O DIREITO DA DESCONFIANÇA Vinícius de Oliveira Membro do Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos/UFJF Bacharel em Direito - UFV [email protected] De certo, não é incorreto afirmar que, na base do ordenamento jurídico brasileiro, está um princípio capital, origem de todo o nosso excesso de regulamentação e burocracia: o princípio da presunção de má-fé ou da desconfiança. Segundo ele, cada cidadão agiria presumidamente de má fé, até prova em contrário. Não se permite a prática livre dos atos jurídicos, reservando-se aos lesados o direito de recorrer ao Estado, caso rompa-se do pacto. Antes, como condição da prática do ato, exige-se a prova de idoneidade, muitas vezes através de um documento formal que nada prova sob o ponto de vista da lógica rigorosa. Há absurdos como o dos herdeiros que, interessados em sacar uma quantia muitas vezes insignificante deixada em conta bancária pelo de cujos, precisam de um alvará judicial expedido pelo juiz após o parecer do Ministério Público. A medida visa resguardar os direitos de um possível herdeiro beneficiário de pensão por morte, destinatário legal da quantia deixada pelo falecido em conta bancária. Mas será mesmo necessária a intervenção do Poder Judiciário com a participação do Ministério Público? Não bastaria que os herdeiros apresentassem ao banco a prova do óbito, a prova de sua qualidade de herdeiros e a prova emitida pelo INSS da inexistência de herdeiros habilitados à pensão por morte? Melhor: não bastaria apenas a prova da morte e da qualidade de herdeiro, reservando-se ao beneficiário por pensão por morte o direito de acionar o judiciário caso tenha seu direito preterido pelos co-herdeiros? Mas não, não se pode confiar demasiadamente nos agentes bancários, seres humanos tão falíveis, ainda mais se agentes de bancos privados. É preciso incumbir o incorruptível membro do Judiciário de mais uma tarefa, colocando assim mais um tijolo nas já tão sobrecarregadas mochilas dos magistrados. E mais, não se pode confiar nos herdeiros, gente sempre predisposta a passar a perna uns nos outros. É preciso prevenir e não apenas Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. I, Nº 5, Juiz de Fora, set.-nov./2007 reservar o direito de uma repressão estatal em face de um eventual descumprimento da lei. Situações semelhantes se estendem por todo o arcabouço legal pátrio. Seja no Direito Público, seja no Privado. A cada passo, o cidadão é instado a dar prova com uma certidão, um documento público, uma prova pericial, de que é honesto, de que possui tal ou qual qualidade. Um dispendioso (para o cidadão) e lucrativo (para os fornecedores do serviço) sistema cartorial compulsório, capitaneado por uma classe de cidadãos privilegiados por deterem o monopólio outorgado pelo Estado da confiabilidade pública, nutre-se da bacia hidrográfica da desconfiança que irriga toda a nossa cultura e constitui um interessante tema de estudos para investigar até que ponto os interesses classísticos do próprio sistema cartorial são responsáveis pela criação e manutenção da burocracia e do formalismo paralisante. Obviamente, a multiplicação dos formalismos, das regulamentações, dos protocolos, licenças, certidões e taxas têm reflexos importantes sobre a Economia e constituem uma das causas do proverbial baixo crescimento econômico brasileiro. Segundo Robert Fendt em estudo publicado na revista “Banco de Idéias” (no. 38, março-abril-maio de 2007), um dos oito entraves ao crescimento econômico no Brasil é a dificuldade de se fazer negócios, representada pela enorme dificuldade de se empreender no Brasil. Diz Fendt que no Brasil, segundo o Index of Economic Freedom de 2007 da Heritage Fundation, abrir uma empresa leva 152 dias, enquanto no Chile gasta-se 27, na Irlanda, 19 e na Dinamarca apenas 5 dias. O Brasil só se compara com países de baixíssimo crescimento econômico como Botsuana, onde começar um negócio leva 108 dias. Tamanho emaranhado de regulamentos que entravam o desenvolvimento econômico reflete, a nosso ver, um ethos de desconfiança arraigado em nossa cultura, segundo o qual os cidadãos não podem ser deixados livres para estabelecerem relações jurídicas, entabularem negócios e empreenderem sem a ação tutelar e fiscalizatória do Estado, caso contrário acabariam por sucumbir à volúpia de prejudicarem-se mutuamente e de lesarem à coletividade. Há muito de verdade nisto, há razões para a desconfiança, que é uma via de mão dupla. O Brasil, país dos macunaímas, dos malandros e espertos é um país onde os homens não inspiram muita confiança uns nos outros. Não se compreende, porém, http://www.estudosibericos.com 61 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. I, Nº 5, Juiz de Fora, set.