Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6 Monarquistas ou Republicanos: Uma reflexão sobre o Contestado Everton Carlos Crema* Conta uma anedota militar que um graduado ao servir-se de bifes durante o almoço é admoestado pelo recruta que supervisiona a linha de serviço de que “somente poderia comer um”, irritado o graduado questiona o recruta, se acaso ele sabia com quem estava falando e quem ele era para questioná-lo quanto à quantidade de bifes que comeria? Responde o recruta: “Sou o controlador de Bifes” fim da história. De certa forma sempre houve uma preocupação, uma tentativa por parte da história, ou dos historiadores de categorizar tudo, como se uma tipificação ou qualificação se tornasse o próprio processo histórico. Longe de tentarmos diminuir a importância das categorias, tipos ou conceitos na História ou negar-lhes sua condição apresenta-se extremamente oportuno percebermos como muitas vezes as representações de que fazem uso os homens são na verdade simulacros, estereótipos, quando não, idéias distorcidas ou adaptadas pelas forças de seus interesses vários. Fazer história ou sua escrita se constitui em tarefa hercúlea dada as condições em que a própria narrativa da história é costurada, onde sua trama é urdida por variadas mãos em processos escalares, para depois pela mão do historiador ser dissecado, desconstruído, detalhado, individualizado e ao final de tudo, uma nova trama surgirá, agora explicada pela mão do especialista, agora autenticada, certificada, pelo menos até, outra mão, outro historiador, certifique-a novamente de outra forma. Nesse jogo da história, extremamente positivo, a nosso ver, é que percebemos as dificuldades de buscarmos por uma rígida metodologia da pesquisa, uma teoria que permita vislumbrar essa miríade de perspectivas que se apresentam ao historiador, devemos buscar na amplitude de suas possibilidades, não seu tendão de Aquiles, mas seu alicerce, aquilo que permitirá construir uma Meta–História1, uma narrativa da história, dentro de critérios científicos específicos às ciências humanas. 1 * Universidade Federal do Paraná – Mestrando em História em cultura e poder sob orientação do Prof. Dr. Renato Lopes Leite. Perspectiva de construção metodológica da ciência da história a partir da narrativa como referencial teórico. 1 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6 Buscaremos apresentar aqui algumas idéias de Jörn Rüsen2 e sua matriz disciplinar, sua proposta teórica, articulada a um dos maiores conflitos sociais do Brasil, a Guerra do Contestado, movimento popular que sacudiu os sertões dos estados do Paraná e Santa Catarina durante os anos de 1912 a 1916 atingindo uma área de 48 mil Km² do sudoeste paranaense ao noroeste catarinense, de revolta messiânica a guerra camponesa o Contestado já foi chamado de várias coisas, suas origens, para nós, por outro nome, trama ou conceito se relacionam a um processo de modernização3 das estruturas regionais, potencializadas pela construção da ferrovia São Paulo – Rio Grande do Sul que corta a região no início do século XX. O impacto desse processo no cotidiano da sociedade sertaneja pode ser percebido, na crescente valorização da terra, no fim do tropeirismo, no esmaecimento das relações de compadrio, na crescente colonização e na ampliação do extrativismo da madeira e erva-mate. A modernização e a crise do processo de transformação articulado pela ferrovia se desenvolveram em intensidade e direções diferentes, muitas vezes, desenvolvidas pelo prolongamento e ampliação da cadeia produtiva ou das inovadoras possibilidades econômicas. Sua tecnologia tornava possível trazer regiões outrora inacessíveis de forma efetiva para a esfera do mercado mundial, por meio da ferrovia e do vapor. As convulsões sociais que sucederam à transferência da agricultura para um modelo capitalista, ou pelo menos um padrão de comércio em larga escala, afrouxaram os laços tradicionais entre os homens e a terra de seus ancestrais, especialmente quando descobriram que não possuíam praticamente nada dela, ou pelo menos muito pouco para manterem suas famílias. (HOBSBAWM, 1996: 245). Evidentemente que a mudança das estruturas econômicas afetou diretamente a rotina produtiva da sociedade cabocla, a ruptura da economia moral 4 daqueles grupos com o costume, com sua cultura, engessaram o horizonte de expectativas dos caboclos. 