou zigotos; – diagnóstico genético pré-implantação; – outras técnicas laboratoriais de manipulação gamética ou embrionária equivalentes ou subsidiárias. 10 Confronto legislativo A generalidade das leis europeias não descreve as técnicas que disciplina, em nome dos constantes avanços científico-tecnológicos. Por vezes, os legisladores debruçam-se especificamente sobre certas técnicas: – Ex: a proibição da utilização do diagnóstico préimplantação em Itália, ou a sua utilização apenas em casos excepcionais em Espanha e em França (risco de selecção genética ou de práticas eugénicas). A lei portuguesa distingue-se, pois: – enuncia as técnicas que visa regular; – permite o diagnóstico pré-implantação – contudo, prevê que: «As técnicas de PMA não podem ser utilizadas para conseguir melhorar determinadas características não médicas do nascituro, designadamente a escolha 11 do sexo». PMA como método subsidiário Legislações europeias: recurso às técnicas de PMA como método subsidiário; mas: Portugal permite a sua mobilização: – não só com o objectivo de solucionar casos de infertilidade (solução italiana), – mas também «para tratamento de doença grave ou do risco de transmissão de doenças de origem genética, infecciosa ou outras» (como a França). – Espanha vai mais além: prevenção e tratamento de doenças de origem genética. 12 Em Portugal Constitucionalidade de: «tratamento de doença grave ou do risco de transmissão de doenças de origem genética, infecciosa ou outras»? Outras – abrange qualquer tipo de outra doença? Em caso positivo: risco de violação de vários direitos fundamentais (ex: dignidade humana, direito à vida, à integridade pessoal, à igualdade); Risco: escolha de sexo ou de quaisquer outras características do nascituro que não sejam necessárias à prevenção da doença. 13 Interpretação sistemática: – art. 7.º, n.ºs 2 e 3: «As técnicas de PMA não podem ser utilizadas para conseguir melhorar determinadas características não médicas do nascituro, designadamente a escolha do sexo»; «Exceptuam-se do disposto no número anterior os casos em que haja risco elevado de doença genética ligada ao sexo, e para a qual não seja ainda possível a detecção directa por diagnóstico pré-natal ou diagnóstico genético pré-implantação, ou quando seja ponderosa a necessidade de obter grupo HLA (human leukocyte antigen) compatível para efeitos de tratamento de doença grave». 14 – Art. 29.º, n.º 1- (diagnóstico genético préimplantação):«O DGPI destina-se a pessoas provenientes de famílias com alterações que causam morte precoce ou doença grave, quando exista risco elevado de transmissão à sua descendência». CONCLUSÃO: – A possibilidade de alterar as características não médicas de um nascituro opera segundo um princípio de subsidiariedade, e – quando exista um elevado risco de transmissão de doença genética grave ou necessidade de tratamento de doença grave de terceiro. 15 – Outras” doenças: aquelas relativamente às quais se venha a verificar futuramente ser possível prevenir o risco de transmissão por meio de uma técnica de PMA, quando se trate de doença grave (ainda que não seja doença genética ou infecciosa) e não seja possível o mesmo resultado por um outro método de prática clínica. – Constitucionalidade (ac. 101/2009 do TC). 16 PMA homóloga e heteróloga? Portugal, Espanha e França – sim; Itália – apenas homóloga. Lei portuguesa: – «Pode recorrer-se à dádiva de ovócitos, de espermatozóides ou de embriões quando, face aos conhecimentos médico-científicos objectivamente disponíveis, não possa obter-se gravidez através do recurso a qualquer outra técnica que utilize os gâmetas dos beneficiários e desde que sejam asseguradas condições eficazes de garantir a qualidade dos gâmetas». 17 Argumentos dos defensores da inconstitucionalidade da PMA heteróloga Leva à existência de filhos de pai e/ou mãe biológicos não identificados – violação dos arts. 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 4, da CRP, por não salvaguardar o direito fundamental ao conhecimento e ao reconhecimento da paternidade, nem o direito à identidade, que abrange o direito à historicidade pessoal. Coloca em causa a dignidade da mulher, visto que permite imprimir um cunho mercantil à recolha de ovócitos; Obriga a uma técnica de recolha aliada à estimulação ovária por indução hormonal, originando o risco de vida por hiperestimulação ovária, afectando as mulheres que se encontram em situação de maior fragilidade. 