-nov./2007 como de uma sociedade de homens indignos de muita confiança poderiam emergir os impolutos homens de Estado nos quais deveríamos confiar. A prova disso é que a burla à lei, a propina e as corrupções ativa e passiva são instituições nacionais tão firmes quanto às instituições legais. A inspiração da hipótese aqui defendida adquirimos da leitura da obra “A Sociedade de Confiança”, do sociólogo francês Alain Peyrefitte. Neste livro fartamente documentado, resultado de uma vida inteira de reflexões, o autor busca encontrar os fatores decisivos do desenvolvimento econômico europeu desde o Renascimento. Fugindo a toda explicação materialista, mecanicista ou determinista, o autor faz uso de uma abordagem etológica, enfatizando que são antes os fatores culturais e psicológicos os decisivos para o desenvolvimento. E o fator etológico decisivo para o desenvolvimento econômico é o fator da confiança. É preciso que uma atmosfera psicológica de confiança esteja espalhada pela sociedade para que o desenvolvimento seja possível. No Ocidente, a grande mutação que teria tornado possível o formidável desenvolvimento industrial e tecnológico dos últimos séculos teria sido a Reforma, daí os países protestantes terem tomado a dianteira do desenvolvimento econômico. Os argumentos de Peyrefite segundo os quais teria sido a Reforma o primum movens do desenvolvimento podem ser contestados, mas é inconteste que a confiança é condição necessária do desenvolvimento. As condições materiais de uma determinada sociedade, suas riquezas naturais, seu estoque de capital e trabalho, por si só não podem determinar o desenvolvimento. São antes os caracteres psicológicos e culturais de seus indivíduos que determinaram o desenvolvimento ou a estagnação. Como afirma o autor na introdução ao livro, “é o imaterial que comanda.” Propõe Peyrefitte “uma verdadeira revolução copernicana no estudo do desenvolvimento”, uma “nova abordagem etológica”, a qual coloque os fatores psicológicos e culturais como centrais para a explicação do desenvolvimento das coisas materiais: Pôr essas questões em pauta é tentar empreender verdadeira revolução copernicana no estudo do desenvolvimento. Os dados da história econômica – matérias-primas, capitais, mão-de-obra, relações de produção, investimentos, distribuição, índices de crescimento – foram postos até agora no centro das explicações do desenvolvimento. Os traços mais imateriais da civilização – religião, http://www.estudosibericos.com 62 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. I, Nº 5, Juiz de Fora, set.-nov./2007 preconceitos, superstições, reflexos históricos, atitudes perante a autoridade, tabus, motores da atividade, comportamento no tocante à mudança, moral do indivíduo e do grupo, valores, educação – eram considerados insignificantes, gravitando penosamente em torno da estrutura central. Ernest Labrousse, após tantos outros, afirmava que “o mental atrasa o social”, e “o social, o econômico”. Propomos inverter os papéis. De subfator secundário, de longínqua e negligenciável conseqüência, as mentalidades tornar-se-ão o centro em torno do qual tudo gravita: motor essencial do desenvolvimento, ou obstáculo intransponível. 1 Ao longo de todo o livro o autor dá exemplos de sociedades muito pouco favorecidas do ponto de vista material que superaram a sua desvantagem inicial e alcançaram grande desenvolvimento. Tudo depende da atitude psicológica tomada diante da fortuna, das condições dadas, do inexorável. O exemplo clássico é da Holanda, o país que teve que vencer o mar para garantir a sua sobrevivência. A comparação que o autor faz entre Espanha e Holanda é emblemática. O primeiro, diante dos obstáculos físicos ao seu desenvolvimento se resignava numa atitude fatalista, enquanto o segundo recusava seu destino natural e adotava uma atitude transformadora: Demos o exemplo dessa divergência mental em Leçons au Collége de France. Enquanto os holandeses se recusavam a aceitar seu destino e procuravam salvar-se das águas construindo pôlderes, os espanhóis