LEIS MORAIS E CIVIS A PARTIR DA FILOSOFIA DA CULTURA: UMA VISÃO ATUALIZADA DO PENSAMENTO DE MIGUEL REALE Humberto Schubert Coelho Professor do Departamento de Filosofia – UFJF Doutor em Ciência da Religião – UFJF [email protected] RESUMO Bem antes da formulação pública das leis, escritas ou tácitas, os valores, como o conhecimento, estabelecem-se como intermediação social, como cultura. Ainda que estas formas culturais se caracterizem exatamente por serem definições conscientes de uma descrição pública possível de normas de conduta, expectativas sobre os destinos da coletividade e as políticas que os possam realizar, entre outros valores, existe uma grande diferença entre o reconhecimento mais ou menos consensual de um valor e a instrumentalização do e para o exercício do poder público. Miguel Reale dedicou esforços sobrehumanos à ampla justificação desta gênese transcendental e cultural da lei, mas as três últimas décadas do século XX fomentaram modelos filosóficos que até certo ponto desprezavam o trabalho de Reale alinhando-o aos modelos “ainda idealistas” do neokantismo e da fenomenologia. Hoje novas concepções filosóficas fazem a crítica aos vários relativismos pósmodernos, buscando a restauração de uma teoria forte da subjetividade, muito semelhante ao que já nos apresentara Miguel Reale. ABSTRACT Much before the formulation of public laws, written or tacit, values and knowledge are established as social medium, i.e. culture. Even if such cultural forms characterize themselves for being conscious definitions of a possible public description of conduct norms, expectations about the destinies of the collectivity and the policy able to realize them, among other values, there is still a great difference between the more or less consensual recognition of a value and the implementation of and for the exercise of power. Miguel Reale has dedicate superhuman efforts to a wide justification for the transcendental and cultural genesis of law, but the last three decades of the Twentieth Century bolstered philosophical models that to a such degree despised Reale’s work as pertaining to “old fashion idealisms”, meaning neokantism and phenomenological ontologies. Recent philosophical conceptions, however, direct strong critics to the several postmodern relativisms, aiming to the restoration of a robust theory of subjectivity, one very similar to what Miguel Reale already presented. PALAVRAS-CHAVE: Cultura, valor, lei, liberdade, KEYWORDS: Culture, Values, Law, Freedom, subjetividade, sociedade. Subjectivity, Society. Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. VII, Nº 22, Juiz de Fora, abr.-jul/2013 Ética e cultura A filosofia de Miguel Reale é suficientemente reconhecida como síntese original do pensamento de sua época, em perfeita sintonia com o que se produzia na Europa, sem deixar de se debruçar sobre os problemas específicos da sociedade brasileira. Com traços perfeitamente discerníveis da fenomenologia (destaque para Husserl e Scheler) da ontologia de Nikolai Hartmann, do neokantismo e de pequenas notas neohegelianas, Reale está desde o princípio convicto sobre a incapacidade de se manter discursos unilaterais, transcendentais ou ontológicos, filosofias subjetivas ou metafísicas do ser. Reale deseja evitar que, da exigência da polaridade sujeito-objeto, possa resultar a identificação entre saber e ser, presente não apenas no idealismo pós-kantiano, mas que também se insinua na pretensão de manter o espírito confinado aos limites da inquirição de índole científica. Além disto, deseja dar suficiente amplitude à tese kantiana de que o conhecimento começa com a experiência, tornando-a efetivamente abrangente. Para tanto, invoca a aprioridade da relação eu-mundo, das manifestações espontâneas e naturais de viver comum, a que Husserl denominou de Lebenswelt.1 A única forma contemporânea de discurso filosófico, defende ele, é a que sustenta a ambiguidade, a dialética, a dupla implicação e a dupla vocação do sujeito e do objeto voltados e definidos um para o outro. Mas esse pensar ontognoseológico não se resume à imbricação originária e dinâmica entre sujeito e objeto, dependendo também do horizonte do mundo vivencial estabelecido intersubjetivamente. O conhecimento, para Reale, pressupõe um jogo ontognoseológico em que as estruturas cognitivas prévias do sujeito se adaptam de maneira dinâmica à estrutura ôntica do objeto. Trata-se, portanto, de uma intermediação dialética cujo resultado é a experiência, esta sempre móvel e passível de revisão. 