ORAÇÃO FÚNEBRE Não sei desde quando vem sendo praxe académica usarem os decanos das Faculdades de Coimbra da palavra na circunstância do enterramento dos seus professores, para exaltarem a sua personalidade e celebrarem seus merecimentos e suas obras; sei apenas que ora me apetece infringi-la, a essa praxe, tanto excede os meus dotes desempenhar-me adequadamente da obrigação de o fazer em relação à figura insigne de professor que foi o Doutor Oliveira Salazar. Creio, aliás, que, em alturas como esta se deveriam omitir palavras profanas, que mais nos fazem reparar nas coisas precárias e caducas da existência terrena dos homens do que meditar nas eternas e transcendentes para que o supremo transe da morte inevitavelmente aponta. Sem timbre na minha voz nem vigor no meu verbo que me elevem à altura do encargo de traçar aqui o perfil do homem, em toda a sua grandeza, direi simplesmente, em dois apontamentos muito breves, do professor — um professor que parecia, em Coimbra, pela austeridade da vida, pela simplicidade quase monacal dos hábitos, pela autoridade moral, pela plena dedicação e amor às tarefas do espírito, pelo equilíbrio do pensamento e da acção, pela dignidade do porte, pela seriedade em tudo posta, um clérigo-doutor que, tendo vivido no Studium Generale, miraculosamente houvesse transposto os sucessivos tempos secularizantes para, em pleno século XX, servir de paradigma a universitários, de exemplo a estudantes e de modelo a todos. Ora sucedeu que esse professor o foi de um feixe de disciplinas que imediata ou indirectamente tinham que ver com os problemas mais candentes da existência colectiva no nosso país nos anos vinte e seguintes, quais eram principalmente, como toda a gente sabe o da situação caótica das suas finanças, o da carência de um mínimo de infra-estruturas, o do atraso da sua economia e o da desordem política e social; e que o seu ensino delas — designadamente da Ciência das Finanças, da Economia Política e da Economia Social — não fora teórico e conceptualista, racionalista e livresco; fora vivo e aderente às realidades nacionais, constantemente por ele invocada para desmentir ou confirmar teses e doutrinas. Quer dizer: a Escola preparou o estadista em que, passada uma década, pouco mais ou menos, sobre o início da sua docência, veio a transformar-se o professor. As soluções que, primeiro na pasta das Finanças e, depois, na chefia do Governo, fez consagrar nas leis e na diuturna acção política e administrativa, tinha-as ele perfilhado já nas suas aulas, desde que em Coimbra sucedera a Marnoco e Sousa no ensino das disciplinas económicosociais da Licenciatura em Direito. De tal modo os cursos de Oliveira Salazar haviam sido já, em si, um projecto da acção política, Logos e Praxis entrelaçados e conviventes, de acordo com a ideia de que «a ciência é uma forma de actuar», que mal daria por que ele passara da cátedra de Coimbra para a cadeira curul do Terreiro do Paço quem pudesse figurar-se a ouvi-lo, sem estar ao corrente desse facto, a fazer certas das suas lições universitárias ou ler os preâmbulos e exposições de motivos de algumas das suas grandes reformas legislativas ou o texto de determinados discursos seus, sobre temas político-sociais. É que, na verdade, Oliveira Salazar, uma vez no Governo continuou igual a si próprio: perante o grande auditório do País, continuou a ser o professor que fora, ante os seus alunos, atentos e maravilhados, nas aulas. Aliás, não foram apenas a dignidade da palavra e a objectividade imperturbável e intransigente das ideias que fizeram compreender e sentir a toda a gente que o professor universitário se transferira, sem se transmudar, de Coimbra para Lisboa. Levou também consigo para o aplicar e fazer observar no Governo e na administração pública, sem desfalecimentos, todo o cabedal daqueles princípios deontológicos que, ele e outros grandes Mestres da Faculdade de Direito, seus contemporâneos, tinham definitivamente firmado e feito triunfar no seio dela, reagindo, obstinada e quase heroicamente, contra as expressões mais degradantes da corrupção que havia penetrado na própria universidade, a partir da sociedade política da época do baixo liberalismo. Mais do que professor, entendido como especialista ou bom conhecedor de certa ou certas matérias, o Doutor Oliveira Salazar foi, porém, um filósofo das coisas sociais e política — e foi como tal ele veio a ser governante excepcionalíssimo. Não é o professor de Finanças, de Economia e de Direito Fiscal que marcou uma época na vida política da Nação, por grandes e benéficas que tenham sido e foram-no, realmente, no consenso geral, as consequências da sua acção na governação do País, à frente do departamento da Fazenda. Marcou uma época na nossa História, de preferência, o filósofo que se encobria na figura do professor universitário — bastando que o Destino lhe proporcionasse a ocasião, para o poder revelar, à frente do Executivo. Platão disse, no diálogo da «República», que seria bom que os filósofos se tornassem reis e os príncipes se tornassem filósofos. Verificou-se com Salazar, no nosso país, durante dezenas de anos, este voto. Salazar foi filósofo, porque o ornou a sabedoria, a coragem, a temperança e o espírito de justiça — virtudes cardiais do homem de Estado, como nesse diálogo se defende: foi-o, ainda, na medida em que desprezou a opinião e pôs toda a sua fé no saber e na ciência — e foi filósofo, finalmente, enquanto soube elevar-se à altura da expressão teorética das suas próprias ideias e conceitos sobre o Estado e a governação. Eis, senhoras e senhoras, uma das facetas do Homem que vamos deixar aqui, para sempre — a única, repito, que julguei ser do meu dever, na qualidade em que vos falo, pôr muito concisamente em destaque. Esse Homem não morreu. Vive, e viverá, porque subiu e passou definitivamente a pertencer ao mundo imperecível do Espírito. Prof. Dr. Afonso Queiró Homilia no cemitério do Vimieiro, em 30 de Julho de 1970. In Para um retrato de Salazar – Breve «In Memoriam» – Festa do Natal de Cristo, 1971, Lisboa.