desistem de canalizar o Tejo e o Manzanares: “Se Deus tivesse desejado que esses dois rios fossem navegáveis, um só fiat teria bastado, e seria atentatório aos direitos da Providência corrigir o que ela quis deixar imperfeito.2 A mentalidade de desconfiança da Igreja Católica ao longo da Idade Média e do início da Era Moderna em relação ao lucro e à atividade usurária é apontada como uma das causas do menor desenvolvimento dos países católicos em relação aos protestantes. O ethos cavalheiresco dos espanhóis, avessos aos trabalhos práticos, para os quais o ócio era motivo de orgulho é tida como um dos principais fatores do subdesenvolvimento espanhol. A desconfiança das autoridades francesas diante das inovações tecnológicas é explicação para a defasagem industrial da França em relação à Inglaterra. Na sétima parte da obra, Peyrefitte procura traçar a trajetória intelectual da abordagem etológica que pretende suplantar as visões tradicionais calcadas no 1 PEYREFITTE, Alain. A Sociedade de Confiança: Rio de Janeiro: Topbooks, 199, pp. 31 2 Idem, pp. 144 http://www.estudosibericos.com 63 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. I, Nº 5, Juiz de Fora, set.-nov./2007 materialismo. Cita como marcos desta abordagem Montesquieu, Hegel, Bastiat, Hayek e Shumpeter. No capítulo 5, o autor demonstra como os economistas aos poucos foram se dando conta da preponderância do “terceiro fator imaterial”, mormente após o descrédito da teoria de Solow segundo a qual o produto nacional bruto é a multiplicação do fator capital pelo do fator trabalho ter se mostrado incapaz de explicar as diferenças de PNB´s entre as nações. Era preciso encontrar um terceiro fator, mais decisivo que os dois primeiros para explicar a divergência do desenvolvimento. Este fator bem poderia ser denominado “fator Floirat”, em homenagem ao empresário francês Sylvain Floirat que teria afirmado: “Que me deixem nu como uma minhoca no meio do Saara; sem um centavo, mas perto do caminho das caravanas; alguns meses depois voltarei milionário.” A frase do empresário demonstra como a escassez material não é suficiente para deter um indivíduo de gênio e cheio de confiança em si mesmo que, com um esforço racionalmente dirigido, queira superar a sua desprivilegiada situação econômica e alcançar grandes êxitos. É esta atitude resoluta e confiante o fator decisivo, o terceiro fator imaterial. Impossível haver desenvolvimento sem uma atitude psicológica de confiança disseminada pela sociedade. Isto inclui a confiança em si mesmo e a confiança nos outros. A sociedade de confiança é aquela na qual os indivíduos confiam em si mesmos e inspiram confiança nos outros. Numa sociedade assim até as taxas de juros serão menores, eis que a inadimplência será baixa e os credores poderão emprestar com mais facilidade e com taxas menores por ser menor o risco. Isto parece muito óbvio, basta atentar para a semelhança semântica entre as palavras “crédito” e “confiança”. Mesmo dentre os analistas econômicos que jamais notaram a importância do fator da confiança em economia, sem o saber, demonstram como ele é importante neste setor, quando afirmam, por exemplo, que o nível de investimento estrangeiro em um país depende da estabilidade de suas leis, ou seja, da confiança que o governo do país inspira no empresariado alienígena com relação às transformações institucionais. Depende também da confiança que o governo dá quanto à proteção dos direitos de propriedade. Inegável que a confiança está intimamente ligada ao nível de intervenção e regulamentação estatal das relações jurídicas. Quanto maior a desconfiança, maior o papel http://www.estudosibericos.com 64 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. I, Nº 5, Juiz de Fora, set.