18 Subsidiariedade da PMA heteróloga em Portugal A dádiva de espermatozóides, ovócitos e embriões só é permitida quando, face aos conhecimentos médicocientíficos objectivamente disponíveis, não possa obter-se gravidez através do recurso a qualquer outra técnica que utilize os gâmetas dos beneficiários. A inseminação com sémen de um 3.º dador só pode verificar-se quando não seja possível realizar a gravidez através de inseminação com sémen do marido ou daquele que viva em união de facto com a mulher a inseminar, O que é também aplicável na fertilização in vitro com recurso a sémen ou ovócitos de dador e em relação a outras técnicas de PMA, como seja a injecção intracitoplasmática de espermatozóides ou a transferência de embriões, gâmetas ou zigotos. 19 Privilegia-se a correspondência entre a progenitura social e a progenitura biológica. No entanto, há conflito entre direitos fundamentais: – da pessoa nascida de PMA à identidade pessoal, do qual parece decorrer um direito ao conhecimento da sua ascendência genética (arts. 26.º, n.ºs 1 e 3, da CRP); – a constituir família e à intimidade da vida privada e familiar (arts 36.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da CRP). 20 Doutrina divergente: Diogo Leite de Campos: – inconstitucionalidade da regra do anonimato do dador, fundando-se no «direito de cada ser humano a conhecer a forma como foi gerado” ou o respectivo património genético». Guilherme de Oliveira: – o direito ao conhecimento das origens genéticas não assume um carácter absoluto, preconizando uma solução de equilíbrio em que se tenha em linha de conta outros interesses ou valores conflituantes, como a defesa da paz da família. 21 – Opinião também já expressa pelo TC: acórdão n.º 23/06: o direito à identidade pessoal, na sua dimensão de historicidade pessoal, implica a existência de meios legais para demonstração dos vínculos biológicos, mas «outros valores, para além da ilimitada recepção à averiguação da verdade biológica da filiação (...) possam intervir na ponderação dos interesses em causa, como que comprimindo a revelação da verdade biológica». – Decisão semelhante do TEDH, no caso Odièvre v. France, que aceitou, a respeito do regime legal francês do chamado "parto anónimo", que pudesse haver limites ao direito ao conhecimento das origens genéticas e que, nesta matéria, os Estados pudessem estabelecer restrições que assegurem a realização, segundo critérios de proporcionalidade, de todos os interesses em presença. 22 Conclusão - constitucionalidade A Lei n.º 32/2006 não estabelece uma regra definitiva de anonimato dos dadores, mas apenas uma regra prima facie, que admite excepções expressamente previstas. As pessoas nascidas na sequência da utilização de técnicas de PMA com recurso a dádiva de gâmetas ou embriões podem, junto dos competentes serviços de saúde, obter as informações de natureza genética que lhes digam respeito, Bem como informação sobre eventual existência de impedimento legal a um projectado casamento, E informações sobre a identidade dos dadores de gâmetas quando se verifiquem razões ponderosas, reconhecidas por sentença judicial. 23 São admissíveis soluções de equilíbrio ou de concordância prática. O reconhecimento de um direito ao conhecimento das origens genéticas não impede que o legislador possa modelar o exercício de um tal direito em função de outros interesses ou valores constitucionalmente tutelados, que possam reflectir-se no conceito mais amplo de identidade pessoal. Valoração da paz familiar e dos laços afectivos que ligam os membros da família. 24 Beneficiários das técnicas Cônjuges (não separados) e conviventes heterossexuais, há mais de 2 anos – Solução equivalente à francesa, que, contudo, exige que o casal esteja em idade de procriar). – Nota: opção diferente da feita para o instituto da adopção, onde se permite a adopção singular, sem fazer qualquer referência à orientação sexual do candidato, e onde se estabelecem limites etários máximos. 25 Inconstitucional por não prever idade máxima para os beneficiários? Pode uma mulher em idade avançada, que tenha já ultrapassado a sua própria idade fértil, recorrer às técnicas de PMA para procriar, através da doação de ovócitos? Protecção da família em termos que salvaguardem a dignidade humana, do direito à integridade física, ao desenvolvimento da personalidade, à saúde, à protecção na maternidade e à protecção da criança? 