JOSÉ EVANDRO PEREIRA DA SILVA COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA JULGAR OS ACUSADOS DO MENSALÃO SEM PRERROGATIVA DE FORO Monografia apresentada ao curso de graduação em nome de José Evandro Pereira da Silva da Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Direito Orientador: Joel Arruda de Souza Brasília 2012 Monografia de autoria de José Evandro Pereira da Silva, intitulada “COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA JULGAR OS ACUSADOS DO MENSALÃO SEM PRERROGATIVA DE FORO” apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito da Universidade Católica de Brasília, em ,defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinada. __________________________________________________________ Prof. Joel Arruda de Souza Orientador Direito/Direito Constitucional – UCB __________________________________________________________ Prof. __________________________________________________________ Prof. Brasília 2012 RESUMO Referência: PEREIRA DA SILVA, José Evandro. Competência do Supremo Tribunal Federal para julgar os acusados do mensalão sem prerrogativa de foro. 2012. 67 Páginas. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Direito – Universidade de Brasília, Brasília, 2012. Estuda-se com a presente monografia os institutos do juiz natural e o garantismo, bem como a competência do Supremo Tribunal Federal em matéria penal para julgar aqueles com foro “privilegiado”, explica-se, também, a conexão e continência como fenômenos atrativos à competência originária dos acusados do “mensalão” (Ação Penal 470) que não a detém. Apresenta um panorama geral sobre a supremacia dos tratados internacionais sobre direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, evidenciando que, como normas infraconstitucionais que são não podem nunca ser perpassadas a aplicação de seus princípios expressos. Reverencia ao status supralegal que estas Convenções carregam. Analisa o Pacto de São José da Costa Rica e a imperativa ordem de aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição, devido processo legal e do juiz natural, focando-os como garantias fundamentais que eles são. Examina a consequência da lesão ao princípio duplo grau de jurisdição, para os acusados do “mensalão”, que não têm sua matéria devidamente reexaminada por outro órgão julgador, verifica-se que só se considerará juiz natural o órgão judiciário cujo poder de julgar derive de fontes constitucionais. Enfoca que esta ilegalidade, por ser matéria de ordem pública pode ser reconhecida a qualquer tempo, determinando o justo desmembramento deste processo, garantindo a aplicação dos ínsitos princípios constitucionais, concertandoo, desta forma, o choque entre normas hierarquicamente diversas (Pacto de São José da Costa Rica versus Código de Processo Penal). Palavras-chave: Conexão e continência. “Mensalão”. Supremo Tribunal Federal. ABSTRACT He studied up to the present monograph the institutes of natural judge and guaranteeism as well as the competence of the Supreme Court in criminal court to try those "privileged", explained also the connection and continence phenomena as attractive jurisdiction originally accused of the "monthly allowance" (Criminal Action 470) than holds. It presents an overview of the supremacy of international treaties on human rights in the Brazilian legal system, showing that standards can’t pervade infra principles expressed in these conventions, in reverence to the supralegal status that they cary, as the two levels of jurisdiction . Analyzes the principle of the legal process and of the natural judge, focusing on them as fundamental guarantees. Demonstrates that a judge only will be considered natural or a competent autority the judicial body that power derives from the constitutional sources. Examines the result of injury to the principle of natural judge, demonstrating the process is invalid because of the incompetence generated by the absolute disregard of constitutional rules on jurisdiction. Analyzes the Súmula 704 of the Supremo Tribunal Federal, its precedents and proposes limits to its application. Examines how this súmula has been applied in the Superior Courts, noting that a rule merely procedural, as is the connection and continence, should not have the power to ward off the natural judge set by the Federal Constitution, as has been occurring with the indiscriminately application of this command sumulado. Keywords: Connection and continence. “Mensalão”. Supremo Tribunal Federal. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 6 2 JUIZ NATURAL ....................................................................................................... 8 2.1 BREVE HISTÓRICO ............................................................................................ 8 2.2 O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA ............. 8 2.3 NATUREZA GARANTISTA. DIREITO INDIVIDUAL. CLÁUSULA PÉTREA .... 13 3 COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL .................................... 17 3.1 PREVISÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ...................................... 17 3.2 FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO .................................................... 20 3.2.1 DIFERENÇA ENTRE FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E FORO PRIVILEGIADO .................................................................................................................................. 22 3.3 COMPETÊNCIA POR CONEXÃO OU CONTINÊNCIA .................................... 22 3.3.1 EFEITOS DA CONEXÃO E CONTINÊNCIA ............................................................... 25 3.3.2 ESPÉCIES DE CONEXÃO ..................................................................................... 26 3.3.3 DA CONTINÊNCIA ............................................................................................... 28 3.3.4 COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA , EM AÇÃO PENAL , JULGAR CORRÉUS EM FACE DA CONEXÃO E CONTINÊNCIA ................................. 29 4 PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA ........................................................... 39 4.1 NATUREZA JURÍDICA ...................................................................................... 39 4.1.1 TRATADO INTERNACIONAL E SUA APLICAÇÃO ....................................... 46 4.2 GARANTIA DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO ............................................. 55 4.2.1 CASO ‘MENSALÃO ” ............................................................................................. 59 5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 64 6. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA..........................................................................66 6 1 INTRODUÇÃO O objeto do presente estudo visa, considerando os princípios constitucionais do juiz natural e, de forma implícita, o do duplo grau de jurisdição, a luz, também, da Convenção Americana de Direitos Humanos, defender a inconstitucionalidade do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, dos corréus do caso “mensalão”, Ação Penal nº 470, que não detém foro por prerrogativa de função. No capítulo a ser destinado sobre o princípio do juiz natural, este será abordado em sua origem, momento histórico de criação e evolução em outros países ao longo do tempo. Será visto, também, à luz da Constituição Federal de 1988, a aplicação de tal princípio, seu desenvolvimento, e, outrossim, legitimado pela corrente garantista, sua proteção à dignidade humana. Na segunda abordagem temática do presente trabalho esmiuçaremos a competência originária do Supremo Tribunal Federal para, em matéria penal, processar e julgar aqueles que detêm prerrogativa de foro. Estabelecerá a diferença entre as terminologias prerrogativa de função e foro privilegiado, estudando também, como o fenômeno da conexão e continência, altera a competência originária dos corréus sem prerrogativa de foro para um julgamento único, sem a garantia, para tanto, de usufruir do seu direito ao duplo grau de jurisdição. No último capítulo, destinado à análise do Pacto de San José da Costa Rica, dará se enfoque nas discussões historicamente travadas acerca da natureza jurídica dos tratados internacionais, a evolução destes na hierarquia normativa brasileira até atingirem, os que versam sobre direito humanos, a atual posição hierárquica de norma supralegal. Após esta vitória hierárquica piramidal, demonstrar-se-á que o princípio do duplo grau de jurisdição, expressamente contido no Pacto, implicitamente dessumido na Carta Magna de 1988, visa assegurar a máxima proteção dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, impondo-se, sempre, contra quaisquer procedimentos legais atrativos de competência. Assim, na parte conclusiva desta monografia, asseverar-se-á o imperativo, em razão dos fundamentos construídos, pelo necessário, para não dizer Constitucional desmembramento do julgamento dos corréus da Ação Penal 470, vulgo “mensalão”, privilegiando o respeito à ordem constitucionalmente estabelecida aos Tratados 7 Internacionais de Direitos Humanos, e também a correta aplicação de seus princípios frente a gritante injustiça praticada contra estes infortunados. 8 2 JUIZ NATURAL 2.1 BREVE HISTÓRICO Propedeuticamente, o princípio do juiz natural, em sua origem, desenvolveuse na ordem jurídica anglossaxônica e se derramou, posteriormente, nos constitucionalismos norteamericano e francês, identificando-se nos dias de hoje, pura e simplesmente com a proibição dos denominados tribunais de exceção. Nos dizeres dos brilhantes doutrinadores Magalhães Gomes Filho, Scarance Fernandes e Ada Pelegrini Grinover acerca do nascimento do juiz natural e sua ramificação: A competência territorial, erigida em princípio constitucional, é a nota original das Cartas de Direitos americanas do Séc. XVIII, confluindo na Emenda VI, de 1971, à Constituição Federal de 1787, que proclama: “Em todos os processos criminais o acusado terá direito a julgamento pronto e público por um júri imparcial do Estado e distrito onde o crime tiver sido 1 cometido, distrito previamente determinado por lei” . Entretanto, como no caso da França, o princípio em debate fora alocado apenas em termos abstratos, sem objetivismo em sua aplicação, satisfazendo, os tribunais e a legislação francesa em uma única garantia do juiz natural, a proibição de tribunais de exceção. Em contrapartida os outros sistemas constitucionais, no particular o da Bélgica, Espanha, Alemanha e Portugal, espanca a proibição de justiças especializadas, mantendo o princípio do juiz natural em sua dúplice garantia: a da vedação de juízos extraordinários e a da proibição da derrogação de competência. 2.2 O PRINCÍPIO DO JUIZ NATURAL NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS O princípio do Juiz Natural, manteve-se previsto em praticamente todas as constituições brasileiras, com exceção da constituição de 1937. Vejamos: 1 GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades do processo penal / Ada Peregrine Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes.12. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 42 9 Já na primeira Constituição em 1824, veio contemplado da seguinte forma: “Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte. (...) XI. Ninguém será sentenciado, senão pela Autoridade competente, por virtude de Lei anterior, e na forma por ela prescrita; (...) XVII. À exceção das causas, que por sua natureza pertencem a juízos particulares, na conformidade das leis, não haverá foro privilegiado, nem 2 comissões especiais nas causas cíveis, ou crimes.” A Constituição de 1891 previa da seguinte forma: “Art 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...) § 15 - Ninguém será sentenciado senão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior e na forma por ela regulada. (...) § 23 - À exceção das causas que, por sua natureza, pertencem a Juízos 3 especiais, não haverá foro privilegiado.” Constituição de 1934: Art 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...) 25) Não haverá foro privilegiado nem Tribunais de exceção; admitem-se, porém, Juízos especiais em razão da natureza das causas; 26) Ninguém será processado, nem sentenciado senão pela autoridade 4 competente, em virtude de lei anterior ao fato, e na forma por ela prescrita; Constituição de 1946: Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: 2 3 4 Art. 179, inciso XI, XVII, da Constituição Federal de 1824. Art. 72, § 13, §23, da Constituição Federal de 1891. Art. 113, 25 e 26, da Constituição Federal de 1934 10 (...) § 26 - Não haverá foro privilegiado nem Juízes e Tribunais de exceção; § 27 - Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade 5 competente e na forma de lei anterior; Constituição de 1967: Art 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) § 15 - A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela Inerentes. Não haverá foro privilegiado nem Tribunais de exceção. (...) Emenda constitucional de 1969: (...) Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos têrmos seguintes: (...) § 15. A lei assegurará ao acusados ampla defesa, com os recursos a ela 6 inerentes. Não haverá fôro privilegiado nem tribunais de exceção. E por fim, previsto no art. 5º, incisos XXXVII e LIII da Constituição Federal de 1988, visa garantir basicamente a imparcialidade e segurança jurídica contra possíveis arbitrariedades impostas pelo Estado. Princípio taxativo na Constituição Federal com a seguinte redação: Art. 5º (...) XXXVII – Não haverá juízo ou tribunal de exceção; (...) LIII – Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; Dessarte, pode-se entender que, juiz natural é aquele integrado no Poder Judiciário, com garantias institucionais e pessoais previstas na Constitucional 5 Art. 1441, §25 e §27, da Constituição Federal de 1946. Art. 150, § 15, da Constituição Federal de 1967, alterado pela Emenda constitucional de 1969. Art. 153, §15. 6 11 Federal garantindo que cada cidadão tem o direito de saber antecipadamente por qual juízo será processado e julgado, caso venha a cometer algum delito. Entendese como princípio básico do juiz natural como um juiz previamente estabelecido. Nos dizeres dos anteriormente citados doutrinadores: A expressão constitucional do art. 5º inciso LIII, (“Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”), deve ser lida, portanto, como garantia do juízo constitucionalmente competente para processar e julgar. Não será juiz natural, por isso, o juiz constitucionalmente incompetente e o processo por ele instruído e julgado deverá ser tido como 7 inexistente . Juiz natural é assim, aquele previamente conhecido, segundo regras objetivas de competência estabelecidas anteriormente à infração penal, investido de garantias que lhe assegurem absoluta independência e imparcialidade. Eugênio Pacelli de Oliveira explica que: “(...) a subtração ao juiz cuja competência seja prevista na Constituição, é dizer, o seu afastamento por quaisquer critérios que não constituam exceção de natureza constitucional, configurará sempre violação à regra do juiz natural, seja como instituição do juiz ou tribunal de exceção, maculandose a impessoalidade que devem imperar na distribuição de jurisdição, seja 8 como inadequação do serviço estatal prestado” . Esse foi, igualmente, o entendimento do Min. Marco Aurélio, em julgamento cujo pronunciamento destaca-se o seguinte trecho: “A competência do Supremo é de direito estrito e está prevista em diploma de envergadura maior - a Constituição Federal. Normas instrumentais comuns não acarretam o aditamento a essa mesma competência, a ponto de apanhar situações concretas em que envolvido quem não detém a prerrogativa de foro. Aliás, quanto à prerrogativa de foro, vejo-a como uma exceção e, por isso mesmo, interpreto as normas que a revelam de forma estrita. Há mais, verifica-se o envolvimento de cidadãos que teriam, constitucionalmente, direito a certos juízos naturais. E a atração do processo para esta Corte, sem norma constitucional que a preveja, acaba por ferir de morte - é o meu convencimento - o princípio do juiz natural, o princípio do devido processo legal, até porque ocorrerá julgamento em penada única, aspecto negativo da própria prerrogativa de foro, quando normalmente existe a possibilidade de revisão de possível decreto condenatório. O Supremo também pode errar quer na arte de proceder, 9 quer na de julgar e, decidindo, não há a quem recorrer. 7 GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades do processo penal / Ada Peregrine Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes. 12. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 44. a 8 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 16 ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 254-255. 9 Inq 2.462, Rel. Min. Cezar Peluso. 12 O princípio em análise veda o tribunal de exceção que é a criação de um órgão jurisdicional após o cometimento do ato litigioso para julgar este fato, configurando assim a sua imparcialidade. Vejamos o posicionamento de Alexandre de Morais a respeito do Juiz Natural: O referido princípio deve ser interpretado em sua plenitude, de forma a proibir-se, não só a criação e tribunais ou juízos de exceção, mas também de respeito absoluto às regras objetivas de determinação de competência, para que não seja afetada a independência e imparcialidade do órgão 10 julgador . Diversamente do que ocorre com a competência de foro, que não é constitucionalmente atribuída, o vício, no caso de não respeitado o princípio do juiz natural, poderá levar à nulidade de qualquer ato judicial, mas não sua inexistência, emanado de um juízo ou tribunal que houver sido instituído após a prática de determinados fatos criminosos, especificamente para processar e julgar determinadas pessoas. Faz-se mister esclarecer que no ordenamento jurídico brasileiro, a proibição da constituição de tribunais de exceção não significa impedimento à criação de justiça especializada ou de vara especializada, já que, nesse caso, apenas são reservados a determinados órgãos, inseridos na estrutura judiciária fixada na própria Constituição, o julgamento de matérias específicas. Coadunado com tal pensamento, Marcelo Novelino ensina que: A criação de varas especializadas, a competência determinada por prerrogativa de função, a instituição de câmaras de férias em tribunais, o julgamento proferido por órgão colegiado composto por juízes convocados e as hipóteses de desaforamento previstas no Código de Processo Penal não caracterizam uma ofensa ao princípio do juiz natural, tendo em vista que em 11 todas as situações as regras são gerais, abstrata e impessoais . Assim, concluímos que além de proibir o juízo ou tribunal de exceção o princípio do Juiz Natural tem como finalidade garantir fundamentalmente o julgamento por órgão investido de jurisdição com todas as garantias institucionais e pessoais previstas na Constituição Federal. Em síntese o princípio do juiz natural, estabelece que só podem exercer jurisdição os órgãos instituídos pela Constituição Federal, fonte primária do juiz natural; ninguém poderá ser processado e julgado por órgão jurisdicional criado 10 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p.75. NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 5ª ed. Rio de Janeiro. Forense: São Paulo, Método, 2011. p. 504 11 13 após o fato delituoso e que entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competência que impede qualquer discricionariedade. 