2 Consecutivamente o sujeito entra também em processo dialético intersubjetivo, no qual afere com e diante de seus pares os termos segundo os quais a coletividade reconhece tal experiência. A esta segunda etapa do processo cognoscitivo Reale denomina cultura. 1 Antônio PAIM. História das idéias filosóficas no Brasil. Vol. I. p. 75. 2Ronaldo PIMENTEL. Experiência e cultura: novos horizontes entre o homem e a experiência. Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-americanos. p. 37-38. http://www.estudosibericos.com 10 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. VII, Nº 22, Juiz de Fora, abr.-jul/2013 Ao passo que a cultura é um construto humano, não é de modo algum arbitrário. E se ela é uma síntese da relação subjetivo-objetiva, cabe também considerar que esta síntese guarda ainda e sempre alguma relatividade. Por fim, uma vez que ambas as fases são provisórias, guardando os limites aos quais uma teoria transcendental está submetida, a consciência humana expressa em sua plenitude pela cultura é inevitavelmente histórica. 3 O homem vai adquirindo mais plena e rigorosa consciência de si mesmo, da primordial capacidade sintetizadora do espírito, à medida que integra em unidade dinâmica os valores que lhe advém das formas histórico-culturais por ele objetivadas através do tempo. É do contínuo automodelar-se do homem na natureza e do concomitante refletir-se da natureza no homem que nasce e se desenvolve a consciência histórica, potenciando a consciência intencional, a qual é objetivada nas tábuas de valores correspondentes aos diversos ciclos de cultura, mas sem que a realidade objetivada (conjunto de bens artísticos, obras literárias, instituições políticas, ordenamentos jurídicos, sistemas e produtos econômicos, etc.) jamais se desligue da fonte espiritual que originariamente a constitui e a mantém una e coesa.4 Há indubitavelmente um aspecto inteligível na vontade e na intencionalidade, sem o qual este aspecto da vida psíquica humana estaria completamente velado e só poderia ser abordado de modo completamente negativo. Foi Hegel quem mais profundamente expôs a natureza ao menos parcialmente inteligível da vontade ao decretar que, de ser ela ininteligível, irracional, resultaria a nossa completa incapacidade de falar dela, de pensá-la, e muito menos de elaborar o seu conceito. Como no caso das paixões, ou de qualquer outro aspecto do real instintivamente legado pelo senso comum ao campo do irracional, a vontade se revela como lógica precisamente porque a consciência discerne perfeitamente a diferença entre ela e o que ela não é.5 Hermann Cohen substituiu esta noção por uma condizente com a terminologia kantiana, concluindo em seu Ética da vontade pura que a “forma” da vontade, sua 3Ibid. p. 52;56. 4Miguel REALE. Verdade e Conjectura. p. 74. 5Em A Ciência da Lógica Hegel desenvolve a concepção seminal de que o ser se resume ao que pode ser linguisticamente formulado a partir da experiência. Em outras palavras, o ser e a pensabilidade do ser coincidem, já que não há ser que não se apresente à experiência. Consequentemente, elementos subjetivos tidos como pré-reflexivos ou irracionais são, para Hegel, perfeitamente assumidos pelo discurso filosófico, já que a própria classificação em oposição à reflexão revela o seu “lugar” e a sua “função”, definindo e, portanto, desdobrando-os e elevando-os na forma da racionalidade. G.W.F HEGEL. Werke in 20 Bänden. http://www.estudosibericos.com 11 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. VII, Nº 22, Juiz de Fora, abr.-jul/2013 inteligibilidade, é a ética. Para tanto ele se dedicou a distinguir a volição apetitiva (desejos, inclinações) da vontade pura. Nossa confusão quanto a irracionalidade da vontade está na associação irrefletiva entre as duas, pelo que conceituamos a vontade como pura apetição, da qual somos pacientes mais ou menos impotentes, como observara Schopenhauer. A vontade pura seria aquela potência totalmente ativa tratada por Kant, que nos torna capazes de determinar nossa ação independentemente da vontade apetitiva, psicológica. Enquanto Schopenhauer tentara absorver completamente seu conceito de vontade em sua faceta metafísica, uma vontade sentida ou intuída como o ser, Cohen declara que a vontade pura está além do escrutínio de qualquer ciência. Existe somente como condição da ética: Somente à ética cabe decidir se há ou não uma vontade. E somente dela pode a psicologia