2 Professor titular de teoria da história na Universidade livre de Berlin e professor titular de história moderna na Universidade de Bochum. Publicou no Brasil uma trilogia composta respectivamente por (Razão Histórica, 2001), (Reconstrução do Passado, 2007) e (História Viva, 2007). 3 Entende-se por Modernização o conjunto de mudanças operadas a partir de um contínuo processo de difusão de valores e técnicas européias, se relaciona com o surgimento de formas políticas, econômicas e sociais dirigidos para fins específicos. ( BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO. 2004: 772 – 773). 4 THOMPSON. E. P. Costumes em Comum – estudo sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Segundo Thompson economia moral seria toda forma de organização, ideologia, economia, arte, cultura, o tipo de relação, comportamento ou uso funcional desenvolvido, utilizado e reproduzido por uma sociedade em seu cotidiano. 2 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6 As mudanças impediram a reprodução lógica das estruturas vigentes, aceitas pelos grupos sociais inseridos nas regiões do Vale do Rio do Peixe Iguaçu e Negro, regiões marginais à ferrovia e que puderam sentir toda a força transformadora e a viragem do seu cotidiano. A reação ao fim das expectativas aceitas e reproduzidas da tradição e dos costumes pelos sertanejos, os lançaram da negação a luta, contra aquilo que não compreendiam como seu. De outra forma a sociedade regional, os grupos sociais nas regiões do Contestado sentiram e assimilaram esse processo de transformação diferenciadamente, a cristalização de interesses mostrou-se diversa. Para o caboclo a modernização e a chegada da ferrovia se mostraram de forma excludente e violenta, já as elites regionais viram na modernidade, um caminho, um patamar a ser alcançado, a validação de um sentimento, “o progresso”. Dentro dessa perspectiva podemos dizer que a separação entre “costumes” e modos de vida, se reproduziu dentro de lógicas e expectativas específicas. Do lado das elites a nova cultura estava cada vez mais ligada ao racionalismo dos costumes, ao racionalismo produtivo, ao racionalismo do trabalho e do capital, impondo-se como cotidiano, adotado como cultura. A inovação é mais evidente na camada superior da sociedade, mas como ela não é um processo tecnológico \ social neutro e sem normas (“modernização”, “racionalização”), mas sim a inovação do processo capitalista, é quase sempre experimentada pela plebe como uma exploração, a expropriação de direitos de uso costumeiros, ou a destruição violenta de padrões valorizados de trabalho e lazer. 5 (THOMPSON, 1998: 19). Para os grupos subordinados o choque entre o racionalismo capitalista e a “tradição”, permitiu um certo retorno a ortodoxia dos costumes “tradicionais” no intuito característico de reforçá-los e defendê-los, ante as mudanças que se operacionalizavam. Todo o processo de transformação, suas inovações, conflitos e rupturas, seus mais diversos interesses e a própria luta por sua legitimidade, polarizaram-se dentre outras perspectivas, a partir dos conceitos políticos do monarquismo6 e republicanismo7. 5 THOMPSON. , E. P. Costumes em Comum – estudo sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.19. 6 Monarquismo, corrente política que defende um regime de poder unipessoal “dominus”, baseado na hereditariedade e vitaliciedade do rei, entende-se ainda monarquia como o governo da res pubblica de caráter monopessoal. (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO. 2004: 776 – 777). 7 Republicanismo, corrente política anti-monarquista, defendem um governo representativo liberal, baseado na separação dos poderes e um estado federativo, especificamente nos Estados Unidos. 3 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6 Buscaremos demonstrar que as leituras políticas sobre essas formas de governo não correspondem aos seus conceitos e estruturas políticas tradicionais, conceitualmente foram apropriadas conforme interesses e representações específicas, muito mais ligadas à defesa de um modo de vida e aos desejos dos homens que levantaram suas bandeiras do que propriamente uma forma de governo historicamente constituído. Seus discursos foram distorcidos, amoldados num híbrido entre o velho e o novo. Desejavam os dois lados, o melhor de dois mundos, canalizaram suas expectativas de mudança e de manutenção dentro dos referenciais políticos que à época oposicionaram os destinos no Brasil. Lembremos que a