2.3 NATUREZA GARANTISTA. DIREITO INDIVIDUAL. CLÁUSULA PÉTREA No nosso atual Estado democrático de direito, a eficácia concreta dos direitos fundamentais depende de um mecanismo que permita a sua garantia frente a tutela jurisdicional efetiva, isso porque, sem ela, o possuidor do direito não disporá desta necessária proteção do Estado ao seu pleno gozo. A efetiva tutela jurisdicional não se dessume-se apenas a uma garantia, mas, ela própria, também é um direito fundamental, sendo que sua irrestrita eficácia deve ser assegurada, em reverência o mor princípio, qual seja da dignidade da pessoa humana. No expecto do Direito Processual procura-se normativizar o exercício da jurisdição através de princípios e regras que conferem ao processo a mais ampla efetividade, o maior alcance prático e o menor custo possível na proteção concreta dos direitos dos cidadãos. Mas, tudo isso não significa que os fins justifiquem os meios. Veja que, como toda relação jurídica plurissubjetiva, complexa e dinâmica, o processo em si mesmo impende moldar-se e desenvolver-se com absoluto respeito ao primado da dignidade da pessoa humana, principalmente às partes deste processo, de tal forma que a justiça do seu resultado se coloque, antes de tudo, assegurada na implementação de regras mais propícias à ampla e equilibrada participação dos interessados, bem como a isento e adequado conhecimento do juiz, somando, também, a verificação da verdade objetiva: um meio justo para um fim justo. Na nossa Carta Magna, o garantismo do processo humanizado, alicerça-se prioritariamente nos incisos XXXV, LIV e LV do artigo 5º, onde firmam as garantias da inafastabilidade da tutela jurisdicional, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, sem esquecermos nos já citados princípios gerais da administração pública, bem como, também, no princípio da isonomia, no da fundamentação das decisões, dentre outros expressamente contidos em nossa Constituição Federal. Muitos doutrinadores entendem que a garantia revela em seu conteúdo a proteção do princípio da legalidade, com a nítida finalidade de, por meio dele, assegurar a independência no dia a dia da função jurisdicional. A vigência deste se 14 condicionaria pela atuação do legislador na elaboração das regras legais de competência. O que era antes como fiança da jurisdição penal, hoje alcança todas as espécies de jurisdição. Assim, a garantia do juiz natural tem por escopo primário garantir a igualdade de acesso à justiça de todos os cidadãos e, também, a paridade de tratamento. Veja que, o art. 14, § 1º, do Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas proclama: Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil. A imprensa e o público poderão ser excluídos de parte ou da totalidade de um julgamento, que por motivo de moral pública, de ordem pública ou de segurança nacional em uma sociedade democrática, quer quando o interesse da vida privada das partes o exija, quer na medida em que isso seja estritamente necessário na opinião da justiça, em circunstâncias específicas, nas quais a publicidade venha a prejudicar os interesses da justiça; entretanto, qualquer sentença proferida em matéria penal ou civil deverá tornar-se pública, a menos que o interesse de menores exija procedimento oposto, ou o processo diga respeito a controvérsia 12 matrimoniais ou á tutela de menores . A luz da determinação dessa igualdade, se no mesmo lugar coabitarem dois ou mais órgãos jurisdicionais concorrentemente competentes para as mesmas causas, essa escolha deve-se impor por critério absolutamente objetivo e impessoal, geral, aplicável a qualquer outro caso idêntico, não podendo resultar do arbítrio nem de qualquer dos jurisdicionados, nem de qualquer dos juízes ou de outra autoridade judiciária, administrativa ou legislativa. O Princípio do juiz natural é segurança na aplicação típica às regras de competência absoluta, não podendo coexistir dois ou mais juízos competentes para a mesma causa, entre as quais qualquer sujeito possa exercer um direito de escolha. A segurança na predeterminação legal do órgão e do seu ente é, pois, acepção dúplice: objetivo ou orgânico e subjetivo ou pessoal. Entretanto, não basta apenas que o órgão esteja precitado na lei, com anterioridade e generalidade, e um muito mais, a pessoa do juiz que exercerá a jurisdição do órgão deve nele ter sido investida através do procedimento legalmente previsto, particularizando pela 12 Direitos civis e políticos das Nações Unidas, disponível em http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/pacto_dir_politicos.htm>. Acessado em 01/09/2012. 15 utilização do critério de escolha impreterivelmente impessoal, utilizável a todos os casos idênticos. No voto do douto Ministro Marco Aurélio, no julgamento da famigerada Ação Penal 470 – caso mensalão – dispõe, preservando o juiz natural frente a atração dos corréus para o julgamento no Supremo Tribunal Federal daqueles que não têm foro por prerrogativa de função, que: Cumpre salientar, mais, que é inerente à cidadania o princípio do juiz natural. Os acusados não detentores de tal prerrogativa têm o direito ao devido processo legal e este há de fazer-se presente com a atuação da primeira instância e a recorribilidade cabível. O cidadão tem o direito de saber quem o acusará em nome do Estado e quem, também em nome deste, o julgará, premissa conducente à existência das duas figuras, a do promotor natural e a do juiz natural, definidas, sob o ângulo da individualização, pelo arcabouço normativo. Não me impressiona a argumentação concernente à possibilidade de decisões conflitantes em relação a corréus, pois estas são próprias ao sistema e podem ser corrigidas, podem ser afastadas, mediante o manejo do sistema recursal previsto no ordenamento jurídico. [...] Por tais razões – salientando a necessidade de este Tribunal mostrar- se rigoroso com a preservação de princípios, porquanto, em Direito, o meio justifica o fim, mas não este aquele, principalmente quando em jogo o juiz natural, ou seja, aquele adrede constituído para julgamento da ação –, acolho a questão de ordem suscitada para determinar o desmembramento da Ação Penal no 470/MG em relação aos réus não detentores da prerrogativa de foro, observando-se o aproveitamento dos atos processuais até aqui realizados. Vale dizer, o processo irá à primeira instância 13 aparelhado para apreciação. A ação de determinar como critério incidente antes dos fatos, ou antes de que se torne evidente a perspectiva de sua apreciação judicial, ou antes do início do próprio processo, não é um dogma absoluto, pois a racionalização do serviço judiciário e a eficácia da prestação jurisdicional podem exigir alterações na competência. O primordial, a luz do garantismo, é de que essas modificações obedeçam à reserva de lei e sejam procedidas por critérios absolutamente objetivos e gerais, o que gera a segurança de que não tiveram por finalidade subtrair a causa de um juiz imparcial, mas seguem submetendo-a às regras gerais aplicáveis a todos os cidadãos em igualdade de condições. Ainda que o primado da legalidade requeira a atuação de todos os órgãos do Estado, o juiz natural ou juiz legal, dentro dos direitos e garantias fundamentais do 13 Voto Min. Marco Aurélio - AP 470.< http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20120806-09.pdf>. Acesssado em 15/09/2012 16 processo, somente se aplica ao juízo previamente definido, e não ao Ministério Público ou aos serventuários. Vejamos: A chamada garantia do promotor natural é, no máximo, uma peculiaridade do Direito brasileiro, e não uma garantia fundamental do processo imposta pela dignidade humana do réu. Não existe o direito fundamental do acusado a um determinado acusador. A impessoalidade do Estado impõe paridade de tratamento, mas não vinculação do exercício da função pública a um determinado órgão ou a um determinado agente. A paridade de tratamento é que pode ficar comprometida pelo promotor natural, sem falar no interesse público que pode vir a ser sacrificado pela conduta pessoal deste ou daquele representante do Ministério Público. Trata-se de um extremismo autoritário que, a pretexto de subtrair o interesse público do arbítrio do 14 Procurador-Geral, submete-o ao arbítrio do promotor natural . A especialização de competências, até mesmo em benefício de órgãos de outros Poderes, como ocorre com o Senado no julgamento de crimes de responsabilidade do Presidente da República, também não viola a garantia do juiz natural. O que se opõe ao juiz natural é o juiz de exceção, criado para julgar determinadas situações, casos ou fatos particulares. 14 V.em Firly Nascimento Filho, “Princípios Constitucionais do Direito Processual Civil, in Os Princípios da Constituição de 1988, obra coletiva comemorativa dos 60 anos da PUC-Rio, ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2001, pág.320, várias decisões do Superior Tribunal de Justiça, que repudiaram o princípio (HC 1.669/GO, HC 12.616/MG, ROMS 745/RJ, RESP 11.722/SP, RESP 2.123/ES e RESP 9.132/AC); em Nelson Nery Junior, ob.cit., págs. 122/126, a defesa do princípio como inerente ao Estado de Direito, citando acórdão do Supremo Tribunal Federal que o acolheu (HC 67.759). 17 3 COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL A competência do STF está prevista na Constituição Federal como: originária com fulcro no art. 102, I, “a” a “r”; recursal ordinária prevista no art. 102, II e recursal extraordinária com base no art. 102, III. A competência originária ocorre quando o STF é acionado diretamente através de ações que lhe cabe processar e julgar. Essa competência elenca a função precípua do STF que é realizar o controle de constitucionalidade do Direito Brasileiro, ou seja, é competência exclusiva do STF o julgamento de ações diretas de inconstitucionalidade por omissão e as ações declaratórias de constitucionalidade. 3.1 PREVISÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 A discussão na Constituinte sobre a instituição de uma Corte Constitucional, que deveria ocupar-se, fundamentadamente, do controle de constitucionalidade, acabou por permitir que o Supremo Tribunal Federal não só mantivesse sua competência tradicional, com algumas restrições, como, também, adquirir-se novas e significantes contribuições. A Constituição de 1988 ampliou significativamente a competência originária do Supremo Tribunal Federal especialmente no que concerne ao controle de constitucionalidade de leis e atos normativos e ao controle da omissão inconstitucional. A atual Magna Carta (CF de 1988), vale-se de diferentes critérios para fixar a competência dos órgãos jurisdicionais: “compete ao Supremo Tribunal Federal, o julgamento das infrações cometidas pelo Presidente da República, vice-presidente, deputados federais, senadores, seus próprios ministros, procurador-geral da República, advogado-geral da União, ministros de Estado, comandantes das Forças Armadas, ministros dos Tribunais superiores, membros do Tribunal de 15 Contas da União, chefes de missão diplomática de caráter permanente” “compete ao Superior Tribunal de Justiça, o julgamento das infrações cometidas pelos governadores dos Estados e Distrito Federal, desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, membros do Tribunal Regional Federal, membros dos Tribunais 15 Art. 102, inciso I, alíneas "b" e "c" da CF/8 18 Regionais Eleitorais do Trabalho, membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, membros do Ministério Público da União que oficiem 16 perante os Tribunais”; compete ao Superior Tribunal Militar, o julgamento de crimes militares, e 17 oficiais generais das Forças Armadas”; “compete aos Tribunais Regionais Federais o julgamento de infrações cometidas por juízes federais, juízes do Trabalho, juízes auditores da Justiça Militar, membros do Ministério Público Federal que oficiem em 18 Primeira Instância”; “compete ao Tribunais Regionais Eleitorais o julgamento nos crimes 19 eleitorais e a eles conexos, juízes e promotores de justiça eleitorais”; “compete aos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal o julgamento de prefeitos, juízes estaduais, membros do Ministério Publico 20 Estadual. ”. Veja que, no Agravo Regimental nº 1.738, de relatoria do ministro Celso de Mello, ficou consignado que o princípio da reserva constitucional de competência originária e, assim, toda a atribuição do Supremo Tribunal Federal está explicitada, taxativamente, no art. 102, I, da CF/8821. A competência do STF – cujos fundamentos repousam na CR – submete-se a regime de direito estrito. A competência originária do STF, por qualificarse como um complexo de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente constitucional – e ante o regime de direito estrito a que se acha submetida –, não comporta a possibilidade de ser estendida a situações que extravasem os limites fixados, em numerus clausus, pelo rol exaustivo inscrito no art. 102, I, da CR. Precedentes. O regime de direito estrito, a que se submete a definição dessa competência institucional, tem levado o STF, por efeito da taxatividade do rol constante da Carta Política, a afastar, do âmbito de suas atribuições jurisdicionais originárias, o processo e o julgamento de causas de natureza civil que não se acham inscritas no texto constitucional (ações populares, ações civis públicas, ações cautelares, ações ordinárias, ações declaratórias e medidas cautelares), mesmo que instauradas contra o presidente da República ou contra qualquer das autoridades, que, em matéria penal (CF, art. 102, I, b e c), dispõem de prerrogativa de foro perante a Corte Suprema ou que, em sede de mandado de segurança, estão sujeitas à jurisdição imediata do Tribunal 22 (CF, art. 102, I, d). A Competência originária para o exercício do controle concentrado, e como órgão de cúpula do Poder Originário, cabe originariamente ao STF o julgamento das mais altas autoridades da República. No que cerne as infrações penais comuns, serão julgados pelo STF o presidente e o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios 16 Art. 105, inciso I, alínea "a" da CF/88 Art. 6º, inciso I, alínea "a", da Lei 8.457/92 18 Art. 108, inciso I, da CF/88 19 Art. 29, inciso I, alínea "d" da Lei 4.737/65 20 Art. 29, inciso X; art. 96, inciso III da CF/88 21 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2011. 22 Precedentes. Pet 1.738-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 1º-9-1999, Plenário, DJ de 1º-10-1999. 17 19 ministros e o Procurador-Geral da República (CF, art. 102, I, b). Assim, alude o ilustre doutrinador Marcelo novelinho. Na linguagem constitucional, crime comum é utilizado em contraposição aos impropriamente chamados crimes de responsabilidade, cuja sanção é política. Por conseguinte, o termo abrange todas as modalidades de infrações penais, inclusive os delitos eleitorais e as contravenções. Em razão da especialidade deste dispositivo, a norma que garante a instituição do júri (CF, art. 5º, XXXVIII) não se aplica às autoridades com prerrogativa 23 de foro perante o STF. E continua: Nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvada a competência do Senado no caso de crime de responsabilidade ser conexo com o praticado pelo Presidente da República, os membros dos Tribunais Superiores, do Tribunal de Conta da União e os 24 chefes de missão Diplomática de caráter permanente (CF, art. 102, I, “c”). Em relação às causas cíveis, por efeito da taxatividade do rol consagrado na Constituição Federal e pelo regime de direito estrito a que se submete a definição da competência institucional do STF, impõe-se-lhes o afastamento do âmbito das atribuições jurisdicionais originárias de processo e julgamento. Desta forma, a prerrogativa de foro de que dispõem algumas Autoridades nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, não se estende a ações populares, cíveis cautelares, dentre outras.. O Supremo Tribunal Federal possui orientação firmada no sentido de que inexiste foro por prerrogativa de função nas ações de improbidade administrativa. Não obstante, o Tribunal entendeu ser de sua competência o julgamento quando essas ações forem ajuizadas contra seus próprios membros, sob o fundamento de que submetê-los a julgamento perante um juiz de 1º grau quebraria a sistemática adotada pela Constituição em relação ao judiciário. Ainda em relação ao tema, o Supremo adotou o entendimento de que a constituição não admite a concorrência entre dois regimentos de responsabilidade político-administrativa para os agentes políticos. 23 NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 5ª ed. Rio de Janeiro. Forense: São Paulo, METODO, 2011. 24 NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 5ª ed. Rio de Janeiro. Forense: São Paulo, METODO, 2011. 20 Assim, no que tange ao aos crimes com competência determinada com base no foro por prerrogativa de função, cumpre, ainda, salientar várias questões que serão relacionadas mais adiante. 3.2 FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO Pode-se conceituar prerrogativa de foro como um mecanismo jurídico designado para viabilizar o processo e julgamento, de forma originária, de determinadas pessoas (investidas de relevantes cargos públicos) acusadas pela prática de crimes penais comuns ou mesmo de responsabilidade, por tribunal, de segunda instância, ou superior. Segundo as palavras do emérito professor Renato Brasileiro, conceitua-se o foro por prerrogativa de função: Em face da relevância das funções desempenhadas por certos agentes, a Constituição Federal, as Constituições Estaduais e a legislação infraconstitucional lhes conferem o direito de serem julgados por Tribunais. 