-nov./2007 do Estado. Onde a elite política não confia nos seus representados, menor será a liberdade de ação que lhes outorgará. Onde os grupos sociais não confiam uns nos outros se apelará certamente ao Estado para que os proteja uns dos outros. Onde os indivíduos não confiam em si próprios como provedores de suas necessidades materiais, logos se apelará para o estado assistencialista. Daí a causa de nosso tão execrado Estatismo. Olavo de Carvalho, em percuciente artigo, afirma que o nosso Leviatã “não é um fenômeno primário, uma causa sui, mas a simples expressão de uma vida diminuída, onde a busca de segurança se sobrepõe a todos os sonhos de vitória.”3 Se há todo um aparelhamento burocrático para fiscalizar as relações de consumo e trabalhistas é porque não se pode confiar muito em fornecedores e empregadores, sempre dispostos a abusar de sua superioridade econômica e lesar os consumidores e empregados. Menos ainda se confia na capacidade destes de organizadamente defenderem seus próprios interesses. Mas aqui cabe a pergunta, não se pode mesmo confiar na sociedade civil brasileira deixada livre? Nos empregados e empregadores a livremente estabelecerem os acordos de trabalhos? Nos consumidores e fornecedores ao fazerem negócios? Não seria esta desconfiança a desculpa ideológica dos estatistas para manterem-se no poder e criarem as enormes burocracias. Até que ponto a baixa confiabilidade do brasileiro, que de fato existe num certo grau, é justificativa para este nosso Leviatã que tudo quer saber, tudo quer fiscalizar? Não seria a desconfiança um argumento ideológico dos burocratas? É inegável que, no Brasil, aparelhamentos burocráticos imensos são montados para fiscalizar todas as formas de relações sociais, seja trabalhista, de crédito, de consumo, educacional, médica, etc. E há leis para tudo, minuciosas e abrangentes. E para cada lei uma infinidade de regulamentos. E para a garantia da observância da lei, inúmeros órgãos de Administração Pública. A razão disto é a atmosfera de desconfiança que paira sobre a sociedade cujas razões não nos cabe aqui investigar. Não é o escopo deste trabalho de curta extensão fazer uma análise exaustiva do ordenamento jurídico nacional para demonstrar que as leis e instituições aqui refletem o ethos de uma “sociedade da desconfiança”. Nos limitaremos a comentar alguns casos 3 CARVALHO, Olavo. Doença Existencial e Fracasso Econômico-Social. Porto Alegre: IEE, 2005. http://www.estudosibericos.com 65 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. I, Nº 5, Juiz de Fora, set.-nov./2007 emblemáticos, escolhidos a esmo. Um estudo que pretendesse provar que vige um “direito da desconfiança” necessitaria ser mais abrangente, abarcando todos os ramos do Direito no Brasil e precisaria ser também comparativo, ou seja, seria preciso demonstrar que nas “sociedades de confiança” o Direito é muito menos regulador, burocráticos e a autonomia da vontade muito mais ampla. O objetivo deste trabalho é assim o de introduzir um tema para futuras investigações, uma nova perspectiva crítica do Direito no Brasil, inspirada nos estudos de Alain Peyrefitte. Escolhemos aqui dois casos particulares. Um diz respeito às relações trabalhistas, o outro a questão tecnológica e assim procedemos porque ambos estão intimamente ligados ao desenvolvimento econômico. Direito trabalhista: a desconfiança ante o direito autônomo O princípio da desconfiança norteia todo o Direito do Trabalho. Não seria o princípio da desconfiança o fundamento oculto dos ditos princípios “da imperatividade” e “da indisponibilidade”? O primeiro traz a presunção de que o trabalhador individualmente ou livremente associado em sindicatos não pode proteger seus próprios interesses e o segundo a de que o trabalhador não tem condições de escolher quais direitos deva exercer, quais não. Junto ao princípio da desconfiança está o princípio da presunção de má-fé, má-fé obviamente da parte do empregador que estaria sempre disposto a explorar e lesar seus empregados, nunca lhe ocorrendo que um empregado mais satisfeito em termos de remuneração e condições de trabalho trar-lhe-ia uma maior produtividade. Pronunciando-se no 1º. Encontro de Juízes do Trabalho do Ceará, o Ministro do Tribunal Superior do Trabalho José Luciano de Castilho Pereira manifesta uma certa desconfiança com relação às negociações trabalhistas que pretendem tomar o lugar das normas legisladas pelo Parlamento brasileiro: Enquanto isto, a Presidência da República, por intermédio do Ministério do Trabalho, está encaminhando, nesta data, projeto de lei que fixa o entendimento de que o negociado vale mais do que o legislado. Por tudo o que se disse, recebo tal iniciativa com muita reserva. Não sei dos pormenores do projeto governamental. Temo, contudo, que ele inicie a continuidade da redução dos http://www.estudosibericos.com 66 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. I, Nº 5, Juiz de Fora, set.