26 PMA - em benefício de quem tenha, pelo menos, 18 anos de idade e não se encontre interdito ou inabilitado por anomalia psíquica; Requisito etário por referência à idade mínima, mas não já à idade máxima. A CRP exige a protecção dos direitos do nascituro: o superior interesse da futura criança deve ser acautelado, de acordo com princípios básicos da ética médica e jurídica. 27 Conclusão: há limite! Essa protecção está afirmada na Lei n.º 32/2006, no art. 3.º: «as técnicas de PMA devem respeitar a dignidade humana». Limite de idade implícito: art. 4º - as técnicas de PMA são um método subsidiário, e não alternativo, e só poderão ser utilizadas quando tenha sido efectuado um prévio diagnóstico de infertilidade - ideia de que a mulher beneficiária se encontra em idade em que normalmente poderia procriar se não existisse um factor inibitório de natureza clínica que tenha afectado um dos membros do casal. 28 Espanha: qualquer mulher maior de idade, com plena capacidade de exercício. Não há limite máximo etário, mas: «as técnicas de procriação assistida só se realizarão quando haja possibilidades razoáveis de êxito e não impliquem risco grave para a saúde, física ou psíquica, da mulher ou da possível descendência». Itália: cônjuges e conviventes more uxorio heterossexuais, maiores de idade, e ainda numa «idade potencialmente fértil» (artigo 5.º, n.º 1, da Legge 19 febbraio 2004, n. 40) – sem duração mínima da relação. 29 INSEMINAÇÕES “CLANDESTINAS” França – numerosos casos. Ex: – Tribunal de Grande Instance de Bressuire: duas mulheres, que conviviam há mais de 10 anos, tinham recorrido ao esperma de um dador complacente, por duas vezes, a fim de se tornarem “mães”; nasceram duas crianças, que sempre viveram com as conviventes homossexuais. A relação entre as conviventes findou, sendo que a mãe biológica deixou de permitir que a ex-convivente as visitasse. O juiz conferiu-lhe o direito de visita. 30 A Comissão Europeia dos Direitos do Homem vs. M/Países Baixos A CEDH pronunciou-se pelo não recebimento da petição 16944/90, de 8 de Fevereiro de 1990, M/Países Baixos, que poderia vir a consubstanciar um processo interessante nesta matéria. A CEDH salientou que o facto de um homem ter dado o seu esperma para permitir a uma mulher conceber por inseminação artificial «não confere ao dador o direito ao respeito da sua vida familiar com a criança». O Requerente, casado, tinha aceitado doar o esperma para uma inseminação artificial, sensibilizando-se com um pedido de um casal lésbico que desejava ter e educar uma criança. 31 Durante a gravidez, o Requerente visitou regularmente o casal e, após o nascimento, esteve com a criança todas as tardes das Segundas-feiras, até esta completar 7 meses; Altura em que as conviventes, face ao pedido do pai biológico de passar um fim-de-semana por mês com a criança, cessaram relações com ele. Os juízes nacionais recusaram-lhe o direito de visita. O Requerente entendeu verificar-se uma violação do seu direito ao respeito e exercício da vida familiar, protegido pelo art. 8.º da Conv.EDH. A CEDH não concordou, pois nem a doação de esperma nem os contactos com a criança foram suficientes para estabelecer a prova de «relações pessoais estreitas em virtude do parentesco», constitutivos de uma vida familiar nos termos da Convenção. 32 Maternidade de Substituição A doutrina não é unânime: – Orientação restrita: apenas casos em que a mulher se compromete a levar até ao fim uma gravidez de um filho geneticamente seu, mas por conta de outros, dos comitentes – Sara e Abrão; – Orientação ampla: também inclui as situações em que a mulher “apenas” empresta o útero. 33 A substituição de uma mulher por outra na gestação e no parto, para satisfazer o desejo de ser mãe sentido pela primeira, é, em certa medida, uma variante da inseminação artificial heteróloga por parte de um dador (masculino) de esperma. No entanto, é ilícita em quase todos os direitos europeus. 34 O 1.