ENSAIO
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BIOQUÍMICA Um minúsculo fungo ajuda a humanidade há muitos milênios
Pão e vinho: a arte
e a ciência da fermentação
Anita D. Panek
Departamento de Bioquímica, Instituto de Química,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
A
levedação do pão e a fermentação alcoólica são
as primeiras tecnologias de que se têm notícia.
Uma bola de farinha e água vai ao forno e um pão
macio e saboroso é retirado após alguns minutos.
Um suco de uva transforma-se em vinho e um repelente mingau de cevada e centeio torna-se uísque ou
cerveja. Em todos esses casos o ‘trabalho’ é feito por
uma levedura (um tipo de fungo), em um processo
usado há milênios pela humanidade para obter alimento e prazer.
Nesse processo, a célula da levedura metaboliza os açúcares presentes nas matérias-primas (farinhas ou sucos) e, através de reações químicas, libera resíduos – principalmente gás carbônico (CO2)
e etanol (álcool etílico) – que o homem aproveita.
Na levedação são usadas células que excretam mais
gás carbônico pela respiração e fazem crescer a
massa do pão, enquanto na fermentação o subproduto mais importante é o etanol, base de todas as bebidas alcoólicas. As leveduras mais usadas hoje, na
fabricação tanto de pães quanto de vinhos, são as do
gênero Saccharomyces.
Quando os homens começaram a desejar compreender o mundo em que viviam, buscaram em vão
Pintura antiga
que mostra
o confronto
entre cultos
pagãos
(em que havia
um deus
do vinho)
e a religião
cristã
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explicações para a transformação dos sucos de frutas em néctar que proporcionava prazer. Então,
voltaram-se para os deuses em busca de resposta.
Para os antigos egípcios, 5 mil anos antes de Cristo,
o deus Osiris, ao ver as agruras por que passavam
os homens, mandara aquela dádiva para amenizar a vida. Os gregos, depois, atribuíram a dádiva a
Dionísio, e os romanos ao deus Baco.
Coube ao microbiólogo francês Louis Pasteur
(1822-1895) demonstrar, em 1860, que a fermentação era promovida não pelos deuses, mas por células de levedura. Seu experimento foi simples: ele
ferveu um vinho em franca fermentação e observou
que esta cessava, pois as células da levedura morriam com o calor. Pasteur inaugurou o estudo da química dos seres vivos: a bioquímica. No entanto, a
seqüência de reações que leva à formação do álcool
a partir do açúcar só foi demonstrada no século 20.
Pão: amor, tempo e leveduras
Fazer pão é, sem dúvida, uma arte. Exige amor e
tempo. O pão originou-se na antiga civilização egípcia, por acaso, como tantos outros inventos. A mistura de farinha e água era deixada ao sol até que se
formassem bolhas e então assada entre pedras
aquecidas. Os egípcios não sabiam, claro, que as
bolhas decorriam do gás carbônico excretado pela
levedura como produto final da metabolização do
açúcar existente na farinha. Os judeus, na urgência
da fuga do Egito, não puderam esperar as bolhas e
levaram a mistura de farinha e água não levedada.
Tal fato é relembrado até hoje na Páscoa judaica,
quando é comido o chamado ‘pão ázimo’.
Com o tempo, os egípcios aprenderam a guardar
um pouco daquela massa com bolhas para juntá-la à
nova mistura. Essa ‘tecnologia’ revolucionou a arte
de fazer pão. Na Europa, era costume a mãe oferecer
um pouco de massa de pão em dote para a filha, com
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a idéia de que esta, no futuro, fizesse o mesmo com
sua filha, e assim sempre se comesse um bom pão.
Conta-se que os irmãos Fleischmann, austríacos, ao
visitarem uma irmã nos Estados Unidos, em 1865,
ficaram horrorizados com a qualidade do pão. Ao
emigrarem definitivamente, dois anos depois, levaram no bolso um pouco do lêvedo usado na casa da
mãe – e iniciaram a indústria de produção do lêvedo
prensado ou desidratado que existe, hoje, no mundo
inteiro.
As mitocôndrias são compartimentos responsáveis por grande parte da produção de energia nas
células. As leveduras são capazes de sobreviver com
ou sem essas organelas: no primeiro caso, respiram;
no segundo, fermentam. Para a fabricação de pão, as
células de levedura são produzidas em baixa concentração de glicose e na presença de muito oxigênio (aeração intensa), para que desenvolvam totalmente suas mitocôndrias. Em tais células, a metabolização do açúcar existente na massa do pão vai
até o resíduo final, o gás carbônico, que faz a massa crescer. A levedação do pão, portanto, não resulta
de uma fermentação e sim de um processo respiratório.