-nov./2007 direitos trabalhistas, sob o argumento, nem sempre dissimulado, de que os direitos trabalhistas provocam desemprego. Se é assim, não é difícil imaginar o que acontecerá nas negociações coletivas que valerão mais do que a lei!4 Ora, o Ministro desconfia da capacidade dos trabalhadores associados em sindicatos de negociarem os seus próprios interesses com os empregadores. Desconfia de que possam saber o que é bom para eles próprios e acredita que o legislador, distante da relação jurídica concreta, possa saber melhor que interessados diretos, o que é melhor para eles. E o que é pior, o magistrado acredita que legisladores de um passado distante, os que redigiram a CLT em 1942, todos já mortos ou afastados da atividade legiferante, pudessem saber o que é melhor para os trabalhadores do século XXI. Ora, as convenções e acordos de trabalho, livremente negociadas com uma mediação do Judiciário garantidora do equilíbrio das partes, deveriam ser entendidas como um instrumento de democracia direta, afinal, com tais instrumentos, os trabalhadores e empregadores fazem as suas próprias leis, as leis mais apropriadas a seus interesses. Mas o Magistrado não confia na capacidade das partes de entabularem uma norma jurídica interessante para ambas. Também não confia na capacidade do lado economicamente mais fraco de defender seus próprios interesses, pois ele acabará ludibriado pelos empregadores. São os legisladores abstratos ou os magistrados imparciais os únicos portadores da ciência do que é o bom e do que é justo para estas crianças irresponsáveis, os empregados e empregadores. Trata-se de uma odienta forma de paternalismo estatal. Os ilustres processualistas Ada Peregrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Antônio Carlos de Araújo Cintra, na obra seminal “Teoria Geral do Processo” afirmam, com toda razão, que a conciliação é a forma que melhor atende ao escopo de pacificação social do processo, pois ambas as partes saem relativamente satisfeitas. Os acordos e convenções coletivas constituem uma fonte autônoma do Direito, oriunda das negociações das próprias partes envolvidas e, portanto, mais afinado com os interesses das mesmas. Entretanto, restritíssima é a margem de liberdade dos empregados e empregadores de criarem eles próprios o direito que irá reger suas relações. Isto porque, como nos informa 4 Disponível em: Acesso em 16/07/-7 http://www.tst.gov.br/ArtigosJuridicos/GMLCP/RUMOSDODIREITODOTRABALHO.pdf. http://www.estudosibericos.com 67 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. I, Nº 5, Juiz de Fora, set.-nov./2007 Maurício Godinho Delgado, “são raros os exemplos de regras dispositivas no texto da CLT, prevalecendo uma quase unanimidade de preceitos imperativos no corpo daquele sistema legal.”5 O Ministro quer que se mantenha um núcleo de direitos inegociáveis, direitos dos quais o trabalhador não tem a possibilidade de dispor, pois ainda “não está em condições de debater de igual para igual com os empregadores todos os itens do contrato de trabalho.” Ou seja, os trabalhadores não estão ainda suficientemente crescidinhos para definir seu próprio destino. Não é possível vislumbrar aí o ranço do velho sindicalismo getulista atrelado ao Estado no qual a autonomia dos sindicatos era zero e quem realmente decidia eram os iluminados da burocracia trabalhista estatal? Evidente que o trabalhador braçal, sem estudo, ou mesmo iletrado, não pode negociar de igual para igual com os empregadores, mas para isto existem os líderes, os que dentre eles se sobressaem em termos de conhecimento e capacidade de negociação. As negociações e acordos coletivos de trabalho deveriam ser entendidos, repita-se, como uma forma de democracia direta, eis que os próprios trabalhadores e empregadores são chamados a formular a norma jurídica que governará a relação social de que participam. O sociólogo Simon Schwartzman em seu clássico “As Bases do Autoritarismo” estuda, segundo as categorias de Max Weber, as diferenças entre um sistema político verdadeiramente representativo e o sistema de cooptação. O primeiro é característico das democracias modernas do mundo anglo-saxão, por exemplo; o segundo é típico dos regimes patrimonialistas da América Latina. No primeiro, os governantes realmente representam os interesses dos setores da sociedade e os refletem nas disputas parlamentares. No segundo tipo, os governantes não representam outros interesses senão os próprios e a