aprender se pode ou é permitido haver uma vontade. Mas uma vez que a ética reconhece somente a vontade pura como vontade, deve ela neste sentido depender da lógica. Pois só a lógica determina o conceito de pureza. A pureza é a expressão platônica que delineia o caráter metodológico do conhecimento.6 Tal forma pura permite-se descrever ou traduzir como lei, ainda que mantenha o seu aspecto inefável, já definido por Cohen como “força”. Ora, “somente onde há leis, há forças; pois forças não são senão leis objetivadas.”7 O aspecto inefável da vontade, a fonte inesgotável de sua força, remete a um seu aspecto claramente inteligível, a sua lei: visar fins. Essa amarração exige de nós uma consideração sobre a evolução da ética desde Kant. Com o inaugurador do construtivismo epistêmico e ético iniciou-se a consciência cultural de que, se o homem possui uma eticidade da consciência suficientemente intensa para afirmar-se como responsável por seus atos, apesar das inclinações a que está sujeito, então a razão tem o poder de legislar acerca da norma mais perfeita de conduta, e a vontade é pressuposta como livre o bastante para escolher esta norma em detrimento do apelo apetitivo. Não se trata aqui de modo algum de uma pressuposição, mas de uma tradução da pretensão de responsabilidade do homem. Ser responsável, ou, em outras palavras, a 6Hermann COHEN. Ethik des reinen Willens. Pg. 27. 7Ibid. pg. 28. http://www.estudosibericos.com 12 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. VII, Nº 22, Juiz de Fora, abr.-jul/2013 condição de possibilidade da ética, significa imediatamente a capacidade de autonomia e a de autodeterminação; significa a consciência de que a razão deve ser preferível à inclinação.8 Mas a autonomia da racionalidade prática não esgota, como propôs Kant, o princípio causal da moralidade. Schiller acresceu a ela a importante noção de que, conforme a tradição ocidental desde Agostinho, a boa vontade é que fundamenta a ação como boa. A vontade pode ser patrocinada por uma inclinação ou pela razão, ou por ambas, mas o que importa na definição de uma ação como ética ou não permanece sendo a vontade.9 Na atualíssima interpretação de Dieter Henrich esta percepção de Schiller define a autoconsciência como autorrelação, isto é, capacidade da consciência de dispor para si esquemas de conduta e seus respectivos resultados sobre sua autoimagem. A racionalidade não consiste, portanto, unicamente em seguir-se o modelo do imperativo categórico, mas de dispor para si as vantagens de seguir este imperativo, as de ceder aos desejos, a de adequarse à norma social, ou outras opções éticas cabíveis, mas sempre tendo em vista as consequências da escolha. A racionalidade ética se resume, portanto, em pesar opções conforme o cálculo complexo de valores, costumes e fins. E a liberdade da vontade deve ser lida como, sim, autonomia e autodeterminação moral, independentes da determinação apetitiva, mas por isso mesmo capaz de deliberar inclusive em favor da apetição, o que não significa necessariamente e sempre uma irracionalidade ou uma incapacidade de exercer a liberdade. Conquanto esta complexa formulação não fosse ainda bem explorada à época de Dilthey, Scheler e Husserl, eles de algum modo foram consoantes com esta preocupação de flexibilizar o conceito de racionalidade ética. Cada vez mais este arrazoado ou conjunto de autorrelações moderadas intersubjetivamente passou a ser entendido como cultura, mais do que como estrutura a priori. Já sob influência de Max Scheler, Reale anui que sem a objetividade dos bens o relativismo seria a conclusão inevitável da ética. Kant não relativiza os bens, mas os faz 8De nada serve que a razão deduza corretamente o bom (principium diiudicationis bonitatis), se não tem o poder de executá-lo. Daí que a autonomia da razão está em que o homem não haja conforme interesse, mas possa agir conforme a retidão (principium executionis bonitatis). Dieter HENRICH. Selbstverhältnisse. Stuttgart: Reclam, 1982. p. 14. 9Ibid. p. 45-46. http://www.estudosibericos.com 13 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. VII, Nº 22, Juiz de Fora, abr.-jul/2013 parecer irrelevantes, desimportantes diante da independência que a ética tem de assumir. 