proclamação da República em 1981 ainda se fazia muito presente na memória nacional, por vezes sem a devida compreensão do alcance de seus significados, muito mais ligada às tradições seculares e ao costume do que presa ao contexto republicano. Não diferentemente nas regiões do Contestado, observarmos um intenso catolicismo rústico8 desenvolvido em grande parte do interior do Brasil, o forte sentimento de religiosidade dos caboclos transformou-se em luta e suas aspirações foram canalizadas em um movimento político de restauração da “monarquia celeste”, do bom governo, onde primava a lei de Deus e não a dos homens. A proclamação da República, trazendo a separação entre o Estado e a Igreja, repercutiu desfavoravelmente no espírito de João Maria, e ao passo que as leis republicanas tendiam a ser por ele acoimadas de “leis do diabo”, a Monarquia passava a representar uma Idade do ouro perdida. (QUEIROZ, 1957: 262). Do outro lado, as elites regionais e seus asseclas, polarizaram-se, dentro de uma guerra onde buscavam defender seus interesses articulados as idéias de ordem e progresso do jovem republicanismo, republicanismo esse que distorcido se desenvolveu no Brasil muito mais por sua vertente anti-monarquista do que qualquer outro motivo, era de interesse das elites brasileiras adequar o liberalismo republicano a sua política caudilhistas.9 Entretanto dos dois lados os conceitos de monarquia e república foram permeados pelos naturais interesses de grupo. Os “pelados”10 buscavam na restauração do monarquismo remédio para seus males, suas lembranças e experiências da 8 Forma de sincretismo religioso, fusão do catolicismo romano e a práticas religiosas populares. Para isso ver. LEITE, Renato Lopes. Republicanos e Libertários: Pensadores radicais no Rio de Janeiro (1822). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 10 Termo pejorativo, por rasparem as cabeças os revoltosos do Contestados foram denominados pelados, sem pêlos, pelas tropas federais e milicianos. 9 4 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6 monarquia eram muito mais favoráveis que a realidade republicana que se apresentava, além disso, a monarquia era o “governo de Deus”. Dessa forma podemos articular de que a tentativa da restauração do monarquismo estava muito mais ligada ao cotidiano vivenciado por aquelas populações nos sertões contestados do que uma inteligibilidade acerca do que representava um governo e um estado monarquista. Desejavam muito mais voltar a viver dentro da rotina de seu costume do que defender uma forma de governo arcaica. Os interesses na manutenção ou retorno da monarquia foram idealizados pelos caboclos, num desejo de justiça, amor e fraternidade, compatível com o sincretismo da ética cristã. Por outro lado aceitar que os caboclos, os “pelados” do Contestado enfrentaram o governo federal e governos estaduais, os coronéis latifundiários e que por inúmeras vezes rechaçaram heroicamente seus ataques mantendo regiões inteiras sob seu controle sem nenhum tipo de organização, politização ou partidarismo parece-nos pouco provável. Dificilmente aceitaríamos essa perspectiva, a menos que, mais uma vez nos curvássemos à tranqüilidade de uma definição conceitual hegemônica, abrangente e precisa do conceito político ou da própria história, pensado de forma restrita, ou ampla, tudo ou nada, surgiriam mais problemas do que soluções. Importa-nos perceber a importância da flexibilidade do uso conceitual quando da análise histórica, observando dentro de sua narrativa, dentro de seu processo de construção escalar as condições especialíssimas que a criaram. A Guerra do Contestado, não foi um movimento anômico11 ou fruto de uma “patologia social”, foi história. Os sertanejos acabaram demonstrando, tanto por discurso como por atos, que desenvolveram uma nítida consciência das condições sociais e políticas de sua marginalização, de que se tratava de uma guerra entre ricos e pobres, que lutavam contra o governo, que defendia os interesses dos endinheirados, dos coronéis e dos estrangeiros. (MACHADO, 2004: 26). A defesa da República por seus partidários se processou de forma semelhante, a modernidade, a ordem e progresso se constituíram em baluarte das elites regionais, sobretudo se observarmos as redes políticas desenvolvidas pelo coronelísmo regional, a religiosidade cabocla foi travestida de barbárie, o atraso precisaria ser vencido pela civilização. Dessa forma o republicanismo condensou ao mesmo tempo a idéia de 11 Significa a ausência de normas ou mecanismos de regulação em uma sociedade. 