relação que têm com os governados é uma relação “de cima para baixo” em que os governantes definem os direitos e a sociedade civil os aceita passivamente sem considerar se lhe convém ou não. A sociedade civil não move os governantes, mas é movida por eles. Neste sistema “ a participação política deixa de ser um direito e torna-se um benefício outorgado, em princípio revogável.”6 Uma ampla bibliografia já provou que o tipo de estado brasileiro não é outro 5 DELGADO, Maurício G. Introdução ao Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: LTr, 3ª. ed., pp. 174 6 Schwartzman, Simon. Bases do Autoritarismo Brasileiro. Editora Campos: 1988, 3ª. ed. http://www.estudosibericos.com 68 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. I, Nº 5, Juiz de Fora, set.-nov./2007 senão o tipo patrimonialista, em que vige o sistema de cooptação. Como exemplo podemos citar as obras de Raimundo Faoro (“Os Donos do Poder”), José Osvaldo de Meira Penna (“O Dinossauro”) e Ricardo Vélez Rodríguez (“Patrimonialismo e a Realidade LatinoAmericana”). Embora escrevendo com a fria pena do cientista político weberiano, isenta de quaisquer julgamentos de valor, Schwartzman manifesta sua preferência obviamente pelo sistema representativo ao chamá-lo, tal como Weber, de “moderno.” Da mesma forma, todos aqueles que anelam uma sociedade civil ativa, autora direta ou indireta das normas que a governam devem preferir o sistema de representação de facto e não apenas de jure. Agora nos indaguemos: qual dois sistemas de direito trabalhista se aproxima mais de um regime de fato representativo: aquele em que as leis gerais formadas pelo processo legislativo ordinário predominam ou aquele que afirma a preponderância dos acordos e convenções coletivas de trabalho, sistema este em que são setores da própria sociedade civil que formulam as normas jurídicas que irão governar as suas relações sociais? O sistema de preponderância da auto-composição das lides trabalhistas é o sistema próprio de uma sociedade liberal, de uma sociedade de confiança. Nele vige a confiança na capacidade da sociedade civil de solucionar pacifica e consensualmente seus próprios problemas, sem a necessidade da solução heterônoma, coercitiva e dispendiosa do Estado. Como resultado prático desta falta de liberdade de negociação, temos engessamento do Direito do Trabalho em normas que não podem acompanhar a dinâmica econômica da sociedade o que é, obviamente, um fator causador do desemprego e do baixo crescimento econômico. Tecnologia e informação Através do decreto 5.820 de 29 de junho de 2006, a Presidência da República, após longos anos de estudos e debates, finalmente definiu o sistema de televisão digital a ser implantado no Brasil e autorizou a sua implantação. Embora a televisão digital ainda esteja em processo de implantação no mundo inteiro, ela já existe nos Estados Unidos desde 1998 e em 2001 já contava com 600 mil receptores recebendo a transmissão digital. No Japão o processo se iniciou em 1999. Por que só agora o Brasil começa a engatinhar no sentido de http://www.estudosibericos.com 69 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. I, Nº 5, Juiz de Fora, set.-nov./2007 implantar a TV digital? Não seria a própria necessidade legal e constitucional de regulamentação pelo governo da tecnologia de televisão digital o motivo a demora? Não bastaria que grupos de emissoras privadas em associação com os fabricantes de televisores iniciassem a implantação da TV digital sem a interferência do governo, da forma que melhor lhes aprouvesse, de acordo com as condições do mercado? O mercado brasileiro que já conta com uma classe média robusta, ávida de novidades tecnológicas não aderiria rapidamente à TV digital, tal como aderiu tão rapidamente aos celulares cada vez mais modernos? Se o governo não tivesse que se meter nisso o processo já não teria se iniciado pela ação de grupos empresariais nacionais e internacionais? Mas, antes disto, por que o governo tem de se meter nesta questão? A resposta está na Constituição: compete à União explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os serviços de radiodifusão de sons e de sons e imagens (art. 21, XII, “a”). A atividade de radiodifusão de imagens e sons no Brasil é de competência do Estado, a iniciativa privada só pode tomar parte dela mediante outorga e deve se submeter à regulação estatal. A própria