Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem achei. De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma. Quem vê é só o que vê, Quem sente não é quem é, Atento ao que sou e vejo, Torno-me eles e não eu. Cada meu sonho ou desejo É do que nasce e não meu. Sou minha própria paisagem, Assisto à minha passagem, Diverso, móbil e só, Não sei sentir-me onde estou. Cada um é muita gente. Para mim sou quem me penso, Para outros - cada um sente O que julga, e é um erro imenso. Ah, deixem-me sossegar. Nem me sonhem nem me outrem. Se eu não me quero encontrar, Quererei que outros me encontrem? Fernando Pessoa, 26-8-1930 Solaris: da vivência à narrativa – um trabalho de construção do Eu e do Outro. Rheya: «Eu tenho as memórias, mas não me lembro de as ter experienciado» Rheya: «Não sou uma pessoa completa» Rheya: «Eu não sou a Rheya» Kris: «Eu recordava-a de forma errada. De certa maneira eu estava errado sobre tudo» IMMANUEL KANT «A identidade da pessoa encontra-se, infalivelmente, na minha própria consciência.» «A identidade da consciência de mim mesmo em diferentes tempos é, portanto, apenas uma condição formal dos meus pensamentos e do seu encadeamento, mas não prova absolutamente nada a identidade numérica do meu sujeito.» (Crítica da Razão Pura, A362 A363) DAVID HUME: «Inventamos a existência contínua das percepções dos nossos sentidos para remover a interrupção [de diferentes objectos relacionados]; e chegamos à noção de alma, à de eu, e à de substância para mascarar a variação(...). Quando não criamos tal ficção, somos capazes de imaginar algo desconhecido e misterioso que una as partes, ao lado da sua relação.» «A identidade que atribuímos à mente humana é apenas fictícia, e deve proceder de uma operação semelhante da imaginação.» (Tratado da Natureza Humana, VI: Da identidade pessoal) ANTÓNIO DAMÁSIO: «De que modo começa a consciência? Com a construção de um relato do que acontece, uma narrativa sem palavras que se desenrola no tempo e tem princípio, meio e fim.» «O cérebro humano forja uma versão verbal automática dessa mesma história.» «Quando a mente criativa é traduzida em linguagem, facilmente resvala na ficção.» (O Sentimento de Si, VI) PIdentidade AUL RICOEUR Narrativa «O tempo torna-se - o conhecimento de sitempo como interpretação de si articulado por humano quando uma narrativa, e a narrativa atinge a sua significação plena quando se torna condição da existência temporal.» «Seguimos assim a trajectória de um tempo prefigurado até um tempo refigurado, mediados por um tempo configurado.» (Temps et récit, Tome I, I: 3)