A textura e o sabor do pão dependem de uma boa
farinha. As melhores são as artesanais, em que os
grãos são moídos entre pedras. Os moinhos modernos aquecem os grãos, o que prejudica a qualidade
da farinha, já que o calor destrói as enzimas que
convertem o amido em açúcares ‘metabolizáveis’
pela levedura.
Não se pode ter pressa ao fazer pão. Uma massa
que cresce lentamente é mais saborosa que aquela
feita às pressas. A temperatura ideal é de 28°C, mas
em certas receitas a massa repousa na geladeira por
uma noite, favorecendo o sabor do produto final. O
ato de sovar promove a aeração da massa, e com isso
a levedura ‘respira’ melhor o açúcar: o ideal é sovar
duas vezes, deixando a massa crescer após cada vez.
Até o século 17, pelo menos, a massa não era sovada
e os pães pareciam pratos rasos. Aliás, ainda são
usados como pratos em pequenos povoados da
Sardenha (Itália). O gás carbônico resultante da respiração da levedura é retido pelas fibras protéicas
(glúten) da farinha, tornando o pão fofo e leve. A
receita não mudou muito desde o tempo dos antigos
egípcios. Exige tempo, calor e amor.
Vinho: os monges, a viúva e Pasteur
A história da produção de vinho acompanha a história da civilização. Acredita-se que o vinho já era
fabricado, no Cáucaso e na Mesopotâmia, há 8 mil
anos, e há cerca de 4 mil anos na Grécia. Os conquistadores romanos aprovaram a bebida e aprenderam a receita. Por volta de 3 mil anos atrás, o vinho já era consumido na Itália, França, Espanha, em
Portugal e no norte da África. Dizem que Cleópatra, rainha do Egito no século 1 a.C., gostava muito de vinho feito de tâmaras. Hoje, pela legislação,
vinho é o suco de uva fermentado. Qualquer outra
Casamento
matéria-prima usada precisa ser especificada no nocamponês,
me do produto.
pintado
No século 4 d.C., o imperador romano Constanem 1567 por
tino declarou o cristianismo a religião oficial do imPieter Bruegel
pério e baniu os velhos cultos pagãos. Assim, o vinho
(1525?-1569)
passou a ser um produto humano e não uma dádiva
divina: era feito com uvas pisadas e colocadas em
ânforas enterradas até a borda. As leveduras existentes na flora das
uvas faziam a fermentação.
Nas células de
A arte de elaborar o vilevedura, a metabolização do
nho foi bastante melhorada, na Idade Média, por
açúcar existente na massa do pão
monges, sobretudo os
vai até o resíduo final, o gás
beneditinos, com paciência e tempo disponícarbônico, que faz a massa crescer.
veis para suas experiênA levedação do pão, portanto, não
cias. Os monges deram
origem aos mosteiros e às
resulta de uma fermentação
missas, e o melhor vinho da
e sim de um processo
região era o consumido nas
igrejas. O imperador francês
respiratório
Carlos Magno, no século 8, dedicava toda a sua energia e seu tempo à burocracia e ao vinho. Doou à abadia
a colina de Corton, na Borgonha, e mandou cultivar
uvas brancas, alegando que o vinho tinto manchava
sua alva barba. Esse vinho até hoje tem o nome de
Corton-Charlemagne.
Além das igrejas e mosteiros, outra importante
instituição vivia em grande parte da produção de
vinho: os hospitais. O mais famoso, construído na
Borgonha no final da Idade Média (século 16) era o
Hotel de Dieu de Beaune. Os enfermos recebiam
uma ração diária, suficiente para toda a família, de
4,8 litros de vinho.
A fabricação do vinho é a química mais poética e
romântica que se conhece. Os vinhedos devem receber o sol da manhã para que as uvas amadureçam julho de 2003 • CIÊNCIA HOJE • 63
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Garrafas
de vinho
do século 18:
a primeira
à esquerda
é de 1708
e a última
de 1793
freqüência na hora de retirar a rolha. No final do
lentamente e o vento leve da tarde, para que sequem,
século 17, surgiram as rolhas de cortiça, e já na époevitando o crescimento de fungos. As uvas devem
ca recomendava-se guardar as garrafas de boca paser colhidas nas primeiras horas da manhã, ainda
ra baixo, para manter úmidas as rolhas, impedindo
cobertas de orvalho, e no momento de maturação
a entrada de ar.