norma constitucional está imbuída de um claro sentimento de desconfiança com relação a um meio de comunicação social. Não é livre a abertura de um canal de rádio ou de televisão. Os pretendentes devem passar pelo crivo do Estado. Devem apresentar as suas credenciais de boas intenções, afinal um meio tão poderoso de difusão de informação não pode ficar disponível para os maliciosos, os manipuladores das massas. O crivo da sociedade civil não é o bastante, a seleção do mercado consumidor não é confiável, o povo não sabe escolher o que deve assistir na tevê. Tanto é assim que o legislador constitucional definiu o que as emissoras devem veicular preferencialmente no art. 221: I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; IV - respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família. É preciso salientar aqui que o sistema de concessões abre precedentes para a http://www.estudosibericos.com 70 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. I, Nº 5, Juiz de Fora, set.-nov./2007 corrupção e o clientelismo. Afinal quem garantirá que os governantes não privilegiarão os seus apaniguados, os seus financiadores de campanha, os seus correligionários ideológicos nas concessões? Afinal vivemos no país do patrimonialismo, da confusão do público e do privado, não é verdade? Não serviria o sistema também para a manutenção forçada de monopólios? A Constituição também demonstra um forte espírito de desconfiança com relação ao estrangeiro. Só podem ser proprietários de empresas jornalísticas ou de radiodifusão brasileiros ou empresas constituídas no Brasil segundo as leis brasileiras, mas neste caso, devem ter 70% do capital votante, no mínimo, nas mãos de brasileiros natos ou naturalizados há mais de 10 anos. De qualquer forma a responsabilidade editorial e as atividades de direção e seleção de programação são privativas de brasileiros natos ou naturalizados há mais de 10 anos. Há a suspeita constitucional de que o empresário estrangeiro dirigirá sua atividade jornalística contra os interesses nacionais. Há uma presunção de má-fé nacionalista na constituição. Há nisto tudo uma certa desconfiança contra o tecnológico. É preciso atentar para o fato de que o decreto referido acima autoriza a implantação da TV digital no Brasil, mas o faz com uma série de restrições. A mais óbvia é quanto à tecnologia empregada. Não há liberdade de escolha, as empresas de rádiodifusão não poderão optar pela tecnologia empregada segundo sua própria avaliação. Há, assim, um certo engessamento tecnológico. O temor e a desconfiança ante a inovação tecnológica é uma das razões do nãodesenvolvimento. Peyrefitte, estuda o assunto comparando a divergência de desenvolvimento entre França e Inglaterra. A primeira, refratária ao desenvolvimento tecnológico, cercou-o de uma excessiva regulamentação nos tempos de Colbert, a segunda deixou-o livre. A primeira adotava “regulação” minuciosa, a segunda uma regulamentação genérica: A terceira divergência concerne à organização: traduz-se na regulamentação colbertista, diametralmente oposta à desregulamentação que rege a Grã-Bretanha e seu Império – desregulamentação aliás relativa e progressiva, que pouco a pouco dá lugar à regulamentação natural do mercado, evitando cuidadosamente o http://www.estudosibericos.com 71 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. I, Nº 5, Juiz de Fora, set.-nov./2007 desregramento. 7 A regulação colbertista é abrangente e minuciosa, quer abranger todos os processos de produção e controlá-los nos mínimos detalhes. Peyrefitte reconhece o talento de Colbert. Sua regulação era, de fato, competente, mas engessava o desenvolvimento futuro das tecnologias: Mas essa enciclopédia de artes e ofícios, cem anos antes da Enciclopédia, e cento e vinte anos antes do Conservatório Nacional de Artes e Ofícios, não era somente, nem para começar, enciclopédia. Era antes de tudo uma regulamentação que imobilizava as técnicas no ponto a que haviam chegado (...) Para citar apenas um exemplo: será preciso esperar três quartos de século (1759) para ser autorizada na França a fabricação de algodão estampado, até então “proibido por ser prejudicial às manufaturas de seda e de lã. José Osvaldo de Meira Penna postula que esta mentalidade regulatória excessiva é proveniente da filosofia racionalista dos séculos XVII e XVIII, a qual gerou o “despotismo esclarecido”. Este se esteia na crença no poder humano de controlar desde o cimo do poder político centralizado todos os aspectos da vida social. 