10 Para Scheler, os valores são propriedades das coisas, assim como as cores são propriedades físicas dos objetos. Ainda que a vermelhidão seja uma impressão psicológica, uma propriedade física objetiva permite que as coisas produzam em nós esta impressão. Mas é claro, Scheler não propõe nenhum tipo de utilitarismo materialista ou hedonismo. A materialidade dos valores se refere a sua objetividade não propriamente física, mas para a vontade. Os valores apresentam-se como bons ou maus para a vontade. Um valor de bem é um valor que permite a realização de outros valores. 11 O formalismo e o apriorismo ético são imprescindíveis, mas é igualmente essencial fundar a ética sobre a experiência ética, a fenomenologia objetiva da realização ou frustração da vontade, pois a razão não pode mensurar o valor de uma ação ou acontecimento, apenas estabelecer o seu procedimento geral.12 Por fim, vale ter em mente que, para Scheler, o homem é portador de valores, nunca e em nenhuma medida produtor de valores. Ele atribui a Kant e Nietzsche a visão fundamentalmente errada (respectivamente subjetivismo transcendental e empírico) de que valores são produzidos subjetivamente. Graças a este subjetivismo fazem do homem responsável único por toda a fenomenologia axiológica, o que é absurdo, pois os valores se dão sempre como “relacionamento”, como corresponsabilidade de um sujeito diante de outro ou diante de um objeto. Os detalhes deste compartilhamento da vivência ética são desenvolvidos em sua teoria da simpatia. Outras linhas de influência seriam tão relevantes quanto estas, mas basta afirmar que Reale não admite sentido para o dever-ser fora da liberdade. Se não há liberdade só pode haver um será (determinista) ou um pode ser (indeterminista), mas nunca um dever. 10Max SCHELER. Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik: Neuer Versuch der Grundlegung eines ethischen Personalismus. p. 3-4. 11Ibid. p. 21-23. 12Ibid. p. 55-60. http://www.estudosibericos.com 14 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. VII, Nº 22, Juiz de Fora, abr.-jul/2013 O estabelecimento do valor Reale divide a vivência em duas esferas ontológicas distintas, ser e valer. Porque ser e valer são duas categorias fundamentais, duas posições primordiais do espírito perante a realidade. Ou vemos as coisas enquanto elas são, ou as vemos enquanto valem; e, porque valem, devem ser. Não existe terceira posição equivalente. Todas as demais colocações possíveis são redutíveis àquelas duas, ou por elas se ordenam. Quando dizemos, por exemplo, que as coisas "evoluem", o "evoluir", não é senão um desdobramento ou modalidade de "ser": — é o ser se desenrolando no tempo.13 Complementarmente podemos dizer que a expectativa ou certeza de que algo é necessário, implica em seu dever-ser. Tudo aquilo que é desejável, necessário, útil ou bom pertence ao terreno dos valores, ao que devemos realizar. Conforme Antônio Paim, os anos 1940 foram marcados pela retração do positivismo e do cientificismo simplório, dando lugar à retomada da meditação filosófica brasileira, isto é, ao retorno das questões desdobradas a partir da intencionalidade da consciência, a qual Paim identifica como sendo o tema central da filosofia a partir de Kant.14 Mas, como depois se infere da própria obra de Paim, esta noção da intencionalidade da consciência foi aos poucos inteiramente radicada no processo histórico a partir do qual se atualiza a cultura. O processo histórico assume, assim, uma importância para a filosofia brasileira que não teria senão para pensadores como Hegel, Dilthey e Ricoeur. Veremos pouco adiante como esta intuição de Reale seria responsável pelos maiores frutos do pensamento brasileiro. Com Hegel, contrariamente a todos os erros de interpretação, não existe conceito de verdade histórica, senão a história é que se apresenta como verdade, isto é, é o acontecimento vivido, a experiência já dada que se aponta como verdade. 15 A contingência e a circunstancialidade passam a ser as condições objetivas que dão ensejo à consciência de mundo, mas porque a consciência também se assume como liberdade, as experiências são 13Miguel REALE. Filosofia do direito. p. 188. 14Antônio PAIM. História das idéias filosóficas no Brasil. Vol. I. p. 57. 15Ver entrevista de Marly Carvalho SOARES ao IHU por ocasião do fascículo Hegel: A tradução da história pela razão. http://www.estudosibericos.com 15 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. VII, Nº 22, Juiz de Fora, abr.