25 Cuida-se da denominada competência ratione funcionae Essa jurisdição especial, muito embora seja criticada por dar privilégios a entes políticos (ou até mesmo por não ser nenhum privilégio, em se tratando de julgamento em última instância), não visa alocá-los acima dos cidadãos comuns, e sim, tem como finalidade, conceder uma maior segurança aos julgamentos de pessoas investidas de cargos de maior relevância. Coadunado com o pensamento supra, é o entendimento do Ilustre processualista penal Tourinho Filho, observe: Há pessoas que exercem cargos de especial relevância no Estado, e em atenção a esses cargos ou funções que exercem no cenário político-jurídico da nossa Pátria gozam elas de foro especial, isto é, não serão processados e julgadas como qualquer do povo, pelos órgãos comuns, mas pelos órgãos 26 superiores, de instâncias mais elevada . Para alguns, essa modalidade de competência, se dá em razão da pessoa, ratione personae, levando-se em consideração a característica específica das partes envolvidas no processo. 25 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol. I, 2. ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012. p. 663. 26 TORINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, 15. ed. rev. e de acordo com lei 12.403/2011. São Paulo, Saraiva, 2012. p. 320. 21 Fala-se de competência ratione personae quando determinadas pessoas, “em razão da alta relevância da função que desempenham, têm o direito ao 27 julgamento por um órgão de maior graduação.” Mas, para outros, sendo a maioria esmagadora, e, também, o pensamento dominante na doutrina, que esta competência não é em razão da pessoa do acusado e sim com relação a função relevante que este agente ocupa na administração. Neste sentido ensina-nos Renato Brasileiro: Essa jurisdição especial assegurada a certas funções públicas tem como matriz o interesse maior da sociedade de que aqueles que ocupam certos cargos possam exercê-los em sua plenitude, com alto grau de autonomia e independência, a partir da convicção de que seus atos, se eventualmente questionados, serão julgados de forma imparcial por um Tribunal. Como se percebe, a competência por prerrogativa de função é estabelecida não em virtude da pessoa que exerce determinada função, mas sim como instrumento que visa a resguardar a função exercida pelo agente. Daí o motivo pelo qual preferimos utilizar a expressão ratione funcionae em 28 detrimento de ratione personae . Assevera-se, que essa condição especial de processamento é concedido ao agente público, à pessoa, entretanto em nítida atenção à importância ou relevância do cargo ou função que exerça. Chama-nos atenção Tourinho Filho de que: (...) a competência funcional originária ratione personae vel muneris é exercida em uma única instância. Não existe para ela o duplo grau de jurisdição. Embora se presuma o acerto das decisões dos órgãos superiores, visto que colegiados, o ideal seria, e ainda o acalentamos, atuassem os Tribunais, no processo e julgamento das pessoas subordinadas às suas jurisdições, pelas suas Câmaras ou Turmas, isto é, pelos seus órgãos fracionários, funcionando o plenário como órgão de 2º 29 grau . A especialidade que nos trás o foro por prerrogativa de função em contraponto com princípios sensíveis da Constituição Federal , a exemplo o da isonomia e do juiz natural, possuindo uma ratio própria de existir, específica, justificável, que transforma o termo privilégio, no sentido pejorativo da palavra, para prerrogativa essencial ao bom exercício da função pública. 27 TÁVORA, Nestor et al. Curso de Direito Processual Penal. 3. ed. Bahia: JusPODIVM, 2009. p.215. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol I, 2ª ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012. p. 321 29 TORINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, 15. ed. rer. e de acordo com lei 12.403/2011. São Paulo, Saraiva, 2012. p. 321. 28 22 Dessarte, em uma Constituição Federal que pretende tratar igualitariamente as pessoas comuns, as situações de prerrogativa de foro, pelo privilégio que de certa forma conferem, devem ser interpretadas restritivamente. 3.2.1 DIFERENÇA ENTRE FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO E FORO PRIVILEGIADO Para dissertar sobre a diferença de tais institutos, cumpre-se ter, como ponto de partida, as palavras de Tourinho Filho que diz: “o privilégio decorre de benefício à pessoa, ao passo que a prerrogativa envolve a função”30. Aqueles que militam a presença da prerrogativa de função asseveram que ela sustenta a função e atividade de determinado cargo, em outras palavras, faz parte do interesse público atribuir foro privilegiado a certas pessoas. “Quando a Constituição proíbe o "foro privilegiado", ela está vedando o privilégio em razão das qualidades pessoais, atributos de nascimento.”31. Entretanto, a necessária prerrogativa de função “dá-se tratamento especial não à pessoa, mas ao cargo ou função que exerce, de especial relevância para o Estado”32. Destarte, tecnicamente asseverasse incorreto proferir que determinado agente público tem foro privilegiado, mas sim, melhor se diz que tal agente tem um foro diferente dos outros cidadãos em função do cargo que ocupa. Assim, esta blindagem a outros foros somente se sustenta quando o agente público “estiver em efetivo exercício, não se estendendo àquele que estiver licenciado, ainda que no exercício de outra função, para a qual não se assegure a mesma garantia” 33. 3.3 COMPETÊNCIA POR CONEXÃO OU CONTINÊNCIA Conexão e continência são institutos, previsto nos artigos 76 e 77 do Código de Processo Penal, com a finalidade de reunir processos, obtendo com esta uma maior celeridade processual e segurança nos julgamentos reunidos. 30 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 15. ed. rev. e de acordo com a Lei n. 12.403/2011. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 322. 31 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, Vol I. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 122. 32 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 10ª Ed., São Paulo: Atlas, 2000. p. 67. 33 OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 202. 23 Nos dizeres do professor Renato Brasileiro, a conexão e continência se dão: Em determinadas circunstancias, em virtude da intima ligação entre dois ou mais fatos delituosos, ou entre duas ou mais pessoas que praticaram um mesmo crime, apresenta-se conveniente a reunião de todos eles em um si processo, com julgamento único (simultaneus processus). Além de possibilitar a existência de um processo único, contribuindo para a celeridade e economia processual, a conexão e a continência permitem que o órgão jurisdicional tenha uma perfeita visão do quadro probatória 34 evitando-se, ademais, a existência de decisões contraditórias. A conexão é um instrumento processual usado para reunir mais de um processo, quando o delito praticado em ambos encontra-se a esse vinculado, garantido, por meio desse nexo, ao julgador uma melhor análise das provas e simultaneamente de um melhor entendimento dos fatos, podendo dessa forma, aplicar a justiça com mais segurança. O Emérito Doutrinador Tourinho Filho, em sua obra Manual de Processo Penal, conceitua a conexão como: A conexão é o nexo, a dependência recíproca que as coisas e os fatos guardam entre si; disjunção é a separação delas, separação forçada, por isso mesmo que o todo criminal deve ser indivisível. A conexão existe quando duas ou mais infrações estiverem entrelaçadas por um vínculo, um nexo que aconselha a junção dos processos, propiciando assim ao julgador perfeita visão do quadro probatório e, de consequência, melhor conhecimento dos fatos, de todos os fatos, de molde 35 a poder entregar a prestação jurisdicional com firmeza e justiça. Por sua vez, a continência é uma forma de conexão acrescida de outros requisitos. Ela é estabelecida quando uma demanda, em face de seus elementos, quais sejam, partes, pedidos e causa de pedir, estiver contida em outra. Cuida-se, pois, de “um vínculo jurídico entre duas ou mais pessoas, ou entre dois ou mais fatos delitivos, de forma análoga a continente e conteúdo, de tal modo que um fato delitivo contém as duas ou mais pessoas, ou uma conduta humana contém dois ou mais fatos delitivos, tendo como consequência jurídica, salvo causa impeditiva a reunião de duas ou mais pessoas, ou dos dois ou mais fatos delitivos, em um único processo penal, 36 perante o mesmo órgão jurisdicional”. Dá-se a continência quando uma causa estiver contida em outra, não havendo, dessa forma, possibilidade de cingir uma da outra. 34 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol. I, 2ª ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012.p. 778. 35 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 15ª. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2012.p. 360. 36 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol I, 2ª ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012.p. 783. apud FEITOSA, Denilson. Direito processual penal.: teoria, crítica e práxis.7ª ed. Niteroi/RJ: Editora Impetus, 2010. 24 A continência, comumente falando, salvo a hipótese daquela decorrente do concurso formal por um só agente, verifica-se na suposição de concurso de pessoas, coautoria ou participação, estando aí a causa de pedir (causa petendi). Conclui-se que, como o fato é o mesmo (caso de coautoria e de participação) ou a conduta é uma só (no caso de concurso formal), a continência está em função de identidade da causa petendi ou da unidade de conduta. Por essas razões, não se concebe a pluralidade de processos quando a causa de pedir (penal) é a mesma. Portanto, dá-se a continência entre duas ou mais ações sempre que há identidade quanto às partes e à causa de pedir, mas o objeto de uma, por ser mais amplo, abrange o das outras. O respeitado doutrinador, Fernando da Costa Tourinho Filho, no que diz respeito a concurso de jurisdição de diversas categorias, defende que: “(...) se houver conexão ou continência envolvendo pessoas que devam ser processadas e julgadas pelo STF, ou STJ, ou Tribunal Regional Federal, e outras não elencadas nos arts. 102, 105 e 108 da CF? A competência desses Tribunais vem fixada na Lei Maior. Como nesta não existe nenhuma regra explícita, ou implícita, permitindo-lhes o julgamento de outras pessoas além daquelas ali elencadas, e não podendo a lei ordinária alterar-lhes a competência, segue-se deva haver a disjunção dos processos. Na verdade, se a Constituição não permite a esses Tribunais o julgamento de outras pessoas, como poderia ocorrer o simultaneus processus? Não se pode alterar a competência por prerrogativa de foro fixada na Constituição a não ser por meio de emenda constitucional. É possível que a solução não seja justa, em face das inconveniências resultantes da cisão dos processos; contudo é legal, e, além do mais, parece-nos um não senso dar ao texto constitucional interpretação extensiva. Poder-se-á dizer que a Lei Maior não trata da conexão. Não é verdade. A Carta de 1946, no seu art. 119, VII, e a Emenda Constitucional nº 1/69, no seu art. 137, VII, diziam competir à Justiça Eleitoral o processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos 37 comuns que lhe fossem conexos (...)” . Conexão e continência são, a toda evidência, causas de modificação da competência em abstrato. O único caso de modificação da competência em concreto é o desaforamento. Em melhor explicação, alude o ínclito doutrinador Vicente Greco Filho, sendo citado na obra do professor Renato Brasileiro, afirmando que: (...) é costume que a conexão e a continência modificam a competência. Essa afirmação, porém, somente é válida no que concerne à competência em abstrato, ou seja, no caminho que se desenvolve antes da fixação definitiva, em concreto. O desaforamento, sim, modifica a competência em a FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Manual de Processo Penal. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 365/366. 37 25 concreto, depois de definitiva. A conexão e a continência atuam antes dessa 38 definição. Assim, mais a frente, veremos como se opera a conexão e continência no Processo Penal Brasileiro. 3.3.1 EFEITOS DA CONEXÃO E CONTINÊNCIA A conexão e continência tem como preceito básico o fato de que os processos que contenham vínculo, ao invés de ser julgado independentemente, deve ter sua matéria apreciada em conjunto. Vejamos o posicionamento do doutrinador Tourinho Filho: Conclui-se dessas noções, com facilidade, que a conexão tem como efeito a unidade dos processos, isto é, todas as infrações interligadas ratione conexitatis devem ocorrer em um simultaneus processus, e, por consequência, deflui daí outro efeito, que é o prorrogatio fori. De fato. Se um crime foi cometido em Taquaritinga e outro em Itápolis, havendo entre ele conexão, ambos serão apreciados em um só processo, que, obviamente, 39 tramitará por esta ou aquela comarca. Haverá, pois, prorrogação do foro. Dessa forma, além da economia processual amplamente demostrada, a conexão e a continência, radiando-se no seus efeitos, evitam, também, a divergência no julgamento. Entretanto, com relação à competência absoluta extraída da Constituição, a exemplo, Tribunal do Júri, foro por prerrogativa de função originária e outras, tem-se que a continência, em relação à sua aplicação, não perfaz nenhum resultado. Em outras palavras, esclarece-nos o já citado Professor Renato Brasileiro, “na medida em que conexão e a continência funcionam como critérios de alteração da competência, só poderão incidir sobre hipóteses de competência relativa” 40. Rememore-se que a competência absoluta não pode ser modificada, ou seja, é inderrogável. A título de exemplo, a competência da Justiça Militar e da Justiça eleitoral prevista na Constituição Federal é determinada em razão da matéria, espécie de competência absoluta, ainda que haja conexão entre crimes militares e eleitorais, não será possível a reunião dos feitos de nenhuma forma (simultaneus 38 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol. I, 2ª ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012. p. 779. apud GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 160 39 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 15ª. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 360. 40 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol. I, 2ª ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012.p. 778 26 processus). Logo, só se admite que a conexão e a continência venham alterar a competência relativa e nunca a absoluta. Veja que, a luz da jurisprudência, eventual violação às regras de conexão e continência dão ensejo, apenas, em uma nulidade relativa, sendo que após seu conhecimento, sob pena de preclusão, fica estabelecido o marco para sua arguição, além de claro, para a ocorrência desta junção, a comprovação do prejuízo alegado. Exemplifica a Súmula 122 do STJ: “Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Processo Penal”, sendo que na eventual conexão ou continência entre crimes estaduais e federais, deve prevalecer o último. Não obstante, é claro, caso haja o julgamento em separado destes processos, nada impede, depois, de junta-los, efetuando a soma das penas quando da execução destas. 3.3.2 ESPÉCIES DE CONEXÃO Dentre as ligações, os nexos que determinam a conexão, podem ser conceituadas como: intersubjetivas; objetiva e instrumental. Assim, passemos à primeira: a conexão intersubjetiva, prevista no art. 76, I, do Código de Processo Penal, que, para a conceituarmos, teremos ainda que explicar suas três subdivisões. Conexão Intersubjetiva por Simultaneidade: Esta, também, é conhecida como subjetiva-objetiva ou meramente ocasional. Em explicação exemplificada de Tourinho Filho41, esta modalidade de conexão ocorre quando duas ou mais pessoas andando por uma estrada veem um caminhão tombado. Sua carga: latas de óleo e produtos de limpeza. Sem qualquer entendimento entre elas, cada uma apanha o que pode. Haverá destarte, tantos furtos quantos forem os autores; tudo em face do art. 76, I, 1ª parte, do Código de Processo Penal42 e do art. 7943 do mesmo estatuto haverá só um processo. Conexão intersubjetiva por concurso, denominada também conexão subjetiva concursal: Esta, também é exemplificada por Tourinho Filho da seguinte forma: 41 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 15ª. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 360/361. 42 Art. 76. A competência será determinada pela conexão: I – se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas (...). 43 Art. 79. A conexão e a continência importarão unidade de processo e julgamento (...) 27 quando duas ou mais pessoas combinam praticar duas ou mais infrações – furto de carro para assalto a banco; quadrilha ou bando e crimes cometidos pelos quadrilheiros etc. Conexão intersubjetiva por reciprocidade: nesta, Tourinho Filho exemplifica assim: após uma partida de futebol, torcedores das duas equipes em campo passam à luta causando lesões leves e graves entre si. Como analisado, na conexão intersubjetiva, não há importância se as pessoas cometem o crime em reciprocidade ou coautoria. Os crimes se tornam conexos desde que o mesmo fato seja cometido por mais de uma pessoa. Concluise que a conexão reuni ações penais no mesmo processo, funcionando como causa de modificação de competência relativa mediante a prorrogação de competência. O inciso II do art. 76 do Código de Processo Penal prevê a conexão objetiva ou lógica nos seguintes termos: “Se no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas”. A conexão objetiva, pode ser delineada como a intersubjetiva na qual há um liame entre dois ou mais fatos tipificados como crime, mas sem a necessária existência de dois ou mais agentes praticando o fato. Nestes termos, o que é possível notar é que a diferença entre a conexão intersubjetiva e a conexão objetiva abriga-se no fato de que naquela, haverá a existência de dois ou mais agentes praticando fatos criminosos, o que não se exige nesta – logo, ainda é possível, então, concluir que, mostra-se perfeitamente viável a identificação de conexões ao mesmo tempo intersubjetivas e objetivas. A conexão objetiva que também pode ser denominada material não só por ser tratada no CP como também em face das inúmeras consequências de ordem penal que apresenta, subdivide-se em conexão objetiva lógica ou material e conexão objetiva teleológica. A conexão objetiva lógica ou material ocorre quando um crime é cometido para facilitar ou assegurar a ocultação, impunidade ou vantagem em relação a outro. A conexão objetiva teleológica é aquela na qual o agente pratica um crime para facilitar a prática de um Segundo. A conexão instrumental ou probatória, também chamada conexão processual, cuida o inciso III do art. 76 do CPP. “Quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração”. 