º caso célebre: Baby M Um casal recorreu a um centro de tratamento de esterilidade, que operou como mediador entre o casal e uma mulher que estava disposta a ser fecundada com o sémen do cônjuge e a entregar a criança ao casal aquando do seu nascimento. A portadora da gravidez arrependeu-se, não querendo entregar a criança. Os cônjuges pediram ao Tribunal que a condenasse a tal, pois, por força do contrato realizado entre as partes, a criança deveria ser considerada filha do casal. 35 O Tribunal decidiu que as partes tinham celebrado um contrato válido, pelo que a criança deveria ser entregue aos cônjuges. Em sede de recurso, o Tribunal modificou a decisão, deliberando que os acordos de maternidade de substituição só eram válidos se constituíssem o resultado de um acto de liberdade da mãe portadora da gravidez. O Supremo Tribunal entregou a criança aos cônjuges, por entender que podiam garantir-lhe um crescimento mais sereno e equilibrado. 36 Maternidade de Substituição em Portugal «São nulos os negócios jurídicos, gratuitos ou onerosos, de maternidade de substituição». Entende-se por «“maternidade de substituição” qualquer situação em que a mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem e a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade». Nestes casos, será considerada mãe a parturiente. Aplicação de pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias para quem concretizar acordos deste tipo a título oneroso, bem como para quem promover a maternidade de substituição 37 Em Espanha Mais abrangente que a generalidade quanto aos eventuais beneficiários; Mas, considera igualmente nulos os acordos de maternidade de substituição. «Será nulo de pleno derecho el contrato por el que se convenga la gestación, con o sin precio, a cargo de una mujer que renuncia a la filiación materna a favor del contratante o de un tercero». 38 Em França «Toute convention portant sur la procréation ou la gestation pour le compte d’autrui est nulle». Proibição que se aplica tanto no caso em que a mulher é mãe genética, como naquele em que é apenas portadora (barriga de aluguer). O recurso ao instituto da adopção para contornar a proibição: 39 Procedimento frequente: uma mulher aceita ser inseminada com o esperma de um homem casado com uma mulher estéril; aquando do nascimento, a mãe biológica exerce o direito a não ser declarada como tal e o pai reconhece a criança. Detendo o pai as responsabilidades parentais, pode permitir a adopção da criança pelo cônjuge estéril, que beneficia do regime privilegiado aplicável a este tipo de adopção. 40 No entanto, Em 1989, o Tribunal de Grande Instance de Paris recusou decretar a relação adoptiva num destes casos, entendendo que os cônjuges visavam contornar uma prática ilícita, contrária ao interesse da criança; A Corte d’appel de Paris modificou a decisão, por considerar tratar-se de uma situação lícita; A Cour de Cassation decidiu que esta prática «atteinte aux principes de l’indisponibilité du corps humain et de l’état des personnes, ce processus constituait un détournement de l’institution». 41 Em Itália Antes da Lei n.º 40, de 19 de Fevereiro de 2004: os tribunais consideravam os acordos de maternidade de substituição nulos, por impossibilidade e ilicitude do objecto. Caso paradigmático - Valassina-Bedjaoui 42 O caso Valassina-Bedjaoui Os cônjuges Valassina, italianos, contrataram com uma argelina a maternidade de substituição. Esta mulher seria inseminada com o esperma do Sr. Valassina, obrigando-se a levar a gravidez até ao fim e a entregar a criança aos cônjuges, renunciando a qualquer direito sobre a criança. Os cônjuges entregar-lhe-iam uma prestação pecuniária correspectiva. Durante a gravidez a argelina tinha exigido, por diversas vezes, somas avultadas de dinheiro, obtendo-as efectivamente. 43 Aquando do nascimento, passou a usar a filha biológica para continuar a extorquir dinheiro ao casal, dando inclusivamente maus-tratos à criança e recusando-se a entregá-la. Perante esta situação, os cônjuges Valassina propuseram uma acção no Tribunal de Monza, a fim de obter a execução coerciva do contrato. Do ponto de vista civilístico, o juiz entendeu que o contrato era nulo. A noção de contrato no direito italiano refere-se a um acordo destinado a constituir, regular/modificar ou extinguir uma relação jurídica patrimonial. 