-jul/2013 desde sempre elencadas como história – não é preciso que todos os fatos se submetem à liberdade, mas apenas que alguns possam ser a ela submetidos, para que a consciência já se interprete como subjetividade capaz de eleger rumo dentro dos acontecimentos mais ou menos acidentais que a rodeiam. Tanto quanto o homem só se descobre na sociedade, só se descobre igualmente como agente da história e elemento ora arrastado, ora envolvido, ora ainda cooperante com o fluxo da história de sua coletividade. Não resgataríamos a subjetividade da situação opressiva, em que hoje se encontra, esvaziando-a de seus conteúdos intencionais, só compreensíveis, todavia, plenamente, à luz das intencionalidades objetivadas pela espécie humana ao longo da história. Toda volta autêntica ao eu implica a compreensão concomitante de seu valor como ente enlaçante por excelência, e, por conseguinte, como alter, tudo se desenvolvendo dialeticamente em função da relação transcendente eu-mundo. Tentar ir até o “eu profundo” não significa despojar a consciência de sua circunstancialidade, de suas vinculações com todas as estruturas e normas por ela vivenciadas, mas sim visar a captá-la como foco irradiante de significados e palavras, as duas vigas-mestras sobre as quais repousa o universo da cultura. 16 Mas o ser para a história e para a cultura não deixa o homem em uma condição de “estar lançado” como seria pertinente a análises existenciais. O homem não é disposto para a história e a cultura, não é destinado a elas, mas é dotado da faculdade de as efetivar. Claro, ele mesmo só se realiza neste processo, mas esta realização é enfaticamente apontada como ato de liberdade da consciência. Estamos ainda mais próximos de Kant do que de Heidegger. Não obstante o viés fortemente ético e transcendental, a teoria de Reale é também explicitamente fenomenológica. O seu sentido histórico e cultural não é, portanto, idealista. Se a subjetividade concreta nasce da compreensão do que há de comum em todas as consciências, compreendemos melhor por que todo eu é um outro eu, e mais ainda, outro eu igual, de tal sorte que passamos a dar mais valor ao “senso comum” (no sentido de ainda não manipulada pelos juízos formalizantes das ciências) do sentido intersubjetivo e, em última análise, comunitário de nosso ser pessoal.17 16Miguel REALE. Verdade e Conjectura. p. 115. 17Miguel REALE. Verdade e Conjectura. p. 116. http://www.estudosibericos.com 16 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. VII, Nº 22, Juiz de Fora, abr.-jul/2013 A filosofia contemporânea foi capaz de equacionar o problema da incompatibilidade de matrizes,18 e isto sem que fosse necessário apelar para um ecletismo precipitado orientado pragmaticamente. A solução passa por um retorno à filosofia transcendental e seus desdobramentos idealistas, historicistas e fenomenológicos, entendendo os desdobramentos posteriores do pensar como aprofundamento da vocação autocrítica da Modernidade, agora para além de toda a razoabilidade.19 Para encurtar muito a estória basta saber que a liberdade implica em cultura – de modo algum no sentido que a antropologia materialista a considera atualmente – e que cultura, entendida como fato subjetivo-objetivo, inaugurado a partir da personalidade e extraído do mundo pelas significações que a humanidade dá aos diversos fenômenos, só é minimamente compreensível como fruto de relações sociais entre seres livres. Consoante observação de Wilhelm Windelband (1848-1915) só é possível falar de preceito, ou de norma de conduta e de sua vigência, admitindo-se que existe no homem um poder capaz de saltar por cima das funções naturalmente necessárias da vida psíquica, possibilitando o cumprimento da prescrição normativa: esse poder é a liberdade, domínio do homem sobre sua consciência, "a determinação da consciência empírica pela consciência normativa". Donde pode dizer-se que a Ética é a realização da liberdade, e que o Direito, momento essencial do processo ético, representa a sua garantia específica, tal como vem sendo modelado através das idades... 20 Miguel Reale comenta a respeito do artigo de Kant Princípio conjectural da história humana: Com a afirmação da liberdade surgiria a cultura, desde o momento em que o homem “descobre em si a faculdade de escolher por si mesmo um modo de vida, e de não ficar ligado, como os outros animais, a um único sistema de vida”, desenvolvendo-se, a partir de então, teleologicamente, rumo à afirmação igual de sua personalidade, através de um longo processo histórico, tão denso de vantagens e recompensas como de ansiedade e angústia indo desde a autoconsciência da autonomia individual até ao reconhecimento da communitas gentium, da sociedade civil e universal dos povos, ao abrigo da violência e da 18A insuficiência do sujeito. Klaus DÜSING. Modelos de autoconsciência: Críticas modernas e propostas sistemáticas referentes à subjetividade concreta. 