5 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6 representatividade política limitada e liberalismo econômico, as elites regionais buscavam aumentar sua ação dentro dos governos estaduais, centralizando o processo decisório e conjuntamente flexibilizavam a ação econômica dos governos segundo interesses muito específicos. Apresentado o palco, o enredo da história e alguns personagens, passaremos agora a analisar e articular a contribuição de Jörn Rüsen para os fundamentos do conhecimento histórico-científico, sua maior preocupação repousa sobre os problemas da teoria da história, sua crítica e a criação de um modelo metodológico que possa oferecer uma alternativa ao universalismo histórico à construção de uma teoria histórica prática, baseada na narrativa e na geração de sentido histórico, uma Meta-História. Os anos 90 encerram o debate acerca dos grandes modelos teóricos, os universalismos e as teorias nomológicas,12 e seus modelos de interpretação não mais produzem garantia de validade do pensamento histórico, suas metodologias teóricas não se orientam pelas modificações temporais no passado do homem e de seu mundo. Dessa forma não podem explicar singularmente cada caso e os processos de mudança, não desvendam o acontecimento, somente buscam articulá-lo a outros fatos e momentos históricos explicando e encadeando determinados elementos e contextos específicos. Os pressupostos teórico-metodológicos devem possuir léxicos com o tempo e a experiência, formadores de identidade, as interpretações do processo histórico se tornam dependentes das representações de continuidade do espaço-tempo em constante reformulação. Os fenômenos do passado humano são especificamente históricos quando se trata de sua qualidade temporal, de seu valor no decorrer de um tempo considerado importante em termos de sentido e significado. É exatamente dessa qualidade temporal, que os fatos do passado ganham luz de uma representação abrangente da continuidade, que as teorias nomológicas prescindem. (RÜSEN, 2007: 31). Os grandes modelos teóricos analisam em suma os resultados de um momento histórico específico, muitas vezes negligenciando, detalhes formadores da história, ou das possibilidades da formação da história como, por exemplo, a relação intenção / ação. A análise da ação ou de seus resultados não se torna um equivalente imediato de 12 Refiro-me aqui, segundo Rüsen as teorias hegemônicas dentro da história que se propuseram a criar uma história universalizante, esgotadas com a crítica dos Pós-Modernistas. 6 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6 sua intencionalidade ou de suas intencionalidades, pois as ações não possuem apenas um motivo, mas vários e podem explicar por vezes a base real dos motivos, o que nos remete a um problema, se escolhermos alhures alguma ação na história, indevidamente poderemos chegar a resultados diferentes, o que nos remete a necessidade de buscarmos pela variedade da racionalidade a formação de sentido e não a partir dessa racionalidade autorizar “um sentido”. Portanto ao utilizarmos conceitos teóricos nomológicos, incorremos em um problema de inadequação dos modelos explicativos, construídos em um momento histórico específico, em relação aos procedimentos explicativos, dentro do processo de construção da história, pois as teorias hegemônicas isolam a experiência temporal, a qual deveria se repetir no espaço-tempo para que se possa gerar sentido histórico, algo como se contar uma anedota duas vezes consecutivas, o contexto da primeira e seu resultado seriam bem diferentes de uma segunda tentativa, o contexto histórico não seria mais o mesmo, diferente também seria a geração de sentido. Dessa forma propõe Rüsen à criação de uma nova teoria da história, capaz de articular as categorias universais da história aos particularismos culturais, através da narrativa histórica, segundo o próprio autor, não seria o próprio narrar histórico um procedimento explicativo? Procedimento este que desfrutaria de um duplo mérito, pois além de analisar em sua “cena originária” a linguagem e sua relação com o processo histórico, ainda poderíamos descortinar o próprio narrador – historiador em sua lógica narrativa. Pensar historicamente, significa articular os arquétipos lingüísticos do pensamento histórico a própria