28 A conexão probatória ou instrumental fundamenta-se na influência que a prova de um crime exerce na existência de outro. Assim defende Tourinho Filho: “Se a prova de uma infração influi na prova de outra, é evidente deva haver unidade de processo e julgamento, pois, do contrário, teria o Juiz de suspender o julgamento de uma, aguardando a decisão quanto à outra.” Assim, não há qualquer exigência de relação entre o tempo e o espaço dos delitos praticados, entende-se que a prova de um crime tem total capacidade para influenciar na prova de outro. 3.3.3 DA CONTINÊNCIA A continência é configurada quando uma causa está contida na outra, o que impõe que o julgamento de todos seja realizado em conjunto. Neste sentido, Renato Brasileiro de Lima cita em, sua obra, entendimento de Denílson Feitosa: Cuida-se, pois de “um vínculo jurídico entre duas ou mais pessoas, ou entre dois ou mais fatos delitivos, de forma análoga a continente e conteúdo, de tal modo que um fato delitivo, contém as duas ou mais pessoas, ou uma conduta humana contém dois ou mais fatos delitivos, tendo como consequência jurídica, salvo causa impeditiva a reunião das duas ou mais pessoas, ou dos dois ou mais fatos delitivos, em um único processo penal, 44 perante o mesmo órgão jurisdicional”. Fundamentando tal pensamento, é o que dispões o art. 77 do Código de Processo Penal, in verbis: Art. 77 – A competência será determinada pela continência quando: I – duas ou mais pessoas forem acusadas pela mesma infração; II – no caso de infração cometida nas condições previstas nos arts. 70, 73 e 74 do código penal. Partindo dessa condição, doutrinadores classificam a continência em objetiva e subjetiva. A primeira é definida quando os crimes forem cometidos em concurso formal, aberratio ictus ou erro na execução (art. 70 e art. 73, segunda parte, ambos do CP ) e aberracio delicti ou resultado diverso do pretendido (art. 74, segunda parte, do CP). A segunda ocorrerá quando duas ou mais pessoas forem acusadas da mesma 44 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol I, 2ª ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012.p. 783. apud FEITOSA, Denilson. Direito processual penal.: teoria, crítica e práxis.7ª ed. Niteroi/RJ: Editora Impetus, 2010. 29 infração penal, ou seja, concurso eventual de pessoas (art. 29 do CP). Desta feita, a continência se realiza de forma cumulativa subjetiva quando existe a ocorrência de apenas um crime praticado em concurso de agentes. Por outro lado, a continência por cumulação objetiva se verifica quando da existência fática de diversos fatos, que, no entanto, para o Direito Penal, são examinados em um mesmo continente. Destarte, a continência, por conta de determinado agente que pratica inúmeras condutas em crime continuado, as reuni em um só continente, entendendo ter havido um só crime ocorrido de forma parcelar, merecendo o réu que seja punido por um só crime, mas com a exasperação da pena. Em relação ao aberratio criminis de resultado duplo, a ideia é a mesma – o agente visa praticar determinado crime, mas por erro acaba por praticar o crime que desejava, mais um outro crime que não desejava, mas que ocorreu por culpa sua. Nestes casos teremos o concurso formal próprio ou perfeito de crimes. Quanto a aberratio ictus de resultado duplo, o erro é quanto à execução, quanto à pontaria. Aqui também teremos um concurso formal próprio de crimes, ou seja, o agente, embora tenha cometido duas condutas criminosas, será punido somente por uma, exasperando-se a pena. E finalmente, também verificamos a continência em outros casos de concurso formal próprio eventualmente diversos dos antes mencionados. Todavia, a solução será a mesma, o Direito Penal examina todos os fatos ocorridos e o trata como um só continente, de modo que, ainda que existam dois processos criminais sobre tais fatos, a continência haverá de reunir estes referidos processos para que se garanta uma decisão coerente e passível a se garantir a mais ampla defesa e a melhor análise global das provas existentes. 3.3.4 COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PARA , EM AÇÃO PENAL , JULGAR CORRÉUS EM FACE DA CONEXÃO E CONTINÊNCIA Denomina-se como competência rationae funcionae ou personae, o foro especial atribuído àqueles agentes públicos investidos de significativos cargos da administração. Não é, como já explicado anteriormente, um privilégio à pessoa e sim à proteção da “honra” destes cargos com maior relevo na estrutura do Estado. 30 Desse modo, para que esses cargos possam ser exercidos com a necessária independência, a Constituição Federal atribuiu competência originária aos tribunais (ratione personae vel muneris), que para o exato entendimento deste tópico destacase a competência originária do Supremo Tribunal Federal. Nos dizeres do festejado voto, do então revisor da ação penal 470, Ricardo Lewandowski, temos que: (...) o julgamento desses agentes públicos por juízos singulares ou por órgão colegiados de instâncias inferiores, mais vulneráveis teoricamente, a pressões populares, políticas ou midiáticas, poderia resultar em decisões que, no limite, teriam o condão de comprometer a própria ordem 45 democrática. Tal proteção (competência originária do Supremo Tribunal Federal), extremamente necessária a estes cargos relevantes, foram pela Constituição estipulados taxativamente como competência excepcional e, como tal, só podendo ser utilizada em situações igualmente excepcionais. Dispondo acerca desta excepcionalidade, o emérito doutrinador Alexandre de Morais, citando o decano Ministro Celso de Mello, nos explica que: A competência originária do Supremo Tribunal Federal, conforme acentua Celso de Mello, qualifica-se como “um complexo de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente constitucional”, não comportando a possibilidade de extensão, que “extravasem os limites fixados em numerus clausus pelo rol exaustivo inscrito no art. 102, I, da Carta Política”. Além dessa competência, o Supremo também deve processar e julgar originariamente os casos em que os direitos fundamentais das mais altas autoridades da república estiverem sob ameaça ou concreta violação, ou quando estas autoridades estiverem violando direitos fundamentais dos 46 cidadãos (CF, art. 102, I, d, i e q). E mais, o professor Renato Brasileiro, ao comentar sobre o foro especial, determinada na Constituição Federal, alerta dizendo que: (...) Constituição Federal que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, as hipóteses de prerrogativa de foro, pelo privilégio que de certa forma conferem, devem ser interpretadas restritivamente. Não restam dúvidas que tal foro, por decorrer de expressa estipulação da lei maior, não fere, com base no entendimento jurisprudencial e doutrinário, princípios como o da isonomia, duplo grau de jurisdição ou mesmo do devido processo legal e seus corolários. 45 Voto Min. Ricardo Lewandowski, AP 470 – disponibilizado <http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20120803-07.pdf>. Acessado em 15/09/2012 46 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 200. p.489. 31 Gize-se que, para fundamentar os dizeres alhures, o professor Renato Brasileiro ajuda-nos dizendo: Essa excepcionalidade do foro por prerrogativa de função em face de preceitos sensíveis da Constituição Federal, como o da isonomia e do juiz natural, possui uma razão de ser própria, específica, justificável, que transmuda sua conotação de privilégio, no sentido pejorativo da palavra, para prerrogativa especial ao bom exercício da função. Por tal motivo em uma Constituição Federal que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, as hipóteses de prerrogativa de foro, pelo privilégio que de certa 47 forma confere, devem ser interpretadas restritivamente. E continua: Acusados com foro por prerrogativa de função não tem direito ao duplo grau de jurisdição, aí entendido como a possibilidade de reexame integral da sentença de primeiro grau a ser confirmado a órgão diverso do que a proferiu e de hierarquia superior na ordem judiciária. Não obstante a previsão expressa do duplo grau de jurisdição na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), entendeu o Supremo Tribunal Federal que, como a Constituição Federal silenciou acerca do cabimento de recursos ordinários nos casos de competência originária dos 48 Tribunais, não poderia o direito infraconstitucional instituí-los. A resposta desta celeuma, se dá numa reflexão mais aprofundada e interpretativa da Constituição Federal e seus princípios explícitos e implícitos, bem como quanto aos impactos constitucionais trazidos pelo Código de Processo Penal nas hipóteses de conexão e continência, não devendo os artigos 76, 77 e 78, este especificamente nos incisos III e IV, reunir os processos daqueles que não detêm foro por prerrogativa de função. O teor do acórdão prolatado no RHC nº 79.785, este negando a existência do princípio do duplo grau de jurisdição àqueles com foro especial, fomentou-se, como uma de suas bases o status hierárquico que a corte guardiã da Constituição Federal emprestava aos tratados internacionais de direitos humanos à época, qual seja, o de lei comum/ordinária. Toda a vez que a constituição prescreveu para determinada causa a competência originária de um tribunal, de duas uma: ou, também previu recurso ordinário de sua decisão (CF, arts. 102, inc. II, a; 105, inc. II, “a” e “b”; 121, § 4º, incs. III, IV e V) ou, não o tendo estabelecido, é que o proibiu. Em tais hipóteses, o recurso ordinário contra decisões de tribunal, que ela mesma não criou, a Constituição não admite que o institua o direito infraconstitucional, seja lei ordinária, seja convenção internacional: é que, afora os casos de justiça do trabalho – que não estão em causa – e da justiça Militar – na qual o STM não se superpõe ao outros Tribunais -, assim 47 48 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol I, 2ª ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012. p. 663. Op cit. p. 667 32 como as do Supremo Tribunal, com relação a todos os demais Tribunais e juízos do País, também as competências recursais dos outros Tribunais Superiores – o STJ e o TSE – estão enumeradas taxat5ivamente na constituição, e só a emenda constitucional poderia ampliar. À falta de órgãos constitucionais ad quo, no sistema constitucional, indispensáveis a viabilizar a aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição aos processos de competência originária dos Tribunais, segue-se a incompatibilidade com a Constituição da aplicação no caso da norma internacional de outorga da 49 garantia invocada Tal decisão fora acertada à época, mas atualmente é entendida de outra forma pelo Supremo Tribunal Federal. Veja que, conforme capítulo próprio irá demonstrar, a natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos, à luz da mudança trazida expressamente pela emenda constitucional de nº 45/2004, acrescentando o § 2º do art. 5º da Constituição Federal, qual seja “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” que estes têm status supralegal, acima das leis e abaixo da Constituição. A excelsa Corte, ao sumular que “não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados” equivocou-se em utilizar de institutos infralegais como meio de transformar a competência natural do cidadão comum em originária desta Corte. Suprimindo pela consequente atração da competência, garantias fundamentais daqueles que não detêm foro por prerrogativa de função. Esta constatação, decorre da lógica que se há de prestar aos princípios inerentes aos cidadãos comuns obrigados por nossa Carta Magna, no qual se estabelece que sejam proibidos em confronto com estes critérios ou procedimentos interpretativos, para anular ou os enfraquecerem, ampliando ou restringindo suas competências estabelecidas constitucionalmente. Questiona Tourinho Filho, se em confronto de competência entre aquele que detêm o foro especial e o outro que não, qual desses deverá vingar? Mire-se: E se uma pessoa com foro por prerrogativa de função e outra sem tal regalia cometerem um crime de alçada do Tribunal do Júri? A competência deste vem fixada na CF. Assim, devem os processos ser separados: um será julgado pelo Órgão Jurisdicional Superior e o outro, pelo Tribunal do Júri. Indaga-se: se um Deputado Estadual cometer crime de estelionato e coautoria com pessoa desprovida daquele “privilégio”, qual o órgão 49 STF, RHC nº 79.785/RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 29/03/2000 33 competente para o processo e julgamento? Nos termos do art. 78, III, do CPP, será o Tribunal de Justiça, pelo fato de ser de maior graduação. Como os parlamentares estaduais à semelhança do que se dá com os Deputados Federais perderam aquela imunidade no sentido de só poderem ser processados se a Casa, a que estiverem ligados, (Assembleia, Câmara, Senado) der autorização, e como a denúncia contra eles pode ser recebida mas o processo só terá andamento se a Assembleia Legislativa, no exemplo dado, permitir, evidente que, havendo autorização, o processo tramita em relação a todos. E se a Assembleia não autorizar o andamento? Embora esta última solução não seja justa, dando margem a censura ao poder judiciário (que a final de contas não tem culpa nenhuma), repetindo o velho jargão de que “cadeia não é para os graúdos” parece que outra solução não haverá senão o desmembramento do processo, ex vi do art. 80 do CPP principalmente se um dos coautores estiver preso. Explica-se: quando o legislativo não autoriza o andamento do processo, o curso da prescrição não flui enquanto durar o mandato. Todavia, em relação aos demais continua fluindo... Assim, se se (sic) devesse sustar o processo, eventualmente dependendo de pena cominada, os coautores e partícipes e, somente eles, seriam beneficiados pela descrição, mormente se o Deputado 50 continuasse se elegendo. Estes confrontos acima suscitados, malgrado tenha a jurisprudência tentado solucioná-los adotando os institutos atrativos da competência prevista em legislação ordinária, não podem sufragar os direitos e garantias aventados. É, pois, nos dizeres de Renato Brasileiro: Todavia, bem diversa é a situação do coautor. De fato o que determina o simultaneus processus em relação à sua pessoa perante o Supremo é a continência por cumulação subjetiva, norma prevista em lei ordinária: Código de Processo Penal, (art. 77 inc. I). Ocorre que, por força desse julgamento perante o Supremo, o coautor não terá direito de apelar, fica a dúvida: poderia uma lei ordinária (CPP, art. 77, inc. I) prevalecer sobre dispositivo que tem status normativo supralegal (Pacto de San José da Costa Rica, art. 8º, nº 2, “h”), privando o coautor do direito de apelar? Pensamos que não. Destarte, diante do status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos, é considerado que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos prevê de maneira expressa o direito ao duplo grau de jurisdição, caso o coautor não tenha foro por prerrogativa de função, impõe-se a separação dos processos, respeitandose quanto a este o direito assegurado no art. 8, nº 2, “h”, do Dec. nº 51 678/1992 . Em consonância com os argumentos esposados, salienta-se, também o voto do Ministro Marco Aurélio na Ação Penal 470, vulgo “mensalão”, que: “Sustenta-se, desta vez, a inconstitucionalidade da extensão da competência especial por prerrogativa de função ao processo e julgamento daqueles que não a titularizem”. Corrobora, o Ministro Ricardo Lewandowski, na mesma Ação Penal, concluindo que : 50 TORINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal, 15. ed. rev. e de acordo com lei 12.403/2011. São Paulo, Saraiva, 2012. p. 366. 51 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal, vol. I, 2ª ed., Niterói, RJ: Impetus, 2012. p 669. 34 Desse modo, não vejo como seja possível admitir-se que a interpretação de normas infraconstitucionais, notadamente daquelas que integram Código de Processo Penal - instrumento cuja finalidade última é proteger o jus libertatis do acusado diante do jus puniendi estatal – derrogue a competência constitucional estrita fixada pela Carta Magna aos diversos órgãos judicantes e, mais, permita malferir o princípio do duplo grau de jurisdição, nela abrigado e mais uma vez acolhido, de livre e espontânea vontade, pelo Brasil, após a promulgação daquela, quando aderiu sem reservas ao Pacto 52 de San José da Costa Portanto, não deve os institutos da conexão e continência previstos na legislação ordinária, quando verificados os requisitos para sua deflagração, determinar a reunião dos processos. Assim entendendo que esta atração de competência se dá de forma imprudente e mesmo ilegal, pois não pode funcionar a Suprema Corte como poder constituinte derivado apto a criar regras procedimentais próprias de agentes público com competências originárias, na Constituição Federal, de foro por prerrogativa de função. O Ministro Ricardo Lewandowski, em seu voto a respeito da questão de ordem levantada na Ação Penal 470, elenca uma série de decisões, onde a Suprema Corte optou pelo desmembramento de processos, em se tratando de corréus sem prerrogativa de foro. Vejamos: O Supremo Tribunal Federal, levando em conta o estatuído no art. 80 do CPP em inquéritos e ações penais que nele tramitam, tem, de uns tempos para cá, sistematicamente, determinado o seu desmembramento pelos mais variados motivos, como passarei a exemplificar a seguir. No Inq 517-QO/DF, Rel. Min. Octávio Gallotti, julgado em 8/10/1992, o Plenário decidiu, à unanimidade, que o fato isolado atribuído a certo deputado federal não apresentava vínculo de conexão com os demais indiciados, o que permitiria o desmembramento do feito. O acórdão de julgamento foi assim ementado: “FATO ISOLADO, ATRIBUÍDO A DEPUTADO FEDERAL, SEM VÍNCULO DE CONEXÃO COM OS IMPUTADOS AOS DEMAIS FIGURANTES DO INQUÉRITO POLICIAL (ART. 76 DO COD. PROC. PENAL). DESMEMBRAMENTO DEFERIDO EM QUESTÃO DE ORDEM, A REQUERIMENTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL”. Observo, por relevante, que naquele julgamento o Min. Sepúlveda Pertence já alertava sobre o tratamento um tanto quanto aligeirado que o STF conferia ao conceito de conexão, assentando o seguinte: “Senhor Presidente, também acompanho o eminente Relator. No habeas corpus 67.769, no notório caso Naji Nahas, tive oportunidade, à base de ensinamentos de Xavier de Albuquerque, de mostrar como se tem tratado 52 Voto Min. Ricardo Lewandowski, AP 470 – disponibilizado <http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20120803-07.pdf>. Acessado em 15/09/2012 35 superficialmente o conceito da chamada conexão probatória ou instrumental do artigo 76, III, do Código de Processo Penal, que não dispensa um liame substancial entre os fatos. Não basta um eventual juízo de conveniência de reunir no mesmo processo fatos similares, mas paralelos, sem nenhuma conexão substancial entre si”. No Inq 559-QO/MG, também relatado pelo Min. Octávio Gallotti, e julgado em 9/12/1992, o Plenário, por maioria de votos, assentou a necessidade de desmembramento do feito