em que toda a sacarose já se converteu em frutose e
Como falar em vinhos sem mencionar o chamglicose (o que faz cair o grau de acidez). Quando se
pagne? Ele foi criado na abadia de Hautvilliers, na
quer um vinho muito doce, deixam-se as uvas na
região de Champagne (França), quando o padre
videira até murcharem, processo conhecido como
Pierre Pérignon se tornou seu tesoureiro, em 1661.
podridão nobre, causado por um fungo da casca,
Na época, a região competia com a Borgonha na faBortrytis cinerea. Muitos pensam que o vinho branbricação de vinho tinto, mas seu produto era consico só é obtido de uvas brancas. Na verdade, o que dá
derado inferior. Por isso, a abadia decidiu fazer um
cor ao tinto é a casca vermelha: uvas vermelhas ferexcelente vinho branco. Pérignon estamentadas sem a casca também fornecem
beleceu as regras: colher as uvas nas
vinhos brancos.
primeiras horas da manhã, com
Antigamente, as uvas eram esMuitos pensam que
todo o cuidado, para não mamagadas – pisadas em grandes
chucá-las; descartar as machutinas (dornas) – em ambiente
o vinho branco só é obtido
cadas, para que as cascas não
ventilado, com o vento soprande uvas brancas. Na verdade,
tingissem o suco; transpordo para fora do local. Isso tamtá-las manualmente (caso
bém devia ocorrer nas adegas,
o que dá cor ao tinto é a casca
fosse preciso usar animais,
onde ficavam as dornas de fervermelha: uvas vermelhas
deveriam ser mulas, menos
mentação. No processo artenervosas que cavalos); prensanal, verificava-se a fermenfermentadas sem a casca
sar rapidamente e separar
tação pelo ‘chapéu’ que aparetambém fornecem
o suco das cascas. Tudo isso
cia na dorna: as bolhas de gás
era
feito em três semanas, com os
carbônico levantavam as cascas
vinhos brancos
operários trabalhando em ritmo dee os pecíolos, formando uma camasumano.
da grossa e rígida (dizia-se que suportaTodas as noites, na época da colheita, Péva o peso de um homem). Com isso, o processo se
rignon provava as uvas que seriam colhidas de madesenvolvia sem oxigênio (anaerobiose), garantindo
drugada, mas nunca desfrutou do vinho: era absque o etanol formado não fosse respirado pela levetêmio. As exigências do padre asseguravam a quadura, o que diminuiria o teor alcoólico. Quando o
lidade e o alto preço do champagne. Mas persistiam
‘chapéu’ caía, sabia-se que a fermentação havia terdois problemas, após a fermentação: a borra e o conminado, e o vinho era então filtrado.
tato com o ar. Eliminava-se a borra por sucessivas
Na época, a principal preocupação dos fabricantransferências para barris limpos, mas isso autes e comerciantes era vender o vinho o quanto anmentava o contato com o ar, prejudicando a consertes, pois este se transformava rapidamente em vinavação. O champagne perdurou como não espumangre, mesmo em ânforas altas (grandes barris), e ninte por mais de 100 anos, e o pouco sedimento que
guém sabia por quê. Mais tarde, descobriu-se que
ainda restava era disfarçado pelas partes onduladas
uma bactéria fermentava o álcool, gerando ácido
das taças cônicas (flutes) francesas.
acético. A invenção da garrafa e da rolha (a grande
Para tornar o vinho espumante era preciso aucontribuição do século 17 ao vinho) amenizou o promentar a concentração de açúcar e permitir uma seblema. Com isso, as bactérias presentes no vinho na
gunda fermentação nas garrafas (o acúmulo de gás
hora do engarrafamento tinham pouco oxigênio discarbônico nestas produz a espuma). As garrafas,
ponível e sua reprodução tornava-se mais lenta.
porém, não suportavam a pressão: de 20% a 90%
As primeiras rolhas eram de vidro esmerilhaexplodiam, dependendo da safra. Em meados do sédo e estouravam se a fermentação continuasse na
culo 18 o fundo das garrafas foi modificado e a rolha
garrafa, e as próprias garrafas quebravam-se com
passou a ser presa ao gargalo com barbante bem grosso (hoje, com arames). Crescia a reputação do
champagne efervescente, mas a tecnologia para sua
produção avançava pouco. As garrafas ainda estouravam durante a segunda fermentação.
Embora o champagne fosse “a única bebida que
não afeta a beleza feminina”, segundo a célebre
madame Pompadour, amante do rei Luiz XIV, ape-
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nas uma mulher ficou famosa na história desse tipo
de vinho. Se o perfeccionismo do padre Pérignon fez
do champagne o vinho dos reis e príncipes, coube a
Nicole Clicquot, que enviuvou em 1807, aos 27 anos,
com uma filha para criar, convertê-lo na bebida das
celebrações.