ciência histórica, dentro de parâmetros específicos onde a narrativa se tornará síntese desse método. A validade da narrativa como teoria da história talvez se encontre em sua própria dinâmica, articulando e configurando diversas racionalidades argumentativas, abstratas que cientificadas criam perspectivas históricas válidas, variadas e simultâneas construindo uma racionalidade cognitiva tipificada que se peca pela abrangência e variedade de conjecturas, escapa ao determinismo de um monolitismo explicativo que não permite perceber todo o processo de construção histórica da narrativa. Defendida a narrativa como uma teoria da história, agora se faz necessário demonstrar como Rüsen propõe a aplicação do paradigma narrativo ou o problema da narração metodologicamente. Sua matriz disciplinar é um esquema interpretativo 7 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6 cognitivo-referencial das práticas do pensamento histórico onde a narrativa ou seu processo de construção, pode se articular sincrônica ou diacronicamente com o todo ou em parte. Entretanto a articulação de um ou mais campos naturalmente levará a narrativa a articular-se a um novo campo da matriz disciplinar composta de 5 (cinco) campos específicos, a saber: 1º. Interesses, (carências de orientação na mudança temporal do mundo contemporâneo.) 2º. Funções (orientação cultural sob a forma de um direcionamento do agir humano e de concepções da identidade histórica.) 3º. Perspectivas da interpretação (teorias, perspectivas e categorias.) 4º. Formas de representação. 5º. Métodos, (regras da pesquisa empírica). Esses 5 (cinco) campos que compreendem a matriz disciplinar ainda se dividem em 3 (três) eixos: Vida prática, princípios do sentido e ciência especializada. As articulações da narrativa aos eixos e campos da matriz disciplinar permitem a constituição de uma explicação teórica racional da geração de sentido. Formalmente através da estrutura da história, materialmente através da experiência do passado e funcionalmente, orientando a vida humana no tempo, criando um modelo racional na constituição histórica do sentido dentre todas as suas possibilidades. A tarefa e a pretensão de racionalidade de uma história cuja auto-afirmação passa pelo paradigma consistem, por conseguinte, na identificação de um perfil coerente para essa pluralidade e diferença, e em sua explicação reflexiva sem manipulá-la ou descartá-la. Essa pretensão capacita o paradigma narrativo da práxis histórica, que se realiza na plenitude do diferente, a emergir e a motivar a história a não proceder mais de maneira cega, mas sim esclarecida sobre si mesma. (RÜSEN, 2001: 170). Voltando ao palco e seus personagens, antes que as cortinas se fechem, perguntamo-nos: Monarquistas ou Republicanos? Não se trata aqui de buscar definir conceitualmente o que esses termos significam, mas sim o que representaram para os lados envolvidos na Guerra do Contestado ou outra história, percebe-se que os caboclos defendiam a monarquia, mas se aproximavam muito mais do republicanismo, por suas carências da vida prática, “a idéia de Monarquia já estava associada, por amplas camadas da população pobre do país, a uma defesa paternal dos pobres contra os poderosos” (MACHADO, 2004: 213), desejavam uma monarquia travestida dos ideários republicanos, suas orientações e suas concepções de identidade mesclaram o 8 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6 monarquismo e o republicanismo em um híbrido político adequado a suas perspectivas de interpretação e possibilidades reais que se apresentavam. De outra forma a pesquisa histórica, a ciência especializada vem cristalizando interpretações históricas, que contemplam muito mais o contexto histórico do que os discursos, em si mesmos, escapando ao enquadramento teórico, contribuindo decisivamente para a criação de modelos explicativos mais abrangentes que se assemelham metodologicamente a matriz disciplinar proposta por RÜSEN. Se ao articularmos um dos campos da matriz, às carências da vida prática, em relação aos rebeldes do Contestado perceberemos que naturalmente passaríamos pelo seu cotidiano e identidade histórica, ao mesmo tempo compreenderíamos as condições que permitiram criar ou modificar suas formas de representação. A construção e implementação da ferrovia São Paulo – Rio Grande do Sul que corta ao meio a região, de norte a sul, valorizou diretamente a terra, essa mudança, a ampliação