envolvendo três indiciados, um deles parlamentar, uma vez que, ausente a licença da Câmara dos Deputados, exigível à época para iniciar o processamento, com a consequente suspensão da prescrição, tornava-se conveniente a separação do processo, com base no art. 80 do CPP. Eis a ementa do julgamento: “PROCESSO A QUE RESPONDEM DEPUTADO FEDERAL, ESTANDO PENDENTE CONCESSÃO DE LICENÇA DA CÂMARA, JUNTAMENTE COM OUTROS RÉUS NÃO FAVORECIDOS PELA IMUNIDADE FORMAL NEM PELO FORO ESPECIAL (ARTIGO 53, § 1o E 4o. DA CONSTITUIÇÃO). SEPARAÇÃO DETERMINADA POR RELEVANTE MOTIVO DE CONVENIÊNCIA (ART. 80 DO CPP), DECORRENTE DA DIFERENÇA DO REGIME DE PRESCRIÇÃO A QUE ESTÃO SUJEITOS OS ACUSADOS, VISTO ACHAR-SE O SEU PRAZO SOMENTE SUSPENSO EM RELAÇÃO AO PARLAMENTAR (ART. 53, § 2o DA CONSTITUIÇÃO). REMESSA DE TRASLADO AO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, PARA PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO NO JUÍZO DE PRIMEIRO GRAU, COM RELAÇÃO AOS RÉUS PARA CUJO JULGAMENTO ORIGINÁRIO E ELE COMPETENTE”. No mesmo sentido, esta Suprema Corte também decidiu pelo desmembramento nos feitos a seguir destacados: Inq 542-QO/DF, redator para o acórdão Min. Néri da Silveira; Inq 242-QO/DF e Inq 736-QO/MS, Rel. Min. Celso de Mello; Inq 675-QO/PB, Rel. Min. Néri da Silveira; Inq 212/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão e Inq 1720-Qo/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence. No Inq 1871-QO/GO, Rel. Min. Ellen Gracie, por sua vez, o Supremo optou pelo desmembramento do processo por entender que a apuração de crimes que exteriorizam tipos penais distintos, sem qualquer liame, envolvendo magistrados de tribunais diversos e pessoas não detentoras de foro privativo, exigiria inexoravelmente tal solução. O acórdão foi assim ementado: “INQUÉRITO. Investigação sobre tráfico de influência e suposto esquema de venda de habeas corpus. Apuração de crimes que exteriorizam tipos penais distintos, sem qualquer liame, envolvendo magistrados de tribunais diversos e pessoas não detentoras de foro privativo. Questão de Ordem resolvida no sentido do desmembramento do inquérito, preservando-se a competência constitucional de órgãos judiciários distintos”. Já no Inq 336-AgR/TO, Rel. Min. Carlos Velloso, também por maioria de votos, entendeu-se que, como apenas um dos 60 réus detinha foro por prerrogativa de função, o feito deveria ser desmembrado, pois não se afigurava razoável fazer-se a instrução da ação penal nesta Suprema Corte. O acórdão daquele julgamento foi assim ementado: “CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL PENAL. PENAL. CRIME DE QUADRILHA. FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. SEPARAÇÃO DOS PROCESSOS. CPP, art. 80. NÚMERO EXCESSIVO DE ACUSADOS. PREJUÍZO DA DEFESA: INEXISTÊNCIA. I. - O fato de um dos corréus ser Deputado Federal não impede o desmembramento do feito com base no art. 80 do Código de Processo Penal. II. - A possibilidade de separação dos processos quando conveniente à instrução penal é aplicável também em 36 relação ao crime de quadrilha ou bando (art. 288 do Código Penal). III. Agravos não providos”. Igualmente no Inq 2.628-QO/RJ e na AP 396/RO, Rela. Min. Cármen Lúcia, esta Corte assentou que, considerada a elevada quantidade de indiciados, seria de bom alvitre o desmembramento dos feitos para propiciar uma tramitação célere, sobretudo objetivando evitar eventual prescrição. Transcrevo a ementa do primeiro julgado: “INQUÉRITO. QUESTÃO DE ORDEM. VÁRIOS INDICIADOS. NECESSIDADE DE CÉLERE TRAMITAÇÃO DO FEITO. DESMEMBRAMENTO DETERMINADO. 1. Além de serem vários indiciados, deve-se levar em consideração, para o desmembramento, a necessidade de tramitação mais célere possível do feito, sobretudo quando há risco de prescrição. 2. Questão de ordem resolvida no sentido de se determinar o desmembramento do feito”. Outro exemplo em que o desmembramento foi ordenado pelo Plenário, tendo como fundamento preponderante a presença de apenas um indiciado com prerrogativa de foro, é o Inq 2.443- QO/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, cujo acórdão recebeu a ementa abaixo: “AÇÃO PENAL. QUESTÃO DE ORDEM. DESMEMBRAMENTO DO FEITO. ART. 80 DO CPP. APLICABILIDADE, NA HIPÓTESE. PRECEDENTES. QUESTÃO DE ORDEM ACOLHIDA, PARA QUE SEJAM APURADOS NESSA CORTE SOMENTE OS FATOS IMPUTADOS AO ACUSADO COM PRERROGATIVA DE FORO NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 1. O presente caso conta com 10 (dez) denunciados e, na data de hoje, com 78 (setenta e oito) volumes e mais 15 (quinze) apensos, o que demonstra a inviabilidade do processo e julgamento de tantos acusados por essa Corte e constitui razão mais do que suficiente para autorizar o desmembramento do feito, pois apenas um dos acusados detém a prerrogativa de foro prevista no artigo 102, inciso I, alínea ‘b’, da Constituição Federal. 2. A doutrina e a jurisprudência são uníssonas no sentido de aplicar o art. 80 do Código de Processo Penal nos processos criminais em que apenas um ou alguns dos acusados detêm a prerrogativa de foro. 3. Não há, no caso, qualquer excepcionalidade que impeça a aplicação do artigo 80 do CPP. 4. Questão de ordem acolhida, para que sejam apurados nessa Corte somente os fatos imputados ao Deputado Federal envolvido, extraindo-se cópias dos elementos a ele relacionados para autuação de um novo inquérito. Baixa dos autos quanto aos demais acusados” (grifei). No julgamento do Inq 2.051-AgR/TO, Rela. Min. Ellen Gracie, este Tribunal manteve desmembramento por ela determinado, considerando a “indicativa clara da existência de dificuldades para o encerramento das investigações, dado o número elevado de investigados, e a complexidade dos fatos objeto de apuração (...)”. Naquele julgamento a Relatora, consignou, ainda, que: “(...) relativamente à investigação sobre possível crime de quadrilha, esta Corte já decidiu que há possibilidade de separação dos processos quando conveniente à instrução penal, (...) ‘também em relação aos crimes de quadrilha ou bando’”. Cito, ainda, diversos outros acórdãos do órgão colegiado do Supremo Tribunal Federal em que o desmembramento foi determinado pelos mais 37 diversos motivos: Inq 2.548-ED-AgR/DF, Inq 2.706-AgR/BA e Inq 2.168ED/RJ, todos de relatoria do Min. Menezes Direito; Inq 2.527-AgR/PB, Rel. Min. Ellen Gracie; Inq 2.578/PA, Inq 2.718-QO/GO e Inq 2.471-AgRquinto/SP, esses últimos de minha relatoria. Insisto, pois, que o desmembramento de inquéritos e de ações penais tornou-se prática corriqueira nesta Corte, sendo as respectivas decisões, inclusive, cada vez mais levadas a efeito monocraticamente pelos seus integrantes. Eis aqui alguns exemplos: Inq 2.757/MG e Inq 2.601/RJ, Rel. Min. Celso de Mello; Inq 2.652/PR, Rel. Min. Dias Toffoli; Inq 2.280/MG, Rel. Min. Joaquim Barbosa; Inq 2.486/AC e Inq 2.091/RR, Rel. Min. Ayres Britto; 53 Inq 2.239/PI e Inq 1.567/CD, Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Na grande maioria das decisões a respeito do desmembramento do processos os Excelentíssimos Ministros fundamentaram seus votos no art. 80 do Código de Processo Penal que faculta a separação dos processos quando há excessivo número de acusados, ou perante ainda a outro motivo relevante. Fato este que coincide com o caso abordado. O Ministro Ricardo Lewandowski reconhece a ofensa aos direitos do corréus sem prerrogativa de foro ao concluir seu voto no seguinte entendimento: Esse salutar exame e reexame dos autos ao longo de distintas instâncias jurisdicionais está sendo indevidamente sonegado aos réus deste processo, quer dizer, daqueles que não têm foro especial por prerrogativa de função. Eles serão julgados, repito, em única e última instância nesta Casa, por pessoas que, embora dotadas – como define a Constituição Federal – de notável saber jurídico e ilibada reputação, são seres humanos como outros quaisquer, e, portanto, falíveis, tal qual os seus semelhantes. E o mais grave é que, com o angusto cronograma de julgamento que esta Suprema Corte se auto-impôs, dificilmente algum dos Ministros pedirá vista dos autos, para sanar eventual dúvida que, por certo, surgirá ao longo da análise do colossal volume de documentos que neles se contém. Como fazer, nessas condições, indago, por derradeiro, a individualização das penas exigida pelo art. 5o, XLVI, da Constituição Federal? Como, procederá esta Suprema Corte na dosimetria das sanções, no caso de eventual condenação? Qual a técnica que empregará para examinar, dentre outras circunstâncias judiciais, a conduta social e a personalidade dos réus, mencionadas no art. 59 do Código Penal, se não os conhece pessoalmente e nem tem qualquer informação acerca de sua vida extra-autos? São perguntas que, infelizmente, não querem calar. Preocupa-me, por fim, o fato de que, se este Supremo Tribunal persistir no julgamento único e final de réus sem prerrogativa de foro, ela estará, segundo penso, negando vigência ao mencionado art. 8o, 2, h, do Pacto de São José da Costa Rica, que lhes garante, sem qualquer restrição, o direito de recorrer, no caso de eventual condenação, a uma instância superior, 53 53 Voto Min. Ricardo Lewandowski, AP 470 – disponibilizado <http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20120803-07.pdf>. Acessado em 15/09/2012 38 insistência essa que poderá ensejar eventual reclamação perante a Comissão ou a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Diante de todo o exposto, resolvo a questão de ordem para assentar que o desmembramento deste feito se mostra de rigor com relação aos réus sem prerrogativa de foro, devendo permanecer sob a jurisdição do Supremo Tribunal Federal apenas aqueles que detém tal status processual por força da própria Constituição, quando mais não seja por uma questão de isonomia de tratamento em face dos acusados referidos no mencionado Inq 2.280/MG, os quais se encontram em idêntica situação daqueles outros. Com seu entendimento o douto Ministro Ricardo Lewandowski, reconhece que como seres humanos, são passíveis de erro, e em caso de condenação, os corréus serão privados de direitos garantidos pela Constituição Federal. Assim defende o desmembramento do processo. 39 4 PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA 4.1 NATUREZA JURÍDICA É insto da natureza do ser humano de querer relacionar-se com seus pares, desta forma, desde os primórdios, o homes para poder trocar suas mercadorias, conhecimentos, mesmo carga genética, celebra com os seus pares, acordos de vontade, que derivam desta vontade de se relacionar. Com o grande crescente número de pessoas ao redor do mundo começou-se com as grandes civilizações, para evitar guerras e outros males, estas tratarem entre si com acordos das mais diversas formas. Nos dizeres de Francisco Rezek, dando uma perspectiva histórica para os tratados, diz: Parte fundamental do direito das gentes, o direto dos tratados apresenta até o romper do século XX uma consistência costumeira, assentada, entretanto sobre certos princípios gerais, notadamente o pacta sunt servanda e o da boa fé. Como negociam as partes, e através de que órgão; que gênero de texto produzem, e como asseguram autêntico; como manifestam, desde logo ou mais tarde, seu consentimento definitivo, e põe o compromisso em vigor; que efeito produz, então, o tratado, sobre as partes pactuantes, e acaso sobre terceiros; que formas, enfim, de alteração, desgaste ou extinção, se podem abater sobre o vínculo convencional: isso tudo constitui em linhas muito rudes e incompletas, o direito dos tratados, cuja construção consuetudinária teve início nalgum ponto extremamente remoto da história 54 das civilizações. Assim, juridicamente, o tratado é todo acordo formal entabulado entre pessoas jurídicas de direito internacional público, e destinado a produzir efeitos jurídicos. “Desse modo, a matéria versada em um tratado pode ela própria interessar de modo mais ou menos extenso o direito das gentes”55: em razão da matéria, pontificam em importância os tratados dos constitutivos de organizações internacionais, os que dispões sobre os serviços diplomáticos, sobre o mar, sobre as solução pacífica de conflitos entre Estados. Na linha de raciocínio do douto internacionalista Francisco Rezek conclui-se que: É certo, contudo, que todos os tratados – mesmo quando disponham sobre um tema prosaico como a classificação de marcas de origem de vinhos e 54 REZEK, Francisco. Direito Internacional Público, curso elementar. 13. ed. rev. aum. atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 35. 55 REZEK, Francisco. Direito Internacional Público, curso elementar. 13. ed. rev. aum. atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 38. 40 queijos – interessam igualmente, em razão da forma, a esta parte dos 56 direitos das gentes que ora nos ocupa, o direito dos tratados . No Brasil, a nossa constituição de 1988, consagrou, no rol dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, que os tratados ingressam no nosso ordenamento jurídico no mesmo patamar das leis infraconstitucionais. Vide: § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Indubitavelmente esta norma constitucional mostra o caráter meramente exemplificativo do rol dos direitos e garantias estabelecidos no art. 5º da CF, sendo uma verdadeira cláusula aberta (numerus clausus) a ser acrescida por outros princípios constitucionais expressos e implícitos por tratados e convenções internacionais. Contudo, embora o objetivo da Carta Magna fora de conferir status de norma constitucional aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos internalizados ao ordenamento jurídico pátrio, vingou no STF à interpretação de que os tratados e convenções internacionais, após devidamente aprovados pelo Congresso Nacional e ratificados pelo Presidente da República, integram o nosso ordenamento apenas na condição de norma infraconstitucional, submetendo-se, inclusive, ao controle de constitucionalidade dos atos normativos. Dessarte, a luz de uma eventual antinomia com os preceitos constitucionais, tal conflito resolver-se-ia em favor da supremacia da Carta da República (compatibilidade vertical). Veja que tal entendimento revela-se no julgamento do RHC 79.785, DJ 22/11/02, dentre vários que se seguiram à época, ressaltando o Rel. Ministro Sepúlveda Pertence que há "prevalência da Constituição, no Direito brasileiro, sobre quaisquer convenções internacionais, incluídas as de proteção aos direitos humanos". E continua: Assim como não o afirma em relação às leis, a Constituição não precisou dizer-se sobreposta aos tratados: a hierarquia está ínsita em preceitos inequívocos seus, como os que submetem a aprovação e a promulgação das convenções ao processo legislativo ditado pela Constituição e menos exigente que o das emendas a ela e aquele que, em consequência (sic), 56 REZEK, Francisco. Direito Internacional Público, curso elementar. 13. ed. rev. aum. atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 38. 41 explicitamente admite o controle da constitucionalidade dos tratados (CF, 57 art. 102, III, b). Portanto, à época, ainda que revestidos de direitos fundamentais, os tratados e convenções internacionais assentariam numa posição hierárquica abaixo das normas constitucionais, com status infra-legal, sendo passíveis de controle de constitucionalidade em caso de eventual incompatibilidade com a Constituição. Pelo poder dessa sedimentação determinada pelo Supremo, a Emenda Constitucional de numero 45/2004, sendo esta chamada de reforma do judiciário, somou ao art. 5º o § 3º na nossa Magna Carta, que diz: § 3º - Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Esse quorum qualificado não é para internalização dos tratados internacionais, mas sim como requisito para que esses possam ingressar no ordenamento jurídico em posição hierárquica semelhante à das emendas constitucionais. Assim, caso não seja obtida a votação em dois turnos, em cada casa, por três quintos de seus membros, o tratado poderá ser aprovado, porém, sem a prerrogativa da natureza constitucional de suas disposições. Para alguns doutrinadores a exemplo, Pedro Lenza, mesmo antes da emenda Constitucional supra citada, entendia-se que os tratados internacionais de direitos humanos fundamentais ingressavam no ordenamento jurídico interno por força do art. 5º, § 2º, da CF/88, “com caráter de norma Constitucional, enquanto outros tratados internacionais, de natureza diversa, com caráter de norma infraconstitucional” 58. Noutro vértice, os demais tratados que não ventilarem matérias sobre direitos humanos sempre serão incorporados como norma infraconstitucional, ainda que eventualmente aprovados pelo procedimento das emendas. Isto é, não se revelando a possibilidade de serem elevados ao patamar da Constituição sob o aspecto material (de direitos humanos), não há necessidade de subsunção ao procedimento legislativo especial, devendo ser submetidos à apreciação em sessão conjunta do Congresso com aprovação por maioria simples. 57 RHC 79.785, DJ 22/11/02 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15. ed. ver. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2011.p. 269. 58 42 Por conseguinte, depois da emenda 45, clausula holandesa59, é possível a coexistência de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos com força de norma constitucional, tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos hierarquicamente equiparados à legislação ordinária e os demais tratados e convenções internacionais sempre com natureza infraconstitucional. A dissidência extremada sobre o assunto é a que diz respeito à situação dos tratados e convenções incorporados ao ordenamento antes da promulgação da emenda constitucional nº 45/2004. Muitos doutrinadores de peso sustentam que apenas alçarão status constitucional os acordos, tratados e convenções posteriores à emenda que vierem a se render a aprovação pelo processo legislativo a que se submete as emendas. Nesse sentido, a opinião de Pedro Lenza: Diferentemente da regra da Constituição da Argentina, que é expressa em afirmar que os tratados anteriores sobre direitos humanos passam a ter, com a Reforma de 1994, hierarquia constitucional, a regra brasileira foi omissa. Assim, entendemos que o Congresso Nacional poderá (e, querendo atribuir natureza constitucional, deverá) confirmar os tratados sobre direitos humanos pelo quorum qualificado das emendas e, somente se observada esta formalidade, e desde que respeitados os limites do poder de reforma das emendas, é que se poderá falar em tratado internacional de ‘natureza constitucional’, ampliando os direitos e garantias individuais do art. 5º da 60 Constituição. Conclui o insigne Autor encampando a classificação elaborada pela, também, e não menos ilustre Flávia Piovesan61, no sentido de que tratados sobre direitos humanos podem ser material e formalmente constitucionais (aqueles equivalem às emendas constitucionais em razão do procedimento de incorporação mais solene) e materialmente constitucionais que, apesar de tratarem sobre direitos humanos, não passaram pelo procedimento mais solene. Entretanto, há posição no sentido de discordar dos eminentes doutrinadores. O constituinte originário, no capítulo reservado aos direitos e garantias individuais, fez consignar norma expressa preconizando de que a lei não prejudicará o direito adquirido o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI). Por meio 59 REZEK, Francisco. Direito Internacional Público, curso elementar. 