Second Life: febre na rede
por Mara Figueira
(…)
Criado em 2003 pelo norte-americano Philip Rosedale, o Second Life popularizouse a partir de 2005 e hoje é uma febre na rede mundial de computadores: conta com mais
de seis milhões de usuários em todo o planeta. Atualmente, 300 mil brasileiros já fazem
parte deste universo, o que coloca o País atrás apenas de Estados Unidos, França e
Alemanha em número de participantes. Até o final do ano, porém, o objetivo é mais que
quintuplicar essa quantidade. Espera-se que aproximadamente dois milhões de pessoas
no Brasil aceitem o convite feito por esse mundo virtual por meio de sua página na
internet: “que tal uma segunda chance?”.
(…) a participação em universos cibernéticos como o Second Life não constituiria,
a princípio, uma segunda vida totalmente diferente da tradicional, mas, em vez disso, uma
continuidade da vida real do indivíduo ou, em outras palavras, uma sobreposição de duas
dimensões da experiência humana. É o que defende Jonatas Dornelles, cientista social
formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorando em antropologia
social pela mesma instituição.
“A vida no mundo virtual é uma seqüencia da vida real cotidiana. Nas minhas
pesquisas sempre ficou clara uma tendência de estreitamento das dimensões on e offline, ou melhor, do virtual com o real. Ou seja, preconceitos, valores, significados,
ansiedades, medos, paranóias e tudo o mais que se refere aos seres humanos serão
vistos em mundos virtuais, sejam eles chats de internet, Orkut ou qualquer outra
plataforma de interação virtual”, explica. Uma opinião compartilhada pela socióloga Maria
de Fátima Borges Burgos, da Universidade de Brasília. “Em mundos virtuais, encontramos
posturas e ações muito parecidas como as presentes no mundo real, já que é difícil de
desvencilhar totalmente da sociedade”. Assim sendo, o fato de amizades, namoros ou
mesmo nascimentos de crianças serem reproduzidos no Second Life seria, de certa
forma, previsível, bem como eventos considerados negativos, como uso de drogas,
prostituição, pedofilia e outros crimes – fenômenos também já identificados nesse
universo cibernético.
Porém, embora seja uma seqüência da vida real cotidiana, é preciso ter em mente
que a vida no mundo virtual sofre um processo de seleção. “Ter uma página pessoal
nesses sistemas requer uma reconstrução do sujeito, que passa a ser virtual. Sempre é
preciso preencher formulários de características pessoais, por exemplo. E quais serão as
características escolhidas? Aquelas que, de alguma forma, darão conta da identidade
desse sujeito, seja pela beleza, pela juventude ou qualquer outra variável relevante na
sua cultura”, explica Dornelles. “São processos seletivos que orientam as ações em
plataformas virtuais de interação social e, muitas vezes, o mundo virtual revela, ao estilo
de uma vitrine, aspectos priorizados por aqueles que o freqüentam”. A partir dessa
perspectiva, torna-se fácil compreender por que os avatares no Second Life, em geral,
apresentam características muito semelhantes: magreza para as mulheres, músculos
para os homens, beleza e juventude para ambos.
Na visão defendida por Jonatas Dornelles, mais do que uma segunda vida, o
surgimento de mundos virtuais como o Second Life merece ser interpretado como uma
extensão dos limites do sujeito. Como explica o pesquisador da UFRGS, hoje muitos
obstáculos até então vistos como limitadores da atividade humana – como os geradores
pela fragilidade do corpo humano – deixam de existir com o desenvolvimento da
tecnologia.
Se, em uma perspectiva sagrada, apenas a existência de uma alma extrapolaria
essas limitações, podendo o indivíduo viver em outros mundos após a morte, atualmente,
uma transcendência equivalente é prometida pelo computador.
“Com a tecnologia do ciberespaço, as variáveis de tempo e de espaço, por
exemplo, recebem novos significados dos indivíduos envolvidos”, explica. “Distâncias
antes intransponíveis agora são atingidas com o auxílio da comunicação, em tempos
'imediatos', antes jamais pensados. Como resultado, as pessoas conseguem superar
distâncias anteriormente não conseguidas. Distâncias que podem ser entendidas como
limites físicos, mas também culturais, no que se refere à interação entre indivíduos que,
sem a tecnologia, nunca entrariam em contato e formariam uma rede social”.
Ao propiciar a superação de obstáculos como distância física e cultural, o advento
de mundos virtuais como o Second Life permitiria extrapolar os limites de ação dos seres
humanos como um todo. “Na perspectiva do ciberespaço atual, os indivíduos expandem
os seus limites de ação ao interagirem com os demais mesmo enquanto efetuam outras
tarefas. Isso ocorre com qualquer pessoa que tenha uma página no Orkut, em outro
sistema de sociabilidade virtual ou mesmo um personagem de jogo virtual, no qual volta a
jogar a partir do momento em que encerrou a última partida. Enquanto realiza outras
atividades, esse indivíduo está efetuando a interação social, uma vez que o seu “eu” está
disponível on-line, no mundo virtual, o tempo todo, ao acesso de todos”, explica Dornelles.