8 O “despotismo esclarecido” é continuado no positivismo de Augusto Comte e na sua versão brasileira, castilhista, que tanto influenciou as ditaduras militares brasileiras e o governo de Getúlio Vargas. Leia-se a respeito a obra de Antônio Paim: “A Querela do Estatismo.” Mas a história tem demonstrado que o centralismo regulador não tem mostrado maior eficiência que o mercado relativamente desregulamentado na produção do desenvolvimento. O colbertismo, por exemplo, pode ser apontado como uma das causas mesmas da estagnação francesa: Peyrefitte nota que 'a inversão de sentido' no crescimento da França coincide com o estabelecimento da centralização e do dirigismo. Colbert perseguiu uma quimera comparável à dos Jesuítas no Paraguai ou das sociedades planificadas do século XX: tornar próspero o reino ao transformar cada indivíduo em executante dócil das decisões econômicas racionalmente alcançadas na cúpula. No que diz respeito à docilidade, conseguiu o que queria. Mas não no plano da prosperidade. E acrescenta: 'De uma nação forte, o Estado poderia haver tirado sua força: o Estado, a si recolhendo toda a força, deixará débil a nação'... Ele resume com ironia o resultado: 'Ontem, um rei se considerava o próprio Estado (L’Etat c’est moi), hoje é o Estado que rei se considera.' O diagnóstico do ex-ministro incrimina o estatismo 7 Op. cit., pp.197 8 MEIRA PENNA, José Osvaldo. O Dinossauro. T. A. Queiroz Editor, 1988. http://www.estudosibericos.com 72 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. I, Nº 5, Juiz de Fora, set.-nov./2007 intervencionista das teorias mercantilistas e absolutistas, alucinadas pela idéia de que o despotismo dos decretos é capaz de resolver todos os problemas da nação. Mas a França perde sua posição de vanguarda, primeiro para a Inglaterra, e depois sucessivamente para os demais países da Europa ocidental e países ultramarinos de língua inglesa que deram confiança à iniciativa privada. Colbert é uma espécie de primeiro modelo do superburocrata. O Leviatã absolutista que Luís XVI incluía este funcionário típico que trabalhava dezesseis horas por dia, que era tão frio, inflexível e cruel que Madame de Sévigné o apelidara 'Le Nord', e que esfregava as mãos de volúpia quando chegava ao escritório, as 5 e 30 da madrugada, e encontrava a mesa apinhada de processos para despachar. De fato, tudo despachava. Despachava também para as galeras os comerciantes que ousassem importar do exterior, em concorrência com as manufaturas estatais tecidos de algodão. E tudo regulamentava, disciplinava, obstruía, ordenava, coibia com as suas famosas Ordonnances (...) A iniciativa privada era sempre suspeita. A economia era desenhada geometricamente, à la française como os jardins, mas o resultado final é que em todos os terrenos a França começa a ficar para trás já a partir de 1.800.9 Não há a melhor dúvida de que Colbert é o protótipo da economia planificada dos países totalitários do século XX. É também o protótipo da nossa “militoburocracia paranóica” (expressão de Roberto Campos) que, com suas reservas de mercado e exigência de aprovação estatal dos projetos de implantação tecnológica, atrasou enormemente o desenvolvimento da informática no Brasil, como nos mostra Roberto de Oliveira Campos de forma incontestável no segundo volume de seu livro de memórias “A Lanterna na Popa.” Referências bibliográficas CAMPOS, Roberto de Oliveira. A Lanterna na Popa, 2v. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994, 2ª. v. CARVALHO, Olavo. Doença Existencial e Fracasso Econômico-Social. Porto Alegre: IEE, 2005. DELGADO, Maurício G. Introdução ao Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: LTr, 3ª. MEIRA PENNA, José Osvaldo. O Dinossauro. T. A. Queiroz Editor, 1988. PEYREFITTE, Alain. A Sociedade de Confiança: Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. MEIRA PENNA, José Osvaldo. O Dinossauro. T. A. Queiroz Editor, 1988. 9 Idem, pp. 228 e 229 http://www.estudosibericos.com 73 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. I, Nº 5, Juiz de Fora, set.-nov./2007 SCHWARTZMAN, Simon. Bases do Autoritarismo no Brasil. Rio de Janeiro e Brasília: Editora Campus e Editora da Universidade de Brasília, 1988, 3ª. ed. http://www.estudosibericos.com 74