13. ed. rev. aum. atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 132. 60 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2011.p. 555. 61 Op cit. p. 556. apud PIOVESAN, Flávia Cristina. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonade, 1996. p. 67. 43 desse dispositivo, restou consagrado o princípio da irretroatividade das leis, como decorrência natural da segurança jurídica. O teor literal da expressão "lei", tanto no texto constitucional, como na própria terminologia do princípio consagrada pela doutrina, é inquestionável que as emendas constitucionais, manifestação do poder constituinte derivado, também se submetem à vedação da aplicação retroativa. Tanto que podem ser objeto de controle de constitucionalidade, seja na via direita ou difusa, a teor da jurisprudência do Supremo : O Supremo Tribunal Federal já assentou o entendimento de que é admissível a Ação Direta de Inconstitucionalidade de Emenda Constitucional, quando se alega, na inicial, que esta contraria princípios imutáveis ou as chamadas cláusulas pétreas da Constituição originária (art. 62 60, § 4º, da CF). Precedente: ADI nº 939 (RTJ 151/755). Assim sendo, seguindo o caminho das demais normas, a emenda constitucional é capacitada para reger relações futuras e, eventualmente, os efeitos futuros de relações jurídicas constituídas antes da sua promulgação (retroatividade mínima). A regra, portanto, segundo a interpretação da Suprema Corte, é a impossibilidade de retroação, cuja exceção deve constar expressamente no texto constitucional. Nesse caso, na ausência de disposição transitória relacionada aos tratados e convenções internacionais que já se encontravam em vigor, não se pode interpretar que a omissão da norma constitucional imponha a aplicação retroativa de modo a exigir nova aprovação, agora pelo procedimento das emendas. Ao contrário, diante da omissão legislativa, deve prevalecer a regra da irretroatividade dos atos normativos, pois os tratados precedentes foram incorporados ao ordenamento jurídico com a observância do devido processo legal exigido na época, constituindo ato legislativo perfeito. Não existe, desse modo, a necessidade de se submeter à nova votação qualquer ato normativo editado precedentemente à Constituição, quando esta passou a exigir, em relação a determinada matéria, já regulamentada anteriormente, a veiculação por meio instrumento normativo que exija quorum qualificado. O exemplo clássico, comumente citado pela doutrina, é o Código Tributário Nacional, editado em 1965 como lei ordinária, mas recepcionado pela atual ordem 62 ADI 1.946-MC, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ, 14/09/01. 44 constitucional como lei complementar em sentido material. É que na oportunidade, não existia a figura da lei complementar, mas o art. 146, III, Constituição de 1988 passou a exigir essa espécie de lei para regular normas gerais em matéria de legislação tributária. Por não haver inconstitucionalidade formal superveniente, o CTN continua em vigor, mas somente pode ser alterado por lei complementar, em função da reserva estabelecida para essa matéria na Constituição. Somando o raciocínio acima exposto, Francisco Rezek notável internacionalista explicando o caso do Código Tributário Nacional, diz Uma última dúvida diz respeito ao passado, a algum eventual direito que um dia se tenha descrito em tratado de que o Brasil seja parte – e que já não se encontre no rol do art. 5º. Qual o seu nível? Isso há de gerar controvérsia entre os constitucionalistas, mas é sensato crer que ao promulgar esse parágrafo na emenda constitucional de 45, de 8 de dezembro de 2004, sem nenhuma ressalva abajulatória dos tratados sobre direitos humanos outrora concluídos mediante processo simples, o congresso constituinte os elevou à categoria dos tratados de nível constitucional. Essa é uma equação jurídica da mesma natureza daquela que explica que nosso Código Tributário, promulgado a seu tempo como lei ordinária, tenha-se promovido a lei complementar à Constituição desde o momento em que a carta disse que as normas gerais de Direito Tributário deveria estar expresso em diploma 63 dessa estatura Dessarte, o mesmo pensamento deve prevalecer para os Tratados Internacionais que tratem sobre Direitos Fundamentais, pois estes, sendo inteiramente recepcionados como norma constitucional em sentido material, a luz dos entendimentos do STF antes da Emenda 45, não necessitam de nova submissão a aprovação nos moldes predeterminados pelo hodierno § 3º do art. 5º da Carta Maior para serem alçados ao patamar constitucional. Por perspicaz, a frase "que forem aprovados", dentro do §3º do art. 5º da CF, tem sua eficácia/aplicação apenas para o futuro, em outras palavras, para os contemporâneos tratados/convenções que venham a ser pactuados pelo Brasil, a partir da vigor da Emenda Constitucional nº 45/2004. Assim, nem mesmo o disposto no art. 49, inciso I, da Constituição Federal, “é da competência exclusiva do Congresso Nacional: I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”, autorizaria eventual debate pelo Congresso Nacional em sentido contrário, pois, sendo a incorporação do tratado um ato 63 REZEK, Francisco. Direito Internacional Público, curso elementar. 13. ed. rev. aum. atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 133. 45 complexo, o desempenho do parlamento circunda-se à sua aprovação, separandose ao chefe do executivo federal a ratificação mediante decreto. Neste modelo procedimental de atuação de cada um dos personagens acima citados, instou didaticamente o seguinte julgado no Supremo Tribunal Federal: O exame da vigente Constituição Federal permite constatar que a execução dos tratados internacionais e a sua incorporação à ordem jurídica interna decorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente complexo, resultante da conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, que resolve, definitivamente, mediante decreto legislativo, sobre tratados, acordos ou atos internacionais (CF, art. 49, I) e a do Presidente da República, que, além de poder celebrar esses atos de direito internacional (CF, art. 84, VIII), também dispõe — enquanto Chefe de Estado que é — da competência para promulgá-los mediante decreto. O iter procedimental de incorporação dos tratados internacionais — superadas as fases prévias da celebração da convenção 64 internacional (...)." . Grifo Nosso. Tudo isto significa que, unilateralmente, o Congresso Nacional, não pode mais sujeitar os tratados/convenções sobre direitos fundamentais, celebrados no passado, a nova anuência pelo rito das emendas, a alegação de lhes conferir natureza normativa constitucional. Isso porque já se exauriu o devido processo legal, quedando-se irremediável a preclusão procedimental e o ato jurídico perfeito, válido e eficaz. Entretanto, temos opiniões em sentido contrário, é o que salienta o Professor Marcelo Novelino, em sua obra de direito constitucional, sob o seguinte enfoque: Por consequência, de acordo com sua hierarquia, o tratado poderá servir como parâmetro, respectivamente, para controle de: I) constitucionalidade (por via principal ou incidental); II) supralegalidade (via incidental); ou, III) legalidade (via incidental). Em relação aos tratados internacionais de direitos humanos aprovados anteriormente à EC 45/2004, entendemos não haver qualquer obstáculo à possibilidade de serem submetidos a uma nova votação no congresso nacional e aprovados nos termos do art. 5º., §3.º, da CF. Nesse caso, a iniciativa para provocar a nova apreciação deve ser atribuída, por analogia legis, aos legitimados para a propositura de emendas (CF, art. 60, I aIII). O argumento de que haveria uma recepção automática desses tratados, com hierarquia equivalente ao de uma emenda à Constituição, parece-nos insustentável, uma vez que o art. 5º., § 3.º, não atribuiu status de norma constitucional todos os tratados internacionais de direitos humanos, mas somente à àqueles aprovados por três quintos e em 65 dois turnos de votação. 64 65 ADI 1.480-MC, Rel. Min.Celso de Mello, DJ 18/05/01 NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional. 5ª ed. Rio de Janeiro. Forense: São Paulo, Método, 2011. p. 504 46 Diante de tudo esposado, entende-se que os tratados/convenções internacionais de direitos humanos/fundamentais que entrem na nossa estrutura jurídica antes de 31 de dezembro de 2004 foram admitidos pela Emenda Constitucional de nº 45 como norma constitucional em sentido material, sendo que somente podem ser revogados ou alterados pelo método especial das emendas constitucionais, impondo-se, depois da citada data, a todas as relações jurídicas constituídas anteriormente, das quais os efeitos comecem a aparecer após a sua alocação ao patamar constitucional. Conclui-se então que é perfeitamente possível, pelo uso das regras de direito intertemporal, que um tratado internacional de direitos humanos possua a natureza de norma ordinária, antes da Emenda Constitucional nº 45/04, e de norma constitucional, após a mesma, ao longo de sua vigência, e ainda, pode-se dizer, outrossim, que um tratado que versa sobre direitos humanos, mesmo não sendo aprovado pelo rito constitucional requerido no art. 5º § 3º da CF, por este tratar de direitos fundamentais (garantias e direitos individuais de todo cidadão), estes nunca poderão ser revogados de nosso sistema por serem considerados, a luz do art. 5, § 2º da Constituição da República, cláusulas pétreas. 4.1.1 TRATADO INTERNACIONAL E SUA APLICAÇÃO A chave que abre esta porta está na própria legislação interna de cada país, dito de outra maneira, na reverência que cada ente dá ao direito internacional. Entretanto, há escassas hipóteses em que este ramo do direito se aloque até mesmo por cima da Constituição de cada País, como se pode observar no raro caso da Holanda. Mas, nos dias de hoje, evidencia-se na prática quase que impossível à permanência de um Ente Soberano puro, ou seja, desafeto à gerência do direito internacional. Existem duas correntes acerca do tema, teoria dualista e a teoria monista. Os dualistas levam em consideração que o Direito InternacionaI é a relação entre Estados, porquanto que as normas internas regulam a ação entre o Estado e seus cidadãos. Dessa forma as convenções internacionais terão vigência em âmbito externo até que seja internalizado. Ou seja, o dualismo pincela que o direito interno e o direito internacional são dois imperativos normatizadores distintos. 47 Não se fala em conflito de normas, já que o direito internacional só terá validade para o ordenamento jurídico nacional a partir do momento em que aquele for incorporado neste. Dessarte, as normas constitucionais não integram de pronto a ordem jurídica interna do ente estatal, a partir da ratificação, todavia solamente com a devida incorporação ou internalização, ou seja, realocação da norma de natureza alienígena para o sistema interno estatal através da devida manifestação legislativa. Assim, ocorrendo a incorporação do tratado, não se discute mais a interpretação de uma norma interna e tratado, questiona-se então o conflito entre dois dispositivos do mesmo ordenamento jurídico. Perpassadas as explicações supras, surgiram duas subdivisões desse dualismo: o dualismo radical, o qual, estabelece que o tratado internalizado passará a ter valor jurídico após a criação de uma lei; e o dualismo moderado, que não faz exigência de lei, necessita apenas de decreto, observados o procedimento no direito interno. Contudo, esta tese supracitada reconhece o instituto da responsabilidade internacional, que se aplica quando o Estado não proporciona condição para que o tratado possua eficácia chegando a possibilitar prejuízos a outra parte. Neste modo a reponsabilidade tem respaldo no princípio do “pacta sunt servanda” in verbis: Todo tratado em vigor vincula as partes e deve ser por elas executado de boa fé.66 A teoria monista defende apenas uma ordem jurídica formada pelo direito internacional e direito interno. Dessa forma Accioly explica, "[...] em principio, o direito é um só, quer se apresente nas relações de um Estado, quer nas relações internacionais"67. Esta unidade pode se da com a primazia ao direito internacional ou ao direito interno. No Monismo com primazia do direito internacional, modalidade esta que teve como seu maior precursor Hans Kelsen formulando a pirâmide das normas e aplicando em seu vértice a norma fundamental, qual seja, o “pacta sun servanda”. Diversos países, principalmente os europeus, foram influenciados por tal tese, dentre eles a Alemanha, França, Holanda e Inglaterra. Esta teoria também foi adotada por diversos laudos arbitrais internacionais, dentre elas a Corte Internacional de Justiça. 66 67 Art. 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969. ACCIOLY, H. Manual de Direito Internacional Público, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 62 48 Autores afirmam que este é o sistema adotado pelos EUA, pois os tratados prevalecem quando em contradição com lei estadual, seja ela anterior ou posterior ao Tratado A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de igual forma adotou em seu artigo 27 a mesma regra: "uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado". Esta teoria foi adotada no Brasil, até 1977, pelo Supremo Tribunal Federal, vigorando ainda para os tratados que versem sobre Direitos Humanos, segundo a interpretação do art. 5, parágrafo 2 da Constituição Federal. Destacam-se como os principais estudiosos do assunto, Flavia Piovesan e Cançado Trindade. Para eles, o Tratado de Direitos Humanos, ao ingressar no ordenamento jurídico nacional, possui status de lei constitucional. Em caso de conflito de normas, adota-se a teoria da norma mais benéfica. Celso Mello e H. Accioly figuram como outros adeptos ao monismo com primazia do Direito Internacional, no Brasil. Veja decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito do posicionamento dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro: Tratando-se de convenções internacionais de direitos humanos, estas guardem primazia hierárquica em face da legislação comum do Estado brasileiro, sempre que se registre situação de antinomia entre o direito interno nacional e as cláusulas decorrentes de referidos tratados internacionais. Isso significa, portanto, examinada a matéria sob a perspectiva da “supralegalidade”, (...), que, cuidando-se de tratados internacionais sobre direitos humanos, estes hão de ser considerados como estatutos situados em posição intermediária que permite qualificá-los como diplomas impregnados de estatura superior à das leis internas em geral, não obstante subordinados à autoridade da Constituição da República. Grifo 68 do autor Na corrente monista, o Direito Internacional é superior ao direito interno, em observância aos artigos 26 e 27 da Convenção de Viena, supracitados. Desta forma os tratados não necessitam de norma interna para ingressarem no ordenamento jurídico, ingressa automaticamente, com prevalência sobre o direito interno. Quanto ao monismo com primazia ao direito interno, tal modalidade teve como maior precursor Hegel. Esta teoria determina que a soberania do Estado é absoluta. 68 RHC 90.450-5/MG, julg. 23.09.2008, in DJU de 06.09/2009. 49 Com a globalização, com o crescimento de atores internacionais no mundo, com a influência dos laudos dos tribunais internacionais e opiniões de estadistas estrangeiros, perante nossas cortes, é impossível pensar a soberania do Estado na forma absoluta. Esta teoria, adotada em regimes totalitários, choca-se com o art. 27 da Convenção de Viena. A maioria doutrinária no Direito Internacional brasileiro acredita que o Tratado prevalece até que seja ele denunciado internacionalmente. Neste sentido dispõe o art. 11 da Convenção de Havana sobre Tratados de 1928 (âmbito da América): "Tratados continuarão a produzir seus efeitos, ainda quando se modifique a Constituição interna dos Estados contratantes". Ao contrário da posição atualmente adotada pelo STF (vide, infra), os internacionalistas primam pela superioridade do Tratado. A justificativa para tanto está no fato de o Tratado possuir forma própria para sua revogação, ou seja, a denúncia. De outra forma, só podem ser alterados por normas de igual categoria. Não é compreensível a lógica de que norma interna revogue compromisso internacional, e o poder legislativo, ao aprovar o compromisso internacional, assume a responsabilidade de não editar leis posteriores ao Tratado que com ela conflita. Trata-se de uma obrigação negativa assumida pelo Congresso Nacional – "teoria do ato próprio" (venire contra factum proprium non valet), que impede que o Congresso Nacional edite leis posteriores que contradigam o conteúdo do Tratado internacional anteriormente aprovado. Além do mais, há de ser realizado um "controle preventivo" da constitucionalidade e da legalidade do tratado face ao ordenamento interno e aos interesses do Brasil. Vale ressaltar que o controle da constitucionalidade, após a internalização do tratado no ordenamento brasileiro, dá-se pelo STF (via recurso extraordinário), nos moldes do art. 102, inciso III, alínea "b" da CF, quando a decisão recorrida declarar a inconstitucionalidade de Tratado, ou pelo STJ (via recurso especial), em conformidade com o art. 105, inciso III, alínea "a" da CF, quando a decisão recorrida contrariar Tratado ou negar-lhe vigência.69 Para os internacionalistas, em se tratando de Tratado que verse sobre Direitos Humanos, nem mesmo a denúncia posterior poderá tirar a força obrigatória das 69 Op. cit. 50 normas já incorporadas no ordenamento brasileiro. Isso, como já debatido o Tratado de Direitos Humanos, ao ingressar no Brasil, teria status de norma constitucional. Vejamos: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja 70 parte . Desta forma, enxerga-se no nosso sistema constitucional a não exigência, para a execução dos tratados no Brasil, a promulgação de Lei (Corrente dualista extremada ou radical), bastando-se, apenas, com o procedimento previsto na CF, que compreende a aprovação no congresso nacional e a promulgação por meio de decreto pelo executivo federal. Em outros dizeres o Brasil adotou o princípio do dualismo moderado. Desta forma, podemos dizer que no nosso país há quatro fases distintas de internalização dos tratados internacionais, citando-as pela classificação do emérito Professor Pedro Lenza, a saber: (...) celebração do tratado internacional (negociação, conclusão e assinatura) pelo Órgão do Poder Executivo (ou posterior adesão [terceira etapa], art. 84, VIII — Presidente da República); aprovação (referendo ou “ratificação” lato sensu), pelo Parlamento, do tratado, acordo ou ato internacional, por intermédio de decreto legislativo, resolvendo-o definitivamente (Congresso Nacional — art. 49, I); troca ou depósito dos instrumentos de ratificação (ou adesão, caso não tenha tido prévia celebração) pelo Órgão do Poder Executivo em âmbito internacional; promulgação por decreto presidencial, seguida da publicação do texto em português no Diário Oficial. Neste momento o tratado, acordo ou ato internacional adquire executoriedade no plano do direito positivo interno, 71 guardando estrita relação de paridade normativa com as leis ordinárias. Observe como é originado o poder de celebrar tratados: Vejamos que o poder de celebrar tratados — como é concebido e como de fato se opera — é uma autêntica expressão do constitucionalismo; claramente ele estabelece a sistemática de ‘checks and balances’. Ao atribuir o poder de celebrar tratados ao Presidente, mas apenas mediante o referendo do legislativo, busca -se limitar e descentralizar o poder de celebrar tratados, prevenindo o abuso desse poder. Para os constituintes, o 70 71 Art. 5º, § 2º, da Constituição Federal. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012.p. 606. 51 motivo principal da instituição de uma particular forma de ‘checks and balances’ talvez fosse o de proteger o interesse de alguns Estados, mas o resultado foi o de evitar a concentração do poder de celebrar tratados no 72 Executivo, como era então a experiência europeia. Pedro Lenza, ao citar Pedro Dalari, aventa que: (...) muito embora o dispositivo mencione ‘tratados e convenções internacionais’, a doutrina, a prática e mesmo a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entendem a fórmula como redundante, já que, independentemente da denominação que tenha cada documento (tratado, convenção, acordo, pacto, carta, lei uniforme, protocolo, estatuto, concordata etc.), o vocábulo ‘tratado’ se aplica a todo acordo internacional concluído por escrito entre Estados ou organizações internacionais e que seja destinado a produzir efeitos jurídicos. Observe -se que a própria Constituição brasileira não é de forma alguma homogênea a esse respeito: o art. 49, I, faz referência a tratados e acordos; o art. 84, VIII, a tratados e convenções; o § 2.º do art. 5.º, o art. 102, III, ‘b’, o art. 105, III, ‘a’, o art. 109, III, e o § 5.º acrescido ao mesmo art. 109, apenas a tratados; e o art. 178, apenas a acordos. Dessa maneira, suprema Corte decidiu a matéria em dois recursos extraordinários73 buscando enfrentar a constitucionalidade da prisão civil para o inadimplemento em contratos de alienação fiduciária em garantia. Em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes, acompanhando o voto do relator, acrescentou os seguintes fundamentos: “(...) parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos”. Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade. Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equiparálos à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana” (grifamos). 74 Concluindo, entendeu que a previsão, pelo Pacto e pela Convenção internacional, da prisão por dívida deixa de ter aplicabilidade. “tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela 72 Op. cit. p. 607. RE 466.343 e RE 349.703. 74 RE 466.343- disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444>. Acesso em 20/08/2012.p. 49. 73 52 conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5.º, inciso LXVII) não foi revogada pela ratificação do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos — Pacto de San José da Costa Rica (art. 7.º, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto -lei n. 911, de 1.º de outubro de 1969”.75 Finalmente, entendeu que a prisão civil do devedor fiduciante afronta o princípio da proporcionalidade, na medida em que existem outros meios “(...) processuais executórios postos à disposição do credor fiduciário para a garantia do crédito (...),76 Sintetizando, afirma-se, que, conforme visto os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos e desde que aprovados por 3/5 dos votos de seus membros, em cada Casa do Congresso Nacional e em 2 turnos de votação: equivalem a emendas constitucionais, guardando, desde que observem os “limites do poder de reforma”, estrita relação de paridade com as normas constitucionais; tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados pela regra anterior à Reforma e desde que não forem confirmadas pelo quorum qualificado terão natureza supralegal (ou mesmo de emenda, vide o tópico anterior); tratados e convenções internacionais de outra natureza: têm força de lei ordinária. Os fundamentos que levaram o Supremo Tribunal Federal a rever sua posição são de máxima relevância para o caso concreto que se está a analisar aqui, mas também para toda e qualquer discussão que verse sobre a recepção de tratados internacionais pelo ordenamento jurídico nacional. O voto do Ministro Gilmar Mendes proferido no RE 466.343 é sintomático e bem reflete estes fundamentos. Por sua relevância, cabe transcrever algumas passagens77: Apesar da interessante argumentação proposta por essa tese, parece que a discussão em torno do status constitucional dos tratados de direitos 75 RE 466.343- disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444>. Acesso em 20/08/2012.p.55. 76 RE 466.343. - disponível em <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444>. Acesso em 20/08/2012.p. 64. 77 Páginas 10-11 do voto; fls. 1144-1145 dos autos – grifos originais. Disponível em http://www.stf.jus.br/imprensa/pdf/re466343.pdf> . Acesso em 05/11/2012. 53 humanos foi, de certa forma, esvaziada pela promulgação da Emenda Constitucional n- 45/2004, a Reforma do Judiciário (oriunda do Projeto de Emenda Constitucional n- 29/2000), a qual trouxe como um de seus estandartes a incorporação do § 3- ao art. 5-, com a seguinte disciplina: "Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais." Em termos práticos, trata-se de uma declaração eloqüente de que os tratados já ratificados pelo Brasil, anteriormente à mudança constitucional, e não submetidos ao processo legislativo especial de aprovação no Congresso Nacional, não podem ser comparados às normas constitucionais. Não se pode negar, por outro lado, que a reforma também acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade entre os Estados pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico. (...) Em outros termos, solucionando a questão para o futuro – em que os tratados de direitos humanos, para ingressarem no ordenamento jurídico na qualidade de emendas constitucionais, terão que ser aprovados em quorum especial nas duas Casas do Congresso Nacional –, a mudança constitucional ao menos acena para a insuficiência da tese da legalidade ordinária dos tratados e convenções internacionais já ratificados pelo Brasil, a qual tem sido preconizada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desde o remoto julgamento do RE n° 80.004/SE, de relatoria do Ministro Xavier de Albuquerque (julgado em 1º.6.1977; DJ 29.12.1977) e encontra respaldo em um largo repertório de casos julgados após o advento da Constituição de 1988. Sobre a teoria consagrada no Supremo Tribunal Federal em 1977, o Ministro Gilmar Mendes questiona sua validade diante do contexto jurídico-social atual e sob o ponto de vista internacional78: É preciso ponderar, no entanto, se, no contexto atual, em que se pode observar abertura cada vez maior do Estado constitucional a ordens jurídicas supranacionais de proteção de direitos humanos, essa jurisprudência não teria se tornado completamente defasada. (...) No continente americano, o regime de responsabilidade do Estado pela violação de tratados internacionais vem apresentando uma considerável evolução desde a criação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também denominada Pacto de São José da Costa Rica, adotada por conferência interamericana especializada sobre direitos humanos, em 21 de novembro de 1969. Entretanto, na prática, a mudança da forma pela qual tais direitos são tratados pelo Estado brasileiro ainda ocorre de maneira lenta e gradual. E um dos fatores primordiais desse fato está no modo como se tem concebido o processo de incorporação de tratados internacionais de direitos humanos na ordem jurídica interna. (...) Tudo indica, portanto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sem sombra de dúvidas, tem de ser revisitada criticamente. (...). Importante deixar claro, também, que a tese da legalidade ordinária, na medida em que permite ao Estado brasileiro, ao fim e ao cabo, o descumprimento unilateral 78 Páginas 13, 18, 20 e 26-27; fls. 1147, 1152, 1154 e 1160-1161 dos autos – grifos originais. 54 de um acordo internacional, vai de encontro aos princípios internacionais fixados pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, a qual, em seu art. 27, determina que nenhum Estado pactuante "pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado". Por conseguinte, parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade. Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana. (...) Assim, a premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional torna imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos na ordem jurídica nacional. É necessário assumir uma postura jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano. (...) Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante. Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel (art. 5°, inciso LXVII) não foi revogada pelo ato de adesão do Brasil ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica (art. 7°, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei n° 911, de 1° de outubro de 1969. Assim, após mais de 30 anos, à unanimidade de votos o Supremo Tribunal Federal reviu sua posição sobre a hierarquia dos tratados internacionais, notadamente os relativos aos direitos humanos, para lhes conferir não mais a paridade com as leis internas nacionais, mas um plano de eficácia superior a elas. Veja-se a importância dos efeitos desta nova orientação jurisprudencial: no caso concreto dos Recursos Extraordinários nº 466.343 e 349.703, a legislação que previa a prisão civil do depositário infiel, o Decreto-lei nº 911/69 e as alterações promovidas pela Lei nº 6.071/74, deixou de ter “aplicabilidade” em razão do “efeito paralisante” do Pacto de São José da Costa Rica. É incontestável, pois, que o que se tem de mais atual na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito da hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos é a sua prevalência sobre 55 as normas infraconstitucionais e o “efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria”. 4.2 GARANTIA DO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO Os acusados com foro por prerrogativa de função não têm direito ao duplo grau de jurisdição, aí entendido como a possibilidade de reexame integral da sentença de primeiro grau a ser confiado a órgão diverso do que a preferiu e de hierarquia superior na ordem judiciária. Na concepção de Vicente Greco Filho essa garantia fundamental arrima-se no fundamento que “O juiz único gera grave risco de decisão injusta, daí a necessidade do sistema recursal; mas também é indispensável a participação do juiz de primeiro grau, dada a sua imediatidade ao fato e a possibilidade de melhor aferição da prova”. Coadunando com tal entendimento Chiovenda reconhece no duplo grau de jurisdição uma garantia para o cidadão em três aspectos: à medida em que um julgamento reiterado torna, já por si, possível a correção de erros; porque dois julgamentos são confiados a juízes diversos que apreciarão independentemente a matéria; e uma vez que o segundo juiz se apresenta como mais autorizado que o primeiro79 O professor Cândido Rangel Dinamarco, de seu turno, comungando com tal pensamento, manifesta-se contra aquilo que denomina de “bolsões de irrecorribilidade”, assentando que eles “(...) transgrediriam o essencial fundamento político do duplo grau, que em si mesmo é projeção de um dos pilares do regime democrático, abrindo caminho para o arbítrio do juiz não sujeito a controle algum” 80 O duplo grau de jurisdição encontra também arrimo na Convenção Americana de Direitos Humanos, o denominado de “Pacto de São José da Costa Rica”, importante instrumento garantidor dos direitos fundamentais da pessoa, internalizado no País pelo Decreto 678/1992, o qual, em seu art. 8o, 2, h, estabelece: “Artigo 8o - Garantias judiciais 1 - Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração 79 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 1. vol. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 51 80 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. vol. I. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 240. 56 de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 2 - Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior”. Ademais, como se sabe, a nossa Constituição preconiza, em seu art. 5º, § 2º, que os direitos e garantias nela expressos “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Ainda que não se adote a tese segundo a qual todos os direitos fundamentais previstos em tratados internacionais têm hierarquia constitucional, eis que tal depende da forma como são internalizados, lembro que a suprema Corte posicionou-se no sentido de eles possuem, no mínimo, uma natureza supralegal, segundo definição do Plenário levada a efeito no julgamento dos Recursos Extraordinários.81 Naqueles julgamentos entendeu-se insubsistente a prisão civil do depositário infiel, prevista na legislação ordinária, em face da adesão do Brasil, sem qualquer reserva, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 7º, 7). Desse modo, não vejo como seja possível admitir-se que a interpretação de normas infraconstitucionais, notadamente daquelas que integram Código de Processo Penal - instrumento cuja finalidade última é proteger o jus libertatis do acusado diante do jus puniendi estatal – derrogue a competência constitucional estrita fixada pela Carta Magna aos diversos órgãos judicantes e, mais, permita malferir o princípio do duplo grau de jurisdição, nela abrigado e mais uma vez acolhido, de livre e espontânea vontade, pelo Brasil, após a promulgação daquela, quando aderiu sem reservas ao Pacto de San José da Costa. Recordo, a propósito, que é regra comezinha de hermenêutica constitucional que a interpretação das leis deve ser feita em conformidade com a Constituição, e não o contrário. Com efeito, não se admite que se extraia o sentido desta a partir do 81 Recursos Extraordinários Peluso. 81 394.703/RS, Rel. Min. Ayres Britto, e 466.343/SP, Rel. Min. Cezar 57 conteúdo daquelas. Segundo o mestre Canotilho: “A superioridade normativa da constituição implica, como se disse, o princípio da conformidade de todos os atos do poder político com as normas e princípios constitucionais. Em termos aproximados e tendenciais, o referido princípio pode formular-se da seguinte maneira: nenhuma norma de hierarquia inferior pode estar em contradição com outra de dignidade superior – princípio da hierarquia – e nenhuma norma infraconstitucional pode estar em desconformidade com as normas e princípios constitucionais, sob pena de inexistência, nulidade, anulabilidade ou ineficácia – princípio da 82 constitucionalidade” Não se diga, de resto, que o princípio do duplo grau pode ser validamente desconsiderado nos casos em que se apura infrações penais conexas praticadas por agentes com prerrogativa de foro em concurso com outros que ostentam situação processual distinta. É que, como visto, o afastamento do duplo grau de jurisdição se dá sempre em caráter excepcional e em situações restritas, ou seja, apenas nos casos em que a própria Constituição abre uma brecha na regra geral. Mais especificamente, só em relação aos ocupantes de cargos públicos sujeitos à competência penal originária da Suprema Corte é que o julgamento é único e irrecorrível, por opção dos próprios constituintes. Não obstante a previsão expressa do duplo grau de jurisdição na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), entendeu o Suprem tribunal Federal, silenciou acerca de cabimento de recursos ordinários nos casos de competências originárias dos tribunais, não poderia o direito infraconstitucional instituí-los. Logo, se um membro do Ministério Público Estadual praticar determinado delito (salvo crime eleitoral), deverá ser processado e julgado no tribunal de justiça do respectivo Estado, não tendo o direito de apelar em caso de decisão condenatória. Isso, todavia, não significa que não possa recorrer, porquanto será passível a interposição de recurso Extraordinário ou Especial, ou ainda, se cabível, Habeas Corpus constitucional, nas hipóteses expressamente previstas no art. 102, inc. I, “i”, 105, inc. I, “c”. No entanto, esses recursos extraordinários não correspondem ao denominado duplo grau de jurisdição, na medida em que, por meio . CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1148. 