das possibilidades econômicas ligadas a terra alteraram as relações de dependência e sustentação do sistema de agregação, 13 que tem no compadrio sua forma mais acabada. A terra era o fiel da balança entre o coronel latifundiário e seus agregados, mantinha-se na terra um vínculo de dependência e co-obrigações comuns. Entretanto quando da terra revalorada, os interesses dos coronéis e seus agregados, entraram em conflito, as funções do agir humano, foram reordenadas em novas bases, os coronéis desejavam dispor monetariamente da valorização da terra, os serviços e trabalhos ocasionais prestados por seus agregados como forma de paga e retribuição por seu uso não mais lhes interessavam. Os sertanejos não mais podendo dispor da terra como de costume e não mais servindo aos interesses dos proprietários de terras, delas são expulsos, sua nova condição econômico-social forçaram o caboclo a reelaborar suas formas de representação acerca de suas condições e possibilidades em um mundo em profundas mudanças. Para as elites regionais, do outro lado, mas da mesma forma o republicanismo se configurou num híbrido de liberalismo econômico e controle político o que percebemos diferente de uma ampliação da participação política. As mudanças que as regiões serranas paranaenses e catarinenses vislumbraram no início do século 13 Prática de co-dependência e co-obrigação entre o coronel e seu agregado, recebe o agregado sob permissão, um pequeno pedaço de terra, por seu uso obriga-se em trabalho e moralmente pelo compadrio a vontade do coronel latifundiário. 9 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6 XX, a modernização, o progresso e suas promessas também podem ser articuladas a matriz disciplinar. Seus interesses e perspectivas acompanharam as mudanças históricas, as possibilidades que se apresentaram construíram um novo horizonte, a nova realidade ou sua mudança exigiu um novo contexto histórico, uma nova narrativa precisou ser costurada, uma nova trama precisaria ser urdida pela mão do especialista. Finalmente, podemos perceber a importância e contribuição da obra de Jörn Rüsen, recente é sua penetração no Brasil, o que não lhe é demérito algum, a amplitude e preocupação do autor com a ciência da história, com a formação de uma metodologia histórica que possa se construir como teoria, mostrou-se tão inusitada quando poderosa, usar da narrativa como uma possibilidade de criação de uma teoria histórica prática, veio responder a crise do debate histórico contemporâneo, amoldando criteriosamente do universal ao particular dentro da história. Para Rüsen a narrativa é um paradigma, pois o processo de construção histórico deve se estabelecer dentro de uma relação entre experiência e tempo, essa relação da sentido as experiências criando um enredo que passa a organizar o tempo, que por sua vez da sentido ao passado. Rüsen defende que a história deve se preocupar com a pluralidade, buscando o historiador em seu trabalho, mais de um sentido, mais de uma perspectiva, construindo a partir dessa proposta um enredo narrativo articulado a vida prática, as condições históricas e seus significados que permitam ao homem compreender o desenrolar da história pelas carências da vida prática. Rüsen nos convida a ampliarmos os horizontes e olhares sobre a história, nos questionando acerca da forma com a qual nos preocupamos da escrita da história, não seria essa escrita da história antes uma narrativa? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004. HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital (1848-1875). São Paulo: Paz e Terra, 1996. MACHADO. Paulo, Pinheiro. Lideranças do Contestado. Campinas, SP: Unicamp, 2004. 10 Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6 QUEIROZ. Maria, Izaura. La “Guerre Sainte” au Bresil: Lê movimente messianique du “Contestado”. São Paulo: Secção Gráfica USP, 1957. LEITE, Renato Lopes. Republicanos e Libertários: Pensadores radicais no Rio de Janeiro (1822). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. RÜSEN, Jörn. Razão histórica. Teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado. Teoria da História II: os princípios da pesquisa histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. RÜSEN, Jörn. História Viva. Teoria da História III formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007. THOMPSON. E. P. Costumes em Comum – estudo sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 11