19Conferir a longa série de demonstrações em minha tese, Humberto Schubert COELHO. Livre-arbítrio e sistema; Conflitos e conciliações em Böhme e Goethe. Juiz de Fora: UFJF, 2012. 20Miguel REALE. Filosofia do direito. p. 219. http://www.estudosibericos.com 17 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. VII, Nº 22, Juiz de Fora, abr.-jul/2013 guerra.21 Mas ainda mais fundamental do que justificar e explicar a gênese dos valores como objetos culturais a partir da liberdade humana em jogo com a objetividade do mundo é esconjurar de uma vez por todas o corrosivo da crítica ilimitada. Como bem observara Hartmann, a possibilidade de levantar problemas e o fato de serem mais ou menos invariáveis demonstra já a capacidade (se subjetiva ou ontológica aqui não interessa) de diagnosticar o que é o caso na relação entre ser e pensar. Isto caracteriza, para Hartmann, a aporia da consciência do problema, a qual nenhum cético é capaz de sequer abordar.22 Dieter Henrich celebrizou-se pela capacidade de restaurar a filosofia de sua cova pósmoderna, onde ela havia sido diluída juntamente com as esperanças humanas de ver realizadas as tarefas que a ela competiam: justificar o conhecimento, normatizar a conduta e dar sentido para a vida. Destas a tarefa primeira e mais vital era precisamente a terceira, progressivamente desintegrada na medida em que a crítica moderna levava o sujeito pensante a cortar cada vez mais fundo na própria carne, até que nada mais restasse. 23 Naturalmente uma ontologia moral como a dos antigos, que diziam “Fulano morreu de morte natural na forca!”, não pode mais se sustentar diante da progressiva conscientização da cisão subjetivo-objetiva. A ideia de que as leis humanas se mesclam perfeitamente à lei natural, e de que a sua execução inclusive segue uma regularidade previsível, ignora a liberdade no sentido revelado pelo cristianismo e desenvolvido pela cultura ocidental posterior. Contudo, a ânsia por combater o cientificismo e o “cartesianismo” da modernidade fez com que as críticas culturais e a pós-modernidade recrudescessem em uma franca incapacidade para lidar com o fato de que o patrimônio da razão permanece sempre insistindo no fechamento de sentido do mundo e da vida, e este esforço jamais pode ser visto (segundo os princípios deste mesmo patrimônio) como mera construção psicológica ou social. Simplesmente porque a parte da racionalidade humana que 21Miguel REALE. Verdade e Conjectura. p. 33. 22J. M. ADEODATO. Filosofia do Direito. p. 107. 23Fazemos referência às várias críticas e autocríticas da modernidade, assumida ou não como pósmodernidade. Textos base são a Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer, Apologia ao Acaso de Odo Marquard, diversos títulos de Habermas, Foucault ou Rorty, oferecendo ampla oferta de visões hipocondríacas que visam medicar compulsivamente o viés autocrítico da Modernidade através deste mesmo remédio. http://www.estudosibericos.com 18 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. VII, Nº 22, Juiz de Fora, abr.-jul/2013 efetua o nexo final de sentido está acima e além do escopo dos mecanismos que distinguem o subjetivo do objetivo.24 No que penso ser uma sintonia entre Henrich e Reale, o mestre brasileiro já havia se expressado deste modo sobre a questão: “As ideias transcendentais, muito embora não possuam um valor constitutivo (próprio somente das categorias do intelecto), mas sim um valor regulativo, representam esquemas heurísticos que atendem a nossa aspiração de atingir uma visão unitária dos fenômenos, ou os imperativos éticos essenciais ao homem.” 25 Diante da necessidade de formular juízos sobre campos não experimentais, o homem recorre à imaginação para projetar, de maneira lógica e rigorosa, resultados possíveis. “Conjecturar” é, sempre, uma “tentativa” de pensar além daquilo que é conceitualmente verificável, mesmo na linha do provável, por admitir-se a necessidade de cogitar-se de algo correlato, que venha complementar o experienciado, sem perda de sentido do experienciável que condiciona a totalidade do raciocínio. Esse “ir além” só pode valer enquanto suposição ou pressuposição, num discurso crítico, embora de natureza diversa dos discursos demonstrativo e probabilístico, por não culminar em soluções axiomáticas, ou mesmo