82 58 deles não se admite impugnação de matéria de fato e de direito. Prestam-se, muito mais, à tutela da Constituição Federal e da legislação existência do duplo grau de jurisdição aos acusados com foro por prerrogativa de função, utilizou como uma de suas premissas o status hierárquico que a Suprema Corte emprestava aos tratados internacionais de direitos humanos à época, qual seja, o de lei ordinária. Ocorre que, posteriormente, houve uma mudança paradigma por parte do Supremo, que passou a entender que os tratados internacionais de direitos humanos possuem status normativo supralegal, estando abaixo da Constituição, porém acima da legislação interna. Ora, tendo em conta que o duplo grau de jurisdição está previsto expressamente na Convenção Americana de Direitos Humanos (“Art. 8º, nº 2, “h” – direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal superior), resta saber, então, se esse entendimento do Supremo Tribunal Federal negando o direito ao duplo grau de jurisdição não está a merecer de posicionamento nos casos em que o corréu sem foro por prerrogativa de função é julgado pelos Tribunais em virtude da conexão ou da continência. De acordo com a súmula nº 704 do Supremo, não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados. Da leitura da referida súmula, que não se faz menção à eventual violação ao princípio do duplo grau de jurisdição, depreende-se que caso um deputado federal pratique um crime em coautoria com um cidadão que não faça jus a foro por prerrogativa de função, ambos poderão ser julgados pela Suprema Corte. Em relação ao Deputado Federal, pensamos que a questão não apresenta maiores problemas. Afinal, se a própria Constituição estabeleceu seu foro por prerrogativa de função perante a mais alta corte do país (art. 53, § 1º), não havendo um juízo ad quem que possa viabilizar a aplicação do princípio do duplo grau de jurisdição, este não terá o direito de apelar. Todavia, bem diversa é a situação do coautor. De fato, o que determina o simultaneus processus em relação à sua pessoa perante o Supremo é a continência por cumulação subjetiva, norma prevista em lei ordinária: Código de Processo Penal (art. 77, inc. I). Ocorre que, por força desse julgamento perante o Supremo, o coautor não terá o direito de apelar. Fica a dúvida, então: poderia uma lei ordinária (Código de Processo Penal, art. 77, inc. I) prevalecer sobre dispositivo que tem 59 status normativo supralegal (Pacto de São José da Costa Rica, art. 8º, nº 2, “h”), privando o coautor do direito de apelar? Pensamos que não. Destarte, diante do status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos, e considerando que a Convenção Americana de Direitos Humanos prevê de maneira expressa o direito ao duplo grau de jurisdição, caso o autor não tenha foro por prerrogativa de função, impõe-se a separação dos processos, respeitando-se, quanto a este, o direito assegurado no art. 8, nº 2, “h”, do Dec. Nº 678/1992. 4.2.1 CASO ‘MENSALÃO ” O julgamento do Supremo Tribunal Federal, ao consolidar com força os valores republicanos, como o da independência judicial, reprovação da corrupção, moralidade pública, desonestidade dos partidos políticos, retidão ética dos agentes públicos, financiamento ilícito de campanhas eleitorais etc., bem como o valor histórico para não dizer insuperável, é, do ponto de vista procedimental e do respeito às regras do Estado de Direito, provincianismo e o autoritário, extraído de máximas do direito latino-americano, incluindo, especialmente, o do Brasil, apresentam-se estas correntes como pensamentos deploráveis.83 O emblemático caso de Las Palmeras a Corte Interamericana mandou processar novamente um determinado réu (no Estado da Colômbia) porque o juiz do processo era o mesmo que o tinha investigado anteriormente. Uma mesma pessoa não pode ocupar esses dois polos, ou seja, não pode ser investigador e julgador no mesmo processo. É o denominado princípio ne procedat iudex ex officio, extraído de mais um brilhante artigo do Professo Luiz Flávio Gomes, veja-se: O clássico princípio do ne procedat iudex ex officio visa a exatamente resguardar o magistrado de qualquer comprometimento psicológico prévio com a prova. Daí a inconstitucionalidade do art. 3.º da Lei 9.034/95, reconhecida pelo STF, na ADINn 1570, que atribuía ao juiz competência para a busca de provas e ao mesmo tempo para julgar o caso. O juiz que envia a um tribunal um ofício “secreto”, justificando as medidas judiciais tomadas em um procedimento investigatório clandestino, que pede para que seu ofício não seja juntado aos autos, que as partes interessadas não tenham conhecimento dele, para além de retroceder ao tempo da inquisição e de violar o princípio da publicidade dos atos judiciais, está claramente impedido de ser o juiz da causa, porque envolvido psicológica e ativamente com a investigação precedente. 83 GOMES, Luiz Flávio. Mensalão: julgamento do STF pode não valer. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3374, 26 set. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22696>. Acesso em: 5 nov. 2012. 60 Sendo a imparcialidade do juiz uma das mais importantes garantias do devido processo, resulta claro que todos nós, operadores do Poder Jurídico, por ela devemos lutar, com todas as nossas forças, porque ela faz parte do nosso modelo político-jurídico de organização, sintetizado hoje no denominado Estado constitucional e humanista de direito. Entretanto, o que mais espanta é que o Regimento Interno do STF, no entanto (art. 23084), fugindo-se da regra civilizatório já conquistado nas reiteradas decisões internacionais, impende exatamente isso. O ínclito Ministro Joaquim Barbosa, no “mensalão”, governou a fase investigativa e, agora, embora psicologicamente tendencioso com tal aquela, está participando do julgamento. É aqui que mora o primeiro vício procedimental que poderá dar ensejo a um novo julgamento a ser determinado pela Corte Interamericana.85 Existe, porém, noutro vértice um grave vício no procedimento da Ação penal 470: que trata da suplantação ao denominado, e explicado princípio do duplo grau de jurisdição, dito de outra maneira: todo acusado no âmbito criminal tem, por força da Convenção Americana de Direitos Humanos, de ser processado e julgado em relação aos fatos e às provas por duas vezes. O consenso era de que, quem é julgado originariamente pelo STF, à luz do foro privilegiado, não teria este direito, pois as suas regras de processamento já estariam previstas na CF.. Mas, como visto, o douto advogado Márcio Thomaz Bastos suscitou a controvérsia e requereu o desmembramento do processo logo no início da primeira sessão, o que foi indeferido pela corte por 9 votos a 2. Outrora convencido com a impossibilidade de aqueles detentores de foro ser impedido do duplo grau de jurisdição, e hoje não mais, nos cativa com sua humildade e brilhantismo o emérito Professor Luiz Flávio Gomes (LFG): Atualmente, depois da leitura de um artigo (de Ramon dos Santos) e de estudar atentamente o caso Barreto Leiva contra Venezuela, julgado bem no final de 2009 e publicado em 2010, minha convicção é totalmente oposta. Estou seguro de que o julgamento do mensalão, caso não seja anulado em razão do primeiro vício acima apontado (violação da garantia da imparcialidade), vai ser revisado para se conferir o duplo grau de jurisdição 84 Art. 230. A denúncia nos crimes de ação pública, a queixa nos de ação privada, bem como a representação, quando indispensável ao exercício da primeira, obedecerão ao que dispõe a lei processual. 85 GOMES, Luiz Flávio. Juiz que investiga não pode julgar (o STJ suspende ação penal no caso Castelo de Areia). LFG São Paulo, 15 de fevereiro. 2010 . Disponível em: < http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20100212094424378&mode=print6>. Acesso em: 5 nov. 2012. 61 para todos os réus, incluindo-se os que gozam de foro especial por 86 prerrogativa de função. Mire-se que no Tribunal Europeu de Direitos Humanos é pacífico o entendimento de que o julgamento pela Corte Mor do País não necessita contar com o duplo grau de jurisdição. Entretanto, salienta-se que no Brasil, desde 1998, está sujeito aos entendimentos da Corte Interamericana, que sedimentou posicionamento contrário (no final de 2009). Não se fez, ademais, nenhuma reserva em relação a esse ponto (os de foro com competência originária). “Então, nosso País tem o dever de cumprir o que está estatuído no art. 8, 2, h, da Convenção Americana (Pacta sunt servanda).” 87. Continua Luiz Flávio Gomes na defesa do duplo grau: A Corte Interamericana (no caso Barreto Leiva) declarou que a Venezuela violou o seu direito reconhecido no citado dispositivo internacional, “posto que a condenação proveio de um tribunal que conheceu o caso em única instância e o sentenciado não dispôs, em consequência [da conexão], da possibilidade de impugnar a sentença condenatória.” A coincidência desse caso com a situação de 35 réus do mensalão é total, visto que todos eles 88 perderam o duplo grau de jurisdição em razão da conexão. Porém, melhor que interpretar é reproduzir o que disse a Corte: Cabe observar, por outro lado, que o senhor Barreto Leiva poderia ter impugnado a sentença condenatória emitida pelo julgador que tinha conhecido de sua causa se não houvesse operado a conexão que levou a acusação de várias pessoas no mesmo tribunal. Neste caso a aplicação da regra de conexão traz consigo a inadmissível consequência de privar o 89 sentenciado do recurso a que alude o artigo 8.2.h da Convenção. A decisão da Corte foi mais longe: (...) de esta Sentencia, debe conceder al señor Barreto Leiva, si este así lo solicita, la facultad de recurrir de la sentencia y revisar en su totalidad el fallo condenatorio al que hace referencia esta Sentencia (supra párr. No se encuentra el origen de la referencia.). Si el juzgador decide que la condena estuvo ajustada a Derecho, no impondrá ninguna pena adicional a la víctima y reiterará que ésta ha cumplido con todas las condenas impuestas en su oportunidad. Si por el contrario, el juzgador decide que el señor Barreto Leiva es inocente o que la condena impuesta no se ajustó a Derecho, dispondrá las medidas de reparación que considere adecuadas por el tiempo que el señor Barreto Leiva estuvo privado de su libertad y por todos los perjuicios de orden material e inmaterial causados. Esta obligación deberá ser cumplida en un plazo razonable. (...) El Estado debe, dentro de 86 GOMES, Luiz Flávio. Mensalão: julgamento do STF pode não valer. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3374, 26 set. 2012 . Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/22696> .Acesso em: 5 nov. 2012. 87 Op. cit. 88 88 GOMES, Luiz Flávio. Mensalão: julgamento do STF pode não valer. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3374, 26 set. 2012 . Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/22696> .Acesso em: 5 nov. 2012. 89 Op. Cit. 62 un plazo razonable y conforme a los párrafos No se encuentra el origen de la referencia. No se encuentra el origen de la referencia. de esta Sentencia, adecuar su ordenamiento jurídico interno, de tal forma que garantice el derecho a recurrir de los fallos condenatorios, conforme al artículo 8.2.h de la Convención, a toda persona juzgada por un ilícito penal, inclusive a 90 aquéllas que gocen de fuero especial. Grifos Nossos. Inclusive os réus com foro especial contam com o direito ao duplo grau; por isso é que mandou a Venezuela adequar seu direito interno à jurisprudência internacional: Sem prejuízo do anterior e tendo em conta as violações declaradas na presente sentença, o Tribunal entende oportuno ordenar ao Estado que, dentro de um prazo razoável, proceda a adequação de seu ordenamento jurídico interno, de tal forma que garanta o direito a recorrer das sentenças condenatórias, conforme artigo 8.2.h da Convenção, a toda pessoa julgada 91 por um ilícito penal, inclusive aquelas que gozem de foro especial. Ainda, subsiste uma forte tese favorável ao duplo grau de jurisdição no caso mensalão, pois, este conta com um total de 118 réus, sendo que 35 estão sendo julgados pelo Supremo Tribunal Federal e outros 80 respondem a processos em várias comarcas e juízos do país O escândalo do mensalão tem pelo menos 118 réus em processos abertos em diferentes instâncias da Justiça, o triplo da quantidade de acusados em julgamento há mais de um mês no Supremo Tribunal Federal (STF). O GLOBO teve acesso à lista de processos iniciados a partir da denúncia principal do esquema e aos pedidos de investigação encaminhados pela Procuradoria Geral da República (PGR) às procuradorias da República nos 92 estados . Todos esses 80 réus contarão com o direito ao duplo grau de jurisdição, que foi negado pelo Supremo Tribunal Federal para outros réus. Situações idênticas tratadas de forma absolutamente desigual.93 Assim, Luiz Flávio Gomes questiona: (...) o que a Corte garante aos réus condenados sem o devido respeito ao direito ao duplo grau de jurisdição, tal como no caso mensalão? A possibilidade de serem julgados novamente, em respeito à regra contida na Convenção Americana, fazendo-se as devidas adequações e acomodações 90 Disponível em: https://www.u-cursos.cl/derecho/2010/1/CPRBSIDH/1/.../271764. CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS - CASO BARRETO LEIVA VS. VENEZUELA SENTENCIA DE 17 DE NOVIEMBRE DE 2009. 91 GOMES, Luiz Flávio. Mensalão: julgamento do STF pode não valer. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3374, 26 set. 2012 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/22696>. Acesso em: 5 nov. 2012. 92 Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/no-rastro-do-stf-mais-80-reus-no-mensalao-6109002. 93 Op. Cit. 63 no direito interno. Com isso se desfaz a coisa julgada e pode eventualmente 94 ocorrer a prescrição. Em razão das jurisprudências, nacionais e internacionais citadas, há de reconhecer a evidencia de que os patronos dos acusados poderão pleitear, junto à Comissão Interamericana, a consignação de “uma inusitada medida cautelar para suspensão da execução imediata das penas privativas de liberdade, até que seja respeitado o direito ao duplo grau”95. Vindo isto ineditamente a acontecer, os condenados do mensalão, com foro originário ou não, aguardaria o tão sonhado duplo grau em liberdade. Assim, por vícios procedimentais da nossa jurisprudência, frente à crescente e inovadora jurisprudência internacional, corremos o risco de “a mais histórica de todas as decisões criminais do STF pode ter seu brilho ético, moral, político e cultural nebulosamente ofuscado”. 96. 94 Op. Cit. Op. Cit. 96 Op. Cit. 95 64 5 CONCLUSÃO Conquanto o Supremo Tribunal Federal tenha posicionamento unânime e consolidado de que a fixação de foro para os detentores de função não viola as garantias do juiz natural, do contraditório e do devido processo legal (não se pode olvidar que não se faz menção do duplo grau de jurisdição), o que, inclusive, deu azo ao enunciado de súmula nº 704, entendimento do qual não há divergência doutrinária expressiva, é de se concluir, data venia, que o mesmo raciocínio não pode ser aplicado aos corréus que não detenham foro por prerrogativa de função. É que, malgrado tenha o STF, por maioria, ratificado no julgamento da AP nº 470, cujo acórdão ainda pende de publicação, a possibilidade de tais corréus poderem, ante a aplicação dos institutos da conexão e continência, ser julgados originariamente, pela prática de crime comum, pelo STF, tal inteligência acaba por negar aos aludidos corréus o direito ao duplo grau de jurisdição, consagrado expressamente no Pacto de San Jose da Costa Rica, ao juiz natural, devido processo legal, contraditório e ampla defesa. Cumpre salientar, mais, que é inerente à cidadania o princípio do juiz natural. Os acusados não detentores de tal prerrogativa têm o direito ao devido processo legal e este há de fazer-se presente com a atuação da primeira instância e a recorribilidade cabível. O cidadão tem o direito de saber quem o acusará em nome do Estado e quem, também em nome deste, o julgará, premissa conducente à existência das duas figuras, a do promotor natural e a do juiz natural, definidas, sob o ângulo da individualização, pelo arcabouço normativo. Não me impressiona a argumentação concernente à possibilidade de decisões conflitantes em relação a corréus, pois estas são próprias ao sistema e podem ser corrigidas, podem ser afastadas, mediante o manejo do sistema recursal previsto no ordenamento jurídico. Por tais razões – salientando a necessidade de este Tribunal mostrar- se rigoroso com a preservação de princípios, porquanto, em Direito, o meio justifica o fim, mas não este aquele, principalmente quando em jogo o juiz natural, ou seja, aquele adrede constituído para julgamento da ação –, acolho a questão de ordem suscitada para determinar o desmembramento da Ação Penal no 470/MG em relação aos réus não detentores da prerrogativa de foro, observando-se o aproveitamento dos atos processuais até aqui realizados. Vale dizer, o processo irá à primeira instância aparelhado para apreciação. Todavia, bem diversa é a situação do coautor. De fato o que determina o simultaneus processus em relação à sua pessoa perante o Supremo é a continência 65 por cumulação subjetiva, norma prevista em lei ordinária: Código de Processo Penal, (art. 77 inc. I). Ocorre que, por força desse julgamento perante o Supremo, o coautor não terá direito de apelar, fica a dúvida: poderia uma lei ordinária (CPP, art. 77, inc. I) prevalecer sobre dispositivo que tem status normativo supralegal (Pacto de San José da Costa Rica, art. 8º, nº 2, “h”), privando o coautor do direito de apelar? Pensamos que não. Destarte, diante do status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos, é considerado que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos prevê de maneira expressa o direito ao duplo grau de jurisdição, caso o coautor não tenha foro por prerrogativa de função, impõe-se a separação dos processos, respeitando-se quanto a este o direito assegurado no art. 8, nº 2, “h”, do Dec. nº 678/1992. Desse modo, não vejo como seja possível admitir-se que a interpretação de normas infraconstitucionais, notadamente daquelas que integram Código de Processo Penal - instrumento cuja finalidade última é proteger o jus libertatis do acusado diante do jus puniendi estatal – derrogue a competência constitucional estrita fixada pela Carta Magna aos diversos órgãos judicantes e, mais, permita malferir o princípio do duplo grau de jurisdição, nela abrigado e mais uma vez acolhido, de livre e espontânea vontade, pelo Brasil, após a promulgação daquela, quando aderiu sem reservas ao Pacto de San José da Costa. Portanto, não devem os institutos da conexão e continência, previstos tão somente na legislação ordinária, quando verificados os requisitos para sua deflagração, determinar a reunião dos processos perante as cortes superiores, de sorte a malversar, máxime, o direito ao duplo grau de jurisdição, previsto em norma de maior densidade constitucional, de caráter supralegal. Por tudo isso, a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal processar e julgar corréus sem foro por prerrogativa de função, data maxima venia, dá-se de forma ilegal, pois não pode o STF, no afã de fazê-lo. 66 6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ADI 1.480-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 18/05/01. ADI 1.946-MC, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ, 14/09/01. . CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, Vol I. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010 . DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. vol. I. São Paulo: Malheiros, 2001. Disponível em:< http://oglobo.globo.com/pais/no-rastro-do-stf-mais-80-reus-no-mensalao-6109002>. . Disponível em: https://www.u-cursos.cl/derecho/2010/1/CPRBSIDH/1/.../271764. CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS - CASO BARRETO LEIVA VS. VENEZUELA SENTENCIA DE 17 DE NOVIEMBRE DE 2009. FEITOSA, Denilson. 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