Mas como essa pessoa sempre presente no ciberespaço se relaciona com as
demais no mundo virtual? Será que as relações sociais sofrem mudanças nesse novo
contexto? “Sem dúvida, as novas tecnologias modificam o modo de as pessoas se
relacionarem”, afirma Maria de Fátima.
(…)
A crescente popularidade de mundos virtuais como este, no entanto, levanta a
questão: será que se pode supor que o futuro das relações sociais estará cada vez mais
ligado a esses mundos não-reais? Para Dornelles, as diferentes formas de sociabilidade
tendem a conviver – e não predominar uma sobre a outra. “Dependendo da articulação
das variáveis tempo e espaço, temos três formas diferentes de relações sociais. Quando
as pessoas compartilham o mesmo tempo e espaço em um contato face a face, ao
exemplo de uma sociabilidade de bairro, temos uma primeira forma de sociabilidade.
Em uma comunicação via chat de internet, temos a segunda forma de
sociabilidade, em que as pessoas compartilham o mesmo tempo de interação, mas não o
mesmo espaço físico, substituindo-o por um espaço virtual que o simula em plataformas
virtuais ao estilo do Orkut. E ainda ocorre a terceira forma de sociabilidade, em que as
pessoas podem se relacionar sem estar sincronicamente no mesmo tempo e espaço”,
explica o pesquisador da UFRGS. “Uma forma de sociabilidade, no entanto, não substitui
a outra. Todas elas convivem. A diferença é que são depositados sentidos diferentes em
cada uma delas. Ou seja, até pouco tempo poderia ser um absurdo supor encontrar um
parceiro sexual ou amoroso no mundo virtual. Atualmente esse comportamento é aceito e
até já se transformou na principal forma de busca pela 'alma gêmea', ou a 'cara-metade'
para algumas pessoas. As diferentes formas de sociabilidade estão à disposição. O que
muda é o sentido que cada uma recebe pelas pessoas que a utilizam”.
Para Dornelles, falar em perdas que essa nova modalidade de sociabilidade
representada pelos mundo virtuais pode trazer é um tema controverso. “Durante minhas
pesquisas, meus informantes com mais idade sempre manifestavam certo sentimento de
perda do “calor humano” nesse tipo de interação virtual. Já os mais jovens nem
ponderavam sobre esse tipo de perda. Ou seja, perdas e ganhos são relativos. Alguém só
perde alguma coisa quando a teve. É difícil, se não impossível, alguém sentir falta de
algum aspecto substituído pela integração virtual, quando nunca experimentou. Em
meados do século XX a sociabilidade dos centros urbanos, passava, por exemplo, pela
participação em bailes, ida a cinema, footing nas principais vias, e assim por diante.
Hoje a interação virtual cresce e torna-se cada vez mais “a” forma de sociabilidade,
por motivos diversos entre eles a segurança. Quem vivenciou outras formas de
sociabilidade talvez sinta falta delas diante de um computador – ou talvez não”.
Por sua vez, o pesquisador Guilhermo Ruben, do departamento de Antropologia da
Universidade de Campinas, alerta que ainda faltam pesquisas empíricas sobre esse
fenômeno para conhecer melhor seu impacto e alcance. “Existe um mundo de trabalhos
sobre essa temática de ciberespaço: há os que são considerados “otimistas” e os
definidos como “pessimistas”, sendo que as críticas feitas aos mundo cibernéticos não
têm um aspecto geracional. Isto é, não são feitas apenas por membros de gerações mais
antigas, que tiveram outras experiências de sociabilidade”, explica. “Há algo, porém, que
está faltando nesses estudos: pesquisas empíricas. No momento, é preciso
desideologizar o modo como a temática dos mundos virtuais tem sido abordado,
fortalecendo a produção de fatos concretos, demonstráveis, para análise”, opina. Dessa
forma, seria possível lançar um olhar mais neutro sobre esse fenômeno e talvez tornar
mais visíveis os lucros e prejuízos que a sociedade atual teve com a sua ascensão. Um
caminho que pode ser útil não só para entender melhor os fenômenos como o Second
Life, mas também outras formas de sociabilidade que porventura surjam no futuro. (…)
FIGUEIRA, Mara. Second Life: febre na rede. Revista Sociologia, Ciência & Vida, São Paulo, Ano I nº 9,
pp17-25, 2007.
Observação: Os trechos reproduzidos acima foram digitados segundo o Acordo Ortográfico vigente na data
de publicação da matéria.
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