relativamente certificáveis, mas apenas soluções plausíveis.26 Agora nos certificamos do que foi dito no início a respeito da não pretensão dos valores ou fenômenos culturais em se estabelecerem como objetivos. Sua natureza híbrida entre aquilo que o mundo dá a pensar e o que o homem livremente projeta como sentido deste mesmo mundo faz deste devir um pensamento algo conjectural. Doravante este reconhecimento exige imediatamente uma consciência da necessidade de sanção da lei, sem a qual esta seria puro idealismo em sentido pejorativo, especulação incapaz de afetar a vida humana. Tanto a ética quanto o direito tem carência lógica de prescrições específicas sobre seus desdobramentos práticos. Entre o fato natural e a lei física não existe solução de continuidade, porquanto a lei sistematiza o que se contém implicitamente no fenômeno mesmo. A explicação 24Em meu artigo A insuficiência do sujeito na metafísica da subjetividade, trabalhei o paradoxo subjetivismoobjetivismo no intuito de demonstrar que cientificismo e relativismo pós-moderno são as radicalizações de uma polaridade natural que precisa não apenas se equilibrar, mas ser vista em sua dinamicidade. 25Miguel REALE. Verdade e Conjectura. p. 30. 26Miguel REALE. Verdade e Conjectura. p. 36. http://www.estudosibericos.com 19 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. VII, Nº 22, Juiz de Fora, abr.-jul/2013 é, pois, funcional e insuscetível de receber "sanção", conceito este muitas vezes confundido com a simples idéia de efeito ou de conseqüência. Já no plano das ciências culturais é possível haver sanção e muitas vezes a sanção é necessária, quando se trata daquela espécie de ciências, cujas valorações implicam uma escolha e a afirmação de pautas obrigatórias de conduta.27 Em outras palavras, à lei natural não se aplicam estímulo ou juízos de validade e revogação. A lei cultural, ao contrário, permite e exige a aplicação de sanções que estabeleçam as suas consequências. No exemplo de Reale, a aplicação do arsênico em alta proporção tem por consequência a morte, mas esta é uma consequência imanente à lei natural, não sancionada. A sanção é deliberada livremente, podendo, portanto, variar muito, desde a coação física até a persuasão pela propaganda. A força com que a lei é aplicada é inteiramente arbitrária. Há, portanto, uma distinção clara entre a lei física e a lei ética ou, se quiserem, mais particularmente, entre a lei física e a lei jurídica, podendo dizer-se que a lei ética é uma espécie de lei cultural (concernente sempre a fatos humanos) de tipo normativo, implicando sempre uma sanção. É claro que nem toda lei cultural é lei ética, pois há as de tipo puramente compreensivo, como as leis sociológicas, por exemplo, que traduzem apenas "conexões de sentido", sem normatividade. A falta de normatividade e de sanção é que leva alguns autores a ver na Sociologia uma ciência explicativa, tanto como as ciências naturais.28 Conclusão Toda a normatividade é um “saber-se obrigado a seguir a forma da norma”. Em um imperativo simplíssimo como “Feche a porta!” eu identifico um desejo externo que exige de mim uma resposta livre. Esta instância básica já revela, contudo, a capacidade humana para não apenas comunicar a vontade como atrelar este comunicado a uma consciência tácita de que o seu destinatário é também um sujeito. De maneira igualmente automática, mas não instintiva, porque deriva de um mais ou menos longo aprendizado social, temos consciência de que esta liberdade do comandado levanta questões adjacentes como a necessidade de associar o comando a estímulos de recompensa ou punição. Ao acrescentarmos “por favor” já estamos explicitando uma intenção diplomática, despertando a consciência do outro para a necessidade de boa vizinhança ou a possibilidade de que eu mais tarde lhe pague o favor. 27Miguel REALE. Filosofia do direito. p. 260. 28Miguel REALE. Filosofia do direito. p. 262. http://www.estudosibericos.com 20 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. VII, Nº 22, Juiz de Fora, abr.