44 Foi ainda considerado nulo por impossibilidade e ilicitude do objecto e ilicitude da causa; E, se o objectivo fosse o de contornar as normas do instituto da adopção (como em França), a nulidade adviria da fraude à lei. Assim, o cônjuge Valassina, pai biológico da criança, podia apenas, de acordo com o Tribunal, reconhecê-la, pedindo a inserção da mesma na sua família legítima, não obstante a mãe biológica ter idêntica faculdade. Se o pai conseguisse tal, a aspirante a mãe poderia recorrer às regras previstas para os casos de adopção especial. 45 Excepção à invalidade Tribunal de Roma (2000): «Il negozio atipico di maternità surrogata a titolo gratuito, in quanto diretto a realizzare un interesse (l'aspirazione della coppia infeconda alla realizzazione come genitori) meritevole di tutela secondo l'ordinamento giuridico, e non in contrasto con la disciplina relativa agli status familiari, né col divieto di atti di disposizione del proprio corpo, è pienamente lecito». – Refere o «direito fundamental da pessoa a ser progenitora e a avaliar e a fazer escolhas relativamente à necessidade de procriar, com a anotação de que o status parental pode completar-se na adopção mas também na transmissão do próprio património genético». – Existência de um direito a ser progenitor, constitucionalmente tutelado, em função da sua ligação ao direito de manifestar e desenvolver a personalidade, independentemente do evento natural do parto. 46 A Lei italiana n.º 40, de 2004 proibiu estes acordos: – «Chiunque, in qualsiasi forma, realizza, organizza o pubblicizza (...) la surrogazione di maternità è punito con la reclusione da tre mesi a due anni e con la multa da 600.000 a un milione di euro». – Acresce a proibição do recurso a técnicas de procriação medicamente assistida de tipo heterólogo (pelo menso para os casos em que não há só barriga de aluguer). 47 Mater semper certa est Em Itália e França, a mulher parturiente pode pretender não ser nominada como mãe da criança que nasce, permanecendo anónima - excepção ao brocado latino “mater semper certa est”. No entanto, em matéria de PMA, o legislador italiano afastou aquela possibilidade; já o francês foi silente, o que pode levar a um abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium. A opção francesa favorece a mãe relativamente ao cônjuge/convivente que tenha dado o consentimento para uma inseminação heteróloga, que, como princípio geral, «interdit toute action aux fins d’établissement ou de contestation de la filiation. 48 Direito fundamental de recorrer à PMA em Portugal Art. 36.º, n.º 1, da CRP: – «Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade». – O direito de constituir família é conferido a todos os cidadãos, – Art. 1576.º do CC: «São fontes das relações familiares o casamento, o parentesco, a afinidade e a adopção». 49 Notas O direito de procriar, reconhecido a todos os cidadãos em condições de plena igualdade, pode sofrer restrições, se respeitarem o art. 18.º da CRP -parâmetros de verificação necessária para a restrição direitos, liberdades e garantias. Em confronto com o direito fundamental a procriar poderá estar o supremo interesse da criança. Confronto com a adopção. 50 DIOGO LEITE DE CAMPOS: «Trata-se, diria, de uma necessidade fundamental de muitos seres humanos, de uma liberdade fundamental, a de procriar, que é, e deve ser, assegurada por constituições e leis ordinárias». JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS entendem poder extrair-se do art. 36.º «um direito fundamental, não apenas a procriar, mas também ao conhecimento e reconhecimento da paternidade e maternidade». GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA consideram «problemático (...) saber até que ponto é que o direito a ter filhos envolve um direito à inseminação artificial heteróloga (...) ou à gestação por “mãe de aluguer”». Todavia, definem o direito a constituir família como implicando «não apenas o direito a estabelecer vida em comum e o direito ao casamento, mas também um direito a ter filhos […]; direito que embora não seja essencial ao conceito de família e nem sequer o pressuponha, lhe vai naturalmente associado». 51 Nossa posição O direito a recorrer às técnicas de PMA é uma vertente do direito fundamental a constituir família; Logo, poderá ser limitado, mas Os seus limites terão de ser justificados pela tutela de outros valores conflituantes, de idêntica dignidade constitucional, Respeitando sempre todos os requisitos do art. 18.º da CRP. 52