A Rússia tornou-se seu maior mercado e, para
abastecê-lo, ela teve que inovar a tecnologia. Para
retirar a borra, o vinho era transferido para novas
garrafas e o espaço deixado (quase um terço de cada
garrafa) era preenchido com xarope de açúcar e
aguardente. A segunda fermentação, na garrafa, tornava o vinho espumante e com maior teor alcoólico.
Um de seus empregados teve a idéia de manter as
A solução apresentada pelo cientista foi aquecer
garrafas emborcadas (depois inclinadas) e girá-las
as garrafas arrolhadas em uma espécie de banholentamente, com uma leve trepidação, para concenmaria: o processo leva o seu nome (pasteurização) e
trar a borra na rolha e não nas paredes. Essa etapa
é feito hoje em equipamentos industriais. Além de
levava um ano e até hoje chama-se remuage. Ao tromelhorar o vinho exportado, a medida alegrou os
car a rolha não era preciso decantar, bastava acresmarinheiros franceses, que passaram a desfrutar de
centar xarope. Mas as garrafas ainda explodiam. Em
um vinho menos desagradável. A pasteurização mos1828, ela perdeu 80% da produção.
trou ter inúmeras aplicações, sobretudo na conserO problema era calcular a quantidade certa de
vação do leite.
açúcar necessária à segunda fermentação, de forma
Os vinhos de mesa têm 12% de álcool. Nos via produzir um volume de gás adequado para a garnhos fortificados, como o vinho do Porto (Portugal), o
rafa. Em 1836, o químico alemão Adolf F. Brix (1798Tokay (Hungria) e o Jerez (Espanha), a fermentação
1870) inventou o sacarímetro, que permitiu avaliar
é interrompida antes que todo o açúcar seja metaboo teor de açúcar, e com isso a quebra caiu para 15/
lizado, e adiciona-se aguardente (também de uva),
20%. Ainda assim, usava-se uma máscara de arame
para elevar o teor alcoólico até 18%. Tais vinhos prepara proteger o rosto nas adegas. Para que
cisam ser envelhecidos em estufas queno champagne chegasse à sua forma
tes por meses, e por isso, no século
atual, faltava apenas eliminar
18, os barris viajavam em naEmbora as modernas
a doçura, que na época da
vios até as Índias e voltavam à
viúva o tornava um vinho de
Inglaterra para então serem
tecnologias de DNA
sobremesa. Isso aconteceu
consumidos. O vermute
recombinante permitam a
em meados do século 19,
também descende do vicom a redução da quannho, e originou-se de uma
utilização das leveduras para
tidade de xarope acresantiga prática, a de misproduzir proteínas como insulina,
centado. Atualmente, o
turar ervas amargas,
champagne doce contém
açúcar e aguardente a um
interferon ou hormônio de
50g/l, o seco 35g/l e o brut,
vinho de mesa. O gosto
crescimento, o pão e o vinho
no máximo, 15g/l.
amargo dessa bebida deEm 1862, o imperador
corre do acréscimo do abpodem ser considerados
Luiz Napoleão chamou Passinto (Arthemisia absinthium)
suas obras-primas
teur para consultá-lo sobre um
e de diversas ervas.
grave problema: as exportações de
Embora as modernas tecnologias
vinho estavam no auge, mas este ainda
de DNA recombinante permitam a utiliazedava nas garrafas. Para encontrar uma solução,
zação das leveduras para produzir proteínas
Pasteur colheu material em várias adegas da Borgocomo insulina, interferon ou hormônio de crescinha e, em seu microscópio, constatou a presença de
mento, o pão e o vinho podem ser considerados suas
bactérias. Ele descobriu que essas bactérias só soobras-primas. Saborear vinho é um hábito recente
breviviam e proliferavam na presença de oxigênio:
entre os brasileiros, mas já ocupamos o décimo lusem contato com o ar, o vinho não azedava. Mais
gar entre os conhecedores de bons vinhos. Combitarde essa bactéria ganhou o nome de Acetobacter
nar as características do vinho com o sabor e os temaceti, ela usa o oxigênio do ar para fermentar o álperos de uma iguaria é uma ciência para os bons
cool e transformá-lo em ácido acético (que confere
conhecedores. Apreciar um bom pão e um grande
o sabor típico do vinagre).
vinho faz parte da arte do saber viver.
A terra de
Cocagne,
pintado
em 1567 por
Pieter Bruegel
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