-jul/2013 Em um estágio avançado da cultura, o estado civilizado, a lei e a ética já estão institucionalizadas e guarnecidas como patrimônio maior dos povos, emanados da tradição em seus vários aspectos, o que faz delas necessariamente um substrato da experiência social e humana ao longo dos milênios. Mas coincidentemente este mesmo momento vê surgirem as primeiras críticas sobre a validade e objetividade do saber e dos valores humanos. Se antes a força impunha um interesse contrário às tentativas de se instituir normas mais ou menos invariáveis, agora são os filósofos, a fina flor da cultura, que voltam as armas do pensamento sobre seus próprios fundamentos. Finalmente, no clímax do amadurecimento espiritual da humanidade, a consciência admite que esta crítica só é possível porque a cultura é de fato seu produto, mas um produto não ocasional ou arbitrário, derivado de formas de pensar que muito revelam sobre o próprio homem e seu modo típico de habitar o mundo. Tão grande é este problema que nós há séculos retornamos ao mesmo ponto, e em gigantescos esforços coletivos buscamos aprofundar e refinar as ferramentas que, conquanto sejam tanto criações nossas quanto os instrumentos cirúrgicos, nos permitem operar a própria substância da consciência com o fim de responder ainda aquela pergunta sobre quem somos. 29 29A título de epílogo, Aquiles C. GUIMARÃES. Metafísica e ontologia na filosofia brasileira. In: O Pensamento Luso-Galaico-Brasileiro (1850-2000). 208.: Coube ao historiador das ideias António Paim dar prosseguimento ao trabalho de interpretação da cultura realizado por Miguel Reale, na qualidade de seu mais notável discípulo, não somente perquirindo o significado da sua obra, mas também avançando posições que enriquecem de sentidos a espiritualidade brasileira. Na concepção de António Paim, a caracterização básica da ontologia culturalista está na consideração do ser da pessoa humana como actividade criadora básica e numa nova teoria dos objetos, privilegiando a esfera especulativa como articuladora última das criações do espírito, na sua autonomia absoluta. A autoconstituição ou auto-evidência de um povo se realiza pela via da criação humana da cultura que ilumina a história. Daí a relevância que Paim atribui ao papel das filosofias nacionais como marcos na caracterização dos modos de ser do homem nos diferentes compartimentos dos seus modos de habitar o mundo. Por outro lado, sendo as civilizações o reflexo dos modos pelos quais os valores são hierarquizados, é intuitivo que os fundamentos da moral repousam na criação da cultura, dado o seu caráter radicalmente axiológico, o que nos leva a perceber a mudança dos rumos da cultura, como consequência da alteração dos fundamentos morais na dinâmica da intencionalidade valorativa. A constante e exaustiva preocupação de António Paim com as questões ético-políticas está enraizada no radicalismo que confere ao tema da cultura como abrigo último da própria destinação da história. Uma metafísica e uma ontologia da cultura construídas na perspectiva transcendental como afirmação da autonomia do espírito frente aos riscos da barbárie que se constitui em ameaça permanente às civilizações.trabalho de interpretação da cultura realizado por Miguel Reale, na qualidade de seu mais notável discípulo, não somente perquirindo o significado da sua obra, mas também avançando posições que enriquecem de sentidos a espiritualidade brasileira. Na concepção de António Paim, a caracterização básica da ontologia culturalista está na consideração do ser da pessoa humana como actividade criadora básica e numa nova teoria dos objetos, privilegiando a esfera especulativa como articuladora última das criações do espírito, na http://www.estudosibericos.com 21 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. VII, Nº 22, Juiz de Fora, abr.-jul/2013 Referências bibliográficas ADEODATO, J. M. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2009. 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A constante e exaustiva preocupação de António Paim com as questões ético-políticas está enraizada no radicalismo que confere ao tema da cultura como abrigo último da própria destinação da história. Uma metafísica e uma ontologia da cultura construídas na perspectiva transcendental como afirmação da autonomia do espírito frente aos riscos da barbárie que se constitui em ameaça permanente às civilizações. http://www.estudosibericos.com 22 Ibérica – Revista Interdisciplinar de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos || ISSN 1980-5837 Vol. VII, Nº 22, Juiz de Fora, abr.-jul/2013 REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 2002. REALE, Miguel. Verdade e Conjectura. Lisboa: Fundação Lusíada, 1996. SOARES, Marly C. O problema de uma interpretação filosófica da história em Hegel. Revista do IHU: Hegel. A tradução da história pela razão. 13, 430 (outubro 2013) p. 7-12. http://www.estudosibericos.com 23